Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
486/18.7T8VL-A.G1
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: DECLARAÇÕES DE PARTE
INDICAÇÃO DO OBJETO DO MEIO DE PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. No requerimento em que requer a prestação de declarações de parte deve a parte indicar os factos sobre os quis pretende ser ouvida.

II. Tal exigência de discriminação tem propósito funcional – por um lado permitir ao juiz verificar se o meio de prova é, em concreto, admissível, por incidir sobre factualidade em que a parte tenha tido intervenção directa ou de que tenha conhecimento directo e, num segundo plano, possibilitar ao juiz conduzir o interrogatório de forma eficiente e consequente, escrutinando o decurso das declarações, conformando-as e circunscrevendo-as à matéria relativamente à qual a parte entendeu justificar-se ser ouvida em declarações (exercendo o ‘direito potestativo processual’ de requerer a prestação de declarações de parte), ainda que sem beliscar o direito da parte conduzir com autonomia o conteúdo das suas declarações.

III. Considerando o propósito funcional de tal indicação discriminada do respectivo objecto, deve tal exigência ter-se por satisfeita quando a indicação é realizada de forma a permitir apreender as matérias e questões relativamente às quais a parte pretende ser ouvida em audiência.

IV. Indicando expressamente a parte o objecto do meio de prova pretendido (ainda que o mesmo se reconduza à quase totalidade da alegação da petição inicial), não pode tal prova ser rejeitada com o fundamento de que a parte se eximiu, nessa indicação, a expurgar da pretensão a matéria conclusiva, de direito ou irrelevante – em tais circunstâncias cumprirá ao tribunal admitir o meio de prova e retirar do objecto indicado pela parte a matéria que tenha por irrelevante, conclusiva e de direito bem como a que se não conforme à previsão do nº 1 do art. 466º do CPC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1)

RELATÓRIO

Apelante: V. M. (autor)
Apelada: Seguradoras …, S.A. (ré)

Juízo de competência genérica de Valença - T. J. Comarca de Viana do Castelo
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Na presente acção com processo comum logo na petição inicial (cuja alegação se desenvolve por 82 artigos) requereu o autor, além do mais, fosse ouvido em declarações aos factos alegados nos artigos 1º a 82º da petição inicial.
Findos os articulados, ao abrigo do disposto no artigo 597º, nº 1, c), f) e g) do CPC, foi proferido despacho que afirmou tabelarmente a validade e regularidade da instância, fixou o valor da causa e se pronunciou sobre os requerimentos probatórios oferecidos pelas partes (tendo ainda agendado dia para julgamento) e que, no que releva à economia da presente apelação, ordenou ao autor indicasse de forma discriminada a que matéria pretendia ser ouvido em declarações de parte, sob pena de indeferimento.
Em resposta, apresentou o autor requerimento indicando como matéria factual à qual pretendia ser ouvido em audiência de discussão e julgamento, ‘a matéria vertida nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 38.º, 39.º, 40.º, 31.º, 42.º, 43.º, 44.º, 45.º, 46.º, 47.º, 48.º, 49.º, 50.º, 51.º, 52.º, 53.º, 54.º, 55.º, 56.º, 57.º, 58.º, 59.º, 60.º, 6.1º, 62.º 63.º 64.º 65.º 66.º, 67.º, 68.º 69.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 74.º, 75.º e 76.º da petição inicial’.

Foi então proferido despacho com o seguinte teor:

O A por despacho de 28.03.2019 foi notificado para no prazo de 10 dias indicar de forma descriminada a que matéria pretende as referidas declarações, sob pena do seu indeferimento – arts. 466º e 452º, nº2, ambos do CPC.
O A apresentou o requerimento supra identificado em que não indica de forma descriminada qual a matéria a que pretende que sejam prestadas as declarações de parte limitando-se a referir que pretende as declarações da matéria do artigo 1º a 76ºda petição inicial, ou seja, indica a quase totalidade de matéria da petição inicial sem fazer qualquer descriminação, indicando artigos com factos conclusivos, de direito ou irrelevantes, não dando cumprimento ao aludido despacho.
Assim e atento o supra exposto, indefere-se as requeridas declarações de parte – art. 466º e 452º, nº2, ambos do C.P.C.

