Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
175/21.5T8VNF-B.G1
Relator: MARIA EUGÉNIA PEDRO
Descritores: QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
DEFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
APRECIAÇÃO CRÍTICA DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A falta de apreciação crítica da prova constitui uma deficiência da fundamentação da decisão da matéria de facto que cabe na previsão da al. d) do nº2 do art. 662 º e não na previsão da al. b) do art. 615º do CPCivil.
II. O dever de fundamentação da decisão da matéria de facto, imposto pelo nº4 do art. 607º do CPCivil, não se mostra cumprido com a simples remissão para o teor dos documentos juntos aos autos e o resumo dos depoimentos das testemunhas e das declarações das partes, sem qualquer apreciação crítica, nomeadamente, a explicitação relativamente a cada um dos factos ou matérias em discussão, de quais os meios de prova que foram determinantes, por que se conferiu credibilidade a uns depoimentos e não a outros, e qual a relevância dos documentos apresentados.
Decisão Texto Integral:
 Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

 I. Relatório
 
Nos autos principais de insolvência  que estes se acham  apensos  foi proferida sentença  que  declarou o estado  de insolvência da  sociedade P..., Lda, e, posteriormente,  declarado aberto o incidente de qualificação  da insolvência a credora .
A  credora J..., Lda, apresentou requerimento pedindo a qualificação  da insolvência como culposa,  e indicou a legal representante da insolvente  AA e o gerente de facto P... como  as pessoas  a  afectar por tal qualificação.
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A administradora da insolvência apresentou o respetivo parecer no sentido da qualificação da insolvência como fortuita” atenta a inexistência de dolo ou, quando muito, culpa grave na emergência das presunções  constantes do  nº2 do art. 186º do CIRE.”                                                                 
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O Ministério Público na vista que lhe foi aberta, nos termos do nº3 do art. 188º do CIRE,  pronunciou-se  no sentido da qualificação da insolvência como culposa, com afectação da gerente de direito AA e do gerente de facto P....  
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Nos termos do nº6 do art. 188ºdo CIRE, os requeridos foram citados e a insolvente  notificada  para, querendo,  deduziram oposição.
A requerida  AA  apresentou oposição.
Foi elaborado  o despacho saneador e, de seguida,  identificado do objeto e  enunciados os temas da prova.
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Seguindo os autos os seus termos, realizou-se a audiência de discussão e julgamento e, em 14.7.2022, proferida sentença, na qual se decidiu:
           
a) Qualificar como culposa a insolvência de P..., Lda, declarando afetados
pela mesma AA e P....
b) Fixar em 6 (seis) anos o período da inibição de AA para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Fixar em 6 (seis) anos o período da inibição de P... para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e P... e condená-los na restituição de eventuais bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
e)Condenar, ainda, os requeridos a pagar aos credores o montante de € 15.000,00, cada um, de  indemnização aos credores dos créditos reconhecidos na lista apresentada pelo Administrador da Insolvência nos termos do art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Fixo o  valor do incidente em € 30.000,01
Custas pelos afectados AA e P...- art. 526º, nº1 e2 do CPC  ex vi do art. 17º do CIRE.
Registe e Notifique
Comunique a presente decisão à CRC- cfr. art. 189º, nº3 do CIRE.”
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Inconformada com a decisão AA interpôs o presente recurso, finalizando a sua alegação, com as seguintes  conclusões, que se transcrevem:

DA NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO:

1. Nos termos do artigo 615º n.º 1 da alínea b) do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
2. Descendo ao caso concreto e analisada a decisão em crise verificamos, sem qualquer sombra de dúvidas, de que a mesma padece de ausência total de fundamentação do julgamento de facto relativo aos “factos provados e não provados”, porquanto, o Tribunal a quo, na sua decisão, no ponto sob a epigrafe “Fundamentação De Facto”, apenas referiu que “A matéria de facto resulta do teor dos documentos junto aos autos, conjugados com os depoimentos prestados em audiência de julgamento.”
3. Porém, a verdade é que o Tribunal de 1.ª Instância não deu sequer a conhecer quais os documentos que apreciou e que serviram de base à factualidade constante na decisão.
4. Situação idêntica aconteceu com os depoimentos prestados em audiência de julgamento, uma vez que, sobre tal prova, o Tribunal, não obstante ter atribuído algumas páginas da sua decisão aos depoimentos, mais não fez do que uma mera descrição dos depoimentos prestados em audiência de julgamento.
5. Em momento algum o Julgador deu a conhecer a sua apreciação critica dos depoimentos descritos, nem tampouco a explicitação do raciocínio lógico do Tribunal e, principalmente, em que medida esses depoimentos contribuíram/sustentam a factualidade dada como provada e não provada.
6. A verdade é que, das quase quatro páginas, que o Tribunal a quo dedicou ao titulo “Fundamentação De Facto”, em nenhuma delas existe uma apreciação critica, entre os depoimentos descritos e a matéria dada como provada/não provada, o que se traduz numa omissão de qualquer apreciação crítica da prova produzida, impedindo, assim, a sua sindicância.
7. No que aos documentos juntos aos autos diz respeito, os mesmos, não mereceram, sequer, à semelhança do verificado com os depoimentos, a sua descrição/descriminação pelo Tribunal de 1.ª Instância.
8. A ora recorrente, apresentou oposição à qualificação da insolvência como culposa, tendo junto com a mesma 40 DOCUMENTOS, os quais nenhum comentário mereceram do Tribunal a quo.
9. Impunha-se ao Tribuna, fazer uma valoração crítica de toda a prova produzida em audiência final e da constante dos autos, justificando os motivos pelos quais, em função dessa apreciação, não poderiam os factos provados e não provados merecer julgamento diferente.
10. Assim, nessa medida, impõe-se determinar a nulidade da sentença recorrida, nos termos e para os efeitos do artigo 615º, nº 1, al. b) do CPC e a sua anulação.

SEM PRESCINDIR,

DA NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE PRONUNCIA SOBRE QUESTÕES QUE DEVESSE APRECIAR:

11. Caso este Tribunal superior entenda que, in casu, não se verifica a nulidade acima mencionada, posição que, atentas as razões supra expostas, não aceitamos, mas que por mera hipótese de decisão aceitamos poder acontecer, sempre se dirá o seguinte:
12. A alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, dispõe que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
13. Considerando o caso concreto, temos de reconhecer que a sentença não se pronunciou sobre questões que a ora recorrente colocou em litígio e que o Tribunal a quo tinha a obrigação de responder, concretamente, as dividas e os pagamentos efetuados e descritos no ponto 10 (dez) da oposição apresentada pela requerida, ora recorrente.
14. Ora, compulsados os elencos de factos provados e de factos não provados da sentença recorrida, não encontramos nos mesmos a indicação de qualquer uma destas concretas e discriminadas dividas, bem como do pagamento ou não pagamento que cada uma delas terá tido.
15. Situação que por si só configura uma nulidade da sentença por falta de pronuncia de questões colocadas ao Tribunal, porquanto, tais dívidas e pagamentos estão diretamente ligados à descoberta da verdade material e ao objeto do processo, ou seja, à qualificação da insolvência como culposa.

AINDA SEM PRESCINDIR,
DA APRECIAÇÃO DA MATÉRIA FACTUAL:

16. Considera a recorrente que:
17. Os pontos 4), 5), 7), 8), 9) 10), 17) e 18) dos factos dados como provados, comportam MATÉRIA CONCLUSIVA e que, por via disso, não pode elencar os “factos provados”.
18. O ponto 4) da matéria dada como provada tem carácter meramente conclusivo, porquanto nenhuma matéria factual comporta, limitando-se a explanar um juízo de valor sobre os “conhecimentos” dos requeridos, relativamente à situação da devedora, à data da venda do seu ativo.
19. Tal ponto não contém nenhum facto concreto objeto de prova, que possa sequer indiciar tal “conhecimento” dos requeridos.
20. Por sua vez, o ponto 5) dos factos dados como provados, mantém as conclusões sobres os “conhecimentos” dos requeridos, e, à semelhança do ponto antecedente, nenhum facto de prova incorpora.
21. O ponto 7) dos factos dados como provados, limita-se a efetuar um juízo de valor sobre matéria que integra o objeto do litígio.
22. Ou seja, em tal facto, dado como provado pelo Tribunal a quo, consta que a requerida, ora recorrente, foi a gerente de direito da devedora desde 14-2-2019 até à declaração de insolvência e que o requerido P... foi o gerente de facto nesse mesmo período de tempo.
23. Ora tal ponto configura matéria em discussão nos presentes autos e afigura-se uma conclusão de que a requerida era gerente de direito da insolvente (não de facto), sucede que tal matéria deveria ter sido extraída de matéria factual dada como provada, mas nunca ser a mesma, matéria dada como provada!
24. Nos pontos 8 e 9 da matéria dada como provada o Tribunal mantém a inclusão de conclusões e juízos de valor nos factos provados, porquanto, dos mesmos apenas consta as conclusões de que eram os requeridos que:
- decidiam os negócios a encetar e os seus termos;
- acordavam as relações comerciais que mantinha com terceiros;
- emitiam cheques e contactavam com Bancos;
- eram responsáveis pela gestão, administração e representação de toda a atividade exercida;
- eram responsáveis pela contratação de funcionários, a emissão de cheques, a assinatura de documentos e a entrega daqueles que serviam de base à elaboração da contabilidade.
25. Mas impõe-se a pergunta: Onde estão os factos concretos, nestes pontos?
26. O Tribunal a quo teria de ter dados como provado quais são os cheques, que pagamentos, em que dia, quais funcionários, quais negócios...etc, para posteriormente, e nunca na matéria factual dada como provada, poder chegar às conclusões existentes nos pontos 8 e 9 dos factos dados como provados.
27. O ponto 10) dos factos dados como provados apenas inclui a conclusão de que os requeridos estavam cientes de que tinham de entregar ao administrador judicial os documentos a que alude o artigo 24.º,n.º 1 do CIRE e que não apresentaram qualquer justificação pelo facto de não terem entregado.
28. A ora recorrente aceita que deste ponto se possa extrair um facto, mas seria penas de que “Os requeridos, não entregaram ao administrador judicial os documentos a que alude o artigo 24.º, n.º 1 do CIRE.”
29. Por seu lado o ponto 17) dos factos dados como provados apresenta-se totalmente conclusivo.
30. Tal juízo de valor apenas poderia ter sido alcançado pela descrição das obrigações pecuniária (datas, valores, montantes e entidades) que a insolvente não cumpriu, bem como de factos que atestem a sua incapacidade definitiva em cumprir as mesmas.
31. O facto 18) dos factos dados como provados é, também ele, impreterivelmente conclusivo.
32. Aliás o mesmo começa por referir que “Tal estado de coisas determinou (...)”, o que configura uma conclusão.
33. O Tribunal teria de ter incluído na matéria factual “o estado” e “as coisas” para posteriormente, e nunca na matéria dada como provada, poder tecer os juízos de valor que entendesse por bem.

