Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
294/12.9TBPTB.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
FORÇA PROBATÓRIA
PROVA TESTEMUNHAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - A força probatória plena da escritura pública, como documento autêntico, restringe-se aos factos referidos no artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil.
2 – Não resulta de uma escritura pública a prova da veracidade das declarações dos outorgantes, mas apenas que elas foram feitas.
3 – A declaração de que o vendedor recebeu a quantia indicada a título de preço, pode ser impugnada por qualquer das partes sem necessidade de arguição da falsidade do documento, uma vez que o mesmo faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas mas já não quanto ao rigoroso sentido, sinceridade, veracidade ou validade das declarações emitidas pelas partes.
4 – Tal declaração valerá se, e enquanto, o declarante não alegar e provar que a mesma não contém o facto que o declarante disse conter, podendo tal prova ser feita por qualquer forma, maxime¸ a prova testemunhal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
J… e mulher D… deduziram ação declarativa contra C… e marido C…, E… e A… pedindo que os réus sejam condenados a pagar aos autores a quantia de € 68.622,97, sendo € 37.409,84 de capital e € 31.213,13 de juros vencidos, à taxa legal, bem como os juros vincendos até efetivo pagamento. Alegaram que os réus nunca lhes pagaram o preço de compra de um imóvel, destinado a restaurante, apesar de ter ficado a constar na escritura que receberam o respetivo preço.
Contestaram os 1.ºs e 2.ª réus alegando nada dever aos autores e, sem prescindir, invocando a prescrição dos juros.
Foi proferido despacho saneador e definidas a matéria de facto assente e a base instrutória.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando os réus a pagar aos autores a quantia de € 37.409,84, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde 4 de Outubro de 2007 até integral pagamento.
Discordando da sentença, dela interpuseram recurso os réus C… e marido C… e E…, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:
1ª - O presente recurso, de facto e de direito, é interposto da douta sentença proferida nos referenciados autos, abrangendo toda a resolução em exame;
2ª – Mostra-se incorrectamente julgado o ponto único da matéria de facto, ao dar-se como provado que “Os Réus não procederam á entrega aos Autores do valor referido em B)”;
3ª - A prova testemunhal produzida e que mereceu credibilidade ao Tribunal não é apta a dar como provado esse mesmo facto;
4ª – Com efeito, a matéria de facto dada como assente resulta que o thema decidendum se resumia, além do mais, a apurar se o declarado na escritura identificada em A) correspondia ou não á verdade, ou seja, se o preço da venda do imóvel identificado em A) iii., 7 500 000$00, equivalente a 37 409,84€, tinha sido efectivamente entregue pelos Apelados aos Apelantes ou se era devido;
5ª - E assim é, porquanto, como cristalinamente resulta do aduzido em sede de contestação dos ora Apelantes, em lado algum estes alegaram terem algum dia entregue aos Apelados a quantia correspondente ao preço declarado na escritura de venda do imóvel e que aqueles declararam ter recebido na mesma escritura;
6ª – As testemunhas em cujo depoimento o Tribunal fundou a sua convicção nada disseram sobre o porquê de ser, ou não, devida qualquer quantia aos Apelados;
7ª - Dos depoimentos dessas mesmas testemunhas resulta nada saberem quanto ao preço a pagar pelo imóvel, nem detalhes relativos a datas de promessas de pagamento do capital e juros;
8ª - Ou seja, para além do óbvio, face á contestação dos ora Apelantes, as ditas testemunhas nada mais referiram;
9ª - Do depoimento da testemunha R…, que já foi advogada dos Apelados, resulta claramente o envolvimento do negócio em causa nos presentes autos com outros negócios anteriores havidos entre ambas as partes litigantes, incidindo não só sobre o prédio identificado na escritura de compra e venda de fls., celebrada em 15/07/1993, mas também o estabelecimento (restaurante) nele instalado, confundindo ambos esses negócios num só.
10ª - Transversalmente a todos os depoimentos das testemunhas que mereceram credibilidade ao Tribunal, perpassa a ideia sobre o conhecimento de um negócio que envolveu o trespasse de um estabelecimento comercial, restaurante, a cessão de quotas, a venda de um imóvel e a realização de obras.
11ª - Com efeito, a testemunha E…, referiu-se no seu depoimento a um restaurante, à passagem de quotas desse restaurante por 15 mil contos;
12ª - A testemunha L…, referiu-se igualmente à passagem da parte dos pais, as quotas, um edifício, um restaurante. Revelou ter conhecimento sobre uma outra acção intentada contra os tios, mas não soube qual o desfecho.