Inconformado com tal despacho, apela o autor, pretendendo a revogação da decisão e substituição por outra que o admita a prestar declarações de parte, nos termos pretendidos, terminando as alegações com as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido em 07/05/2019, na parte em que não admitiu a prestação de declarações de parte por banda do Autor.
2. Contrariamente ao que se pretende sustentar, sem substância, na decisão recorrida, o Autor discriminou, dentre todos os factos alegados na p.i., aqueles sobre os quais iria incidir o seu depoimento.
3. O Autor teve o cuidado de discriminar a matéria sobre a qual iriam incidir as declarações, excluindo da mesma as afirmações de natureza conclusiva e, nomeadamente, a matéria do art. 37.º da p.i.
4. Caso entendesse que alguma da matéria indicada era conclusiva ou de direito, o Tribunal recorrido, em lugar de indeferir a prestação de declarações de parte no seu todo, deveria proferir despacho de indeferimento unicamente em relação à matéria que entendia não poder ser abrangida pelas declarações de parte.
5. Nenhum dispositivo legal impede as partes de requererem a tomada de declarações de parte a toda a matéria de facto alegada nos articulados, o que significa que ao Autor não estava nem está vedado indicar todos os factos alegados na p.i. como objecto do seu depoimento.
6. O formalismo patente no despacho recorrido até se poderia compreender (com dificuldade, diga-se) se, por exemplo, estivesse em causa a indicação da matéria sobre a qual iria incidir o depoimento pessoal da contraparte, mas não é esse o caso dos autos.
7. O douto despacho recorrido surge manifestamente em contraciclo face ao actual paradigma do processo civil.
8. A decisão recorrida até se poderia compreender se o Autor seria lícita unicamente num quadro de falta de resposta à notificação do Tribunal para indicar a matéria sobre as quais pretendia prestar declarações de parte.
9. Não foi isso, contudo, que aconteceu, já que o Autor, por um lado, respondeu ao douto despacho de 28/03/2019 e, por outro, indicou, de forma discriminada, a matéria sobre a qual o seu depoimento iria incidir – reduzindo essa matéria, face à inicialmente indicada (na p.i.) e, ademais, expurgando a mesma da única conclusão contida nos arts. 1.º a 76.º do seu articulado (a contida no art. 37.º da p.i.).
10. A decisão recorrida, na parte em que pressupôs um incumprimento desse ónus por parte do Autor, partiu de um pressuposto falso e erróneo e que, por essa razão, não é sustentável.
11. A decisão recorrida, ao indeferir o pedido de prestação de declarações de parte, violou, além de outras, as disposições do art. 466.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por Douto Acórdão que defira o pedido de prestação de declarações de parte formulado pelo Autor.

Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Da delimitação do objecto do recurso

Considerando, conjugadamente, o despacho recorrido (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), a questão a decidir reconduz-se a apreciar se se mostra justificada a decisão de indeferir as declarações de parte do autor por falta de discriminação da matéria sobre a qual deveriam incidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto

A matéria factual a ponderar é a que resulta exposta no relatório que precede.
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Fundamentação de direito

O direito à jurisdição não implica apenas o direito de aceder aos tribunais, propondo acções e contraditando acções alheias, mas também o direito efectivo a uma jurisdição que a todos seja acessível em termos equitativos e conduza a resultados individual e socialmente justos – acepção ampla que levou à consagração expressa, no art. 20º, nº 4 da Constituição da República (aquando da revisão de 1997), do direito a um processo equitativo, anteriormente derivado do art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (2).

Esta necessidade de observar um conjunto de regras fundamentais ao longo do processo, nos vários planos em que este se desenvolve, corolário do princípio da equidade, desenvolve-se no direito que se reconhece às partes de influenciar a decisão (essa a actual e corrente noção ou densificação do princípio do contraditório) – garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio (como a jurisprudência constitucional tem exaltado (3)), ‘mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão’, ou, de outro modo, no ‘sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo’ (4).