POSTO ISTO,
34. É inequívoco que, o conteúdo de tais pontos encerra, mais do que afirmações factuais, factos ou juízos de facto, asserções conclusivas/valorativas incidentes sobre questões do litígio, estando em causa expressões que não configurando, em si mesmas, factos materiais, se reconduzem à formulação de juízos conclusivos, que antes se deveriam extrair dos factos materiais que os suportam e que se integram no thema decidendum.
35. Assim, os pontos 4), 5), 7), 8), 9) 10), 17) e 18) dos “factos provados” deverão ser eliminados, já que “em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum” - Ac. do STJ de 23.09. 2009, Processo n.º 238/06.7TTBGR.S1, acessível em www.dgsi.pt -.
36. Impõe-se, pois, expurgar da matéria de facto dada como provada os pontos 4), 5), 7), 8), 9) 10), 17) e 18), uma vez que os mesmos encerram exclusivamente matéria de natureza conclusiva, conforme o artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.
37. Na opinião da recorrente a sentença em crise encontra-se em

ERRO DE JULGAMENTO, uma vez que atenta a matéria factual fixada e a prova produzida, existem erros consubstanciados numa má e/ou errada avaliação das provas obtidas que conduzem a uma deficiente apreciação da matéria de facto.
38. Na mui opinião da ora recorrente, o Tribunal a quo NÃO

PODERIA TER DADO COMO PROVADO os pontos 19), 20) e 21) da factualidade dada como provada, uma vez que tendo em conta o depoimento prestado em audiência de julgamento pela Sra. Dra. BB (contabilista da devedora até 30/09/2020), tais factos deveriam ter sido considerados como NÃO PROVADOS.
39. Assim, atento tal depoimento, e tendo por base que a testemunha (contabilista BB) foi a contabilista certificada da insolvente até 30 de setembro de 2022 e que desde agosto de 2022 a sociedade insolvente cessou a sua atividade, fica claro que os documentos contabilísticos chegavam atrasados à contabilista BB, mas que eram entregues, porquanto, a mesma não menciona nunca incumprimento na entrega, mas sim constantes atrasos.
40. Aliás, sem tais documentos não seria possível à testemunha cumprir com as obrigações fiscais...como declarou ter cumprido, integralmente até 30 de setembro de 2020!
41. Assim, o facto 19) dado como provado pela decisão em crise, deve ser considerado como NÃO PROVADO!
42. Por seu lado, o facto 20) da matéria dada como provada, deve, também ele, ser considerado como NÃO PROVADO, tendo em conta que nunca foi referido pela testemunha tais “irregularidades” na contabilidade e uma vez que a douta sentença não fundamentou tal factualidade, afigura-se impossível sindicar doutra forma tal factualidade,
43. mas uma vez que todos os lançamentos contabilísticos, ligados à atividade da sociedade insolvente (uma vez que encerrou atividade em agosto de 2020), foram efetuados pela testemunha e antes da sua renúncia ao cargo de contabilista da insolvente (30 de setembro de 2022), não tendo e mesma, no seu depoimento, mencionado quaisquer irregularidades no registo de pagamentos - registados sem documentos -, deve tal facto ser dado como NÃO PROVADO.
44. No que ao facto 21) dado como provado pelo Tribunal a quo diz respeito, a testemunha em causa foi perentória ao mencionar, por diversas vezes, que até à sua saída não existiam dividas em incumprimento, existindo apenas não pagamentos à Segurança Social e Autoridade Tributária se encontravam, a serem cumpridos através de acordos de pagamentos, deferidos por tais organismos.
45. Assim, o facto 21) dado como provado pela decisão em crise, deve ser considerado como NÃO PROVADO!
46. Ainda quanto à factualidade dada como provada, a recorrente entende que, o Tribunal a quo