13ª - Por último, a testemunha M… referiu-se a um negócio de família, um restaurante, nada sabendo sobre a celebração de qualquer escritura, resumindo-se o seu conhecimento a que não tinha sido pago o trespasse ao tio e disse ainda que em conversa se falou de obras.
14ª - Em suma, as testemunhas revelaram uma memória selectiva, o que se coaduna com o facto de não deixar de ser estranho só passados 15 (quinze!) anos tivessem vindo os Apelados a reclamar o preço do imóvel que na altura declararam ter recebido;
15ª - O ponto único da matéria de facto dada como provada mostra-se contraditório com o saneamento do processo, quando aí se definiu como questões a resolver, saber se os Réus têm alguma dívida para com os Autores e, em caso afirmativo, em que valor;
16ª - Esse mesmo facto – a não entrega pelos Apelantes aos Apelados do preço que aqueles declararam na escritura de fls. terem recebido - por si só, não se mostra suficiente para dirimir os temas de prova previamente definidos pelo Tribunal e aceites pelas partes;
17ª – Seja como for, a escritura pública de compra e venda, não fazendo prova plena do pagamento do preço aos vendedores, fá-lo, no entanto, da sua declaração de já ter recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art. 352.º do CC qualifica de confissão;
18ª - Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, os vendedores declararam já terem recebido o preço) – cf. arts. 355.º, n.ºs 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC;
19ª - Se os vendedores alegaram que não receberam o preço, impunha-se, ainda, alegarem a falsidade do aludido documento autêntico (art. 372.º, n.º 1, do CC) para, deste modo, afastarem a força probatória plena que advém da confissão nele exarada;
20ª - Também o art. 359.º do CC prescreve outra via de impugnação da confissão extrajudicial, pela prova da falta ou vícios da vontade que inquinam a declaração constante de documento autêntico;
21ª - E não basta para infirmar a confissão que o confitente alegue não ser verdadeiro o facto confessado. Para que a confissão seja impugnada há-de alegar-se e provar-se que, além de o facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou ou foi vítima de falta ou de vício da vontade;
22ª - No caso dos autos, os AA., ora Apelados, na sua peça inicial, limitaram-se a alegar que declararam na escritura terem recebido o respectivo preço, mas que tal declaração não corresponde à verdade, pois nada receberam (cfr. 4º e 5º da P.I.);
23ª - Mas, para além disso, os Apelados nenhum outro facto aduziram, nem nessa peça, nem posteriormente, de cuja demonstração resultasse a prova de que na formação da vontade conducente á emissão de tal declaração de quitação estivesse qualquer erro ou vício de vontade;
24ª - Demonstrado fica, assim, que o Tribunal a quo, ao condenar os ora Apelantes no pagamento aos Apelados da quantia de € 37 409,84, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde 4 de Outubro de 2007 até integral pagamento, fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artºs 352º, 355º, nºs 1 e 4, 358º, nº 2, 359º e 372º, nº 1, do Cód. Civil;
25ª - Da correcta interpretação, conjugação e aplicação dos normativos atrás referidos resultaria que, para efeitos da condenação dos Apelantes necessário seria que os Apelados, para além de alegarem que não receberam o preço da venda do imóvel em causa nos presentes autos, teriam também de alegar, e provar, que na declaração feita em contrário, erraram, ou foram vítimas de vício da vontade – o que não fizeram.
Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento, revogando-se a douta sentença recorrida e julgando-se, a final, não provada e improcedente a acção, absolvendo-se os Apelantes do pedido, com o que se fará inteira JUSTIÇA!

Contra alegaram os autores, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
As questões a resolver traduzem-se em saber se foi corretamente decidida a matéria de facto e quais as implicações jurídicas da sua eventual alteração.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Resultam provados os seguintes factos, com relevância para a decisão da causa:
A) 2 - No dia 15 de Julho de 1997, no Cartório Notarial de Ponte da Barca, foi celebrada uma escritura pública de compra e venda e transmissão singular de dívida, lavrada de fls. 36 a fls. 38 verso do Livro de Notas n.º 11 – E:
i. declararam os Autores e M… e M… estar obrigados perante a Caixa Agrícola ao pagamento de todas as importâncias decorrentes de um contrato de empréstimo constituído por escritura lavrada em Cartório Notarial em 18.06.1996;
ii. declararam os ora Autores transmitir aos Réus a dívida especificada na parte que lhes respeita, no montante de 4.300.000$00;
iii. os AA. declararam vender aos Réus o seguinte imóvel: metade indivisa do prédio urbano composto por casa de rés-do-chão, destinada a actividades económicas, com terreno anexo, sito em…, no lugar de Igreja da referida freguesia de Entre-Ambosos-Rios, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo…, com o valor patrimonial, correspondente à fracção de 879.750$00 (4.388,17 €), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número…..
