Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1960/13.7TJVNF-J.G1
Relator: EUGÉNIA MARIA DE MOURA MARINHO DA CUNHA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
CESSÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL
CONTAGEM DO PERÍODO DA CESSÃO
LIQUIDAÇÃO DE BENS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPRIOCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O período da cessão do rendimento disponível só se começa a contar na data do despacho inicial a deferir o pedido de exoneração do passivo restante se inexistirem bens a liquidar. Consequentemente, só se deve declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante se inexistirem bens a liquidar (sendo de fazer uma interpretação restritiva da al. e), do nº1, do art. 230º, do CIRE);

2. Sendo determinada a liquidação de bens, como no caso dos autos, o início do período da cessão do rendimento disponível reportar-se-á à data do rateio final. Não estando concluída a liquidação dos bens não se pode declarar o encerramento do processo de insolvência antes daquela conclusão (caindo-se no regime regra da al. a), do nº1, do referido artigo);

3. Contudo, presentemente, a norma transitória constante do nº6, do art. 6º, do DL nº 79/2017, de 30 de junho, preceitua que nos casos, previstos na alínea e), do nº1, do art. 230º, do CIRE, em que tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante e não tenha sido declarado o encerramento do processo de insolvência, se considera iniciado o período da cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor de referido decreto-lei – 1 de julho de 2017 (cfr. art. 8º).

Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de GuimarãesRelatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha

1º Adjunto: José Manuel Alves Flores
2ª Adjunta: Sandra Maria Vieira Melo

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I. RELATÓRIO


B. T., insolvente, apresentou-se a requerer que o período de contagem dos 5 anos referente ao procedimento de exoneração do passivo restante tenha início na data de 13/08/2013, data em que foi deferido liminarmente o pedido formulado, uma vez que ainda não foi encerrado o processo de insolvência.
Foi proferida decisão a indeferir tal requerimento nos seguintes termos:
“Nos termos do art. 239º, nº 2 do CIRE, “O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.
Os presentes autos prosseguiram, após a Assembleia de Credores, para liquidação do activo, encontrando-se em fase de conclusão dos pagamentos aos credores, de acordo com o mapa de rateio.
É certo que a nova redacção do art. 230º, nº 1, al. e) do CIRE dispõe que prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º
Contudo, esta previsão apenas tem aplicação nas situações em que a massa insolvente é insuficiente para o pagamento das custas processuais e não também, nos casos em que o processo prossegue para liquidação do activo.
Veja-se, nesse sentido, Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª Edição, Quid Juris Sociedade Editora, pág. 875: (…) tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património actual que deve ser liquidado, ou não há. Neste último caso, tanto pode suceder que a inexistência seja já conhecida à data do proferimento do despacho inicial, como não.
Ora, se houver património a liquidar, não se vê como deva – ou possa – o despacho inicial declarar o encerramento do processo de insolvência, o qual só terá lugar após a concretização da liquidação e rateio”.
Não há, assim, ainda fundamento legal para proceder ao encerramento do processo de insolvência e muito menos para fixar o período de contagem dos 5 anos referente ao procedimento de exoneração do passivo restante na data de 13/08/2013, atento o disposto no art. 239º, nº 2 do CIRE”.

O Insolvente, notificado de tal decisão, apresentou recurso, pugnando por que a decisão seja revogada, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

