Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
541/13.0.GBGMR-A.G1
Relator: JOÃO LEE
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO PARTICULAR
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO DOS FACTOS
FASE DO SANEAMENTO DO PROCESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I) Numa estrutura processual acusatória, em que a repartição das funções de investigação,de acusação e de julgamento é feita entre magistraturas distintas e autónomas, a acusação delimita a actividade cognitiva e decisória do tribunal.
II) Por isso, não pode o juiz de julgamento, em sede de saneamento do processo, proceder a alteração da qualificação jurídica constante da acusação por reapreciação dos indícios recolhidos na fase preliminar os autos.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. O Ministério Público encerrou o inquérito nos autos com o n.º 541/13.0GBGMR e formulou acusação contra Manuel L., imputando-lhe o cometimento em autoria material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, em concurso aparente com um crime de dano, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 26.º e 14.º n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, por referência aos artigos 132.º, n.º 2, alínea h), 143.ºn.º 1 e 212.º n.º 1, todos do Código Penal, por factos que terão ocorrido no dia 5 de Agosto de 2013, em Aldão, Guimarães.

Em sequência, foi proferido em 17 de Junho de 2014, o seguinte despacho judicial (transcrição):

O Tribunal é competente e o processo é o próprio.
O Ministério Público tem legitimidade para a ação penal.
Inexistem nulidades, exceções ou outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer de imediato.
*
Recebe-se a acusação pública deduzida a fls. 83 e sgs., contra o arguido:
Manuel L., aí melhor identificado, pelos factos da mesma constante, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, e apenas pelas disposições legais consagradas nos art.ºs 14.º, 26.º, 143.º e 212.º do Código Penal, alusivas ao cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de dano.
Com efeito,
Não se recebe a acusação pública vinda de referir com a referência ao crime de ofensa à integridade fisica qualificada, p. e p. pelo art.º 145.º, n.º1 e 2, do Código Penal, dado inexistirem fatos concretos descritos e alegados que sustentem tal imputação. – art.º311.º n.º2, al. a) e nº 3, al. b), do Codigo de Processo Penal.
Concretizando.
A qualificação decorrente dos n.º 1 e 2 do art.º145.º do Código Penal e do n.º 2 do artigo 132.º do Cód. Penal (para onde aquele primeiro remete) não é automática, antes «deriva da verificação de um tipo de culpa agravado» o que obriga a que os elementos imputados e apurados revelem «uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta» (cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª ed., p. 49).
Neste mesmo sentido, Ac. STJ de 21.10.2009, processo n.º 589/08.6PBVLG.S1: «(…) A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. (…) IV -O cerne do referido ilícito está, assim, na caracterização da ação letal do agente como de especial censurabilidade ou perversidade face às circunstâncias em que, e como, agiu, ou dito de outro modo, está nas circunstâncias reveladoras ou não de especial censurabilidade ou perversidade que integram a ação letal do agente (…)», disponível em www.dgsi.pt..
