Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2184/15.4T8CHV.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: BENS COMUNS DO CASAL
ALIENAÇÃO OU ONERAÇÃO DE BENS COMUNS DO CASAL
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MEAÇÃO DO CÔNJUGE DEVEDOR
DIREITO DE USUFRUTO A FAVOR DO CÔNJUGE NÃO DEVEDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Em sede de Impugnação pauliana, a anterior pertença do bem imóvel ao património comum do casal passa a ser irrelevante a partir do momento em que a sua propriedade se transfere para terceiro (sendo que essa titularidade do terceiro se manterá neste, apesar da procedência da Impugnação pauliana).

II. Nessa medida, incidindo a impugnação pauliana sobre bens agora de terceiros – e que anteriormente integravam o património comum de um casal, nunca a acção poderá (nestes casos) proceder apenas em parte, nomeadamente restrita à meação do cônjuge devedor.

III. É que, após o acto de transmissão da propriedade, e passando a ser de terceiros, os bens deixaram de fazer parte do património comum do casal e, consequentemente, deixa de ter cabimento qualquer consideração sobre se a dívida será somente da responsabilidade do cônjuge devedor.

IV –Neste âmbito, a Impugnação pauliana poderá também afectar o direito de usufruto constituído, no mesmo acto de transmissão, a favor do cônjuge não devedor, uma vez que o exercício da acção pauliana, como resulta do nº 2 do art. 613º do CC, é extensível à constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiros (Impugnação pauliana de segundo grau).”
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente(s):- M. S.;

Recorrido(a)(s):- M. C.;


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M. C. instaurou contra J. B. casado no regime da comunhão de adquiridos com M. S., J. A. e D. B. a presente acção declarativa de impugnação pauliana.
Alegou, para o efeito que, em 3 de Setembro de 2013 emprestou ao Réu J. B. a quantia de 23.000 €, com a obrigação de restituir até 31 de Março de 2014.
Sendo o pagamento realizado até à data apontada não incidiria sobre o empréstimo qualquer juro, caso contrário passaria a vencer juros à taxa de 4%.
O Réu J. B. assumiu ainda que, caso não fizesse o pagamento na data acordada, entregaria ao Autor o imóvel, sito no Lugar do …, na freguesia de …, com a área de 1450 m2, inscrito na matriz sob o art. … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob p n.º ….
O Réu não procedeu ao pagamento do valor em causa.
Por sentença proferida no âmbito do Proc.1560/14.4T8CHV que correu termos no J1 da Instância Local Civil de Chaves do Tribunal da Comarca de Vila Real, foi o Réu J. B. condenado a pagar ao Autor a quantia de 23.000 € acrescida de juros legais à taxa de 4% desde 31 de Março de 2014 e até efectivo e integral pagamento.
Sucede que os Réus J. B. e M. S. possuíam vários imóveis, sendo um deles o imóvel supra referido, sito no lugar do Picoto.
Por escritura de doação outorgada em 5 de Setembro de 2014 os Réus J. B. e M. S. doaram aos Réus J. A. e D. B., seus filhos, o mencionado prédio, tendo-se reservado o usufruto vitalício do mesmo para a Ré M. S..
O Réu J. B. não tem qualquer outro património capaz de assegurar o cumprimento das suas obrigações, sendo que, com a doação em causa foi diminuída a garantia patrimonial do crédito do Autor.
Os restantes Réus sabiam que com essa actuação causariam prejuízos ao Autor.
O crédito do Autor é anterior à doação e à reserva de usufruto e das mesmas resultou a impossibilidade para o Autor da satisfação do seu crédito, ou pelo menos, uma dificuldade na mesma.
Requer, assim, o Autor que, seja declarada a ineficácia em relação a si da doação e reserva de usufruto descrita, e que seja reconhecido o direito à restituição na medida do seu interesse.
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Contestou a Ré M. S., invocando, desde logo, a ineptidão da petição inicial.
Em sede de impugnação afirmou que aceita a matéria vertida na sentença proferida no Proc.1560/14.4T8CHV-J1.
Logo, a quantia não lhe foi mutuada, sendo falso que a contestante e os seus filhos tivessem conhecimento que o Réu J. B. (de quem se encontra separada desde data anterior ao empréstimo aqui em crise) tivesse celebrado com o Autor qualquer contrato de empréstimo.
Na acção supra identificada a ali Ré foi absolvida dos pedidos contra si formulados, sendo demonstrado que o mútuo não foi contraído em proveito comum do casal, mas apenas em proveito do Réu J. B..
Ainda assim, afirma que a reserva de usufruto dos bens aqui em causa, que lhe pertence, não pode ser atacada, porque, atendendo à sua idade – 54 anos – e ao disposto no art. 13º do CIMT não representa valor superior a metade dos bens transmitidos para os seus filhos, mas sim apenas 45% do valor dos imóveis.
Pugna pela improcedência da acção.
Os Réus J. A. e D. B. não contestaram; e o Réu J. B. foi citado editalmente.
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Realizou-se audiência prévia, em que se proferiu despacho saneador, nos termos do qual se julgou improcedente a excepção dilatória de nulidade de todo o processado arguida pela Ré M. S., definiu-se o objecto do litígio e se seleccionaram os temas de prova.
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Designou-se data para a realização da audiência de discussão e julgamento, a qual decorreu com observância de todas as formalidades legais, como da respectiva acta emerge.
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Na sequência, foi proferida a seguinte sentença:
“IV. Decisão.
Em face do exposto julgo a presente acção que M. C. instaurou contra J. B., M. S., J. A. e D. B., procedente por provada e, em consequência, declara-se a ineficaz em relação ao Autor e na medida da satisfação do seu crédito (23.000 € acrescido de juros à taxa legal de 4% desde 31 de Março de 2014 a até efectivo e integral pagamento o contrato de doação outorgado em 5 de Setembro de 2014 por referência ao imóvel sito no Lugar do …, na freguesia de …, que confronta a norte com caminho público, a sul com baldio, a nascente com M. B. e a poente com A. B., inscrito na matriz sob o art. …º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, podendo o mesmo ser executado no património dos donatários.”
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É justamente desta decisão que a Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“I – Considerando que:

-A Recorrente M. S., ao tempo casada com o Réu J. B., doou o prédio objecto dos autos (art. …º da freguesia de …, concelho de Chaves, registado na CRP sob o n.º …º), reservando para si o usufruto vitalício do mesmo.
-O prédio em causa era inequivocamente um bem comum ao casal que a Recorrente M. S. formou com o J. B. – cfr., por favor, certidão de registo predial narrativa completa, junta aos autos em 03.11.2016, donde consta ter aquele imóvel sido adquirido por compra a J. T. e mulher, Maria, na constância do casamento da Recorrente com o seu ex-marido.
-A Recorrente M. S. nada deve ao Autor.
-A Recorrente M. S. nasceu em 16 de Junho de 1961, tendo, à data da doação com reserva do usufruto para si, 53 anos de idade - cfr., por favor, certidão de nascimento, junta aos autos em 03.11.2016.

II – Considerando ainda que:

A escritura em causa não representou para a Recorrente M. S., relativamente àquele prédio, qualquer aquisição de valor, qualquer enriquecimento, pois se antes da escritura era detentora, em termos de quota ideal, da sua meação na propriedade plena (raiz + usufruto), após a escritura passou a deter o usufruto sobre a totalidade do imóvel, deixando de ser proprietária da raiz.
Ou seja, a Recorrente, com a reserva de usufruto, deixou de ter a sua meação no prédio (50% do valor) para passar a ter o usufruto (45% do valor, atendendo à sua idade e ao disposto no artigo 13º do Código do Imposto Municipal de Sisa).

III – Entendemos que a Recorrente, que não deve nada ao Autor, não adquiriu do seu ex-marido, esse sim devedor, nada que o Autor justamente pudesse tornar ineficaz em relação a si.

IV - Representaria a nosso ver uma flagrante injustiça que a Recorrente, que nada deve ao Autor, pudesse ver o usufruto que detém sobre o prédio objecto dos autos penhorado por um terceiro a quem não deve nada.

V - Se a questão ainda poderá assumir alguma discussão relativamente a metade do usufruto, pois essa metade integrava a meação do ex-cônjuge da Recorrente, cremos que, pelo menos, relativamente à metade do usufruto que já integrava a meação da Recorrente e de que esta não abriu mão, não a tendo transmitido e reservando-a na sua esfera jurídico patrimonial, a mesma em caso algum poderá ser atacada pelo Autor, a quem a Recorrente não deve nem nunca deveu fosse o que fosse.