B) - Declararam as partes, no contrato referido em A) iii) que o preço da venda do imóvel seria de 7.500.000$00 / 37.409,84 €.
C) - Os Autores declararam na escritura terem recebido o respectivo preço referido em B).
D) - As Rés C… e E… são sobrinhas dos Autores e filhas dos quartos outorgantes da referida escritura, M… e mulher, M…..
E) - Pais e filhas pretendiam adquirir a totalidade do prédio urbano identificado na escritura para poderem, em conjunto explorar um estabelecimento nele instalado denominado Restaurante Snack-Bar….
F) - Em virtude das relações familiares entre Réus e Autores e porque estes queriam desvincular-se quer do prédio urbano quer do estabelecimento comercial nele existente acordaram em celebrar o negócio.
G) - Por escritura pública celebrada em 15 de Julho de 1993 no Cartório Notarial de Ponte da Barca, B… e M… declararam vender ao ora Autor J…e M… o prédio urbano composto por casa de rés-do-chão destinado a actividades económicas, com terreno anexo, sito no Lugar da Igreja, Entre-Ambos-os-Rios, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte da Barca sob o número… e inscrito na matriz sob o art…. pelo preço de quinze milhões de escudos.
H) - Na escritura referida em G), o BNU declarou conceder aos segundos outorgantes um empréstimo no montante de quinze milhões de escudos, tendo sido constituída hipoteca sobre o imóvel referido em G) a favor do BNU.
1 - Os Réus não procederam à entrega aos Autores do valor referido em B).
Não se provou:
- que os Réus se tenham comprometido perante os Autores a proceder ao pagamento da quantia referida em B) em Julho de 1998;
- que os Réus se tenham comprometido, posteriormente, a pagar aquela quantia no Verão do ano seguinte, prometendo pagar juros aos Autores;
- que o preço real acordado entre as partes no negócio referido em G) tenha sido de 25.000.000$00;
- que o Autor e M… tenham entregue às vendedoras referidas em G) 1.000.000$00 a título de sinal, bem como a quantia de 15.000.00$00;
- que, à data referida em A), os Autores ainda fossem devedores, às primitivas proprietárias do imóvel, de 4.500.000$00;
- que, à data referida em A), os Autores fossem devedores de 7 500 000$00 à Caixa Agrícola para aquisição do prédio;
- que a transmissão para as 2.ª e 3.ª Rés da dívida dos Autores para com as primitivas proprietárias do imóvel tenha sido ratificada por estas;
- que, desde a outorga da escritura referida em A) até hoje, as 2.ª e 3.ª Rés, bem como os pais das mesmas, tenham pago a B… e M… os juros devidos pela mora, vencidos sobre a quantia de 9.000.000$00;
- que Autores e Réus tenham acordado que o preço real do negócio de compra e venda referido em A) iii) corresponderia à soma de ambas as dívidas transmitidas pelos Autores às 2.ª e 3.ª Rés, ou seja, a 8.800.000$00, fazendo constar da escritura o preço referido em B) por corresponder ao declarado na compra às anteriores proprietárias do prédio.

Entendem os apelantes que se encontra incorretamente julgado o ponto único da matéria de facto, ao dar-se como provado que “Os réus não procederam à entrega aos autores do valor referido em B)”, considerando que o mesmo deveria ter obtido resposta de “não provado”.
Contudo, em clara contradição com tal entendimento, acrescentam que nunca alegaram terem entregue aos apelados a quantia correspondente ao preço declarado na escritura de venda do imóvel, tendo antes alegado a existência de outras dívidas anteriores que os autores lhes teriam transmitido.
Não se tendo provado nenhum outro facto da base instrutória – matéria alegada pelos réus – fica apenas a questão de saber se os réus têm alguma dívida para com os autores, conforme estes alegaram e provaram, uma vez que obteve resposta de provado aquele facto n.º 1.
Os apelantes discordam da convicção sustentada pela Sra. Juíza em 1.ª instância quanto à prova oferecida pelas partes e tentam descredibilizar as testemunhas que estiveram na base dessa convicção – E…, L…, M… e R… – referindo-se a pequenos extratos dos seus depoimentos, que transcrevem, de onde resultaria uma convicção de sentido contrário.

