Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
846/18.3T8BCL.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
MÁ FÉ ROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

- A norma processual do art.941º do Código de Processo Civil pressupõe a existência de fontes, v.g., normas convencionais ou legais, que imponham a obrigação de prestar contas e, por isso, não confere tal direito, antes adjectiva o seu exercício judicial;

- Tendo determinado órgão colectivo prestadas contas no âmbito da administração das coisas de determinada pessoa, não pode esta posteriormente vir a pedir a repetição de tal prestação, assim como não pode, ab initio, pedi-las sucessivamente a cada um dos componentes desse órgão estatutário;

- Inexiste obrigação de prestação de contas, quer por via do art. 573º, do Código Civil, quer por aplicação do princípio da boa-fé, quando o peticionante não tem qualquer dúvida sobre os dados que pretende ver esclarecidos;

- Não configura má-fé processual a leve negligência na qualificação jurídica dos factos em apreciação.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes na 1ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

Recorrente(s):
- (…);
- (…) (subordinada).

Recorrido(a/s):
- (…);
- (…) (subordinada).

1. RELATÓRIO

A Recorrente ASSOCIAÇÃO (…) instaurou a presente “acção especial de prestação de contas, nos termos do artigo 941º e seguintes do CPC" contra (…), residente no Lugar da (…) , freguesia de (…), concelho de Braga, peticionando, a final, que seja “declarado que a Ré está obrigada à prestação das contas, sendo esta citada para contestar a acção ou as apresentar, querendo, no prazo de 30 dias, e sob a cominação legal, seguindo-se os demais termos dos artigos 942º a 946º do CPC, com a consequente condenação da Ré a pagar à Autora aquele valor de 5.065,00 € ou o saldo que vier a ser apurado como devedor, acrescido de juros de mora contados desde a citação, à taxa legal, até pagamento, bem como custas, por terem dado causa à acção.”

Alega, em suma, para fundamentar a sua pretensão, que a R. exerceu funções de tesoureira da direcção da A. e, nesse período, apropriou-se da quantia de €: 5065, depositando na sua conta bancária e fazendo sua a quantia em causa, que estava titulada por 3 cheques. Mais alega que, cessadas as respectivas funções e qualquer obrigação da R. de prover por despesas da A., a R. se recusa a prestar contas de tais quantias.

Citada a R. veio a mesma oferecer contestação, na qual excepcionou a incompetência territorial do Juízo Local Cível de (…) (por residir em … ), o caso julgado (por já ter corrido termos acção intentada pela A. contra a R. em que foi peticionada a condenação da R. na restituição da quantia aqui em causa, que foi julgada improcedente, tendo tal decisão transitado em julgado), a inexistência de obrigação da R. em prestar contas (por terem as funções exercidas sido enquanto membro de um órgão colegial – a Direcção – e ter esta prestado contas que foram aprovadas) e a ilegitimidade da A. (por não ter a mesma autorização da assembleia geral, nos termos exigidos pelo art. 172º, nº 2, do Cód. Civil). Requer, seja a acção julgada improcedente e a A. condenada como litigante de má-fé.
A A. pronunciou-se sobre as excepções e sobre o pedido de condenação da A. como litigante de má-fé.
Foi julgada procedente a excepção de incompetência territorial e remetidos os autos a este Juízo Local Cível de ….
Em sede de tentativa de conciliação, e frustrada a mesma, concedeu-se às partes a palavra para se pronunciarem sobre a prolação imediata de decisão de mérito, o que as mesmas fizeram, nos termos constantes da acta, para cujo teor remetemos.

Foi então proferido despacho saneador-sentença que decidiu julgar improcedente a excepção de caso julgado e, apreciando o mérito da causa, julgou improcedente a presente acção, com custas a cargo da Autora.

Inconformado com essa decisão, a Recorrente …. acima identificada apresentou recurso da mesma, que culmina com as seguintes

conclusões.