1. Vem o presente recurso interposto do despacho datado de 29/05/2017.
2. Entende o Recorrente que a contagem do período de cessão do rendimento disponível se deve iniciar com data de publicação do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
3. Caso assim não se entenda, verificar-se-á uma extensão (que se reputa ilegítima) da duração real do período de cessão para além dos cinco anos fixados na lei, atinente ao período de cessão do rendimento disponível.
4. Se assim não se entender, o Recorrente/Insolvente vê-se na contingência de, desde a data de prolação do Despacho Inicial de Exoneração de Passivo Restante - a 13/08/2013, ficar durante mais de dez anos sujeito às consequências oriundas do processo de insolvência.
5. Na senda dos mais recentes entendimentos jurisprudenciais, a conjugação de interesses derivados do enunciado princípio e da recuperação de créditos por parte dos Credores deverá impor, in casu, que os efeitos do encerramento do processo, no que respeita à exoneração do passivo restante, sejam reportados não à data de declaração daquele encerramento mas à data de prolação daquele Despacho Inicial.
6. A própria natureza do processo de insolvência, em face da previsão da alínea e) do nº 1 do artigo 230.º e do nº 2 do artigo 239.°, ambos do CIRE, impõe que aquele período se inicie com a maior brevidade, de modo a permitir o "fresh start" dos Insolventes, conforme resulta do ponto 45 do Preâmbulo do Decreto- Lei n.º53/2004, de 18 de Março.
7. Como refere Catarina Serra in "O Novo Regime Jurídico da Insolvência", página 103, que "o objetivo final é a libertação do devedor para que não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica".
8. Nesse sentido apontam, de forma inequívoca, quer o teor do nº 4 do artigo 20.° da CRP, quer o facto de o Legislador ter previsto a nomeação de um Fiduciário a quem o Insolvente deverá entregar os rendimentos mensais incluídos na cessão de rendimento, cabendo ao Administrador de Insolvência as demais funções processuais, incluindo as de zelar pela liquidação do ativo, ou seja, previu-se a criação de duas figuras jurídicas - que, as mais das vezes, serão coincidentes - que envolvem a prática de atos em diferentes dimensões do processo de insolvências, quais sejam a cessão do rendimento disponível e a liquidação do ativo.
9. Considerando o teor de memorando de enquadramento das propostas de alteração ao CIRE no estudo de avaliação sucessiva do regime das insolvências realizado pela D.G.P.J., em 2010, um dos problemas identificados por alguns Magistrados prendeu-se com o facto de não haver norma expressa que possibilitasse ao Juiz encerrar o processo de insolvência sempre que, havendo ou não bens na massa insolvente, fosse requerida a exoneração do passivo restante.
10. A introdução da alínea e) no nº 1 do artigo 230 do CIRE, por meio do artigo 2.° da Lei nº16/2012, de 20 de Abril, visou, precisamente, colmatar tal lacuna que, efetivamente, após análise do quadro legal vigente, se afigurou inquestionável, tendo sido suprida, a bem da clareza da ordem jurídica e do bom funcionamento do processo - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 2 de Maio de 2013, Processo nº 2256/10.1 TBFLG-E.G1 - "A introdução da alínea e) do artigo 230. do CIRE permite encerrar o processo de insolvência quando requerida a exoneração do passivo e exista património por liquidar (...) nada obsta, bem pelo contrário, que após a prolação de despacho inicial de exoneração do passivo restante e de nomeação de fiduciário, seja proferido em momento posterior despacho de encerramento do processo de insolvência".
11. ln casu, o encerramento do processo nos termos propostos pelo Recorrente, em nada beliscará as garantias dos senhores credores.
12. Em face do exposto, o Recorrente não se conforma com douto despacho recorrido, devendo o mesmo ser revogado, determinando-se que a contagem do período relevante para a exoneração do passivo restante se inicia com a publicação do Despacho Inicial de Exoneração de Passivo Restante, ou seja, o dia 13/08/2013, nos termos e ao abrigo do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 230.°, alínea b) do artigo 237 e no nº 2 do artigo 239.°, todos do CIRE.
13. Caso assim não se entenda, estaremos perante a violação do princípio constitucional - e consequente inconstitucionalidade - inserto no nº 4 do artigo 20 da CRP, quando interpretado no sentido de que o direito a que uma causa seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo é compatível com a duração de um processo de insolvência por período superior a dez anos, ficando o Recorrente sujeito às inerentes consequências.
14. O douto despacho recorrido violou e não fez uma correta interpretação da alínea e) do nº 1 do artigo 230.°, da alínea b) do artigo 237 e do nº 2 do artigo 239.°, todos do CIRE, e do nº 4 do artigo 20.º da CRP.
15. Visto que nos presentes autos não foi ainda proferida decisão final relativa ao pedido de exoneração do passivo restante apresentado, entende o Recorrente que se mantém o benefício de diferimento de pagamento de custas – cfr. artigo 248.º do CIRE.