NÃO PODERIA TER DADO COMO PROVADO que:
47. A ora recorrente não apresentou qualquer justificação para o facto de não ter entregue, à Sra. Administradora de Insolvência, os documentos a que alude o artigo 24.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (facto 10) da factualidade dada como provada), uma vez que do depoimento prestado pela Sra. Administradora, ouvida em audiência de julgamento, não é isso que se pode depreender
48. De tal depoimento, fica claro que, a ora recorrente, por intermédio da sua mandatária, sempre se disponibilizou para entregar todos os documentos, sucede que, como se sabe, a sociedade insolvente tinha, em cumprimento de uma obrigação legal, um contabilista certificado nomeado, o qual era o responsável e habilitado para exercer toda a atividade de contabilidade da empresa.
49. Sucede que, após 30 de setembro de 2020, o contabilista nomeado Sr. Dr. CC não entregou à Sra. Administradora os elementos solicitados, repare-se que não se encontrava na esfera de disponibilidade da ora recorrente, a entrega de IES, Balancetes e contas anuais da sociedade insolvente, porquanto, tais documentos são elaborados e submetidos pelos técnicos habilitados, no caso contabilistas certificados, sendo que e a sociedade insolventes sempre dispôs de um.
50. Situação diferente seria se a ora recorrente não tivesse diligenciado pela contratação de um contabilista certificado e a sociedade insolvente se visse impedida de cumprir com as suas obrigações fiscais, por falta de técnico capaz. Aí sim poderia haver responsabilização da ora recorrente.
51. Mas não é o caso dos autos!
52. A sociedade insolvente sempre teve um contabilista certificado nomeado, a identificação do mesmo é conhecida, as obrigações fiscais foram TODAS cumpridas, mas os documentos não chegaram, atempadamente, ao poder da Sra. Administradora apenas e só porque, como a mesma bem referiu, o contabilista não enviou.
53. Aliás, a Sra. Administradora de Insolvência referiu até que recebeu um e-mail da mandatária da recorrente a dar-lhe conta de que era intenção da recorrente, agir judicialmente contra o contabilista, uma vez que o mesmo não estava a cumprir com as suas obrigações.
54. Assim deve ser dado como não provado o ponto 10) dos factos dados como provados pela douta sentença, na parte em que considera que a recorrente nenhuma justificação apresentou, para a não entrega dos elementos contabilísticos.
55. E bem assim, deve ser dado como provado que:
“O contabilista certificado nomeado à sociedade insolvente, Sr. CC, não enviou à Sra. Administradora de Insolvência dos documentos a que alude o artigo 24.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
56. Ainda tendo em conta o depoimento prestado, em audiência de julgamento, pela Ex.ma Dra. Administradora de Insolvência, a ora recorrente, também, não pode aceitar que o Tribunal a quo, desse como provado o ponto 16), constante da matéria factual dada como provada, porquanto, não é verdade que a Sra. Administradora não tenha apurado o destino do ativo, dinheiro e bens da insolvente, a situação dos funcionários, nem o paradeiro dos veículos de matrículas ..-..- NC, ..-..-SI e ..-GP-..,
57. quando, a mesma declarou conhecer o ativo da insolventes (imobilizado vendido à S..., e veículos de matrículas ..-..- NC, ..-..-SI e ..-GP-..), conhecer e ter aceite o destino dado ao dinheiro proveniente da venda do imobilizado (usado para liquidar dividas da insolvente), saber que os funcionários da insolventes passaram a trabalhar para a S... e quanto aos veículos, demonstrou não ter interesse na sua apreensão, uma vez que o seu diminuto valor, apenas representaria para a massa insolvente um custo e nenhum proveito.
58. Quanto à factualidade assente como não provada, na mui opinião da ora recorrente, O TRIBUNAL A QUO NÃO PODERIA TER DADO COMO NÃO PROVADO que:
59. Alínea I) dos factos dados como não provados “Com o produto da venda referida em 2º a insolvente pagou as dívidas que identifica a fls 143 e 144 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.”
60. Alínea J) dos factos dados como não provados “Atentos os pagamentos efetuados a partir de agosto de 2020, após o negócio com a S..., a insolvente liquidou de dívidas aos credores o montante de € 36.705,26, dos quais cerca de 10 mil euros ao Estado.”
61. Conforme acima já foi referido, a ora recorrente, aquando da apresentação da sua oposição declarou nos pontos 10, 11 e 12 de tal articulado o seguinte:
“10. Partindo desta premissa, não é verdade que in casu se tenha verificado a perda ou subtração de parte considerável dos bens da insolvente, porquanto com o produto da venda do seu ativo a insolvente liquidou dívidas que detinha, concretamente (...)
11. Atentos os pagamentos efetuados a partir de agosto de 2020 – após negócio com S...
– a insolvente liquidou de dívidas aos credores o valor de €36.705,26!!
12. Dos quais cerca de 10 mil euros foi ao Estado!”
62. A recorrente, identificou, as dividas/credor, o montante, a data da liquidação e juntou documentos que atentam os pagamentos feitos.
63. Da prova resultante de todo o processo, nenhuma outra prova foi produzida que contrariasse, desacreditasse, ou comprovasse factos contrários do exposto e provado (pelos 40 documentos) pela requerida, ora recorrente, na sua oposição.
64. Ademais, o Tribunal encontra-se em contradição quanto ao ponto 3) dos factos dados como provados e as alíneas I) e J) da matérias assente como não provada, uma vez que não é aceitável o tribunal dar como não provada a totalidade dos pagamentos - alegados pela requerida, ora recorrente, na sua oposição -, efetuados com o produto da venda do ativo da insolventes e, simultaneamente, considerar como facto provado que, com “parte” do produto da venda do seu ativo, a insolvente liquidou dívidas que detinham.
65. Motivo pelo qual, impunha-se ao Tribunal a quo considerar as alíneas I) e J), da matéria assente como não provada, como FACTOS PROVADOS!
66. Na mui opinião do ora recorrentes tendo em conta a factualidade provada não é possível, sem mais, decidir que se mostram preenchidas nas alíneas a), d), f) h) i) do nº2 e nº1 do artigo 186º e alínea a) do nº 3 desse mesmo artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
67. Conforme abaixo melhor se irá demonstrar, a qualificação da insolvência, da sociedade comercial “P..., Lda.”, como culposa necessita de incluir, impreterivelmente, determinada matéria factual, seja como provada ou não provada, que a decisão sob censura, não incorpora.
68. Só com a inclusão de tal matéria factual é possível se alcançar uma decisão harmoniosa com os dispositivos legais a que deve obedecer e integralmente justa!
69. Assim, torna-se necessário existir no elenco da matéria de facto relevante para a decisão de mérito:
- a concreta discriminação das dívidas (aludidas no ponto 10 da oposição apresentada pela requerida, ora recorrente), os pagamentos ou não pagamentos – fruto do produto da venda do ativo da insolvente – que cada uma delas terá tido;
- o valor real do ativo da insolvente;
- momento em que a sociedade “P..., Lda.” ficou tecnicamente insolvente;
- momento em que se verificou um incumprimento generalizado das obrigações da insolvente;
- elementos factuais de que ao não se apresentar à insolvência, “P..., Lda.”
agravou a sua situação, ou de que não agravou.
70. Uma vez que a douta decisão, levada à apreciação deste douto Tribunal, nenhum destes
elementos indica, afigura-se a mesma arbitrária e desprovida de qualquer razão de direito e justiça.
71. SEM PRESCINDIR,
72. - DA OCULTAÇÃO OU DESPARECIMENTO DO PATRIMÓNIO DA DEVEDORA INSOLVENTE NO TODO OU PARTE CONSIDERÁVEL (ARTIGO 186.º, N.º 2, ALÍNEA A) CIRE)
73. No caso concreto, não pode a recorrente considerar que, nos presentes autos, se encontra preenchida a alínea a) do artigo supra mencionado, uma vez que, não obstante a insolvente ter vendido grande parte do seu ativo, em agosto de 2020, o mesmo não “desapareceu”, não foi “ocultado”, nem tampouco com tal venda se verificou qualquer menos valia para a devedora, pois o seu ativo foi vendido ao preço indicado no  seu ativo!
74. A decisão refere que: “Resultou provado que a insolvente, através da sua gerente de direito, vendeu quase todo o seu ativo, usando parte do produto da venda para pagar dívidas a credores, não se sabendo em concreto que fim teve todo o preço da venda. Mas, ainda que tivesse sido toda usada para pagar a credores, estando em situação de insolvência, favoreceu uns credores em prol dos outros, o que também não lhe é lícito fazer.
Assim, resultou provado que fez desparecer parte considerável do seu património pelo que se encontram preenchidos os pressupostos da alínea em questão.”
75. Tal fundamentação é inaplicável ao caso concreto, porque não existe factualidade concreta sobre a tão referida, mas tampouco concretizada, venda do ativo da insolvente... a afirmação de que “quase todo o seu ativo” – sem concretizar qual -, “usando parte do produto da venda para pagar dívidas a credores” – sem dizer qual parte e que dividas -, tornam-se inadequáveis ao preenchimento da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
76. Por outro lado, com a TOTALIDADE do produto da venda a sociedade insolvente liquidou diversas dividas a credores, pois recorde-se que a insolvente vendeu o seu imobilizado pelo preço de €35.356,65, mas liquidou dividas a credores no valor de € 36.705,26, dos quais cerca de 10 mil euros foi ao Estado!!
77. A verdade é que se o imobilizado da insolvente não tivesse sido vendido em agosto de 2020 pelo preço de € 35.356,65, mas sim aguardado a sua venda em processo de insolvência, muitos mais credores existiriam nesta insolvência, porquanto, como se sabe, os bens alienados em processo de insolvência são vendidos a preço abaixo do custo de mercado, tendo me conta a sua desvalorização com a delonga de todo o processo, ademais tais diligências acarretariam mais custos para a presente ação, certamente sem um melhor retorno.
78. Posto isto, não é verdade que in casu se tenha verificado a perda ou subtração de parte considerável dos bens da insolvente, uma vez que todo o seu ativo foi usado para saldar dividas a credores!
79. - DA DISPOSIÇÃO DOS BENS DA DEVEDORA EM PROVEITO PESSOAL OU DE TERCEIROS (ARTIGO 186º, Nº2, ALÍNEA D) CIRE)
80. Considerou o Tribunal a quo que tal preceito legal se encontra preenchido porque: “Na verdade, provou-se que a insolvente, através dos requeridos, vendeu todos os seus bens e equipamentos a uma outra sociedade, a S..., por preço muito abaixo do seu valor no mercado, conforme artigos 2º e 4º dos factos provados, dispondo desses bens da insolvente em proveito de terceiro, a sociedade S..., onde o requerido ficou a trabalhar.
Resultou, assim, provado que os requeridos dispuseram dos bens da insolvente em proveito de uma sociedade terceira, dando-lhes um uso contrário ao interesse da insolvente que, como sociedade comercial, visa o lucro, pelo que preencheu o pressuposto da alínea em questão.”
81. Sucede que, não se tendo apurado o valor dos bens alienados não é possível determinar o modo como foi afetado (se é que foi) o património da insolvente.
82. Uma vez que da matéria factual da douta sentença, não consta o valor de tais bens, não era admissível, ao Tribunal, considerar a insolvência como culposa com base em tal preceito legal.
83. Por outro lado, também não consta da factualidade carreada para os autos que a venda efetuada à S... tenha revertido em proveito pessoal da requerida ou dos terceiros adquirentes.
84. Na verdade, não resulta da matéria de facto provada que os atos de disposição (propriamente ditos) tenham sido realizados em proveito pessoal dos Administradores da devedora ou dos terceiros adquirentes.
85. Com efeito, o que decorre da matéria de facto é que o produto da venda desse ato de disposição do ativo da insolvente reverteu (pelo menos em parte) para o pagamento de dividas da mesma.
86. Tal entendimento teve esta douta Relação, no seu Acórdão datado de 01/06/2017, referente ao processo n.º 1046/16...., em que foi Relator o Ex.mo Juiz Desembargador Pedro Damião e Cunha.
87. Assim, não é verdade que in casu se encontre preenchida a alínea d) e f), do n.º 2, do artigo 186.º do CIRE!
88. - DO INCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE MANTER CONTABILIDADE ORGANIZADA OU PRÁTICA DE IRREGULARIDADE COM PREJUÍZO RELEVANTE (ARTIGO 186º, Nº2, ALÍNEA H) CIRE).
89. Quanto a tal matéria considerou o Tribunal a quo que: “No caso em apreço, resultou provado que a contabilidade da insolvente não estava devidamente organizada desde o exercício económico de 2020 inclusive, tendo-se verificado irregularidade que impossibilitava a perceção do seu real estado. Assim, também por esta alínea devem os requeridos ser responsabilizados, qualificando-se a insolvência como culposa.”
90. Sucede que, contrariamente ao mencionado, não foi considerado como facto provado que a devedora não tivesse contabilidade organizada.
91. Aliás, o que se pode depreender da matéria fatual é exatamente o contrário, pois a alínea H) dos factos dados como não provados prescreve que “Inexiste contabilidade organizada relativa ao exercício económico de 2019 e 2020.”
92. Posto isto, é de concluir que os factos considerados provados não são suficientes para integrar a previsão da citada, al. h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
93. - DO INCUMPRIMENTO, DE FORMA REITERADA, DOS SEUS DEVERES DE APRESENTAÇÃO E DE COLABORAÇÃO COM O ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA ATÉ À DATA DA ELABORAÇÃO DO PARECER REFERIDO NO Nº2 DO ARTIGO 188º (ARTIGO 186º, Nº2, ALÍNEA I CIRE)
94. A recorrente não pode concordar com os fundamentos elencados pelo Tribunal nesta matéria, porque o raciocínio do Tribunal não se afigura fiel à realidade dos factos, porquanto em momento algum a recorrida se encontrou indisponível para colaborar com a Sra. Administradora de Insolvência, nem tampouco, deixou de responder a qualquer solicitação da mesma.
95. O que ocorreu foi que esses contactos foram sempre efetuados pela mandatária da requerida, ora recorrente, sendo certo que a própria Administradora nunca entendeu ser necessário o contacto direto com a recorrente, aliás conforme declarou em sede de depoimento em audiência de julgamento:
Advogado 00:15:22
A Senhora enviou… Não, nós temos no processo. Nós temos no processo. Portanto, a Senhora Doutora tomou conhecimento, e o próprio declarou assim o declarou, que há uma morada da legal representante e a Senhora Doutora mandou e a carta… O que é que a aconteceu à carta?
DD 00:15:43
A carta veio devolvida.
Advogado
Veio devolvida?
DD 00:15:49
Sim, “objeto não reclamado”.
Advogado
“Não reclamado”… “Não reclamado”… Nós todos sabemos o que é “não reclamado”… Foi lá deixado o aviso na caixa postal e a senhora e tal… Pronto… Ou seja, a Senhora Doutora, para além disso, por acaso não ensaiou um contacto direto na casa desta senhora?
DD (00:16:10)
Senhor Doutor, teria o feito se de imediato não tivesse sido contactada pela advogada…
Advogado
Pronto. Já percebi que falou com a mandatária. Pronto. Mas a questão é: independentemente de ter falado…
DD 00:15:49
…e estava o assunto arrumado.
(sublinhado nosso)
96. Entendeu o Tribunal que pelo facto de a recorrente não ter entregue, à Ex.ma Sra. Administradora de Insolvência, os documentos previstos no artigo 24º do CIRE, incumpriu o seu dever de colaboração.
97. Porém, mais uma vez, não foi isso que na realidade ocorreu.
98. Conforme acima melhor se explicou, a recorrente nunca se recusou a entregar tais documentos, aliás muito pelo contrário, pois disponibilizou o local, os contactos e a identificação de quem se encontrava na posse dos mesmos, que, por sinal, era a pessoa que, por obrigação legal, os devia ter em sua posse, ou seja, o contabilista certificado da insolvente.
99. Sucede que, conformem a Ex.ma Administradora também confirmou (nas suas declarações abaixo transcritas), o mesmo, por motivos de saúde esteve ausente do gabinete e os documentos apenas chegaram à posse da Ex.ma Administradora após o prazo para elaboração do relatório.
100. Assim, deve este Tribunal considerar que a requerida não violou o artigo 186º, nº2, alínea I do CIRE.
101. - DA NÃO APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA (ARTIGO 186º, Nº3, AL A) DO CIRE)
102. Contrariamente ao referido na decisão, não resulta dos factos provados que a sociedade “contraiu novas dívidas nesse período que vai desde maio de 2019 (período em que já se encontrava em situação de insolvência) até ao pedido de declaração de insolvência da sociedade em 11-6-2021.”
103. Aliás, nem o momento em que a sociedade ficou insolvente consta dos factos provados.
104. Pelo que é completamente abusivo a sentença considerar verificado o nexo causal entre a omissão de não apresentação à insolvência, quando não determinou a data em que a sociedade se encontrava insolvente.
105. Sendo que tal momento – data em que a sociedade ficou em situação de insolvência ou data do incumprimento generalizado de obrigações – é o primeiro critério a ter em conta para dar como preenchido o disposto legal acima referido, porquanto, só após se conhecer tal data é possível aferir se foram ultrapassados os prazos de apresentação à insolvência, presente no artigo 18.º do CIRE.
106. Por seu lado, também não é verdade que a sociedade insolvente tenha constituído novas dívidas perante a Segurança Social, nomeadamente as contribuições referentes aos meses de janeiro a agosto de 2020 no montante de € 5.038,42.
107. Assim, é completamente intransigível como pode o Tribunal dar como verificada a alínea a), do número 3, do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, assente em supostos factos provados que não se encontram elencados na sentença.