VI - Com efeito, não cremos que a Recorrente integre a figura de “obrigada à restituição” do artigo 616º do Código Civil porquanto se antes da escritura era titular de 50% do valor do imóvel, após a escritura o seu direito ficou confinado a 45% daquele valor. Ou seja, a Recorrente, com a outorga da escritura objecto de impugnação pauliana não se enriqueceu, não enriqueceu à custa do património do devedor, não provocou uma diminuição da garantia patrimonial do crédito do Autor que estava confinada à meação do devedor no património comum do casal.
A sentença recorrida violou, por conseguinte, o disposto nos artigos 610º e 616º do Código Civil.
Termos em que, na procedência do presente recurso, deve a sentença recorrida ser revogada na parte em que procedeu também relativamente ao usufruto reservado a favor da Recorrente.
Subsidiariamente, deve a sentença recorrida ser revogada na parte em que procedeu, pelo menos, em relação a ½ da reserva de usufruto a favor da Recorrente, correspondente à sua meação no património comum do casal que formou com o devedor e réu J. B..
”.
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O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do Recurso.
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Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, a Recorrente coloca a seguinte questão que importa apreciar:
- Poderá o usufruto que a Recorrente reservou para si, na escritura de doação do bem imóvel, ser afectado pela procedência da Impugnação pauliana? – aproveitando-se, aqui, a pergunta que a própria Recorrente formula nas suas alegações.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. Por sentença proferida no Proc.1560/14.4T8CHV da Instância Local de Chaves – Secção Civil – J1, em 3 de Setembro de 2015 e transitada em julgado, o Réu J. B. foi condenado a pagar ao Autor a quantia de 23.000 € acrescida de juros à taxa de 4% vencidos desde Março de 2014.
2. Tendo sido a Ré M. S. absolvida desse pedido.
3. Estando provado nessa sentença que no dia 3 de Setembro de 2013 o Autor entregou ao Réu J. B. a quantia de 23.000 € devendo este restituí-la até ao dia 31 de Março de 2014 e acordaram ainda que, se a quantia mencionada não fosse restituída nos termos referidos, sobre a mesma passariam a impender juros de 4%.
4. O Autor e o Réu elaboraram um documento escrito denominado contrato de confissão de dívida do qual consta que o Réu J. B. confessa ser devedor ao Autor da quantia de 23.000 € devendo a quantia ser entregue até 31 de Março de 2014.
5. Por escritura pública de doação outorgada em 5 de Setembro de 2014 os Réus J. B. e M. S. doaram aos Réus J. A. e D. B. o imóvel sito no Lugar do …, na freguesia de …, que confronta a norte com caminho público, a sul com baldio, a nascente com M. B. e a poente com A. B., inscrito na matriz sob o art. …º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ….
6. Reservando o direito de usufruto vitalício para a Ré M. S..
7. Os Réus J. B. e M. S. são pais dos Réus J. A. e D. B..
8. O Réu J. B. não tem qualquer outro património susceptível de solver as suas obrigações junto ao Autor.
9. Ficando com tal doação e reserva de usufruto o Autor impedido de obter a satisfação do seu crédito.
10. Os Réus sabiam que a sua conduta ia causar prejuízos ao Autor. “
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Conforme resulta das posições da Recorrente e dos Recorridos, a matéria de facto considerada como provada pelo Tribunal Recorrido não foi impugnada pelo mecanismo processualmente próprio, pelo que o presente Tribunal terá de se pronunciar sobre as questões colocadas pelas partes, tendo em consideração apenas aquela factualidade.
Na verdade, a Recorrente não chega a deduzir a pertinente Impugnação da matéria de facto, com obediência ao disposto no art. 640º do CPC, conformando-se, assim, com a decisão sobre a matéria de facto produzida pelo Tribunal Recorrido.
Nessa medida, não tendo sido deduzida Impugnação da matéria de facto e não sendo caso do presente Tribunal proceder à sua alteração oficiosa (cfr. nº 1 do art. 662º do CPC)(1), deverá a factualidade dada como provada manter-se nos exactos termos que se mostram vertidos na Decisão Recorrida.
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Aqui chegados, e dentro destes pressupostos fácticos, importa, pois, que o presente Tribunal se pronuncie sobre a argumentação dos Recorrentes, que contende, como vimos, com a questão de saber se o direito de usufruto da Recorrente constituído pelo contrato de doação aqui questionado pode ser afectado pela procedência da Impugnação pauliana.
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Para um correcto enquadramento do “thema decidendum”, importa expor, sucintamente, algumas considerações jurídicas sobre o instituto da impugnação pauliana.
É regra consabida que o património do devedor é responsável pelo cumprimento das suas obrigações (art. 601º do CC).
Razão por que é dada ao credor a possibilidade de se precaver, com garantias reais ou pessoais, ou ambas, que exige do devedor, para assegurar a satisfação do seu crédito.
A lei prevê meios de conservação da garantia patrimonial.
Um desses meios é, precisamente, a impugnação pauliana.
Com efeito, a impugnação pauliana, configurada como um meio de conservação da garantia patrimonial, poderá ser definida como a faculdade que a lei confere ao credor de atacar judicialmente certos actos válidos – ou mesmo nulos (nº 1 do art. 615º do CC) – celebrados pelo devedor em seu prejuízo (2).
A este respeito, escreve Vaz Serra (3):
“A acção pauliana é dada aos credores para obterem, contra um terceiro, que procedeu de má fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o acto impugnado.
Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional.
O Autor na acção exerce o direito de crédito de eliminação daquele prejuízo (…). O efeito da acção deve ser uma simples consequência da sua razão de ser e, por isso, parece dever limitar-se à eliminação do prejuízo sofrido pelo credor, deixando o acto, quanto ao resto, tal como foi feito”.
Deste modo, concorrendo determinadas circunstâncias, os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, tanto por via de acção como por via de excepção.
Como é sabido, o recurso à Impugnação Pauliana pressupõe, qualquer que seja a natureza do acto a atacar – onerosa ou gratuita –, a verificação cumulativa de determinadas circunstâncias:
a) a existência de determinado crédito;
b) que esse crédito seja anterior ao acto a impugnar ou, sendo posterior, que o acto tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
c) que resulte do acto a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade da satisfação integral do crédito.
Refira-se quanto a este último requisito que, contrariamente ao alegado pela Recorrente, para que a acção pauliana possa proceder bastará que o Impugnante alegue e prove que do acto jurídico realizado pelo devedor possa resultar para o credor a impossibilidade de satisfação integral do crédito (ou como é evidente, o agravamento dessa impossibilidade), como sucede “no caso típico do devedor que vende o único bem imóvel capaz de garantir com segurança, através da sua penhora, a satisfação integral dos seus débitos, pensando na fácil subtracção do preço à acção da justiça”.