Fernanda Palma, por sua vez, começa por distinguir nas circunstâncias do nº 2 do art.º 132º duas espécies: “circunstâncias relativas ao modo de ser objetivo da ação e circunstâncias relativas à implicação pessoal do agente da ação”, completando: «Nas primeiras, é notória a existência do maior desvalor da ação para a Ordem Jurídica: quer o emprego de tortura, (…) quer a utilização de veneno ou dos outros meios previstos correspondem a ações que encerram uma grande perigosidade objetiva (…). Nas segundas, embora, aparentemente só o interior do agente esteja em causa, (…) elas não se referem a aspetos da personalidade do agente (…) mas só à implicação da pessoa do agente na ação, caracterizadora da própria espécie de ação. Também a finalidade da ação (al. e)) não é algo extrínseco à ação, mas o conteúdo específico da vontade que, ao concretizar-se, constitui a própria ação humana». Conclui assim que, também nesta segunda espécie de circunstâncias, «embora o íntimo do agente surja em primeiro plano como objecto de valoração, também o desvalor por elas indiciado é diretamente desvalor da ação». (cfr. Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 1983, pág. 49 e sgs.)
Para Fernanda Palma, o conjunto das circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º é, todo ele, definidor de um grau mais grave de ilícito. Mas, no sentido em que essas circunstâncias terão que “pesar na censurabilidade ou perversidade do agente” é que se podem considerar como relativas à culpa, sendo a gravidade da culpa o fundamento da agravação (loc. cit. pp. 43-45).
Resulta do, então, art.º 132.º do Código Penal, como se viu – e em qualquer uma das construções dos autores citados e apesar dos diferentes caminhos –, que qualquer das circunstâncias previstas no nº 2 – sejam elas relativas ao facto ou ao agente – consubstanciam o crime qualificado apenas quando delas se conclua ainda pela presença de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Ora, dito isto e revertendo ao caso concreto, verifica-se que a descrição da ação alegadamente levada a cabo pelo arguido cinge-se ao constante de b) e daqui apenas se sabe que utilizou um ferro e com ele deu uma pancada num vidro, “acabando por partir o vidro lateral e atingir o ofendido”.
Assim, as circunstancias descritas da ação evidenciação uma ação humana simples: deu uma pancada num vidro e acabou por o partir e atingir a integridade fisica do ofendido.
O referido em e) a propósito de “ciente da perigosidade do objeto de ferro enquanto instrumento letal” atenta a inexistência de qualquer elemento fatual concreto é matéria conclusiva.
Note-se que o próprio MP não sabe as características do alegado ferro supostamente utilizado… Com toda a segurança, um ferro de, por exemplo, dois centímetros de cumprimento e um de diâmetro não se assume como letal e como instrumento contundente…
Finalmente, as lesões supostamente causadas não corroboram qualquer especial atuação ou grau de culpa, nem apontam para a perigosidade letal ínsita do objeto de ferro que utilizou (cura 3 dias e sem qualquer afetação para o trabalho…)
Assim, seja pela parca e simples descrição da ação, seja pela ausência concreta da descrição do objeto utilizado, seja ainda pelas reduzidas lesões supostamente causadas, não há qualquer alegação fatual no despacho de acusação passível de integração da imputada atuação no crime qualificado.
Finalmente, relembra-se que o processo penal deve respeitar o princípio do acusatório e o objeto da causa prende-se com a fatualidade descrita no despacho/requerimento de acusação.
Pelo exposto e conforme já mencionado, por inexistência de fatos descritos, alegados, passíveis de integrar a qualificação prevista pelo art.º 145.ºdo Código Penal, não se recebe a acusação pública supra id. com a referência a tal disposição legal (art.º 311.º, n.º2, al.a ), e n.º3, al. b), do Código de Processo Penal).
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Recebe-se a acusação particular deduzida a fls. 90 e sgs., contra o arguido:
Manuel L., aí melhor identificado, pelos factos e disposições da mesma constante, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais
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Recebe-se o pedido de indemnização civil deduzido a fls. 91 e sgs., contra o arguido Manuel L., por tempestivo e legal, bem como se admite a produção de prova indicada.
*
Da realização da audiência de julgamento: a designar oportunamente (Deliberação do CSM de 09.04.2013).