Sem prescindir,
108. O artigo 18.º n.º 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas consagra uma presunção de que a pessoa tem conhecimento da sua situação de insolvência, passados pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de alguns dos tipos de obrigações referidas na alínea g) do n.º 1 do artigo 20º.
109. Sucede que atento em conta a Lei n.º 1-A/2020, o prazo para a devedora se apresentar à insolvência encontrava-se suspenso, pelo que não é verdade que a devedora tenha incumprido o seu dever de se apresentar à insolvência.
110. Assim, tendo em conta que a declaração de insolvência da devedora data de 27 de abril de 2021 e que tal suspensão do prazo de apresentação à insolvência, ainda se encontrava em vigor, na verdade a devedora não incumpriu o seu dever de requerer a sua declaração de insolvência, porquanto tal prazo ainda não tinha expirado à data da sua declaração de insolvência.
Ainda sem prescindir,
111. Não obstante o regime legal em vigor à data dos factos, o qual fez com que o prazo para a devedora se apresentar à insolvência não tenha decorrido, mesmo que o Tribunal assim não entenda, sempre se dira que, tendo em conta os pagamentos efetuados e juntos com a oposição apresentada, não se pode considerar que foi ultrapassado o prazo de quatro meses – artigo 18.º, n.º 1 e 3 do CIRE – após o incumprimento generalizados das obrigações,
112. até porque, recorde-se, não obstante a data da declaração da insolvência date de 27/4/2021 a verdade é que tal processo deu entrada em juízo no dia 11/01/2021, data a partir da qual se encontrava vedada a possibilidade de a devedora apresentar o seu pedido de insolvência, uma vez que tal insolvência já tinha sido requerida por um credor!
113. Posto isto, não é verdade que se tenha verificado o incumprimento do dever de requerer a insolvência por parte da sociedade insolvente!
Foram violados os artigos 185.º, 186.º do CIRE.
Mas dando provimento ao presente recurso, farão V.as Ex.as a acostumada JUSTIÇA.
*
Respondeu ao recurso o MinistérioPúblico, preconizando a manutenção do decidido,  tendo terminado as contra-alegações com as seguintes conclusões:

As condutas dos requeridos, preenchem os requisitos consignados no nº 2 do art. 186º do CI RE, actuação essa que constitui presunção “jure et jure”, ou seja, inilidível, conducente à qualificação da insolvência como culposa, não carecendo de prova do nexo de causalidade entre a omissão dos deveres aí descritos e a situação de insolvência da empresa ou o seu agravamento).
Perante o que se acaba de consignar, não se vislumbra que a douta decisão recorrida padeça de qualquer nulidade, do mesmo modo que se não vislumbra qualquer insuficiência ou erro na interpretação da prova produzida tendente à matéria de facto dada por provada e qualificação e preenchimento dos requisitos previstos no nº2 e 3, do art 186º.do CIRE, sendo que as medidas aplicadas se apresentam como sendo as mais adequadas e proporcionais.
A douta sentença recorrida cumpriu, no essencial, o dever de fundamentação imposto por lei, pois, discriminou os factos que considerou provados, apontando as provas em que fundou a convicção, tendo consignado, interpretado e aplicado as normas jurídicas correspondentes.
A factualidade dada como assente revela em toda a sua plenitude o nexo de causalidade existente entre as condutas dos requeridos e a insolvência que veio a ser declarada, sendo linear o preenchimento do estatuído no artº 186º, nº 2 e nº 3, do CIRE.
Assim sendo, negando provimento ao recurso deverá a douta sentença recorrida ser confirmada.
Contudo, V.as Ex.as, farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.
*
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, o que foi mantido por este Tribunal.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

II. Delimitação do objecto do recurso.
   
Face ao disposto nos artºs  608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4 e 639º do CPCivil, o âmbito do recurso é  delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo  das questões que o tribunal deva conhecer oficiosamente.

Assim,  no presente  caso, tendo em conta as conclusões  da recorrente, as questões a decidir são:

1. Apurar se a sentença padece  das nulidades arguidas pela recorrente
2. Apurar se a sentença recorrida  enferma de deficiências quanto à  decisão da matéria  de facto e deve ser alterada nos termos  da impugnação   deduzida pela recorrente.
3. Apurar se  face  à matéria de facto que for fixada a  insolvência deve ser qualificada como culposa e a recorrente  afectada por tal qualificação.