Exigência postulada pelo princípio do processo justo e equitativo (art. 20º da CRP), o princípio do contraditório possui conteúdo multifacetado: traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado desses provas (5), tem ínsito o direito à prova (enquanto actividade destinada à formação da convicção do tribunal sobre a realidade dos factos – art. 341º do CC).

No plano probatório, o princípio do contraditório exige (além do mais) que às partes seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa - o requerimento de produção dos meios de prova constituendos (a produzir no processo, como o testemunho, o depoimento de parte ou a prova pericial) ou de apresentação de meios prova preconstitídos (já produzidos extrapocessualmente, como o documento) constitui o direito à proposição da prova (6).

Este princípio da igualdade de armas ínsito no direito à prova é fundamento da inovadora consagração das declarações de parte como meio de prova no actual Código de Processo Civil – se outras razões não ocorressem, a pertinência da sua consagração encontra-se na circunstância de (dado da experiência comum) a inadmissibilidade da prestação de declarações de parte conduzir frequentemente a ‘assimetrias do direito à prova dificilmente compagináveis com o princípio da igualdade de armas ínsito no direito à prova’ (7).

Admite-se, pois, inovadoramente, no actual ordenamento jurídico-processual (artigo 466º do CPC), legitimidade à parte para requerer (8) a prestação de declarações por si mesma, assim resultando da letra da lei a possibilidade da parte produzir declarações a si favoráveis (9) – tanto o princípio da verdade material decorrente da garantia do processo justo e equitativo (art. 20º, nº 4 da CRP), como o princípio da aquisição processual (art. 413º do CPC), conjugados com o princípio da livre valorização da prova segundo a convicção do juiz (art. 607º, nº 5 do CPC), impõem que a declaração da parte quanto à ocorrência de factos que lhe são favoráveis seja avaliada e valorada pelo tribunal em atenção à livre apreciação (10).
A densificação legal do meio de prova, para lá da definição do respectivo objecto (a prestação de declarações de parte tem por objecto factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo - art. 466º, nº 1 do CPC), é estabelecida pela remissão efectuada pelo art. 466º, nº 2 do CPC – a construção do procedimento é ditada pela remissão solitária para o disposto no art. 417º do CPC e pela remissão colectiva, com as necessárias adaptações, para a prova por confissão (11).
A remissão para o artigo 417º do CPC demonstra que não estamos perante ‘um livre direito da parte (um direito «anárquico»), sem limites’, pois a ‘pertinência objectiva e a duração da sua intervenção devem ser permanentemente escrutinadas pelo tribunal, oficiosamente ou a requerimento da parte contrária’, sem que isso signifique porém restrição ao ‘essencial direito da parte a conduzir com autonomia o teor da sua declaração’ (12).

Já a segunda parte da remissão efectuada pelo art. 466º, nº 2 do CPC (o ‘estabelecido na secção anterior’) permite decalcar o procedimento das declarações de parte sobre o procedimento do depoimento de parte, com ‘exclusão de preceitos para os quais haja regulação privativa no art. 466º (assim, quanto à legitimidade, objecto e oportunidade da declaração) ou que contrariem a natureza de livre intervenção oral da parte, apenas sujeita ao artigo 417º’ (13).

Apreciar se a parte deve ou não cumprir a exigência (estabelecida no art. 452º, nº 2 do CPC para o depoimento de parte) de indicação discriminada dos factos objecto das declarações que se propõe prestar é questão pertinente, considerando que os temas da prova assumem (ou podem assumir) formulação genérica e não analítica ou exaustiva, afigurando-se ser de concluir afirmativamente (14). Porque as declarações de parte se consubstanciam ‘num interrogatório dirigido pelo juiz - e não pretendendo ser este um momento em que é simplesmente concedida a palavra às partes, para alegarem à sua vontade - urge que haja um fio condutor na inquirição, que se traduz na indicação desses factos que a parte pretende ver provados. Aliás, tendo este meio de prova lugar somente mediante requerimento da própria parte, de outra forma não se conceberia, sob pena de, desconhecendo o tribunal a intenção probatória da parte, não só não poder avaliar a necessidade de tal meio de prova, como não poder, de todo, proceder à referida inquirição.’ (15)