O Ministério Público, por intermédio da magistrada no juízo criminal de Guimarães, interpôs recurso e da motivação extraiu as seguintes conclusões (transcrição nos seus precisos termos) :

1- O Ministério Publico proferiu acusação contra o arguido Manuel L. pela prática, além do mais, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art°145°, n°1 al.a) e n°2 por referência aos art°s 132°, n°2, al.h) e 143°, n°1 todos do Código Penal.
2- Apresentados os autos nos termos e para os efeitos do disposto no art°311.º do CPP a Mmª Juíza não recebeu a acusação publica com a referência ao art°145° do Código Penal por inexistência de factos descritos, alegados passiveis de integrar tal qualificação, nos termos do art°311°, n°2, al.a) e n°3, al.b), do CPP.
3- O Ministerio Publico não se conforma com o teor do despacho proferido a fls. 107 a 109 no que diz respeito ao não recebimento da acusação pelo crime de integridade física qualificada p. e p. pelo art°145°, n°1 al.a) e n°2 por referência aos art°s 1 32°, n°2, al.h) e 143°, n°1 todos do Código Penal e a requalificação pelo crime de ofensa à integridade física simples p e p. pelo art°143° do Código Penal.
4- A discordância prende-se com duas questões, uma por considerar-mos que no despacho de recebimento de acusação nos termos do art° 311.º do CPP não podia a Mma Juíza alterar a qualificação jurídica dos factos narrados na acusação deduzida pelo Ministério Publico; outra na medida em que os factos descritos na acusação integram a pratica do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art°145°, n°1 al.a) e n°2 por referência aos art°s 1 32°, n°2, al.h) e 143°, n°1 todos do Código Penal, porquanto não resta qualquer duvida que o arguido utilizou um ferro e com ele atingiu o ofendido provocando-lhe as lesões físicas descritas no exame medico-legal.
5- O douto despacho proferido pela Mm Juiza que alterou a qualificação jurídica feita pelo Ministerio Publico dos factos descritos na acusação extravasa a competência e a função que a norma do art°311.º do CPP atribui ao juiz ao receber os autos.
6-Nos termos do art°311 ° do CPP o Juiz pronuncia-se sobre nulidades e outras questões previas ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa de que posas desde logo conhecer.
7-Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se aconsiderar manifestamente infundada ou de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministerio Publico na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n°1do art°284° e do n°4 do art°285 respetivamente.
8-A acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a identificação do arguido; quando não contenha a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou se os factos não constituírem crime.
9-São só estas e nestas situações em que o Juiz pode rejeitar a acusação ou parte dela as quais o legislador quis deixar taxativamente descritas no art°311°do CPP.
10- A estrutura acusatória do processo penal está plasmada no art°32°, n°5 da Constituição da Republica Portuguesa.
11- A acusação deduzida pelo Ministério Publico nos presentes autos obedece a todos os requisitos previstos no art°311.º pelo que, não existe fundamento para a sua rejeição ainda que parcial, ou seja, relativamente a um dos ilícitos imputados ao arguido.
12-Se o tribunal não concorda com a qualificação jurídica feita pelo Miniserio Publico na acusação só a poderá modificar, se for o caso, após a produção de prova em audiência de julgamento.
13-Pelo que deveria a Mma Juiza ter recebido, na integra, a acusação proferida pelo Ministerio Publico e pela qualificação jurídica ali efectuada.
14-Se assim não se entender, sempre se dirá que quanto à segunda questão suscitada entendemos que a Mma Juiza não podia, sem mais, considerar que os factos descritos na acusação do Ministerio Publico não são subsumíveis ao crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art°145°, n°1 al. a) e n.º 2 por referência aos art°s 132°, n°2, al.h) e 143°, n°1 todos do Código Penal, apenas porque não resultam dos factos descritos na acusação as características especificas do ferro utilizado pelo arguido e por as lesões corporais sofridas pelo ofendido não serem de molde a concluir-se que tal instrumento era perigoso.
15- Na acusação não resulta a descrição das características do ferro, designadamente comprimento, espessura etc. , mas não resulta qualquer duvida que o instrumento utilizado foi um ferro e que tal objecto por si só pode causar lesões graves ou até a morte e é um instrumento perigoso.
16- As características especificas de tal ferro serão certamente apuradas em sede de audiência de julgamento e aí após produção de prova e concluindo-se pela insuficiência de tais características ou por características que não correspondem a meio particularmente perigoso, a Mm° Juiza alteraria a qualificação jurídica para o crime correspondente.
17- Por despacho de fls83 e 84 o Ministerio Publico deduziu acusação contra o arguido Manuel L., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, cujos factos integram a pratica pelo arguido, além do mais, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art°145°, n°1 al.a) e n°2 por referência aos art°s 132°, n°2, al.h) e 143°, n°1 todos do Código Penal.
18- Ao rejeitar a acusação por tal ilícito e a requalificar tais factos por outro crime ainda que menos grave no douto despacho recorrido proferido a fis. 1 07 e seguintes, foram violadas as normas constantes nos art°s 1 43°, 1 45, 132° todos do Código Penal e art°s 283° e 3 1 1° do Código de Processo Penal.
19- O despacho recorrido deve ser substituído por outro que ordene o recebimento da acusação deduzida nos autos pelos factos descritos na acusação e que integram, além do mais, a prática de um crime de ofensa à integridade fisica qualificada p. e p. pelo art°145°, n°1 al.a) e n°2 por referência aos art°s 132°, n°2, al.h) e 143°, n°1 todos do Código Penal.

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, onde o processo deu entrada a 2 de Abril de 2015, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer concluindo pela procedência do recurso.

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e da juíza adjunta e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. O Ministério Público formulou acusação, imputando ao arguido o cometimento de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pela conjugação dos artigos 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, por referência aos artigos 132.º, n.º 2, alínea h), 143 º n.º 1. Após distribuição, o juiz de julgamento, no despacho a que se reporta o artigo 311.º do Código do Processo Penal, entendeu que os factos constantes da acusação não preenchiam nenhumas das hipóteses previstas nas diversas alíneas do artigo 132.º n.º 2, pelo que os factos imputados integravam a prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física simples do artigo 143.º, todos do Código Penal.

A questão a decidir nestes autos consiste em saber se na ocasião do saneamento do processo, o juiz pode modificar a qualificação jurídica dos factos constante da acusação.