III. Fundamentação de facto

Na sentença impugnada o Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1.º- Em 27 de abril de 2021 foi proferida douta sentença, nos autos principais, transitada em julgado, a decretar a insolvência da sociedade “P..., Lda.”.
2º- A insolvente P..., Lda, através dos requeridos, vendeu em agosto de 2020 quase todo o seu ativo à sociedade comercial S..., Unipessoal, Lda, pelo preço de € 35. 356,65.
3º- Com parte do produto da venda do seu ativo mencionada em 2., a insolvente liquidou dívidas que detinha.
4º- Quando os requeridos venderam todo o ativo da insolvente tinham já perfeito conhecimento de que a insolvente já se encontrava naquela data impossibilitada de cumprir com todas as suas obrigações vencidas.
5º- Como bem sabiam que da alienação do seu património não seriam satisfeitos todos os créditos dos seus credores.
6.º- A insolvente, sociedade comercial por quotas com o número de contribuinte n.º ..., com sede no Loteamento ..., ..., ..., ... ..., concelho ... tinha, no essencial, por objeto: “Comércio a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis. Manutenção e Reparação de veículos automóveis.
7.º- AA foi a gerente de direito da devedora desde 14-2-2019 até à declaração de insolvência e P... foi o gerente de facto nesse mesmo período de tempo, pois foi substituído por aquela enquanto gerente de direito.
8º- Eram aqueles quem decidiam que negócios encetar e os seus termos, acordando quais as relações comerciais que mantinha com terceiros, com quem tratavam, emitindo cheques e contactando com Bancos, quando necessário.
9º- Mais sendo os responsáveis pela gestão, administração e representação de toda a atividade exercida, cabendo-lhes também a decisão de afetação dos seus recursos financeiros à satisfação das respetivas necessidades e sobre os pagamentos aos fornecedores e credores da sociedade insolvente, a contratação de funcionários, a emissão de cheques, a assinatura de documentos e a entrega daqueles que serviam de base à elaboração da contabilidade.
10º- Apesar de cientes da obrigatoriedade de entregarem ao administrador(a) judicial os documentos a que alude o artigo 24.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, após a declaração de insolvência (como veio a ocorrer), não só não o fizeram como não apresentaram qualquer justificação para o efeito.
11º- Ainda assim, e para lograr obter a contabilidade da insolvente, no dia 4 de maio de 2021, o(a) administrador(a) da insolvência expediu (para a morada que lhe foi fixada na sentença de insolvência – Travessa ..., ... ... uma carta registada com aviso de receção (RH ...38 5PT).
12º- Tal missiva foi devolvida com a menção de “objeto não reclamado” – documento de fls. 19.
13 º- Foi contabilista certificado da insolvente a Sra. Dra. BB que renunciou a esse cargo em setembro de 2020.
14º- Desde essa data o contabilista certificado da insolvente foi o Sr. Dr. CC, da sociedade ... Contabilidade e Consultadoria, Lda., que a administradora tentou contactar, apesar dos emails remetidos em 1 e 27 de maio de 2021, solicitando informação sobre o estado da contabilidade da insolvente e para remeter o Mapa de imobilizado, os IES referentes aos últimos 3 anos e os balancetes – documento de fls. 20.
15º- Foi possível apurar junto da Conservatória do Registo Comercial que existem três veículos automóveis registados em nome da sociedade insolvente com as matrículas ..-..-NC, ..-..-SI e ..-GP-.. e sobre os mesmos recaem penhoras datadas de 5 de junho de 2020 e 7 de agosto de 2020 – documentos de fls. 21 a 24.
16º- A administradora de insolvência não conseguiu apurar a identificação da(s) conta(s) bancária(s) da sociedade, o destino do ativo, dinheiro e bens da insolvente, a situação dos funcionários que laboravam na sociedade, nem o paradeiro dos veículos de matriculas ..-..-NC, ..-..-SI e ..-GP-...
17º- No segundo quadrimestre do ano de 2020, a insolvente “P..., Lda.” deixou de cumprir pontualmente as obrigações pecuniárias contratualmente assumidas, sem que dispusesse de meios próprios ou crédito em ordem a ultrapassar essa situação, convertida em incumprimento definitivo.
18º-Tal estado de coisas determinou o(s) gerente(s) da devedora a “desmantelar” o seu estabelecimento comercial e atividade até então desenvolvida para outro ente social, vendendo diversos dos seus componentes em agosto de 2020 e possibilitando o arrendamento do seu espaço físico, equipamentos matérias primas, componentes, acessórios, móveis, clientela e trabalhadores para a sociedade “S...– Unipessoal, Lda.”.
19º- Os requeridos não entregaram à contabilista toda a documentação necessária para ser elaborada a contabilidade.
20º - A contabilidade do ano de 2020 continha muitas irregularidades pois havia pagamentos que não constavam de nenhum documento contabilístico, a reconciliação bancária não tinha documentos de suporte e os saldos passavam pelas contas particulares dos sócios.
21º- A sociedade insolvente constituiu novas dívidas perante a Segurança Social, nomeadamente as contribuições referentes aos meses de janeiro a agosto de 2020 no montante de € 5.038,42.

O Tribunal a quo considerou   não provados os seguintes  factos :
A- Que os legais representantes da insolvente delinearam um plano consistente em desmembrar o seu único estabelecimento comercial, alienar os seus componentes por partes/parcelas, receber o dinheiro de tais negócios e dar-lhe destino que ainda não foi possível apurar.
B- Para conseguir tal desiderato AA e P... obtiveram a colaboração da sociedade S...- Unipessoal, Lda.
C- De acordo com um plano por si previamente delineado estes legais representantes da insolvente fizeram cessar junto da sua senhora Dª EE o contrato de arrendamento relativamente ao pavilhão onde a insolvente tinha instalado o seu estabelecimento comercial para que a sociedade S...- Unipessoal, Lda, em, ato seguido, pudesse celebrar com a dita senhoria um novo contrato de arrendamento do mesmo espaço, em seu nome, datado de 27-8-2020 e com início a 1-9-2020.
D- Uma vez tomado de arrendamento o pavilhão, a S...- Unipessoal, Lda fez obras de remodelação do espaço, eliminando quaisquer elementos ou dizeres identificadores da insolvente, pinturas, painéis publicitários, etc, colando àquele espaço que era antes da insolvente a sua própria imagem comercial.
E- De seguida, a insolvente faturou à S...- Unipessoal, Lda todos os seus bens do ativo, mobiliário, estantes, equipamentos, mercadorias, ferramentas que se encontravam no interior do seu estabelecimento comercial- quer o imobilizado quer o stock de produtos para venda ao público.
F- A insolvente e os seus gerentes, com a colaboração da sociedade S...- Unipessoal, Lda, procedeu ao desmantelamento deste estabelecimento comercial transferindo para a S... os seus diversos componentes e possibilitou o arrendamento do seu espaço físico, equipamentos, matérias-primas, componentes, acessórios, móveis, clientela e trabalhadores e, deste modo, fizeram desaparecer do património da insolvente o seu mais valioso e relevante bem do ativo.
G- Possibilitando que a sociedade S... se visse proprietária de um estabelecimento comercial completamente equipado, em plena atividade, com trabalhadores e clientela que levou anos a construir.
H- Inexiste contabilidade organizada relativa ao exercício económico de 2019 e 2020.
I- Com o produto da venda referida em 2º a insolvente pagou as dívidas que identifica a fls 143 e 144 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
J- Atentos os pagamentos efetuados a partir de agosto de 2020, após o negócio com a S..., a insolvente liquidou de dívidas aos credores o montante de € 36. 705,26, dos quais cerca de 10 mil euros ao Estado.
*
IV. Fundamentação de direito

A- Da Nulidade da sentença

O art. 615º, nº 1, do Código Processo Civil ( diploma a que pertencerão todos os preceitos legais indicados sem indicação de origem)  dispõe que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c)Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no citado normativo legal.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença e, por isso, são apreciados em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito. 
Com efeito, as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por dois tipos de causas:  a) por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou das  regras que balizam o conteúdo e os limites do poder  do juiz  no processo em que são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C.; b)  por erro no julgamento dos factos e do direito, sendo  neste caso a  consequência a respectiva revogação.
A  Recorrente sustenta  que a sentença recorrida é nula  por ausência total de fundamentação, nos  termos da al.b) do nº 1 do art.615, porquanto o Tribunal a quo, na fundamentação de facto  apenas referiu que” a matéria de facto resulta do teor dos documentos juntos aos autos , conjugados com os depoimentos prestados em audiência de julgamento”, não deu sequer a  conhecer os documentos que serviram de base à decisão  e situação idêntica aconteceu com os depoimentos prestados em audiência uma vez que  mais não fez do que uma mera descrição dos depoimentos  prestados em audiência de julgamento sem qualquer  apreciação crítica e conexão com a matéria de facto dada como provada e não provada, o que se traduz numa omissão da apreciação crítica da prova produzida, impedindo assim a sua sindicância.
Por outro lado, advoga que a sentença também enferma de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº1 do art. 615º, pois o Tribunal tinha a obrigação de se pronunciar sobre as dívidas e os pagamentos que  alegou  no ponto 10 da oposição e  não fez, inexistindo no elenco dos factos provados e não provados qualquer menção concreta   a tais dívidas e pagamentos.