Ou seja, no preenchimento deste requisito o que interessa é o prejuízo do credor e a alegação e prova “…da impossibilidade prática, de facto, do pagamento forçado do crédito”, independentemente de os actos jurídicos praticados terem provocado a insolvência do devedor (4).
No caso concreto, estando em causa actos jurídicos gratuitos, não se exige o requisito da má-fé- uma vez que este só é exigível enquanto requisito no caso do acto a impugnar ser oneroso.
Efectivamente, o acto oneroso só está sujeito a impugnação pauliana, de acordo com o artigo 612º do CC, se o devedor e o terceiro tiveram agido de má fé, entendida esta, enquanto requisito subjectivo, como “ a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”. A lei exige, pois, a má fé bilateral (5).
Já no caso de se pretender impugnar actos jurídicos gratuitos- como sucede no caso concreto-, o legislador não impõe a verificação desse requisito.
Na verdade, quando os actos a impugnar sejam gratuitos, o êxito da pretensão do credor/impugnante depende, apenas, da verificação dos pressupostos gerais precedentemente enunciados.
É que, como emerge do art. 612º, nº 1 do CC, diferentemente do que sucede com o acto oneroso – em que a lei exige para a procedência da impugnação pauliana que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé –, se o acto for gratuito, “a impugnação procede”, ainda que o devedor e o terceiro “agissem de boa fé”.
Quer dizer, tratando-se de acto de natureza gratuita, a impugnação pauliana procede mesmo que todos os intervenientes no acto a impugnar estejam de boa fé.
Ao nível das regras de repartição do ónus da prova, importa chamar à colação o estatuído no art. 611º do CC.
Com efeito, segundo esse normativo, “incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor “.
Consagra-se, pois, no citado art. 611º do CC um desvio às regras gerais sobre a repartição do ónus da prova, contidas no art. 342º.
Na verdade, por razões compreensíveis, que se traduzem na dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens, o artigo em análise atribui a este ou ao terceiro interessado na manutenção do acto o encargo de provar que o devedor possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas.
Reparte-se, assim, o encargo da prova entre o credor e o devedor: aquele prova o passivo e este prova o activo.
Refira-se que, como já se afirmou, não se exige que o devedor esteja em situação de insolvência, pois, apesar de não existir tal situação de insolvência, o acto pode produzir ou agravar a impossibilidade fáctica de o credor obter a satisfação integral do seu crédito, sendo que, nesta circunstância, a acção de impugnação pauliana procederá.
Por conseguinte, alegado e demonstrado pelo credor/impugnante o montante do seu crédito ameaçado com o acto do devedor, tratando-se de um acto de natureza gratuita, a impugnação pauliana somente não procederá caso o devedor ou o terceiro interessado na manutenção do acto façam a prova de que no património daquele ficaram bens de igual ou maior valor do que o crédito existente para com o Autor da impugnação e dos bens que por aquele acto foram alienados, isto é, que à data do acto era possível a satisfação integral do crédito do Autor.
Em resumo: no que concerne às regras da repartição do ónus da prova, o art. 611º do CC estabelece a especialidade de o credor dever provar o seu direito de crédito, incluindo a sua quantificação, e o devedor ou o terceiro interessado na manutenção do acto a existência no património do obrigado de bens penhoráveis de igual ou maior valor, no confronto com o valor do referido acto.
O que significa, em termos práticos, que, provada pelo impugnante a existência e a quantidade do seu direito de crédito e a sua anterioridade em relação ao acto impugnado, se presume a impossibilidade de realização do direito de crédito em causa ou o seu agravamento (6).
Vejamos, agora, sumariamente, os efeitos da impugnação pauliana (7).
“.Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição “, aproveitando os efeitos da impugnação “apenas ao credor que a tenha requerido” (art. 616º, nºs 1 e 4 do CC).
Reafirma-se, assim, o carácter vincadamente pessoal da pauliana, o que equivale a dizer que os seus efeitos se medem pelo interesse do credor que a promove.
Não se trata de uma acção de nulidade que, uma vez procedente, destrua totalmente, o acto impugnado.
O direito atribuído ao credor impugnante à restituição dos bens alienados ao património do devedor, “para colmatar a brecha aberta na sua garantia patrimonial” significa, em primeiro lugar, “que o credor impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor, mas sem a concorrência dos demais credores deste, uma vez que a procedência da pauliana só ao impugnante aproveita”.
Mas, significa também que, “executando os bens alienados, como se eles tivessem retornado ao património do devedor e não se mantivessem na titularidade do adquirente, o impugnante pode executá-los, na medida do necessário para satisfação do seu crédito, sem sofrer a competição dos credores do adquirente(8).
Como tal, ao contrário do que acontecia no Código de Seabra (cfr. art. 1044º), os bens não têm que reverter ao “cúmulo dos bens do devedor em benefício dos seus credores”, permanecendo, antes, no património do obrigado à restituição, “onde responderão pela obrigação”, pelo que o adquirente deve ser demandado para a execução (9).
Por outro lado, “desde que mantém a garantia patrimonial do crédito do impugnante (...), a lei permite logicamente ao credor a prática de todos os actos em princípio autorizados para conservação dessa garantia”.
Finalmente, não estando o acto impugnado afectado por qualquer vício intrínseco, capaz de gerar a sua nulidade, “a procedência da pauliana não envolve a sua destruição”. De facto, na medida em que a pauliana visa apenas eliminar o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor impugnante, compreende-se que, “reparado esse prejuízo, nenhuma razão subsiste para não manter a validade da parte restante do acto, não atingida pela impugnação pauliana”.
Logo, o acto impugnado mantém-se de pé, como acto válido, “em tudo quanto exceda a medida do interesse do credor” (10).
Como se viu o nº 1 do art. 616º do CC confere ao credor impugnante não só o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, mas também o direito de os executar no património do obrigado à restituição.
A restituição efectiva dos bens ao alienante não tem, pois, interesse, na generalidade dos casos, a menos que a execução ainda não seja possível ou haja falência (11).
Não é necessário, assim, o retorno dos bens ao património do alienante para aí serem executados. De acordo, portanto, com a doutrina do nº 1 do art. 616º do CC, confirmada pelo art. 818º do CC, “pode mover-se logo a execução contra o adquirente dos mesmos bens”, uma vez julgada procedente a impugnação.
Expostos os precedentes princípios jurídicos, debrucemo-nos sobre o caso concreto.