1-Salvo melhor opinião a douta decisão recorrida, sem que previamente fosse feita prova ou permitida prova sobre os factos alegados, efectuou um juízo prévio sobre a inviabilidade da acção, nos termos decididos, com o qual não se concorda.
2-A Ré (…) chegou a desempenhar as funções de Tesoureira da Direcção da Autora, cargo que desempenhou em 2010 e 2011, até 21 de Dezembro de 2011, data em que cessou essas funções.
3-Assim, a partir de 21.12.2011 a Ré … passou a ser somente associada da Autora, sem desempenho de quaisquer funções sociais ou de qualquer outra natureza.
4- Na acção 1114/14.5TBBCL resultou provado que:
4.1- Enquanto tesoureira da Direcção, em Fevereiro de 2010 a Ré integrou no seu património a quantia de 2.165,00 € (dois mil cento e sessenta e cinco euros), para o efeito procedendo à cobrança para si do cheque com o n.º 2450364924, do mesmo montante, sacado sobre a conta da Associação, sediada no Banco ... SA, subscrito pela própria Ré, enquanto Tesoureira e pelo então Presidente da Direcção.
4.2-E de novo em Abril de 2010 a Ré integrou no seu património a quantia de 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros), para o efeito procedendo à cobrança para si do cheque com o n.º 2450365021, do mesmo montante, sacado sobre a conta da Associação, sediada no Banco ... SA, subscrito pela própria Ré, enquanto Tesoureira e pelo então Presidente da Direcção.
4.3-Finalmente, em Maio de 2010 a Ré integrou no seu património a quantia de 400,00 € (quatrocentos euros), para o efeito procedendo à cobrança para si do cheque n.º 2450383257, do mesmo montante, sacado sobre a conta da Associação, sediada no Banco ... SA, subscrito pela própria Ré, enquanto Tesoureira e pelo então Presidente da Direcção.
4.4-Todos aqueles valores inscritos naqueles cheques foram levantados pela Ré, que ficaram na sua posse, ficando a conta bancária da Autora sem aqueles valores, ao ser debitada dos valores dos cheques quando a Ré os apresentou a pagamento e cobrou os respectivos valores.
4.5-Assim, o património da Ré ficou enriquecido por aqueles valores, ficando o património da Autora, Associação, diminuído nessa exacta medida e valor.
5-OU SEJA ESTÁ PROVADO QUE A RÉ RETIROU DA CONTA BANCÁRIA DA AUTORA AQUELES VALORES, ATRAVÉS DA COBRANÇA PARA SI DAQUELES CHEQUES, À SUA GUARDA, SEM QUE EXISTISSE SUPORTE DELIBERATIVO DA DIRECÇÃO PARA TAIS OPERAÇÕES, O QUE GEROU UMA EVIDENTE APROPRIAÇÃO DE VALORES PERTENCENTES À AUTORA.
6-Esses actos de cobranças de cheques não se podem inserir naquilo que o Tribunal designa por “poderes de administração”, muito menos resultou de decisão colegial da Direcção, de que fazia parte a Ré.
7-Nem se destinaram a pagar o que quer que fosse, pois que nenhum crédito tinha a Ré sobre a Autora.
8-Na verdade, apesar de naquela Assembleia Geral terem sido aprovadas as contas, das mesmas resulta ser a Autora credora de tais valores, em débito até prestação de contas pela Ré, assim como dos demais valores ali referidos na página 6 e o acordeão, que já foram recebidos e recuperado em acções judiciais intentadas pela Autora contra a Ré, em cumprimento do deliberado.
9-Ao contrário do decidido na douta sentença recorrida, apesar de aprovadas as contas em 5.12.2011, a Ré não foi desonerada de justificar o destino que deu àqueles valores por si cobrados com cheques da Autora, de cujos montantes se apropriou, nem, apelando ao princípio da boa-fé, de oportunamente demonstrar que tais valores tenham sido, ainda que parcialmente, usados em pagamentos em benefício da Autora.
10-É inequívoco que a Ré actuou a título individual e não em representação do órgão de que fazia parte, pelo que, apelando novamente ao princípio da boa-fé, tem o dever de prestar contas.
11-Assim, o dever da Ré de prestar contas decorre dos artigos 941º e 942º do CPC e sobre o uso de cheques à sua guarda.
12-E, tendo deixado de ser Tesoureira da Direcção da Autora desde Dezembro de 2011 e por escolha dos seus associados, não exercendo desde então quaisquer funções na Associação Autora, o órgão Direcção a que pertenceu já nada poderia deliberar, para além do decidido na Assembleia Geral de 5.12.2011.
13-Assim, atento o disposto nos artigos 941º e seguintes do CPC o que está em causa é a prestação de contas pela Autora relativamente a quantias em dinheiro que pertencem ainda hoje ao activo da Autora e na sua posse desde o tempo em que foi tesoureira, por cobrança indevida de cheques que estavam à sua guarda.
14-Na anterior acção n.º1114/14.5TBBCL foi ainda dado por provado, em resultado da instrução da causa, o facto ali elencado sob o n.º 7, ou seja: “ As entregas dos cheques ocorreram num período que antecedeu o conflito entre a ré e o presidente da direcção da autora, bem sabendo a ré que as mesmas não lhe eram devidas e pertenciam à autora.”
15-Assim, a Ré abusou do facto de ter à sua guarda aqueles cheques, cobrando com eles valores que pertencem à Autora e porque a ré até hoje não os entregou terá que prestar contas e entregar o saldo (total ou parcial) que vier a ser aprovado, sendo certo que até o depositário está obrigado a prestar contas e a restituir os valores ou coisa com os seus frutos (artigo 1187º CC).
16-Na verdade, a Ré, em boa-fé, só tem que fazer algo muito simples, que é apresentar contas com documentos que justifiquem o eventual gasto daqueles valores ou de parte deles em benefício da Autora e que tais gastos ou despesas tenham sido ou sejam aprovados pela Autora.
17-Deverá, assim, e salvo melhor opinião, ser revogada a douta sentença proferida e antes decidido que existe obrigação por parte da Ré de prestar contas, como decorre do artigo 941º do CPC, do teor da acta da Assembleia Geral de 05.12.2011 e da lei.
18-Foram violadas as disposições legais citadas e, deste modo, deve ser julgado procedente o recurso e revogada a douta sentença proferida, no sentido de ser devida a prestação de contas, ainda que com realização de produção de prova prévia.

