Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
12/20.8GDVCT-B.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: DECLARAÇÕES MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REGIME LEGAL
ARTº 33.º DA LEI N.º 112/2009
DE 16.9
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 08/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A tomada de declarações para memória futura à vítima de violência doméstica encontra-se especialmente regulada no artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece um regime de exceção à regra geral de que todos os depoimentos e declarações devem ser prestados em audiência.
II) O poder conferido ao juiz neste âmbito não é arbitrário e no seu exercício deve ser tomado em linha de conta o flagelo crescente que assume este tipo de crimes, que a par da produção legislativa que tem vindo a originar, exige um particular empenho e uma atuação concertada dos órgãos de polícia criminal e das autoridades judiciárias.
III) O artigo 33.º da Lei n.º 112/2009 não poderá ter outra interpretação que não seja a de que a regra é o deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima.; só tal não acontecendo quando dos autos resultarem razões relevantes que objetivamente desaconselhem essa recolha antecipada de prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

A. RELATÓRIO

No processo de Inquérito nº 12/20.8GDVCT, do Juízo de Instrução Criminal de Viana do Castelo, da comarca de Viana do Castelo, foi indeferida a inquirição em declarações para memória futura da testemunha L. M., requerida pelo Ministério Público, por despacho judicial datado de 14.04.2020, com o seguinte teor:
«A fls. 93 e 99 vem o Ministério Público promover a tomada de declarações para memória futura à testemunha L. M., com o seguinte fundamento:
“No presente inquérito investiga-se a prática de factos susceptíveis de, em abstracto, consubstanciar um crime de violência doméstica, nos termos do artigo 152°, n.° 1, alínea b), e n.° 2, alínea a), do Código Penal.
DAS DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA:
No caso concreto, a vítima L. M. residiu com o arguido em relação análoga às dos cônjuges durante cerca de 6 anos, até 9 Fevereiro de 2020, momento em que abandonou a casa de morada de família e regressou à cidade do Porto.
Constata-se do depoimento da ofendida e da testemunha (sua filha) que existiram episódios de violência física e reiteradas ameaças contra a vida da ofendida, nomeadamente se esta se separasse do arguido.
Tais circunstâncias conduzirão, certamente, a que, no julgamento, a ofendida se sinta inibida, ficando prejudicadas as suas declarações, pelo que considerando o quadro fáctico indiciado nos autos, é de todo o interesse colher, com a urgência possível, o seu depoimento.
Acresce que o hiato temporal até ao julgamento, poderá levar a que a vítima se esqueça de alguns pormenores e factos relevantes para a descoberta da verdade e realização de justiça.
Ademais, a tomada de declarações à vítima, neste tipo de crimes, conduz a uma segunda vitimização, porquanto sujeita-as ao relembrar dos episódios de violência que sofreu e que, certamente, não quer recordar. Importa, pois, que as declarações das vítimas sejam feitas de forma exaustiva e com urgência, para que esta fale o menor número de vezes possível, com vista a não a afectar e perturbar ainda mais, evitando situações de revitimização.
Na realidade, a tomada de declarações para memória futura é um dos mecanismos que a pode proteger do perigo de revitimização e acautelar a genuinidade do seu depoimento em tempo útil.
Por fim, e considerando a existência de episódios de violência física e psicológica, ao longo de anos de coabita ção, afigura-se-nos que a ofendida se trata de uma testemunha especialmente vulnerável.
Pelo exposto, tendo em consideração o crime que está em causa, a relação da vítima com o arguido, o facto de se tratar de vítima especialmente vulnerável e para evitar a sua revitimização e com o fito de manter a genuinidade das declarações do menor, o Ministério Público promove que, ao abrigo do disposto nos artigos 67°-A, n°7, alíneas b) e d) e n°3, por referência ao disposto no artigo 1°, alínea j), 271°, ambos do CPP, 21.°, n.° 2, alínea d), 22.° e 24.° da Lei n.° 130/2015, de 04 de Setembro (Estatuto da Vítima), 26°, 27.° e 28°. n.° 2, da Lei n.° 93/99, de 14.07 (Lei de Protecção de Testemunhas) e 33° da Lei 112/2009, sejam designados dia e hora para a tomada de declarações para memória fatura a L. M..
(...)“.