A Recorrente não põe em causa que os requisitos da Impugnação pauliana estejam verificados no caso concreto.
Na verdade, a questão que coloca contende apenas com a sua posição jurídica, nomeadamente, com o facto de, pelo acto jurídico gratuito celebrado, ter sido reservado, a seu favor, a constituição de um direito de usufruto sobre o bem imóvel.
Ora, a Recorrente entende que essa sua posição jurídica não pode ser afectada pela procedência da Impugnação pauliana.
Para tanto, apresenta os seguintes argumentos:
- A escritura em causa não representou para a Recorrente M. S., relativamente àquele prédio, qualquer aquisição de valor, qualquer enriquecimento, pois se antes da escritura era detentora, em termos de quota ideal, da sua meação na propriedade plena (raiz + usufruto), após a escritura passou a deter o usufruto sobre a totalidade do imóvel, deixando de ser proprietária da raiz.
Ou seja, a Recorrente, com a reserva de usufruto, deixou de ter a sua meação no prédio (50% do valor) para passar a ter o usufruto (45% do valor, atendendo à sua idade e ao disposto no artigo 13º do Código do Imposto Municipal de Sisa).
- nessa sequência conclui que, pelo menos, relativamente à metade do usufruto que já integrava a meação da Recorrente e de que esta não abriu mão, não a tendo transmitido, e reservando-a na sua esfera jurídico patrimonial, a mesma em caso algum poderá ser atacada pelo Autor, a quem a Recorrente não deve nem nunca deveu fosse o que fosse.
- defende, assim, que a Recorrente não pode integrar a figura de “obrigada à restituição” do artigo 616º do Código Civil porquanto se antes da escritura era titular de 50% do valor do imóvel, após a escritura o seu direito ficou confinado a 45% daquele valor. Ou seja, a Recorrente, com a outorga da escritura objecto de impugnação pauliana não se enriqueceu, não enriqueceu à custa do património do devedor, não provocou uma diminuição da garantia patrimonial do crédito do Autor que estava confinada à meação do devedor no património comum do casal.
Conclui que a sentença recorrida teria violado, por conseguinte, o disposto nos artigos 610º e 616º do Código Civil.
Termos em que, na procedência do presente recurso, pede que a sentença recorrida ser revogada na parte em que procedeu também relativamente ao usufruto reservado a favor da Recorrente.
Subsidiariamente pede que a sentença recorrida ser revogada na parte em que procedeu, pelo menos, em relação a ½ da reserva de usufruto a favor da Recorrente, correspondente à sua meação no património comum do casal que formou com o devedor e réu J. B..
Cumpre apreciar esta argumentação, e verificar se a mesma impõe que a decisão recorrida não se possa manter.
De uma forma geral, não há dúvidas que a sentença recorrida procedeu, de uma forma correcta, ao enquadramento jurídico da questão.
Na verdade, tendo em conta o que aqui se expôs também, importa ter em atenção os efeitos que a procedência da Impugnação pauliana produz nos actos jurídicos impugnados.
Assim, conforme já se referiu em cima, a Impugnação pauliana não se confunde com uma acção de nulidade que, uma vez procedente, destrói, totalmente, o acto impugnado.
Na verdade, o direito atribuído ao credor impugnante à restituição dos bens alienados ao património do devedor significa, em primeiro lugar, que o credor impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor, mas sem a concorrência dos demais credores deste, uma vez que a procedência da pauliana só ao impugnante aproveita.
Mas, significa também que, executando os bens alienados, como se eles tivessem retornado ao património do devedor e não se mantivessem na titularidade do adquirente, o impugnante pode executá-los, na medida do necessário para satisfação do seu crédito.”.
No caso concreto, como iremos ver, isto significa que, actuando a Impugnação pauliana sobre bens que continuam a pertencer a terceiros, pois que os actos jurídicos praticados são válidos, e os bens só podem ser executados na medida do necessário para satisfação do seu crédito, toda a argumentação que se funde na sua anterior pertença ao património comum do casal é irrelevante.
Com efeito, com a celebração da escritura de doação, o direito de propriedade sobre o bem imóvel transferiu-se para os terceiros de uma forma válida (cfr. art. 940º do CC), e aí se mantém, apesar da procedência da Impugnação pauliana.
Ora, conforme decorre da Jurisprudência citada na decisão recorrida (12), procedendo a Impugnação Pauliana, em casos em que apenas um dos cônjuges é devedor, o bem imóvel objecto do acto jurídico impugnado continua a ser um bem de terceiro, tendo apenas que ser restituído ao património desse cônjuge devedor nos termos e para os efeitos expostos, pelo que não reassume a natureza de bem integrante do património comum do casal.
Ora, por assim ser, é que deixa de ter cabimento qualquer consideração sobre se a divida será somente da responsabilidade de um dos cônjuges.
Na verdade, o art. 1969º, n.º1, do CC- que estabelece que, pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, respondem os bens próprios do cônjuge devedor, e subsidiariamente a sua meação nos bens comuns- não tem aplicação ao caso concreto, pois que, como vimos, com a transmissão do bem para o património de terceiro deixa de poder considerar-se a natureza (de bem comum) que o mesmo tinha antes dessa mesma alienação.
E é por isso também que, ao contrário do que sucede na acção executiva instaurada contra um dos cônjuges, na Impugnação Pauliana, na medida em que o bem comum haja sido transmitido a terceiro, deixa de haver uma meação de um cônjuge não devedor a respeitar (até porque o bem foi transmitido no seu todo- ver o que se dirá à frente) e património a partilhar, não se podendo colocar a hipótese de citação do cônjuge para requerer a separação de bens, tal como determina o art. 740º, n.º1, do CPC.
Aqui chegados, pode-se, assim, concordar com o que ficou dito na decisão recorrida, quando aí se afirma que: “… no caso de impugnação de acto de alienação de bens comuns por ambos os cônjuges, aquele bem, que antes da transmissão fora um bem comum do casal, com a transmissão que se considera válida e valendo o título contra o credor, deixa de ter esta qualidade por referência ao património em que antes estava integrado…”.
E, nessa medida, não há que colocar a questão de saber se este bem imóvel, no momento em que é alvo da Impugnação, continua a ser próprio ou comum do casal Réu.
A questão aparentemente poder-se-ia complicar à luz da especial configuração do acto jurídico gratuito aqui impugnado, nomeadamente, por causa de, nesse mesmo acto, os contraentes terem constituído a favor da Recorrente um direito de usufruto sobre o imóvel.
Senão vejamos.
Em termos factuais, e para a resolução da questão concreta aqui colocada, interessam-nos os seguintes factos:
-A Recorrente M. S. e o Réu J. B., casados no regime de comunhão de adquiridos, doaram o prédio objecto dos autos (art. …º da freguesia de …, concelho de Chaves, registado na CRP sob o n.º …º), reservando aquela primeira para si o usufruto vitalício do mesmo.