Ora, na fixação da matéria de facto provada, o tribunal de 1.ª instância rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, «decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», só podendo ocorrer alteração da mesma por parte do Tribunal da Relação, que se deve reger também pelo aludido princípio, nos termos do artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Este princípio da livre apreciação da prova impõe que o julgador proceda a uma valoração de cada meio de prova produzido nos autos, interligando-o com os demais elementos probatórios do mesmo constantes, socorrendo-se dos conhecimentos científicos adquiridos e das regras de experiência comum da vida (Lebre de Freitas, in «Introdução ao Processo Civil, conceito e princípios gerais à luz do Código Revisto», Coimbra, 1996, pág. 157 e ss.)
A resposta a cada facto quesitado deve, assim, «…reflectir o resultado da conjugação de vários elementos de prova que na audiência ou em momento anterior foram sujeitos às regras da contraditoriedade, da imediação ou da oralidade» - Abrantes Geraldes, in «Temas da Reforma do Processo Civil», vol. II, pág. 209.

Compulsado o despacho de motivação da decisão relativa à matéria de facto, verifica-se que a Sr. Juíza de 1.ª instância fundamentou de forma clara a sua convicção, explicando o porquê da sua adesão a determinada testemunha em detrimento de outra e a forma como tais depoimentos foram conjugados com os documentos existentes nos autos.
Do que vem dito nas alegações dos apelantes, resulta que estes viram a prova de outra maneira, mas de nenhum dos extratos que reproduzem, relativos aos depoimentos que assinalam, resulta o por si pretendido, ou seja, que aquele facto fosse dado como “não provado”, considerando-se que os réus nada devem aos autores.
Como, aliás, já assinalámos, são os próprios réus que assumem que nada pagaram no acto da escritura, pelo que não se entende por que pretendem que tal facto foi incorretamente julgado e, ao mesmo tempo, não pugnam por que se considere provada a matéria constante dos outros números da base instrutória, que continha a sua versão dos negócios celebrados entre as partes.
Não pretendendo tal alteração, certamente, porque nenhuma prova se fez de tais factos – veja-se como admitem que os depoimentos das testemunhas C… e B… revelaram enormes fragilidades, o que compreenderam e aceitaram – fica apenas a questão da dívida não paga.
E nem se diga que, com tal facto, não se dá resposta ao tema de prova enunciado, uma vez que o que resulta dos factos provados é, exatamente, que os réus mantém uma dívida para com os autores, que subsiste apesar de ter sido declarada na escritura a quitação.
Aliás, as testemunhas supra referidas, não tiveram qualquer dúvida em explicar os contornos do negócio celebrado para concluir pela falta do pagamento acordado.
Improcede, portanto, a invocada impugnação da decisão da matéria de facto.

A outra questão que os apelantes pretendem ver apreciada prende-se, de igual modo, com a impugnação da matéria de facto, uma vez que sustentam o entendimento segundo o qual, tendo ficado a constar na escritura pública a quitação por parte dos autores, tal faz prova plena de que nesse acto os apelados declararam já haver recebido o preço devido, o que só pode ser revertido pela alegação da falsidade do aludido documento autêntico ou pela alegação da falta ou vícios da vontade, o que não foi feito.
Salvo o devido respeito, pensamos que os apelantes não têm razão.

Como bem se refere na sentença recorrida, a força probatória da escritura pública, como documento autêntico, restringe-se aos factos referidos no artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil: “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.
Seguindo o ensinamento de Vaz Serra, in RLJ 111.º, pág. 302: “Os documentos em que o documentador (v.g., o notário) atesta determinados factos, só provam plenamente o que neles é atestado com base naquilo de que o documentador se certificou com os seus sentidos. Assim, o documento não prova plenamente a sinceridade dos factos atestados pelo documentador ou a sua validade e eficácia jurídica, dado que disso não podia o documentador aperceber-se. Daí que o documento, provando plenamente terem sido feitas ao notário as declarações nele atestadas, não prova plenamente que essas declarações sejam válidas e eficazes”
Ou seja, uma escritura não prova a veracidade das declarações dos outorgantes, mas apenas que elas foram feitas, pelo que, ainda que conste da escritura que formalizou um contrato de compra e venda de um imóvel, que o respetivo preço já foi pago, é admissível a prova de que tal pagamento não teve lugar, a não ser claro, que o pagamento tivesse sido efetuado à frente do notário e que este tivesse atestado tal facto. Só neste último caso se poderia colocar a questão, que os apelantes colocam, da arguição da falsidade do documento, uma vez que esta só deve ser considerada para destruir a força probatória própria do documento, que lhe foi atribuída por lei (artigo 372.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil) e, como já vimos, relativamente à veracidade das declarações proferidas perante o notário, não há qualquer força probatória plena.
Também teria que se recorrer ao incidente da falsidade, se se pretendesse provar que as declarações constantes em documento autêntico, não foram produzidas perante o notário.