Apreciando e decidindo:
A promoção efetuada é de indeferir liminarmente.
Na verdade, por referência ao argumento de que tendo em consideração o crime objeto dos autos, “tais circunstâncias conduzirão, certamente, a que, no julgamento, a ofendida se sinta inibida, ficando prejudicadas as suas declarações”, trata-se, primeiro, de um juízo de prognose muito subjetivo por parte do Ministério Público, no qual não nos revemos e que é irrelevante; desde logo, a testemunha, sinta-se ou não inibida, não é obrigada, sequer, a prestar depoimento, seja em que fase processual for, não tendo sequer que justificar a sua recusa, conforme prerrogativa que lhe assiste, prevista no artigo 1134.°, n.° 1, al.ª b) e n.° 2, do Código de Processo Penal; depois, no concreto caso dos autos, verifica-se que a ofendida em momento algum se sentiu, até ao momento, inibida de prestar depoimento, tendo optado por prestar o mesmo e acrescentando, inclusiva e relevantemente, que nem sequer necessita do apoio da teleassistência, atento o distanciamento do arguido e até concorda com uma eventual suspensão provisória dos autos (cfr. fls, 53 a 57); nesta sequência e contexto, não se vê, em concreto, no que é que possam vir a ficar prejudicadas as suas declarações, declarações que, repete-se, a mesma nem sequer é obrigada a prestar!
Relativamente ao argumento de que “o hiato temporal até ao julgamento poderá levar a que a vítima se esqueça de alguns pormenores e factos relevantes para a descoberta da verdade e realização da justiça” há que considerar que os presentes autos revestem natureza urgente, nos termos do artigo 28.°, da Lei n.° 112/2009 de 16-09 (conforme, de resto, o Ministério Público declarou no seu primeiro despacho de fls. 21), não se vislumbrando que essa urgência não seja cumprida (o Ministério Público “certamente” não pactuará com demoras na investigação que está a seu cargo/sob a sua direção), ao que acresce que atualmente inexistem diligências de Inquérito pendentes (!), sendo que, a cumprir os prazos aplicáveis e caso haja um julgamento, o mesmo indubitavelmente se processará ainda este ano e nos próximos meses, desde que todos os intervenientes cumpram com a urgência formal que assiste aos autos, não se vislumbrando motivação pata não ser cumprida, tanto mais que inclusivamente no presente estado de emergência em vigor, os presentes autos continuam a ser tramitados, nos termos do artigo 7.°, n.° 7, da Lei n.° 1-A/2020 de 19-03, com as alterações introduzidas pela Lei n.° 4-A/2020 de 06-04, conforme normativo expressamente mencionado pelo Ministério Público.
Depois, no que se refere ao “evitar a sua revitimização”: ser inquirida agora em sede de Inquérito pelo JIC em declarações para memória futura ou ser inquirida em sede de julgamento pelo Juiz de Julgamento (no pressuposto de que haverá um julgamento) é exatamente a mesma coisa, sendo certo que a fruição dos benefícios da oralidade e da imediação num (eventual) julgamento são obviamente superiores à inquirição em declarações para memória futura, onde tal acaba nem sequer por ser acessível ao juiz de (eventual) julgamento se confrontado com a gravação das declarações para memória futura; neste contexto, inclusivamente, prevê a lei a possibilidade de nova inquirição da testemunha já inquirida anteriormente, nos termos do artigo 33.°, n.° 7, da Lei n.° 112/2009, na sua versão mais recente (Lei n.° 24/2017 de 24-05), pelo que inclusivamente o deferimento da pretensão do Ministério Público pode acabar por ter o efeito pretendido contrário, levando a que se realizem sucessivas inquirições e a uma eventual revitimização que, mais do que se evitar, até se iria agravar;
- Relativamente à manutenção da genuinidade da prova: não vemos que tal comporte um qualquer argumento para o deferimento da diligência pretendida — nem o Ministério Público o concretiza - também não se vislumbrando no que é que a genuinidade de um depoimento pode ser corrompida se a testemunha for inquirida num momento ou noutro, sendo que a testemunha, no concreto caso dos autos nem sequer é obrigada a prestar declarações, conforme vimos.
Não se vê, em concreto, necessidade de realização da diligência promovida, nos termos do artigo 33°, n.° 1, da Lei n.° 112/2009, na sua versão mais recente (Lei n.° 24/2017 de 24-05).
Em conformidade com o exposto e ao abrigo dos normativos legais citados indefiro a promovida tomada de inquirição em declarações para memória futura da testemunha L. M..
Notifique o Ministério Público.»
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«1) Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de consubstanciar dois crimes de violência doméstica, nos termos do artigo 152.°, n.° 1, alínea b), e n.° 2, alínea a), do Código Penal.
2) A vítima dos crimes em tela- L. M. é ex-companheira do arguido- R. M..
3) De acordo com o n°2 do artigo 26° da Lei de Proteção de Testemunhas, “A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”
4) No artigo 28° do mesmo compêndio legislativo prevê-se, ainda, que “Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime. Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.° do Código de Processo Penal.