-O prédio em causa era inequivocamente um bem comum ao casal que a Recorrente M. S. formou com o J. B. – cfr., por favor, certidão de registo predial narrativa completa, junta aos autos em 03.11.2016, donde consta ter aquele imóvel sido adquirido por compra a J. T. e mulher, Maria, na constância do casamento da Recorrente com o seu ex-marido.
-A Recorrente M. S. nada deve ao Autor, pois que, nos termos da prévia sentença condenatória, apenas foi reconhecida a qualidade de devedor ao Réu J. B., sendo que, a Ré M. S., na mesma acção, foi absolvida do pedido.
Entende a Recorrente que, decorre desta factualidade, que o direito de usufruto, que foi constituído, a seu favor, no contrato de doação, não pode ser afectado pela procedência da Impugnação pauliana (quando muito esta poderia atingir a outra ½ da reserva de usufruto (que não aquela que foi constituída a favor da Recorrente, correspondente à sua meação no património comum do casal que formou com o devedor e réu J. B.).
Vejamos se assim é.
Em primeiro lugar, contrariamente ao que defende a Recorrente, é inequívoco que, se em face do Autor se mantiver o direito de usufruto- e se se reconhecesse a impossibilidade de tal acto jurídico ser afectado pela Impugnação Pauliana-, tal acto envolveria uma diminuição da garantia patrimonial do seu crédito (art. 616º do CC), pois que, pretendendo executar o aludido bem imóvel, obviamente que o seu valor será inferior, se o mesmo estiver onerado com o direito de usufruto (o que não sucedia anteriormente).
Mas não é só por aqui que a argumentação da Recorrente improcede.
Já se referiu, em termos gerais, que, em princípio, a anterior pertença do bem imóvel ao património comum do casal passa a ser irrelevante a partir do momento em que a propriedade do bem imóvel se transfere para terceiro (sendo que essa titularidade do terceiro, como se referiu, se mantém neste, apesar da procedência da Impugnação pauliana).
Ora desta consideração decorre que “ a acção nunca poderá proceder apenas parcialmente (no tocante à meação que se consideraria que o cônjuge devedor haveria tido nos bens que foram objecto de alienação) ” (13).
Na verdade, como diz Paula Costa e Silva (14) “aquele bem que antes da transmissão, fora um bem comum do casal, com a transmissão, que se considera válida, valendo o título contra o credor, deixou de ter esta qualidade por referência ao património em que anteriormente estava integrado (…).
Porque é esta observação relevante?
Porque ela nos permite compreender que, depois da transmissão, não poderá falar-se em partilha do património comum do casal transmitente a fim de se verificar a qual dos cônjuges é deferido o bem transmitido. O bem já não integra o património desses cônjuges, mas o património de terceiro. Pelo que nada há a partilhar para se saber se o bem viria a caber ao cônjuge devedor do credor impugnante”.
Assim, perante o interesse do credor em perseguir o bem que responderia pela divida (cfr. art. 740º do CPC), caso não tivesse sido transmitido, o interesse do transmissário (do terceiro) na não execução do bem adquirido e o interesse do cônjuge não devedor na não impugnação, deverá ser dada prevalência ao primeiro.
Com efeito, como refere a citada Autora, “… a ponderação global dos diferentes vectores aponta consequentemente no sentido da admissibilidade da impugnação da transmissão onerosa de bens comuns, apesar de a responsabilidade patrimonial ser apenas de um dos cônjuges transmitentes…”- tudo isto sem prejuízo da salvaguarda da posição do cônjuge não devedor em sede do art. 1697º, nº 2 do CC.
Conclui-se, pois, que só por aqui nunca se poderia considerar inadmissível a Impugnação pauliana que incida sobre a integralidade do bem imóvel, nem a acção poderá proceder apenas parcialmente (no tocante à meação que se consideraria que o cônjuge devedor haveria tido no bem que foi objecto da transmissão).
Sucede que, além disso, importa dizer que a argumentação da Recorrente parece partir dum equívoco doutrinal.
Na verdade, salvo o devido respeito pela opinião contrária, a posição jurídica da Recorrente, no que concerne ao bem imóvel aqui em discussão, no momento anterior à celebração do contrato de doação, não lhe conferia “a meação no prédio (50% do seu valor) ”.
Assim, o que parece acontecer é alguma confusão de conceitos por parte da Recorrente, já que parece não diferenciar duas realidades diferentes, que são o direito à meação no património comum, e a situação dos bens em concreto que integram tal património.
O direito de propriedade sobre um imóvel não se confunde com o direito à meação no património comum, do qual esse imóvel faz parte. São realidades diferentes.
O direito à meação conjugal não se traduz, assim, num qualquer direito inerente ao imóvel a favor da Recorrente (50% da meação do imóvel) pois, à semelhança do que sucede relativamente ao quinhão hereditário, aquele não confere qualquer direito sobre bens concretos e determinados integrantes da comunhão conjugal.
Como decorre dos factos atrás respigados, o bem imóvel aqui em discussão integrava o património comum do casal que era constituído pela Recorrente e pelo Réu J. B..
Ora, na constância do casamento, vigorando um regime de comunhão de bens (geral ou de adquiridos), os cônjuges não são titulares de nenhuma “meação” sobre os bens determinados que integram essa comunhão.
Como é sabido, no regime de comunhão de adquiridos existem fundamentalmente duas massas patrimoniais: a dos bens próprios de cada um dos cônjuges e a dos bens comuns (arts. 1722º, 1723º e 1726º do CC).
Ora, cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum, posição que a lei tutela. Cada um dos cônjuges tem, segundo a expressão da própria lei, um direito à meação, um verdadeiro direito de quota, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar.
Entende-se que a comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva (para utilizar a expressão do Prof. Antunes Varela).
Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade, dela se distinguindo de forma clara e inequívoca.
Essa distinção assenta, além do mais, no facto de os direito dos contitulares não incidirem sobre cada um dos elementos que constituem o património - mas sobre todo ele, como um todo unitário.
Aos titulares do património colectivo não pertencem direitos específicos - designadamente uma quota - sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente. Na partilha dos bens destinada a por fim à comunhão, os respectivos titulares apenas têm direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objecto da partilha. O que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património (15).
Assim, como mais recentemente escrevem os Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (16), “os bens do casal não são necessariamente de um ou de outro cônjuge, nem pertencem a ambos em compropriedade – são antes «bens comuns» que “constituem uma massa patrimonial (…) que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela”. Esta última afirmação, feita a propósito do regime da comunhão de adquiridos, vale naturalmente (e como expressamente observam a fls.549) para a hipótese de comunhão geral.