Este é um problema que tem merecido respostas distintas na jurisprudênciaCfr., por todos, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-11-2013, proc. 438/12.0SLPRT.P1, Eduarda Lobo, decidindo que no despacho previsto nos artigos 311.º e 313.º do Código do Processo Penal o juiz pode alterar a qualificação jurídico-penal constante da acusação e, em sentido inverso, o acórdão do mesmo Tribunal da Relação do Porto de 30-05-2012, proc. 130/10.0PEPRT.P1, Moisés Silva, decidindo que na fase de saneamento do processo o juiz não pode conhecer do mérito da acusação (excepto se os factos aí vertidos não constituírem crime), nem pode requalificar juridicamente os factos da acusação, sob pena de violar o princípio da acusação e do contraditório. .

Sabemos que a estrutura acusatória obedece a um princípio fundamental do processo penal e beneficia de tutela constitucional – artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República, significando essencialmente que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32º, pág. 205).

Uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste precisamente nesta “vinculação temática” : os factos descritos na acusação (normativamente entendidos) definem o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado (J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1981, p. 144).

A vinculação temática do tribunal é considerada assim como a “pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido” e assegura, também, os seus direitos de contraditoriedade e audiência: é indispensável que o arguido saiba com precisão de que se encontra acusado, para que possa apresentar os seus argumentos e os seus meios de contra prova. Como tem sido sublinhado, a indicação da norma incriminadora, obrigatoriamente constante da acusação, atribui o desvalor jurídico-penal aos eventos materiais e integra igualmente o objecto do processo.

Daí que admitir a possibilidade de a alteração da qualificação jurídica no despacho judicial de designação de data para julgamento seria postergar a possibilidade de o arguido requerer a abertura de instrução sobre a matéria relevante para o novo enquadramento jurídico.

Num plano distinto, mas não menos importante, a estrutura acusatória do processo implica também uma perfeita distinção entre as funções de acusação e de julgamento. Além da diferença de identidade entre acusador e julgador, é essencial que o julgador esteja vinculado ao tema do processo que lhe é trazido pelo acusador.

Neste âmbito, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 11/2013 que a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.os 1 e 3 do CPP». Para assim decidir, o plenário das secções criminais do Supremo Tribunal expressou o entendimento de que os institutos da alteração não substancial dos factos (358º, n.º 1) e da alteração da qualificação jurídica (358º, n.º 3, ambos do Código do Processo Penal) apenas se aplicam, como do texto da primeira daquelas disposições expressamente decorre, se, no decurso da audiência, se verificar uma dessas alterações, pelo que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação apenas pode ser discutida na audiência de julgamento. No mesmo acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça assumiu o entendimento constante do parecer do Exmo. magistrado do Ministério Público naquele Tribunal, argumentando que “a alteração da qualificação efectuada pelo juiz de julgamento mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação.

De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição. É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação.

No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação.

Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos. Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete.

E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.” (Publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 138, de 19 de Julho de 2013, relator Conselheiro Henriques da Graça.)

Como também escreveu o Conselheiro Oliveira Mendes, uma eventual alteração do objecto do processo no despacho a que se reportam os artigos 311.º e 313.º do Código do Processo Penal “só é admissível no circunscrito âmbito do saneamento do processo, isto é, por efeito da existência de qualquer nulidade ou outra questão prévia ou incidental que obste à apreciação, de parte, do objecto do processo. Com esta asserção pretendemos significar que ao juiz está vedada a possibilidade de alterar a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, modificação que só pode ser equacionada na audiência de julgamento de acordo com o disposto nos artigos 358.º e 359.º (Código do Processo Penal Comentado, 2014, Gaspar, António Henriques, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1037, anotação ao artigo 313.º).

Em conclusão, numa estrutura processual acusatória, em que a repartição das funções de investigação, de acusação e de julgamento é feita entre magistraturas distintas e autónomas, a acusação delimita a actividade cognitiva e decisória do tribunal, pelo que não pode o juiz do julgamento proceder a alteração da qualificação jurídica constante da acusação por reapreciação dos indícios recolhidos na fase preliminar do processo.

No caso concreto destes autos, está vedado ao juiz, nesta fase processual, apreciar os indícios e julgar se o ferro que teria sido utilizado para atingir o ofendido se deve ou não considerar como um meio particularmente perigoso para efeito de qualificação do crime por especial censurabilidade.

3. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso e em revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outro despacho que não rejeite a acusação do Ministério Público com fundamento na alteração da qualificação jurídica dos factos indiciados.

Sem tributação.

Guimarães, 22 de Junho de 2015.