Não enjeitando que possa existir controvérsia sobre se deve ou não exigir-se tal discriminação factual (16), não pode negar-se ser seguro que as questões e dificuldades surgidas com a determinação do âmbito da remissão colectiva operada no nº 2 do art. 466º do CPC para o procedimento do depoimento de parte devem ser resolvidas ponderando-se as especificidades de cada um dos meios de prova – e por isso, ainda ‘que possa haver controvérsia em saber se a parte que pretende prestar declarações deve indicar os factos sobre que irá depor, deve entender-se que é conveniente uma delimitação mínima sobre o objecto do depoimento, até para permitir ao juiz imprimir determinada cadência e precisão na condução da inquirição, ao que acresce que as declarações prestadas nesta sede apenas poderão respeitar a factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo’ (17).

As dificuldades surgidas com a determinação do âmbito desta remissão colectiva para o procedimento do depoimento de parte devem ser resolvidas ponderando as especificidades de cada um dos meios de prova – ainda ‘que possa haver controvérsia em saber se a parte que pretende prestar declarações deve indicar os factos sobre que irá depor, deve entender-se que é conveniente uma delimitação mínima sobre o objecto do depoimento, até para permitir ao juiz imprimir determinada cadência e precisão na condução da inquirição, ao que acresce que as declarações prestadas nesta sede apenas poderão respeitar a factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo’ (18).
Tal exigência de discriminação tem propósito funcional – por um lado permitir ao juiz verificar se o meio de prova é, em concreto, admissível, por incidir sobre factualidade em que a parte tenha tido intervenção directa ou de que tenha conhecimento directo e, num segundo plano, possibilitar ao juiz conduzir o interrogatório de forma eficiente e consequente, escrutinando o decurso das declarações, conformando-as e circunscrevendo-as à matéria relativamente à qual a parte entendeu justificar-se ser ouvida em declarações (exercendo o ‘direito potestativo processual’ de requerer a prestação de declarações de parte), ainda que sem beliscar o direito da parte conduzir com autonomia o conteúdo das suas declarações.

Considerando o propósito funcional de tal indicação discriminada do respectivo objecto, deve tal exigência ter-se por satisfeita quando a indicação é realizada de forma a permitir apreender as matérias e questões relativamente às quais a parte pretende ser ouvida em audiência – dito de outra forma, a indicação deverá ter-se por cumprida quando permita identificar os temas da prova controvertidos (que serão objecto de prova em julgamento) sobre os quais pretende ser ouvida em declarações em audiência.

Manifestamente que tal propósito é alcançado quando a parte procede a tal indicação identificando os artigos do articulado por si apresentado aos quais pretende ser ouvido em audiência – como aconteceu no caso dos autos.

No caso dos autos a parte indicou, discriminadamente, a matéria à qual pretendia ser ouvida em audiência.
A circunstância de ter indicado a quase totalidade da matéria da petição inicial é, em vista de apurar da admissibilidade do requerimento, irrelevante – quer por tal não significar que a parte não procedeu a indicação indiscriminada, quer porque nada impede a parte de requerer a prestação de declarações a toda a matéria controvertida (19).

Não se desconhece a posição que defende que a exigência legal de discriminação dos factos a que o depoimento de parte deve ser prestado (e por isso também as declarações de parte) exige uma actividade real e efectiva que distinga entre os factos que podem ser objecto de tal meio de prova dos demais e que uma tal discriminação não ocorrerá quando os factos indicados são todos os do articulado (com excepção dos que respeitem ao pedido, transcrição de arestos e conclusões) (20), não se bastando com o uso de fórmula genérica que englobe matéria conclusiva, direito, factos não pessoais, mormente em casos manifestos e desproporcionados, associados a articulados extensos e prolixos (21).