5) De acordo com o prevenido no artigo 67°-A, n°1 b) do CPP é considerada “Vítima especialmente vulnerável, a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social e no seu no 3, prevê-se que — “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.”
6) O crime de violência doméstica é considerado criminalidade violenta, de acordo com o prevenido no artigo 1º, alínea j) do CPP.
7) De acordo com o artigo 33.º da Lei 112/2009, “1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.”
8) Encontra-se previsto no artigo 24° da Lei do Estatuto da Vítima que “1 – O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.° do Código de Processo Penal.
9) No caso dos presentes autos, a vítima residiu com o arguido em relação análoga às dos cônjuges durante cerca de 6 anos, até 9 fevereiro de 2020, momento em que abandonou a casa de morada de família e regressou à cidade do Porto.
10) Constata-se do depoimento da ofendida e da testemunha que existiram episódios de violência física e reiteradas ameaças contra a vida da ofendida, nomeadamente se esta se separasse do arguido.
11) L. M. é, ao abrigo do artigo 67°-A, n°1, alíneas b) e n°3, por referência ao disposto no artigo 1, alínea j), ambos do CPP, do artigo 2°, alínea b) da Lei 112/2009 e artigo 26°, n°2 da Lei de Proteção de Testemunhas, vítima especialmente vulnerável.
12) A finalidade das declarações para memória futura, previstas no artigo 271° do CPP é a de evitar a repetição de audição da vítima, protegê-la do perigo de revitimização e acautelar a genuinidade do seu depoimento em tempo útil, evitando assim, que o mesmo possa olvidar-se dos factos, na sua plenitude, pese embora a natureza urgente dos autos.
13) In casu, ainda se encontram em curso diligências de investigação.
14) Por outro lado, a concordância da vítima a uma eventual suspensão provisória do processo não constitui óbice à tomada de declarações de memória futura.
15) O arguido tem antecedentes criminais pela prática de crime de violência doméstica, crime de incêndio e de violação de domicílio, na pena única de 4 anos e 10 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período mediante regime de prova e na pena acessória de proibição de contactos, pelo período de 2 anos e 6 meses e na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 10,00€.
16) Destarte, encontram-se reunidos todos os pressupostos de facto e de direito para a audição de L. M., em declarações para memória futura.
17) Acresce que, nos termos do disposto nos artigos 53°, n°2, alínea b) e 263°, n°1, ambos do CPP, cabe ao Ministério Público a direção da ação penal, pelo que cabe a este decidir da tempestividade e oportunidade das diligências probatórias a realizar em sede de inquérito e bem assim decidir e promover da obtenção e conservação das provas indiciarias.
18) Ver neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05-03-2020, in www.dgsi.pt: “Assim, sendo certo que o art.º.° 33.° da citada Lei n.° 112/2009 deixa nas mãos do juiz o “poder” de proceder à recolha das declarações da vítima para memória futura ainda na fase de inquérito, não é o mesmo um poder arbitrário ou que possa ser levianamente exercido, pois que a crescente gravidade dos factos neste, também, cada vez,, mais repetido tipo de crime exige de todos os operadores judiciários empenho e uma acção prática efectiva e proveitosa. “ (...) Deste modo, se a vítima ou o Ministério Público requerem a tomada de declarações para memória futura é porque nisso vêem interesse, sendo este, também. necessária e consequentemente, o interesse da comunidade, os quais, afinal, todos passam pela descoberta da verdade e pela efectiva realização da justiça.”
19) Destarte, entendemos que o Mmo. Juiz deveria ter acolhido a promoção do Ministério Público no sentido de se designar data e hora para tomada de declarações para memória futura à vítima L. M..
20) Pelo exposto, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 67°-A, n°1, alíneas b) e n°3, por referência ao disposto no artigo 1°, alínea j), 53°, n°2, alínea b), 263°, n°1, 271°, todos do CPP, 24.° da Lei n.° 130/2015, de 04 de Setembro (Estatuto da Vítima), 26.°, da Lei n.° 93/99, de 14.07 (Lei de Proteção de Testemunhas) e 33° da Lei 112/2009 (Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica).
Em face do exposto, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e em consequência deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro no qual se determine a audição para memória futura de L. M., como promovido pelo Ministério Público, de fls.93.»
*
O arguido respondeu pugnando pelo não provimento do recurso.
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se igualmente pela improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, com resposta do arguido, novamente no sentido da manutenção do despacho recorrido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
. A questão a decidir circunscreve-se a aferir se devem ou não ser tomadas declarações para memória futura à vítima do crime de violência doméstica em causa nos autos.
*