NESTES TERMOS,
E com o douto suprimento de Vs.ª Exs.ª deverá ser dado provimento ao recurso e no sentido das conclusões…

A Recorrida opôs-se ao recurso e recorreu subordinadamente, concluindo nos seguintes termos.

I. A Autora Recorrente não se conforma com a douta decisão recorrida, em virtude de esta ter efectuado um juízo prévio sobre a inviabilidade da acção, nos termos decididos, «sem que previamente fosse feita prova ou permitida prova sobre os factos alegados».
II. Todavia, a douta sentença recorrida o Tribunal a quo deu por «assente» - e bem:
«- o teor dos estatutos da A., constantes de fls. 10 a 12 dos autos» e
«- o teor da acta da assembleia geral da A. de 5/12/2011.» (por lapso, ali se referiu 5/12/2012).
Factos assentes esses que bastaram, e bem – para, por si só, dispensarem a produção de qualquer outro tipo de prova, por serem bastantes e suficientes para a douta sentença recorrida haver efectuado um juízo prévio, e imediato, sobre a inviabilidade da Acção.
III. Com efeito, não tendo a Ré, enquanto Tesoureira da Direcção da A., autonomia em relação à Direcção de que fazia parte, não pode exigir-se à Ré a prestação de contas, mas sim à Direcção em termos colectivos.
IV. Por outro lado, resultando da acta da assembleia geral de 05./12/2011, que a dita Direcção, da qual fazia parte a Ré, prestou na mesma contas do Exercício de 2010, as quais foram aprovadas, líquido é que não tem a A. o direito de exigir a prestação de contas à Ré – e que, tendo esse direito, em abstracto, relativamente à Direcção, integrada pela Ré até Dez/2011, não o tem em concreto, pois que tal direito se extinguiu na assembleia geral de 05/12/2011, quando ali foram prestadas e aprovadas as contas relativas ao exercício de 2010.
V. Bem andou, pois, a sentença recorrida, que não merece, por isso qualquer tipo de censura.
Aliás, a sentença recorrida reforçou ainda o seu acertado entendimento com as considerações expostas, a título de exemplo, em «Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/11/2007 (em análise de situação que será em tudo idêntica à presente) que esta preclusão não obstaria a que a A. demandasse civilmente a R. com vista à restituição das quantias. Contudo, no caso, e face à acção nº 1114/14.5TBBCL, que correu termos pelo Juízo Local Cível de … , tal não se mostra processualmente admissível».
VI. A própria A. Recorrente reconhece, aliás, a inteira assertividade da sentença recorrida, quando, na sua Conclusão 13, alega que «o que está em causa é a prestação de contas pela Autora relativamente a quantias em dinheiro que pertencem ainda hoje ao ACTIVO da Autora» (e no corpo alegatório: «o valor em causa é um activo da Autora, titulado como crédito desta sobre aquela Ré» - sublinhados nossos.
Pois que, assim sendo, e tendo a Acção de prestação de contas, nos termos do disposto no art. 941º do C.P.C., «por objectivo o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios, e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se», se os valores em causa são, como afirma a A/Recorrente, um ACTIVO da Autora, e como tal apurado e aprovado na sua assembleia geral de 05.12.2011, então não existe qualquer necessidade de apurar e aprovar tal activo.
VII. E, mesmo que existisse – que não existe -, os bens em causa não eram, sequer, bens alheios, mas sim bens da A., que a Ré, com os restantes elementos da Direcção, representavam e em cujo nome agiam. E, de todo o modo, o direito à prestação de contas não poderia ser exigido à Ré, na qualidade de Tesoureira, mas sim à Direcção, a que pertencia, em termos colectivos – o que não sucedeu.