Apreciando

J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in C.P.Civil Anotado, 4ª Ed. Almedina, 2019,vol.2,p. 736 e 737, escrevem a propósito das nulidades invocadas: “Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão( art. 607-3). Há nulidade (no sentido de invalidade, usado na lei) quando falte em absoluto, a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da  decisão ( ac. STJ de 17.10.1990, Roberto Valente, AJ12p.20: constitui nulidade a falta de discriminação dos factos provados).(…)  Face ao atual código, que integra na sentença tanto a decisão sobre  a matéria de facto  como a fundamentação desta decisão( art. 607, nºs 3 e4) deve considerar-se que a nulidade consagrada  na alínea b)  do nº1( falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão) apenas se reporta  à  primeira, sendo à segunda, diversamente, aplicável o regime  do art. 662º, nº2-d) e 3 , alíneas b) e d))( ac. do TRP de 5.3.15, Aristides Rodrigues de Almeida, www.dgsi.proc. 1644/11, e ac. do TRP de 29.6,2015, Paula Leal de Cavalho, www.dgsipt,proc. 839/13)(…)”

E, mais  adiante, sobre a omissão e excesso de  pronúncia “ Devendo o juiz  conhecer de todas as questões  que lhe são submetidas, isto é, todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer  ( art. 608º-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir e exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão  constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar  linhas de fundamentação jurídica, diferentes  da sentença, que as partes hajam invocado. Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções  não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes( art. 608-2) é nula a sentença que o faça. É também nula a sentença que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância, não observe os limites impostos pelo art. 609º, nº1, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido.”

A. Geraldes,  Paulo Pimenta e Luís F.Sousa, in C.P Civil Anotado, 2ª ed. Almedina 2020, vol I, p.763/ 764,    sobre a nulidade por falta de fundamentação referem“ É nula a sentença que não especifique  os fundamentos de facto e de direito ou que se caracterize pela sua ininteligibilidade, previsões que a jurisprudência  tem vindo a interpretar  de forma uniforme, de modo a incluir apenas a falta absoluta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão( STJ 2.6-16, 78/11).(…)

E a respeito da omissão e excesso de  pronúncia “ Mais frequentes são os casos de omissão de pronúncia, seja quanto às questões suscitadas, seja quanto à apreciação de alguma pretensão. A este respeito, também é pacífica a jurisprudência que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões  de conhecimento oficioso, mas que não obriga  a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com “questões”( STJ 27-3-14, 555/2002). Para determinar se existe omissão de pronúncia há que interpretar a sentença na sua totalidade, articulando fundamentação e decisão. Se é grave a falta de apreciação de alguma questão relevante para o resultado da lide ( omissão de pronúncia), não menos o é a apreciação de questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas  e que não sejam de conhecimento oficioso( excesso de pronúncia)”
Ora, atentando na sentença recorrida  vemos que a mesma contém o elenco dos factos provados e não provados, o que afasta a nulidade por falta de fundamentação de facto.  E a nulidade por  omissão de pronúncia contende com   a falta  de decisão  das questões suscitadas pelas partes ou do conhecimento oficioso e  não com a eventual  omissão de  factos relevantes para a decisão que a  recorrente invoca,  situação  que nos remete para  eventuais insuficiências  da decisão de facto   que cabem no âmbito do art. 662º do CPC., pelo que  também não se verifica a nulidade por omissão de pronúncia, julgando-se improcedentes tais nulidades.
Na verdade, importa ter presente a distinção entre decisão de facto e decisão de direito. Como se assinala no Ac. desta Relação de 20-04-2017, Proc. 300/15.5T8VPA.G1( Relator  José Amaral),  disponível  in www.dgsi.pt:“I) A sentença contém, face à regra do novo CPC estabelecida no artº 607º, duas distintas decisões: a da matéria de facto e a da matéria de direito. Cada uma delas está sujeita a regimes diversos. Aquela, ao do artº 662º. Esta, ao do artº 615º.II) Uma coisa é, no seu percurso e desfecho, uma decisão conter vícios susceptíveis de a tornar inválida – cfr. artºs 615º, nº 1, e 662º, nº 2, alínea c) –, outra é, no percurso valorativo da prova produzida ou no juízo de subsunção jusnormativa dos factos, ocorrerem erros (de julgamento), naquele caso de apreciação dos meios disponíveis e, neste, de escolha, interpretação e aplicação das leis.”
As patologias apontadas à sentença   remetem  para  a decisão  da matéria   de facto, mais precisamente  para a  respectiva fundamentação.  Com efeito,  mesmo relativamente aos factos  do art. 10º da oposição, o que pode ocorrer  é a falta de fundamentação  da decisão do Tribunal  a quo, pois os mesmos foram  vertidos no nº3 dos factos provados e na alínea   I)  dos  factos não provados.
Vejamos, pois,  as regras  a que deve obedecer a  decisão da  matéria de facto.
  