Ora, esta precisão de conceitos que aqui se efectua, “desmorona”, por assim dizer, toda a argumentação que a Recorrente apresentou para defender a tese que aqui sustenta.
Na verdade, se, como se julga ser pacífico, a Recorrente não tinha qualquer “meação” (50%) sobre o bem imóvel concreto aqui em discussão, mas sim tinha apenas um direito à meação sobre o património comum do casal (sobre todo o património e não sobre cada um dos bens que integrava esse património), torna-se manifesto que, o que se acaba de dizer, afasta completamente a possibilidade de acolher a pretensão da Recorrente de restringir os efeitos da Impugnação pauliana apenas à “meação” do primeiro Réu marido no prédio transmitido (já que esta meação no bem imóvel concreto não existe(ia)).
Por aqui se vê, de uma forma nítida, a improcedência da argumentação da Recorrente.
Aqui chegados, pode ainda aqui ser esgrimido um outro argumento.
Na verdade, decorre do nº 2 do art. 613º do CC que a impugnação pauliana poderá atingir transmissões posteriores ou incidir sobre outros direitos constituídos posteriormente sobre os bens transmitidos (aquilo a que a doutrina chama de “Impugnação pauliana de segundo grau” (17)).
Estabelece o preceito legal que a estas últimas situações -de outros direitos constituídos posteriormente que não correspondam a transmissões- é aplicável o que se dispõe para aquelas primeiras no nº 1 do citado preceito legal.
O que significa que a possibilidade de exercício da acção pauliana é extensível à constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiros.
Ou seja, “a procedência da impugnação pauliana contra subadquirentes depende dos seguintes pressupostos:
1) que se verifiquem, relativamente à primeira transmissão, os requisitos da impugnabilidade (art. 613º, nº1, al. a)) (…);
2) que o subalienante e o subadquirente tenham agido de má fé caso a nova transmissão seja a título oneroso (art. 613º, nº1, al. b)). Tratando-se de um acto gratuito, dispensa-se este pressuposto… (18)”.
Ora, como decorre no nº 2 do citado art. 613º do CC, estes requisitos são aplicáveis às situações de outros direitos que sejam constituídos posteriormente sobre os bens transmitidos; e julga-se que a constituição do direito do usufruto a favor da Recorrente integra justamente uma das situações a que se aplicará este nº 2.
Na verdade, como referem expressamente os Profs. A. Varela/ P. Lima (19) “… o nº 2 manda aplicar, com as necessárias adaptações, o disposto no número anterior à constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiros. É o caso, por exemplo, de uma hipoteca constituída pelo adquirente, de um usufruto, de uma servidão, etc.”.
Da mesma forma, o Prof. Almeida Costa refere que “a nossa lei prevê o caso de o terceiro haver constituído direitos reais sobre a coisa adquirida (ex. uma hipoteca, um usufruto). Determina que se aplique, com a necessária adaptação, o disposto para as transmissões posteriores (art. 613º, nº2).”
Daí que, se tiver sido constituído um direito de usufruto, o usufrutuário se encontre na posição de subadquirente, sendo-lhe pois aplicável o disposto no nº 1 do art. 613º do CC.
Pelo que, também, por esta via, o acto jurídico gratuito celebrado (de constituição de usufruto a favor da Recorrente) poderia ser impugnado (em segundo grau), porquanto integra o aludido conceito legal de outros direitos constituídos posteriormente sobre os bens transmitidos, o que permitiria que o aqui Autor pudesse executar o bem imóvel no património desse beneficiário (da aqui Recorrente), sem, no entanto, pôr em causa a validade do acto- e só sendo atingido o direito da Recorrente na medida do necessário para satisfação do seu crédito.
Finalmente, julga-se que para reforçar a presente fundamentação ainda existe interesse em voltar ao início do que aqui ficou dito.
Ou seja, tendo em conta os efeitos que a procedência da Impugnação pauliana produz, nomeadamente, a recondução, para este efeito, do bem imóvel ao património do devedor, para permitir que o mesmo seja executado, como se ele tivesse retornado àquele património (ainda que se mantenha na titularidade dos adquirentes e da usufrutuária), todas as demais consequências relativas à posição da Recorrente deverão ser retiradas no âmbito da acção executiva (designadamente, quanto à comunicabilidade da divida e a posição do cônjuge do executado não devedor), tudo sempre tendo em consideração que aquela, como se referiu, só prosseguirá “na medida do interesse do credor (20).
No fundo, a questão que se coloca é a de saber o que ocorreria se não tivesse sido celebrado o acto jurídico aqui questionado e o bem imóvel continuasse no património comum do casal?
Ora, nestas situações o bem imóvel podia ser nomeado à penhora, apesar de ser um bem comum e um dos cônjuges não seja devedor, sendo aplicável o disposto no art. 740º do CPC.
Ora, “… se é assim quando esses bens estão no património do casal, há-de ter-se por certo que nenhuma doação dos bens comuns do casal pode afectar a garantia patrimonial dos credores e que a Impugnação da doação (Impugnação Pauliana), como instrumento interventivo no acto que retira os bens do património do devedor (e também do património comum do casal) para permitir a execução dos bens que, não fora a doação, lá estariam, tem de conceder ao credor impugnante as mesmas hipóteses de execução que tinha se não ocorresse a doação…” (21).
É justamente este o sentido da decisão recorrida e que aqui se mantem.
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Em suma: uma vez que estão preenchidos os requisitos gerais plasmados no art. 610º do CC, a pretensão que os Autores aqui pretendiam fazer valer não podia deixar de ser atendida, na íntegra, com a consequente procedência da presente acção de impugnação pauliana.
Nesta conformidade, porque nenhuma crítica pode ser apontada à decisão de mérito proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, já que aí bem se ponderou, como preenchidos, todos os requisitos da Impugnação pauliana atrás já mencionados, não há dúvidas que a sentença recorrida se deve manter inalterável.
Com efeito, o exercício da impugnação pauliana depende da verificação dos requisitos discriminados no artigo 610º do CC, requisitos esses que já foram explicitados atrás e cujo preenchimento mostra-se amplamente explanado na sentença de Primeira Instância (e aqui se mostram confirmados).
Assim, como emerge da factualidade dada como provada, ficaram demonstrados todos os requisitos da Impugnação pauliana, pelo que a decisão de Primeira Instância não merece aqui qualquer crítica.
Nesta conformidade, e sem necessidade de mais alongadas considerações, porque se concorda com a fundamentação de direito aduzida pelo Tribunal de Primeira Instância, decide-se manter integralmente a decisão proferida.
Improcede o Recurso interposto.
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III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
-o Recurso interposto pela Recorrente totalmente improcedente;
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Custas pela Recorrente (artigo 527º, nº 1 do CPC);
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Guimarães, 19 de Outubro de 2017