VIII. Ora, a administração de bens alheios é o pressuposto fundamental da Acção de prestação de contas, sem o qual não poderá existir nem o direito de exigir contas, nem o dever de as prestar, pelo que bem andou, sem qualquer dúvida, a douta sentença recorrida ao ordenar, face ao supra exposto, a improcedência da Acção.
IX. Por último, sendo tais despesas do claro e inequívoco conhecimento da A., e da sua Direcção – que, mesmo assim, propôs a Acção de prestação e contas –, jamais poderia haver condenação da Ré/Recorrida na prestação de tais contas (cfr. entre outros, Ac. do STJ, de 29.10.2002, Proc. n.º 2688/02-1ª; Sumários, 10/2002, in nota 19 do C.P.Civil Anotado, de Abílio Neto, 4ª Edição Revista e ampliada, Março/2017, EDIFORUM, pág. 1385).
X. Termos em que a douta sentença recorrida não violou qualquer disposição legal, muito menos a do art. 941º do CPC, devendo, consequentemente, manter-se na íntegra.
XI. Quanto ao Recurso Subordinado, o Tribunal a quo considerou, na sentença recorrida, que a dedução da pretensão deduzida nos presentes autos (Acção de Prestação de Contas) se afigura «ainda consentânea com uma litigância no limite da boa-fé» - sublinhado nosso.
Ou seja, não deixou de reconhecer que a presente litigância foi deduzida nos limites da boa-fé, ou seja, a roçar já a litigância de má-fé.
E assim considerou, no essencial, por força da «constatação judicial que a Ré integrou no seu património as quantias em causa, e sem que ficasse declarado judicialmente o fundamento para esse reconhecimento».
XII. A Ré, ora Recorrente, não pode, por isso, conformar-se com tal entendimento, o que se reforça pela postura assumida, mais uma vez, pela A. no Recurso por ela interposto.
XIII. Com efeito, a douta sentença recorrida começa por reconhecer, a este propósito, «tal leva a que se leve ao extremo a utilização dos meios processuais ao dispor das partes (…)», não devendo ignorar-se, a propósito, que a aqui A. pretendera já obter a condenação da Ré, no âmbito da Acção n.º 1114/14.5TBBCL, que correu termos pelo Juízo Local Cível de … , nela sustentando a sua pretensão em alegados – mas não provados – empréstimos efectuados pela A. à Ré, assim invocando como fundamento do recebimento de tais valores, por parte da Ré, alegados empréstimos que lhe haveriam sido efectuados pela A..
XIV. E que, apesar da constatação de que a Ré integrou, efectivamente, tais quantias, no seu património – legitimamente, tanto mais que os 3 cheques foram assinados não só por ela, na qualidade de Tesoureira, como também pelo próprio Presidente da Direcção da A.- , a Ré não logrou, de todo, provar que tais quantias houvessem sido entregues à Ré a título de empréstimo(s) - contrato(s) de mútuo, pelo que, se judicialmente não ficou declarado o fundamento para tais pagamentos, e recebimentos, foi porque a A. ali não logrou provar a sua versão (dos alegados empréstimos), cujo ónus de prova indubitavelmente lhe cabia, em exclusivo.
XV. Mas, mais grave ainda, e, por isso, censurável é que a A. tentou ali reaver indevidamente tais quantias, invocando que lhe seriam devidas a título de empréstimos que alegadamente havia efectuado à Ré, quando antes, nomeadamente na Assembleia Geral da A., de 05/12/2011, invocara, expressa e documentalmente, que lhe seriam, afinal, devidas a título de «adiantamento de remunerações relativas ao ano de 2010» - o que, por si só, é também, e desde logo, totalmente descabido, pois que se assim tivesse sucedido, teria sido fácil à A. reaver tais valores da Ré, nomeadamente por redução/compensação em remunerações posteriores – e foram ainda várias.