Uma escritura não prova a veracidade das declarações dos outorgantes, mas apenas que elas foram feitas.
O conteúdo de tais declarações, ou a veracidade das mesmas – se foi pago ou não foi pago o preço - não faz prova plena, uma vez que o notário não percecionou tais factos e, como tal, não é necessário suscitar o incidente de falsidade para fazer a prova contrária ao declarado.
Transcreve-se, a este propósito, sumário do Acórdão do STJ de 15/04/2015 (processo n.º 28247/10.4T2SNT-A.L1.S1, de que foi relator o Conselheiro Pires da Rosa), in www.dgsi.pt, que se revela esclarecedor, para resolução desta questão:
“I - A escritura pública confere – à declaração feita pelo vendedor, no contrato de compra e venda, de que relativamente ao preço «já o recebeu do comprador» – força probatória plena, comportando uma declaração confessória de um facto à parte contrária.
II - Não obstante, a força probatória plena do documento só vai até onde alcançam as percepções do notário – existência da declaração – mas já não à veracidade do conteúdo da mesma, no caso concreto que o vendedor recebeu efectivamente a quantia indicada a título de preço.
III - Este facto pode ser impugnado por qualquer das partes sem necessidade de arguição da falsidade do documento, uma vez que o mesmo faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas mas já não quanto ao rigoroso sentido, sinceridade, veracidade ou validade das declarações emitidas pelas partes.
IV - A declaração referida em I valerá nos seus textuais termos se, e enquanto, o declarante não alegar e provar que a declaração não contém o facto que o declarante disse conter, podendo tal prova ser feita por qualquer forma, maxime¸ a prova testemunhal.
V - Nada impede assim que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta ou vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada”.
E veja-se, na fundamentação deste mesmo Acórdão do STJ, o seguinte: “Como escreve Antunes Varela, a págs.521 do seu Manual do Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, reflectindo exactamente sobre uma igual hipótese, « a força probatória plena do documento só vai até onde alcançam as percepções do notário … No exemplo figurado, ter-se-á assim como plenamente provado (até prova em contrário, feita no incidente da falsidade) que um dos outorgantes declarou perante o notário … ter recebido determinada quantia, a título de preço da coisa. Mas já se não tem por provado que … este recebeu efectivamente a quantia indicada … (É)são facto(s) que pode(m), consequentemente, ser impugnado(s) por qualquer das partes, sem necessidade de arguir a falsidade do documento, por não estar(em) coberto(s) pela força probatória plena deste. O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes ».
Fora do documento – e do seu valor probatório pleno – há então que procurar o verdadeiro sentido e alcance que a declaração comporta (veja-se o Ac. deste STJ de 2 de Fevereiro de 2010 - Salazar Casanova - na revista nº1272/03.4TBTNV.C1.S1), a sinceridade, veracidade ou validade da declaração emitida”
E, finalmente: “A declaração valerá se, e enquanto, o declarante não alegar - e provar - que a declaração não contém dentro o facto que declaradamente diz conter. Mas essa prova pode fazê-la o declarante por qualquer forma, maxime a prova testemunhal. Por qualquer modo poderá demonstrar que, afinal, o facto declarado (ou que parece declarado) é um facto … inexistente”.
“Não se trata de uma questão de falsidade – ao contrário, afirma-se a autenticidade do documento – nem de falta ou vício de vontade – ao contrário, a declaração foi feita e querida nos exactos termos em que foi recolhida pelo notário.
No limite será uma declaração não séria quando e se o declaratário alegar e provar a sua falta de seriedade, a desconformidade entre a expressão e o conteúdo, o que poderá fazer por qualquer meio”.

Improcedem, assim, na totalidade, as conclusões da alegação dos apelantes, sendo de confirmar a sentença recorrida.

Sumário:
1 - A força probatória plena da escritura pública, como documento autêntico, restringe-se aos factos referidos no artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil.
2 – Não resulta de uma escritura pública a prova da veracidade das declarações dos outorgantes, mas apenas que elas foram feitas.
3 – A declaração de que o vendedor recebeu a quantia indicada a título de preço, pode ser impugnada por qualquer das partes sem necessidade de arguição da falsidade do documento, uma vez que o mesmo faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas mas já não quanto ao rigoroso sentido, sinceridade, veracidade ou validade das declarações emitidas pelas partes.
4 – Tal declaração valerá se, e enquanto, o declarante não alegar e provar que a mesma não contém o facto que o declarante disse conter, podendo tal prova ser feita por qualquer forma, maxime¸ a prova testemunhal.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 9 de julho de 2015
Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Espinheira Baltar