Não cremos porém que tal posição resista ao teste de compatibilidade e harmonização com o actual figurino do processo civil, liberto dos formalistas espartilhos da especificação e do questionário, tributário de modelo que adoptou os temas da prova, mais ou menos genéricos, como guião para a audiência de discussão e julgamento e que possibilita ao juiz, nos termos do art. 5º, nº 2 do CPC, adquirir validamente para o processo factos complementares e concretizadores dos factos principais (essenciais) alegados pelas partes. Efectivamente, a harmonia e unidade do sistema jurídico (art. 9º do CC) não se compadece com a bipolaridade em que se traduziria possibilitar ao juiz erigir o guião da matéria controvertida a discutir na audiência de discussão e julgamento de forma mais ou menos genérica (mais apta a possibilitar a aquisição de factos complementares e concretizadores) e exigir à parte uma precisa indicação dos factos objecto das declarações de parte expurgada de matéria conclusiva ou de direito – específica exigência que ademais se mostra incompatível com o novo e adequado modelo de retratar a realidade a ponderar nos litígios a dirimir, pois que atenuando o espartilho tradicional, assente na clássica e, por vezes, esotérica divisão entre matéria de facto/matéria de direito (22) (ou matéria conclusiva), não negando a inadmissibilidade da assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou a impossibilidade de, através de afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspectos que dependem da decisão da matéria de facto, a actual ‘opção legislativa tem subjacente a admissibilidade de uma metodologia em que, com mais maleabilidade, se faça o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito’ (23); a exigência está, actualmente, centrada na fluência e harmonia descritiva da matéria de facto, em detrimento da sua apresentação sincopada, tal qual a que resultava da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas restritivas ou explicativas que usualmente preenchiam os pontos da base instrutória, tendo-se ‘optado por proposições de carácter mais abrangente ou de pendor mais genérico ou conclusivo, mas que permitam delimitar e compreender a matéria de facto que é relevante para a resolução do concreto litígio’ (24).

Entendemos, pois, que o requerimento em que a parte indique como objecto das suas declarações de parte toda a matéria alegada, não poderá ser rejeitado por falta de indicação do respectivo objecto, sem prejuízo da sua rejeição quanto às matérias que não possam ser dele objecto (matérias manifestamente conclusivas e/ou de direito e/ou os factos em que a parte não teve intervenção ou não tenha conhecimento directo) - ou seja, a rejeição terá de circunscrever-se às matérias que não podem ser objecto do meio de prova em causa, não ficando prejudicada a parte restante.

Por isso que indicando a parte o objecto (25) do meio de prova pretendido, não pode tal prova ser rejeitada com o fundamento de que a parte se eximiu, nessa indicação, a expurgar da pretensão a matéria conclusiva, de direito ou irrelevante – em tais circunstâncias cumprirá ao tribunal admitir o meio de prova e retirar do objecto indicado pela parte a matéria que tenha por irrelevante, conclusiva e de direito bem como a que se não conforme à previsão do nº 1 do art. 466º do CPC (26).

Na situação dos autos o autor identificou a matéria factual à qual pretende ser ouvido em audiência, para tanto indicando os artigos da petição inicial que continham a alegação factual a que pretende declarar, não podendo, pois, indeferir-se as requeridas declarações de parte com o fundamento de que não indicou discriminadamente o respectivo objecto.

Assim que procede a apelação, pois que as declarações de parte são admissíveis, cumprindo ao tribunal expurgar do seu objecto a matéria que tenha por irrelevante, conclusiva e de direito bem como a que se não conforme à previsão do nº 1 do art. 466º do CPC.
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, em revogar o despacho recorrido, admitindo as declarações de parte do autor, devendo o tribunal recorrido retirar do objecto indicado pelo autor a matéria que tenha por irrelevante, conclusiva e de direito (e bem assim a que entenda não se conformar à previsão do nº 1 do art. 466º do CPC).
Custas da apelação na proporção do decaimento, a apurar a final.
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Guimarães, 23/04/2020
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)