. APRECIAÇÃO DO RECURSO

No presente Inquérito encontram-se indiciados factos praticados ao longo de seis anos e suscetíveis de integrarem, pelo menos, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e nº 2, al. a) do Código Penal, do qual é arguido R. M. e vítima L. M., que com aquele manteve uma relação análoga à dos cônjuges.
Sobre a questão objeto do recurso, relativa à tomada de declarações para memória futura à vítima de violência doméstica, regula aqui em especial o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência às suas Vítimas), que estabelece um regime de exceção à regra geral de que todos os depoimentos e declarações devem ser prestados em audiência (artigo 355.º do Código de Processo Penal), prescrevendo: «1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.».
O poder conferido ao juiz neste âmbito não é arbitrário e no seu exercício deve ser tomado em linha de conta o flagelo crescente que assume este tipo de crimes, que a par da produção legislativa que tem vindo a originar, exige um particular empenho e uma atuação concertada dos órgãos de polícia criminal e das autoridades judiciárias.
Assim, estando os autos em fase de Inquérito, cuja direção é legalmente atribuída ao Ministério Público – como estabelece o artigo 53.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal – tem de se reconhecer que é precisamente o Ministério Público quem saberá a melhor forma de promover a obtenção e conservação das respetivas provas indiciárias.

Ora, no caso em apreço estamos perante uma vítima de violência doméstica, que residiu com o arguido em relação análoga às dos cônjuges durante cerca de 6 anos, até 9 fevereiro de 2020, momento em que abandonou a casa de morada de família e regressou à cidade do Porto. São relatados pela vítima e testemunha episódios de violência física e reiteradas ameaças contra a sua vida, nomeadamente se esta se separasse do arguido.
Foi sinalizado “Risco Elevado” para a vítima por parte do OPC.
Acresce, ainda, que por estarmos perante crime de violência doméstica, a vítima é sempre considerada especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67º-A, nº 1, al. b) e nº 3 do código de Processo Penal, em conjugação com o artigo 152º do Código Penal.
Neste contexto, se o Ministério Público pediu a tomada de declarações para memória futura desta vítima de violência doméstica, mais não fez do que seguir o procedimento que deve ser normalmente adoptado neste tipo de crimes – como resulta da lei e é, aliás, prática frequente na sequência da Diretiva n.° 5/2019", de 4 de dezembro, da Procuradoria Geral da República.
Vistas as coisas por este prisma, o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro não poderá ter outra interpretação que não seja a de que a regra será o deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima. Só tal não acontecendo quando dos autos resultarem razões relevantes que objetivamente desaconselhem essa recolha antecipada de prova, o que no caso manifestamente não sucede.
Note-se que a tomada de declarações da vítima para memória futura não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ele for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (cfr. artigos 33º, nº 7 da Lei n.º 112/2009, de 16/09, e 271º, nº 8 do Código de Processo Penal).
Assim como nunca pode servir para prevenir o silêncio da vítima em audiência, uma vez que, neste caso, tais declarações não poderão ser valoradas (cfr. artigos 355.º e 356º, nº 6 do Código de Processo Penal).
Não poderá pois subsistir o despacho recorrido, procedendo o recurso.
*
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência as juízas de turno do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine a tomada de declarações para memória futura à ofendida L. M., salvo se houver outras razões que a isso obviem.
Sem custas.
*
Guimarães, 12 de agosto de 2020
(Revisto pela subscritora)

Fátima Furtado
Lígia Venade
Assinado digitalmente


1 - Cfr. artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, v.