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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foi ordenada a junção aos autos de certidão da ata da assembleia de credores, encontrando-se a mesma a fls 11 a 13.

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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Assim, a única questão a decidir traduz-se em saber:

– Se, tendo sido determinada nos autos a liquidação do activo, a contagem do prazo de cinco anos previsto no nº2, do artigo 239.º, do CIRE, se inicia na data do despacho inicial de exoneração do passivo restante.

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III. FUNDAMENTAÇÃO

1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão constam já do antecedente relatório.


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2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Pretende o Insolvente, Recorrente, que se revogue a decisão proferida por a contagem do período de cessão do rendimento disponível se dever iniciar na data do despacho inicial de exoneração do passivo restante, pois que, de outro modo, se vê na contingência de ficar durante mais de dez anos sujeito às consequências oriundas do processo de insolvência e o princípio do fresh start que esteve, entre outros, na origem da criação do instituto de exoneração de passivo restante não se coadunar com uma delonga tão extensa no que respeita à declaração de encerramento do processo, ainda que subordinada às demoras da liquidação do ativo. Aliás, a própria natureza do processo de insolvência, em face da previsão da alínea e), do nº 1, do artigo 230.º, e do nº 2, do artigo 239.°, ambos do CIRE, impõe que aquele período se inicie com a maior brevidade, de modo a permitir o fresh start dos Insolventes, conforme resulta do ponto 45 do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º53/2004, de 18 de Março. Considera que como a efetiva obtenção do beneficio de exoneração do passivo restante supõe que após a sujeição ao processo de insolvência, o insolvente permaneça, por um período de cinco anos, ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos, assim se abre caminho para que aquele seja poupado a toda a tramitação do processo de insolvência, designadamente à da liquidação do ativo, cuja concretização padece, sempre, de manifesta morosidade.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o nº1, do artigo 239.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante designado, abreviadamente, CIRE), que não havendo motivo para indeferimento liminar (do pedido de exoneração do passivo restante), é proferido o despacho inicial na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes
E o n.º 2, do referido artigo, consagra que o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte (negrito nosso).
Assim, estabelecendo a lei que o período da cessão tem início após o encerramento do processo de insolvência, importa determinar quando tal encerramento se verifica.
O artigo 230.º, CIRE, com a epígrafe «Quando se encerra o processo», estabelece no nº 1 que Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento:
a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239.º;
b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste;
c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento;
d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente;
e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º
Ora, não tendo aplicação ao caso as alíneas b), c) e d), vem-se entendendo, o que aconteceu designadamente no recente Acórdão da Relação do Porto de 24/1/2017, Processo 870/14.5TBMAI-E.P1, in dgsi.net, que, também, não tem aplicação a alínea e), pois a declaração de encerramento do processo no despacho inicial só pode ocorrer se se verificar a inexistência de bens (ou, anomalamente, sendo o despacho liminar proferido tardiamente, tendo já ocorrido o rateio), assim se caindo no regime regra – o constante da referida alínea a).
Na verdade, decorre do nº1, do artº. 182º, do CIRE, que só se procede ao rateio final e distribuição do respectivo produto pelos credores reconhecidos e graduados, após a liquidação da massa insolvente. Só têm, pois, lugar a distribuição e o rateio final, depois de encerrada a liquidação da massa insolvente. Assim, admitido liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante, se já tiver ocorrido a liquidação, deve decretar-se logo o encerramento do processo de insolvência, nos termos da alínea e). Ao invés, não estando a liquidação ainda concluída, não ocorre fundamento para a aplicação do regime estabelecido nesta alínea e), antes o regime regra consagrado na alínea a) – sendo, então, necessário aguardar pelo rateio final.

Deste modo, constata-se que é o próprio legislador a considerar existirem circunstâncias que obstam a que, no despacho liminar do incidente de exoneração do passivo restante a que alude a alínea b) do artº. 237º, do CIRE, seja declarado o encerramento do processo. Desde logo na al. a), do nº.1, do artº. 230º, do CIRE, prevê-se que prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento “Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no nº. 6, do artigo 239º”, donde podemos concluir, aplicando um argumento a contrario sensu, que até ao encerramento da liquidação e rateio final, não deve ser declarado o encerramento do processo.