1. Apelação nº 486/18.7T8VLN-A.G1; Relator: João Ramos Lopes; Adjuntos: Jorge Teixeira, José Fernando Cardoso Amaral
2. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos Princípios Gerais à luz do Novo Código, 4ª edição, p. 125.
3. P. ex., o acórdão do Tribunal Constitucional nº 30/2020, de 16/01/2020, processo nº 176/19 (Pedro Machete), no sítio www.tribunal constitucional.pt.
4. Lebre de Freitas, obra citada, pp. 126/127.
5. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição revista, p. 415.
6. Lebre de Freitas, obra citada, p. 130.
7. Luís Filipe Pires de Sousa, As Declarações de Parte, Uma Síntese, p. 3 (no sítio www.trl.mj.pt.), dando o paradigmático exemplo dos julgamentos de causas emergentes de acidente de viação em que o autor/condutor (parte) não era ouvido quanto ao relato da dinâmica do acidente enquanto o segurado (e também condutor) da ré (seguradora) era sempre arrolado como testemunha. Alude ainda [citando Elizabeth Fernandez, in ‘Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito’, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, e Remédio Marques, ‘A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des) Favoráveis ao Depoente ou à Parte’, in Julgar, Jan-Abr. 2012, nº16], aos factos por natureza revéis à prova documental, testemunhal e mesmo pericial, nomeadamente ‘factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percecionados por terceiros de forma direta’, aos factos respeitantes a ‘acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes’ – quanto a tais factos demonstráveis por prova tendencialmente única, a recusa do tribunal em admitir e valorar livremente as declarações favoráveis do depoente poderia implicar ‘uma concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva dos direitos subjetivos e das demais posições jurídicas subjetivas.’
8. Luís Filipe Pires de Sousa, As Declarações (…), p. 4, refere ‘assistir à parte o direito potestativo processual de requerer a própria prestação de declarações de parte’.
9. Como bem realça Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, 2014, p. 283, no plano objectivo, a solução não inova, pois os depoimentos de parte já admitiam que a parte produzisse tanto declarações favoráveis como desfavoráveis; a inovação reside em expressamente se admitir legitimidade para a parte requerer a prestação de declarações por si mesma.
10. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pp. 671/672.
11. Rui Pinto, obra citada, p. 675.
12. Rui Pinto, obra citada, p. 675.
13. Rui Pinto, obra citada, p. 676.
14. Posição também defendida por Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, p. 676, expressamente admitindo poder a parte requerer a prestação de declarações a toda a matéria (citando o acórdão de 3/04/2014 da Relação de Guimarães – Helena Melo).
15. Mariana Fidalgo, apud Luís Filipe Pires de Sousa, As Declarações (…), p. 10.
16. Catarina Gomes Pedra, ‘A Prova por Declaração das Partes no Novo Código de Processo Civil. Em Busca da Verdade Material no Processo’, 2014, pp. 136/137, entende que a indicação discriminada dos factos sobre os quais hão-de recair as declarações não faz sentido, pois que tal exigência no âmbito do depoimento de parte radica na funcionalização deste meio de prova à confissão, o que não ocorre nas declarações de parte.
17. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral do Processo de Declaração, 2018, p. 531.
18. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral do Processo de Declaração, 2018, p. 531.
19. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, p. 676 e acórdãos desta Relação de Guimarães de 3/04/2014 (Helena Melo) e de 12/03/2015 (Isabel Rocha), ambos no sítio www.dgsi.pt..
20. P. ex., o acórdão da Relação do Porto de 6/02/2020 (Paulo Duarte Teixeira) , no sítio www.dgsi.pt..
21. P. ex., o acórdão desta Relação de Guimarães de 17/12/2019 (Maria Leonor Barroso), no sítio www.dgsi.pt..
22. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 722.
23. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, obra citada, p. 721
24. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, p. 600.
25. Objecto que ‘não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto’ - Teixeira de Sousa, apud Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código (…), p. 26 e 722.
26. Neste sentido se argumentou no acórdão da Relação do Porto de 21/11/2019 (João Venade), no sítio www.dgsi.pt.