(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)

(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)

(Dr. José Alberto Moreira Dias)

1. Sobre os casos em que tal alteração oficiosa pode ocorrer, v. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo CPC”, págs. 241 e ss., explicitando o Autor os seguintes exemplos: “… quando o Tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de determinado meio de prova…” (por ex. um documento com valor probatório pleno); “quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358º do CC e arts. 484º, nº1 e 463º do CPC) ou tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, nº 2 do CPC)”; “ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente” (por ex. presunção judicial ou depoimento testemunhal nos termos dos arts. 351 e 393º do CC); “Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a primeira instância considerou provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo da sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte… “; finalmente, acrescenta este autor que “também não oferece dúvidas a possibilidade… de se modificar a decisão sobre a matéria de facto quando for apresentada pelo Recorrente documento superveniente que imponha decisão”- tudo situações que não se verificam no caso concreto.
2. Cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, págs. 445/446, e Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, págs. 855/856.
3. In BMJ, 75, pág. 287
4. Cfr. Antunes Varela, in “Das obrigações em geral”, Vol. II, pág. 436/7.
5. Cfr. o Ac. do STJ de 21/02/2006 ( Relator: Custódio Montes), in dgsi.pt.
6. Cfr., neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 13/02/2003 (Relator: Araújo de Barros), de 08/11/2007 (Relator: Salvador da Costa), e de 29/09/2011 ( Relator: Sérgio Poças), e da RP de 19/05/2009 (Relator: Rodrigues Pires), todos in dgsi.pt
7. V., entre outros, Antunes Varela, “Das obrigações em geral”, págs. 444 e ss., e Pires de Lima / Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 633/634, Almeida Costa, in “Direito das obrigações”, págs. 868 e ss.; Menezes Leitão, in “Garantias das obrigações”, págs. 71 e ss..
8. Antunes Varela, “Das obrigações em geral”, págs. 445.
9. Cfr. Anselmo de Castro, in “Acção Executiva Singular, Comum e Especial “, págs. 77/78.
10. Cfr. Antunes Varela, op. e vol. cits., págs. 444 e ss., e Pires de Lima / Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 633/634.
11. Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, op. e vol. cits., pág. 634
12. Acs. do STJ de 12.12.2005, de 9.12.2004, de 6-11-2008, de 14.12.2006, de 9.1.2003 e de 19.4.2000 e 12.3.2015, todos citados na decisão recorrida.
13. V. ac. do STJ de 13.12.2005 (relator: Moreira Camilo), in Cj, T. III, pág. 164.
14. In “Impugnação pauliana e execução (Cadernos de Direito Privado, nº 7)”, pág. 46 a 63.
15. Cfr. Pires de Lima, in Enciclopédia Verbo, “Comunhão” e Ac. da RP de 19.04.83, CJ t. II, pág. 259.
16. Curso de Direito da Família, págs.367 e 507
17. V. Marisa Vaz Cunha, in “Garantia patrimonial e prejudicialidade- um estudo sobre a resolução em benefício da massa”, pág. 104.
18. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, pág. 867. No mesmo sentido, v. Menezes Leitão, in “Garantias das Obrigações”, pág. 70.
19. In “CC anotado”, Vol. I, pág. 631.
20. V., com interesse, o ac. do Stj de 06 de Novembro de 2008 (relator: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in dgsi.pt.
21. Ac. da RC de 27.1.2004 (relator: Coelho de Matos), in Cj, t. I, pág. 33.