Preceitua o art. 607º , nº4 do C.P.Civil :“  Na fundamentação da  sentença , o juiz declara  quais  os factos  que julga  provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente  as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos  que foram decisivos  para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzido a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos  apurados as presunções  impostas por lei ou por regras da experiência.”
Comentando este normativo,  escrevem Abrantes Geraldes,  Paulo Pimenta e  Luís Filipe Sousa, In Código do Processo Civil Anotado, I,  Almedina,  2020, p. 743 ”  A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar  ma mera transcrição de repostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam  os diversos pontos da base instrutória( e do anterior questionário). Se, por opção, conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas da prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada (STJ 26-2-2019, 1316/14). Já quando se tenha optado por proposições de carácter mais abrangente ou de pendor mais genérico ou conclusivo ( posto que não estritamente jurídico), mas que permitam delimitar e compreender  a matéria de facto relevante para a resolução do litígio, poderá justificar-se um maior labor na sua concretização, seguindo um critério funcional que atenda às necessidades do concreto litígio, desde que como é evidente , seja respeitada a correspondência com a prova que foi produzida e os limites materiais da ação e da defesa. O importante é que na enunciação dos factos  provados e não provados, o juiz use uma metodologia  que permita  perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual uma vez submetida às normas jurídicas  aplicáveis, determinarão resultado da ação. Objetivo que encontra agora na formulação do preito um apoio suplementar, já que o nº4, 2ª parte, impõe ao juiz a tarefa de compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, o que necessariamente implica uma descrição inteligível da realidade litigada, em lugar de uma sequência desordenada de factos atomísticos, que lamentavelmente, ainda marca muitas sentenças e  mesmo acórdãos  dos tribunais superiores.”
  Outro aspecto que tem sido sublinhado pela jurisprudência no que respeita  à  decisão da matéria de facto é que “ Muito embora o art. 646º, nº4 do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que,  por imperativo do disposto no art.607, nº4 do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos  julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”- cfr. Ac. STJ de 28.9.2017, proc. 809/10.7TBLMG.C1.S1, Relatora Fernanda Isabel Pereira. 
É certo que   a linha divisória entre  matéria  de facto e matéria de direito por vezes  é difícil de estabelecer, pois  depende,   em grande  medida do objecto do processo  e dos termos em que a lide se apresenta , de tal modo que, como se refere no Ac. do STJ de 22.3.2018, proc. 1568/09.1TBGDM.P1.S1, Relator Abrantes Geraldes“ Uma proposição pode assumir, num determinado contexto , uma questão de facto e, noutro contexto, uma questão de direito.  Daí que, no mesmo aresto se defenda que, face às modificações na produção  da prova que agora  tem  por base os temas da prova e à integração da decisão da matéria de facto na sentença, embora o julgamento da matéria de facto não deva confundir-se com o julgamento da matéria de direito, a manutenção, a todo o custo, de uma linha de separação revela-se frequentemente artificial e prejudicial à justa resolução da lide, sendo, por isso, admissível e desejável uma maior concentração da factualidade considerada provada, ainda que com auxílio de formulações de pendor mais genérico, mas que permitam uma correta e inteligível compreensão da realidade que o Tribunal conseguiu isolar.”
No entanto, como se salienta, no Ac. desta Relação de 3.11.2022, proc. 1812/12.7T8GMR.G1, relatado pelo aqui 1º Adjunto, disponível in www.dgsi.pt “  Os factos conclusivos   não podem integrar a matéria de facto quando estão diretamente relacionados com o thema decidendum  porque impedem a perceção da realidade concreta e /ou ditam  por si mesmo a solução  a solução jurídica do caso, normalmente através de juízos de valor.”
E, além de impor a declaração dos factos provados e não  provados, o preceito  em análise  obriga igualmente “ o Juiz  a  expor a análise crítica  das provas produzidas,  quer  quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que  o determinaram  a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados  provados e não provados”- cfr. A. Geraldes e outros ob. cit. p. 745.
Castro Mendes  e Teixeira de Sousa in. Manual de Processo Civil, Vol II,  AAFDL Editora , p. 111, a propósito  da fundamentação da decisão de facto escrevem ” A decisão da  matéria de facto deve ser fundamentada( art. 205º, nº1 da CRP, art. 24º, nº1LOSJ, art. 154º, nº1) devendo especificar-se os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador quanto aos factos  que se julgam provados e não provados ( art. 607º, nº4 e, cf. também art. 662º, nº2 al.d))
A medida da fundamentação é aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e por terceiro. Através da fundamentação o tribunal deve mostrar  as razões da sua convicção( assentes no conhecimento a priori, nas leis do raciocínio e da ciência nas regras da experiência), pelo que través dessa fundamentação, ele passa de convencido a convincente.”
Por   se mostrar particularmente  pertinente  e esclarecedor sobre a  forma como o julgador deve proceder  à fundamentação / motivação da decisão de facto, passamos a transcrever algumas passagens do Ac. desta Relação de 15.12.2022, proc. 3372/18.7T8VNF.G2, relatado pelo aqui 2º Adjunto, disponível in www.dgsi.pt   : “ Este normativo( referindo-se à 2ª parte do  nº4 do art. 607º) impõe que o juiz explique como se convenceu com as provas que se produziram, que motive a decisão de facto.
O normativo em referência decorre do disposto no art.º 205º, n.º 1 da CRP o qual dispõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
No que tange à razão de ser da motivação da decisão de facto, referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, pág. 315:
 “A fundamentação passou a exercer, pois, a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da Justiça, inerente ao ato jurisdicional.”
(…)
Como se refere no Ac. da RC de 29.04.2014, processo n.º 772/11.7TBBVNO-A.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc, a «motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível (…) de garantia do direito ao recurso».
E quanto ao conteúdo, a motivação consiste em exarar o raciocínio do tribunal para uma dada decisão de facto e deve conter, para além da indicação dos concretos elementos probatórios que lograram aceitação por parte do tribunal, as razões ou motivos dessa aceitação e dos que não lograram aceitação e as razões ou motivos para tal. (…)
A propósito da motivação cremos serem impressivas as palavras de Manuel Tomé Soares Gomes, in Da Sentença Cível, CEJ, 2014, in https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202 “…a motivação da decisão de facto deve fornecer os argumentos probatórios ou os fatores que foram decisivos para a convicção do julgador em 1.ª instância.
Não satisfaz essa exigência o tipo de motivação meramente conclusiva como aquela em que se consiga pura e simplesmente que os factos provados resultaram da análise crítica e conjugada das testemunhas em referência. Uma motivação deste género apenas indica que se procedeu à dita análise, mas nada diz sobre o seu conteúdo.
Outro erro a evitar é o que consiste em consignar apenas que dos depoimentos das testemunhas indicadas nada se provou, importando antes explicitar as razões essenciais pelas quais tais depoimentos, tendo versado sobre a matéria em questão, não convencerem o tribunal.
(…)
As boas práticas aconselham a que, na motivação, o juiz explicite as razões que o levaram, por exemplo, a dar mais crédito a uma testemunha do que a outra, quando os seus depoimentos sejam divergentes, salientando a razão de ciência ou a consistência e maturidade reveladas pelo depoente. De igual modo, quando o argumento probatório repouse em presunções judiciais, importa identificar os factos instrumentais tidos em conta e consignar as ilações deles extraídas, à luz das regras da experiência.
Ademais, a economia da motivação do julgamento de facto obtém-se por via de um método criterioso de seleção dos argumentos probatórios centrado nos concretos meios de prova convocados e nas ilações a extrair dos resultados colhidos na instrução, de forma a especificar os fatores que se revelem decisivos para consubstanciar as razões em que se ancoram os juízos de prova.
Na motivação da decisão de facto, em vez de se sumariarem, de forma aberta e livre, os diversos depoimentos prestados, dever-se-á, em primeira linha, individualizar os pontos de facto em causa e, no âmbito de cada um deles ou até da sua agregação em conjuntos coerentes, identificar então os concretos meios de prova sobre os mesmos produzidos, especificando os que foram decisivos para a convicção do julgador e as respetivas razões de ciência e de teor.
Assim, se, por exemplo, os depoimentos convocados forem convergentes não se justifica, em princípio, um extenso desenvolvimento argumentativo, bastando assinalar essa convergência e as razões de ciência em que se estribam. Já se os depoimentos forem divergentes, haverá que precisar quais os factores que levaram a preferir um depoimento em detrimento de outro, expondo as razões de teor, com a sinalização dos trechos mais pertinentes do seu conteúdo, e as razões de ciência mais específicas tidas em conta.
Há, no entanto, que não confundir a argumentação probatória com o processo psicológico de decisão. O que se impõe na motivação da decisão de facto é a exposição seletiva das razões objetivas em que se baseia a convicção do julgador e não a descrição do iter prosseguido nesse processo decisório nem das suas vicissitudes.
Em síntese, a motivação do julgamento de facto tem como matriz um discurso argumentativo problemático, parcelado na órbita de cada juízo probatório, sem prejuízo da sua compatibilização no universo da trama factual, e rege-se por razões práticas firmadas na análise dos resultados probatórios, à luz das regras da experiência comum ou qualificada e dos padrões de valoração (prova bastante e prova de verosimilhança) estabelecidos na lei.
E Francisco Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, II, 3ª edição, pág. 425-426 afirma: “Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio.
Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança.”
Como se afirma no Ac. do STJ de 17/01/2012, processo 1876/06.3TBGDM.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj (sublinhado nosso): “A necessidade da motivação da decisão de facto ancora neste ajuizamento racional da actividade probatória e na obrigação de o juiz ter de expor os motivos ou razões por que considerou demonstrado um determinado enunciado fáctico, ou no dizer do autor que temos vindo a seguir “[o] juiz está obrigado a racionalizar o fundamento da decisão articulando os argumentos (as «boas razões») em função das quais aquela pode resultar justificada: a motivação é, então, um discurso justificativo constituído por argumentos racionais.” [Taruffo; Michele, in “Paginas sobre Justicia Civil”, Marcial Pons, Madrid, 2009, pág. 535.]