Concluindo, só se deve declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante se inexistirem bens a liquidar, e só nesta circunstância, impondo-se que em caso de existência de bens, e não estando concluída a respectiva liquidação está vedada a declaração de encerramento do processo de insolvência, antes de concluída a liquidação, conforme decorre da alínea a), do nº. 1, do artº. 230º, do CIRE, que consagra o regime regra sobre o encerramento do processo de insolvência.

Neste sentido se vem orientando quer a Doutrina quer a Jurisprudência.

Na verdade, Alexandre de Soveral Martins refere que De acordo com o artigo 230.º, 1, e), o juiz declara o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante se esse encerramento ainda não tiver sido declarado. No entanto, a letra do preceito, não diz tudo e uma leitura mais apressada conduziria a soluções indesejáveis (1).
E afirma que O despacho inicial é proferido na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes (art. 239.º,1). Se nesse despacho inicial o juiz decretasse sempre o encerramento do processo quando nessa altura o processo de insolvência ainda não estivesse encerrado, o devedor com bens sairia profundamente beneficiado. Com efeito, o início da venda dos bens só tem lugar, em regra, após a assembleia de apreciação do relatório (art. 158.º, 1). Mas nessa mesma assembleia ou nos 10 dias subsequentes é proferido o despacho inicial, que declararia encerrado o processo. Não haveria assim tempo para proceder à venda de bens do devedor.
Daí que a existência de bens na massa para liquidar impeça que o juiz decrete o encerramento no despacho inicial. E isto apesar do art. 230º,1, e), que deve por isso ser objecto de interpretação restritiva (2).
E salienta, ainda, que se não há insuficiência da massa e há liquidação, o encerramento do processo de insolvência terá lugar após a realização do rateio final (art. 230.º, 1, a). Não faz então qualquer sentido aplicar nessa hipótese o art. 230.º, 1, e) (3).
Também Carvalho Fernandes e João Labareda, como afirma o Tribunal a quo afirmam delimitando o alcance da al. e) que …tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património actual que deve ser liquidado, ou não há. Neste último caso, tanto pode suceder que a inexistência seja já conhecida à data do proferimento do despacho inicial do incidente, como não.
Ora, se houver património a liquidar, não se vê como deva – ou possa – o despacho inicial declarar o encerramento do processo de insolvência, o qual só poderá ter lugar após a concretização da liquidação e rateio (4).
Assim, afastada a aplicação da alínea e), do artigo 230.º, do CIRE, ao qual, dentro do espírito do sistema, apenas pode ser conferida uma interpretação restritiva, cai-se no âmbito da previsão da alínea a): o processo é declarado encerrado após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239.º, sendo que, de acordo com o artigo 182.º, n.º 1, CIRE, a distribuição e o rateio final só podem ter lugar depois de encerrada a liquidação da massa.
Luís Menezes Leitão afirma que O encerramento do processo de insolvência constitui a fase final do mesmo, pelo que logicamente deverá ocorrer uma vez realizados os fins previstos nesse mesmo processo, a que se refere o art.º 1.º, ou seja, a liquidação do património do devedor e a repartição do respectivo produto pelos seus credores (art.º 230.º, n.º 1, a), ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência (5).
Analisada a Doutrina, vejamos, agora, o entendimento dos Tribunais Superiores.
Na jurisprudência dos Tribunais Superiores surgem diversos Acórdãos a atentar, designadamente o da Relação de Coimbra, de 2014.10.28, Processo n.º 2544/12.2TBVIS.C1; os da Relação de Guimarães, Processo n.º 498/14.0TBGMR-G.G1 e Processo nº 1526/09.6TBVRL-G-G1; o da Relação de Évora, Processo n.º 5422/10.6TBSTB-H.E1, todos in dgsi.net., e, em especial, os , mais recentes, que seguimos, da Relação do Porto de 7/11/2016, proferido no processo nº 1790/13.6TBPVZ-I.P1, onde se considerou afigura-se-nos que dos elementos histórico, actualista, sistemático teleológico e até literal, resulta que a melhor interpretação a emprestar à alínea e), do nº. 1, do artº. 230º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) determina que, apenas nos casos em que inexiste activo a liquidar, deve o processo de insolvência ser encerrado, proferido que seja o despacho liminar sobre o pedido de exoneração do passivo restante, carecendo de sustentação válida, pelas razões já adiantadas, a interpretação do citado normativo, no sentido de que o legislador pretendeu especificamente que com o despacho inicial de exoneração do passivo fosse decretado o encerramento, dando início ao período de cessão mesmo que exista activos não liquidados;
e o de 24/1/2017, Processo 870/14.5TBMAI-E.P1, todos in dgsi.net, onde se refere Sintetizando:
O início do período de cessão só poderá começar a contar-se da data do despacho inicial havendo inexistência ou insuficiência de bens nos termos do artigo 232.º, CIRE; sendo determinada a liquidação de bens, como no caso dos autos, o início do período de cessão reporta-se à data do rateio final.
Não se desconhece que a liquidação do activo e subsequente rateio se podem prolongar por vários anos, por diversas razões (complexidade devido à quantidade e natureza dos bens, negligência do administrador da insolvência, acumulação de processos; etc).
Embora se desconheçam as razões do alegado atraso, ainda que não sejam imputáveis ao apelante, carece de fundamento legal a pretensão de fazer reportar, retroactivamente, o início do período ao momento da prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
Aí se considerou que o início do período de cessão só poderá começar a contar-se da data do despacho inicial havendo inexistência ou insuficiência de bens nos termos do artigo 232.º, CIRE; sendo determinada a liquidação de bens, como no caso dos autos, o início do período de cessão reporta-se à data do rateio final (6).
Também na Relação de Lisboa se decidiu que a data do início do período de cessão poderá começar a contar-se da data do despacho inicial, mas apenas, “quando se determine a insuficiência da massa, nos termos do artº 232º e de acordo com o artº 230º n.º 1 al. e)”, ambos do CIRE (7)