Explicitados assim os fundamentos e as regras a que deve obedecer a  motivação/fundamentação  da decisão da matéria de facto, vejamos  motivação da  sentença impugnada:
“A matéria de facto resulta do teor dos documentos junto aos autos, conjugados com os depoimentos prestados em audiência de julgamento.
P..., ouvido em depoimento de parte, declarou ser gerente da insolvente a sua ex-mulher, tendo o depoente deixado a gerência para ser funcionário e passar a contactar os fornecedores. A sua ex-mulher é que contratava funcionários e dizia a quem se devia pagar. Com a pandemia a insolvente esteve três meses fechada e passou a ter dificuldades de pagamento. Os stocks foram vendidos à S.... A empresa tinha mais de 15 anos e só tinha as máquinas que vendeu à S.... A insolvente devia rendas à senhoria. Agora o depoente trabalha na S....
A agente de execução, FF, declarou ter estado presente quando se tentou penhorar os bens da insolvente, tendo o representante da S... apresentado faturas de venda de todo o material da aqui insolvente, e à data executada. O estabelecimento estava aberto e a laborar. E a exequente nada recebeu da execução.
A testemunha GG, funcionário da credora J..., Lda, declarou que forneciam à insolvente pneus, sendo o estabelecimento comercial desta em .... Todos os contactos era sempre o requerido, Sr. P..., que os fazia, desde 2018 até à data da insolvência. Tiveram devoluções de cheques e sempre entraram em contacto com o sr P..., que nunca lhes disse que era com a AA que tinham de falar. A estética toda da empresa estava a ser mudada quando chegaram lá com a agente de execução. Foram recebidos pelo sr da S... que entregou à agente de execução um conjunto de faturas. O estabelecimento tinha tudo o que era preciso para começar a trabalhar, como uma máquina de pesados e outra de ligeiros e uma máquina de calibragem. Estes bens foram vendidos muito abaixo do preço justo. Seria possível realizar um preço muito superior se vendesse o estabelecimento na sua integralidade.
A testemunha EE, senhoria do armazém, declarou ter sete pavilhões e um arrendado à S... em 2020 e que o sr P... lhe pagou a 24 de agosto.
A testemunha HH, sócio gerente da recauchutagem ..., declarou que a insolvente era sua cliente, e que a sua sociedade reclamou crédito nesta insolvência. Os contactos eram sempre feitos com o sr P..., era ele que fazia o pedido de fornecimento. O depoente considerava-o o sócio gerente da empresa e aquele nunca lhe disse que era só funcionário. Mais declarou que visita regularmente os seus clientes e ia muitas vezes ao estabelecimento da insolvente. De 2018 a 2020 sentiu alguma melhoria com novas máquinas a entrar dentro de portas. A casa tinha potencial para trabalhar. Os atrasos nos pagamentos não foram justificados apenas tendo sido dito que estavam a passar por dificuldades. Os cheques vieram devolvidos e o depoente falou com o sr P.... As máquinas de desmontar pesados foram vendidas a preços baixos pois por menos de €5.000,00 não se consegue comprar, mesmo com 15 anos de uso.
Quando instado declarou que os preços que constam da fatura são muito baratos. Ainda lá havia um compressor, os elevadores, a máquina de alinhar, que custa € 10.000,00, mesmo usada, que foram vendidos abaixo dos preços no mercado de usados, com exceção dos dois elevadores.
Se tivesse havido trespasse do estabelecimento valeria entre 120 e 150.000,00.
A testemunha BB, contabilista, declarou ter renunciado à contabilidade da insolvente em fevereiro antes da pandemia, por não lhe ser entregue a documentação atempadamente, e veio a concretizá-la em setembro pois teve de tratar das ajudas do Estado. Era o P... que estava à frente da empresa. Havia imobilizado, constante dos mapas e várias contas bancárias. A empresa tinha problemas de asfixia financeira pois tinha prazos de pagamento muito curtos. Havia acordos verbais de pagamento a ser cumpridos. Não havia dívidas ao Estado nem a trabalhadores em incumprimento. As dívidas que existiam eram só de pagamentos a fornecedores.
A depoente teve a contabilidade a seu cargo até 30 de setembro de 2020. Foi o P... que a contratou para contabilista da insolvente e era quem lhe pagava. Era ele que geria a empresa. O volume de negócios rondava os € 400.000,00 por ano. A insolvente tinha capacidade de vendas para se manter.
Ouvida a sra administradora de insolvência, declarou que a insolvente vendeu todo o recheio do interior do estabelecimento comercial à S.... Nunca conseguiu falar com a gerente, falou sempre com a sua advogada através de e-mail. A advogada da gerente informou-a que o produto da venda dos bens serviu para pagar as dívidas da empresa, mas não juntou comprovativos. Também não conseguiu apreender a contabilidade, insistiu com o Dr CC mas este apenas enviou algumas das IES mas fora de prazo.
As viaturas registadas em nome da insolvente todas elas tinham penhoras. Nunca lhe foram entregues os elementos da contabilidade e chegou a mandar carta com aviso de receção para a legal representante, que veio devolvida com a menção de “objeto não reclamado”. De seguida foi contactada pela advogada.
A requerida AA prestou declarações de parte declarando ser empresária de pneus e técnica superior de comunicação na Câmara Municipal ... sendo a gerente da insolvente, cujas funções compatibilizava com o seu trabalho das 9.00 às 15.00 horas na Câmara. Geria dois estabelecimentos comerciais: o da insolvente e o “AA, Unipessoal, Lda”.
Mais declarou que fez o negócio com a S.... E que as três viaturas não foram vendidas, eram “carros velhos” e estão guardados no parque de um cliente. Quando perguntada se não achava que devia ter contado à AI da existência das viaturas declarou que o contabilista e a advogada é que tinham que falar com a administradora de insolvência. A venda à S... foi por cerca de € 35.000,00 e esse dinheiro foi para pagar rendas, fazer pagamentos ao Estado, à contabilista e ao funcionário. A conta da insolvente na Banco 1... estava penhorada e a depoente não podia utilizá-la. Os computadores pertenciam à depoente. O ex-marido da depoente foi o anterior gerente e depois ficou a trabalhar na empresa, a montar e a desmontar pneus e todas as encomendas que fazia era com o aval da depoente.
A depoente apenas geriu a empresa sete ou oito meses e quando a assumiu, em maio de 2019, a empresa já não era viável financeiramente. A empresa estava falida e a depoente ou vendia ou fechava a porta. Fez acordos de pagamento com a Autoridade Tributária e a Segurança Social e pedidos de financiamento ao Banco. Mas, apos a pandemia, as encomendas aos fornecedores exigiam o pagamento imediato.
A testemunha II, contabilista certificado reformado, declarou ter trabalhado para a “... Contabilidade e Consultadoria” e ter sido contratado pelo sr P... no início de 2021.Ele ter-lhe-ia dito que acabou a relação com a anterior contabilista em setembro de 2020. A contabilidade tinha bastantes falhas pelo que tentou refazer a contabilidade do ano de 2020. O balancete de 2020 é muito diferente daquele que foi por si reconstruído. Havia muitos pagamentos que passavam fora das contas e da contabilidade da insolvente. No dia 31-8-2020 a empresa já tinha encerrado portas. Estavam cumpridas as obrigações até setembro de 2020 mas o ano de 2020 não foi encerrado em termos contabilísticos.
A testemunha JJ, técnico de contabilidade, a trabalhar para a “... Contabilidade e Consultadoria”, declarou ter começado a analisar o ano que vinha da anterior contabilista, mas que era uma confusão, não se percebia como eram tratados os lançamentos. A contabilidade não estava organizada relativamente aos documentos de 2020, que analisou para ver se os saldos batiam certo, mas não conseguiu porque os saldos passavam pelas contas dos sócios. A reconciliação bancária não tinha documentos de suporte. O depoente nunca sabia o que é que pagava o quê. Essas irregularidades não permitiam perceber o estado da empresa. Pediram documentos ao sr. P..., mas não lhes foram entregues. A advogada pedia a contabilidade e o depoente enviava tudo o que tinha. Não viu a contabilidade do ano de 2019.”
 
Ante esta fundamentação  é forçoso concordar com  a recorrente quando afirma que a Srª Juíza  a quo  se limitou  a fazer uma descrição dos depoimentos prestados, omitindo  uma apreciação crítica da prova produzida.
Com efeito,  a motivação consignada  não   revela   qualquer  apreciação crítica  dos meios de prova, consiste numa mera síntese dos depoimentos  prestados e na remissão para o teor dos documentos juntos aos autos, que nem sequer são  identificados .  
Não foi feita a valoração da consistência probatória, nem  dos depoimentos, nem  dos documentos, e  também  não  foi   estabelecida  a  correlação entre   cada um dos factos que foram julgados  provados e não provados e os meios de prova produzidos.
A  leitura da fundamentação  da matéria de facto não nos permite perceber quais os meios de prova que, em concreto, e relativamente  a cada enunciado  fáctico (reconhece-se que a explicitação dos concretos meios de prova que determinam a convicção do juiz não tem, necessariamente, que ser individualizada relativamente a cada um dos factos dados como provados, mas pelo menos, terá de o ser relativamente a cada um dos temas controvertidos), terão sido determinantes – fosse pela credibilidade da sua fonte, pela natureza do meio de prova em causa, etc. –, para, e embora existindo outros meios que pudessem apontar para uma versão  diferente, convencer o tribunal de que, relativamente a cada uma dessas matérias, os factos terão ocorrido no sentido em que os veio a dar como provados.  E igualmente em relação aos factos julgados como não provados  deve ser explicitado se  foram ou não objecto de prova  e , em caso afirmativo, as  razões  pelas quais  tais meios de prova não foram considerados  credíveis ou suficientes para  a demonstração dos mesmos. 
Neste sentido se pronunciou a RC no Ac. de 11/02/2020, proc. 37/08.1.TBSCD.C1, Relatora, Maria João Areias, disponível  in www.dgsi.pt, assim sumariado :  “O dever de fundamentação da decisão proferida em sede de matéria de facto – imposto pelo nº 4 do art. 607º CPC – não se mostra cumprido com um simples resumo das afirmações proferidas por cada uma das testemunhas e depoentes, por uma identificação de cada um dos documentos juntos aos autos e por um resumo do teor do relatório pericial e esclarecimentos prestados pelos srs. peritos, se tal exposição não se encontrar acompanhada da explicitação, relativamente a cada um dos factos ou matérias em causa, de quais, de entre esses meios de prova ou alguns deles, foram relevantes, por que deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos.”
Ante   o exposto, é manifesto que a decisão da matéria de facto não se mostra devidamente  fundamentada.
E a fundamentação visa, como se disse, assegurar a sindicância da decisão,  permitindo às partes saber  que elementos probatórios  o Tribunal  considerou  e  a valoração que lhes atribuiu de   forma  a   em sede  de recurso poder  contrapor a sua  posição, cumprindo os ónus que lhe impõe o art. 640º do CPCivil, e ao tribunal superior fazer  o respectivo reexame.  Assim, na ausência de fundamentação, fica este Tribunal ad quem impedido de conhecer da impugnação da decisão de facto, pois  não é possível   apreciar a correcção do julgamento de facto  efectuado pelo Tribunal a quo  desconhecendo-se,   por  não  ter sido  expressa, a apreciação crítica dos meios de prova  que  conduziu  à fixação dos factos provados e não provados.

A consequência  desta  “patologia” na decisão da matéria de facto está prevista  na  alínea d) do n.º 2 do art.º 662º do CPCivil que dispõe:
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
(…)
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Por conseguinte, impõe-se  que a Sra. Juíza a quo, fundamente devidamente, segundo a lei e os critérios expendidos e tendo em conta toda a  prova produzida, a sua decisão quanto  aos factos provados e não provados, proferindo nova sentença, o que se determina.
Em face  do exposto  fica prejudicada, por ora,  a apreciação das  restantes questões suscitadas na presente apelação.
*
V. Decisão

Pelo exposto,  os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães   acordam  em:

 1º)  Julgar improcedentes as nulidades da sentença invocadas pela recorrente.
 2º) Determinar  que a Sra. Juiz a quo, fundamente devidamente, a sua decisão quanto aos factos dados  como provados e  como não provados, ao abrigo e nos termos  previstos  no art.662º, nº2, al.d)  do C.P.Civil.
*
Custas pela parte vencida  a final.
Notifique
Guimarães, 30 de março de 2023

Os Juízes Desembargadores
Relatora: Maria Eugénia Pedro
1º Adjunto : Pedro Maurício
2º Adjunto: José Carlos Duarte