Acresce, ainda, que requeria o insolvente que o período de contagem dos 5 anos, referente ao procedimento de exoneração do passivo restante, tivesse início, retroactivamente, na data de 13/08/2013, data em que foi deferido liminarmente o pedido formulado, uma vez que ainda não foi encerrado o processo de insolvência.
Ora, tal nunca poderia proceder, pois que se apresentava a requerer que se considerasse iniciado o período de cessão do rendimento disponível num momento em que já se encontravam quase quatro anos já passados, não se verificando efectivamente, como bem decidiu o Tribunal a quo fundamento para tal.

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Constata-se, porém, que nos termos do art. 6º, nº6, do DL nº 79/2017, de 30 de Junho, o disposto na al. e), do nº1, do art. 230º, do CIRE, nos casos em que não tenha sido declarado o encerramento e tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor de referido decreto-lei – 1 de Julho de 2017 (cfr. art. 8º) (8).

Assim, sentiu o legislador necessidade de regular tal questão, e fê-lo de modo claro, elucidativo e direto nos referidos termos.

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Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo violação de qualquer normativo invocado pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.

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IV. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pelo apelante – art. 527º, nº1, do CPC.

Guimarães, 19 de outubro de 2017


(Dr. Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha)
(Dr. José Manuel Alves Flores)
(Dr. Sandra Maria Vieira Melo)


1. Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, pg. 347

2. Ibidem, pag. 540-541.

3. Ibidem, pag. 542.

4. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, pg. 828-829.

5. Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 5.ª edição, Almedina, pg. 273.

6. Acórdão da Relação do Porto de 24/1/2017, Processo 870/14.5TBMAI-E.P1 .in dgsi.net

7. Acórdão da Relação de Lisboa de 16/11/2016 Processo nº 1579-12.0TBSC.L1-8, in dgsi.net

8. Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 9ª Edição, 2017, pag.281.