XVI. Ora, no caso sub judice verificou-se quer a má-fé material, quer a instrumental, por parte da Autora.
XVII. A má-fé material, na medida em, que a A. deduziu pedido cuja falta de fundamento não ignorava ou não deveria desconhecer, na medida em que a pretensão de obrigar a Ré à restituição das quantias em causa já havia sido anteriormente deduzida, e indeferida, sendo que pela presente Acção (apesar de se tratar de Acção de prestação de contas), a A. não mais pretende, afinal (cfr. resulta do pedido), a «consequente condenação da Ré a pagar à Autora aquele valor de € 5.065,00 ou o saldo que vier a ser apurado como devedor (…)» - sublinhado nosso.
XVIII. Acentuando-se esse dever de não ignorar, de não desconhecer, a falta de fundamento da pretensão, pela circunstância de o principal, senão mesmo único, instigador desta demanda e “perseguição” ser o Presidente da Direcção da A., para mais advogado de profissão e, por isso, com um dever especialmente acrescido relativamente àquela circunstância, bem como pela circunstância de ser a A. representada pelo mesmo mandatário da Acção n.º 1114/14.5TBBCL.
XIX. A má-fé instrumental resulta da circunstância de a A. ter feito um uso reprovável do presente processo, especial, para conseguir um fim ilegal, o que efectivamente sucedeu.
XX. Na verdade, consciente de que, após o insucesso da Acção n.º 1114/14.5TBBCL, não mais poderia deduzir contra a A. a mesma pretensão – a da sua condenação na restituição da quantia de € 5.065,00, titulada e recebida por 3 cheques da A. -, decidiu, ardilosamente, usar do artificio da dedução de uma Acção de prestação de contas que, nos termos previstos pelo artigo 941º, bem sabia que era inadmissível, por um lado porque bem sabia que não podia exigir à Ré, enquanto Tesoureira e um dos membros da Direcção da A., prestação de contas, mas tão só à Direcção, em termos colectivos; por outro, porque tais contas (do Exercício de 2010) já se encontravam prestadas e aprovadas em Assembleia Geral da A., realizada em 5/12/2011; e, por último, porque só está obrigado a prestar contas quem administra bens alheios, de outrem, sendo evidente que os bens em causa não eram bens alheios, mas outrossim bens da Autora, que a Ré e os restantes membros da Direcção (Presidente e Secretário) representavam e em cujo nome agiam.
XXI. Termos em que mal andou, por força do exposto, a douta sentença recorrida, em clara violação do disposto no art. 542º, n.º 2, do C.P.C., pois que deveria ter condenado a A. como litigante de má-fé, nos termos peticionados na P.I., o que, inclusive, saiu reforçado com a dedução do Recurso ora interposto pela A., no qual procura, uma vez mais, fazer uso reprovável do processo, deduzindo impugnação cuja falta de fundamento não deveria ignorar, por tão evidente e devida e claramente fundamentada pela sentença recorrida.
XXII. Em consequência, deverá conceder-se provimento ao presente Recurso subordinado, revogando-se, nessa parte, a sentença recorrida - ou seja, na parte em que julgou inexistir fundamento para a condenação da A. como litigante de má-fé -, substituindo-se por outra que decrete tal condenação, nos termos peticionados na P.I.

Termos em que deve o Recurso interposto pela A. improceder, totalmente, mantendo-se a douta e assertiva sentença recorrida;
e, ao mesmo tempo, conceder-se provimento ao recurso Subordinado interposto pela Ré, revogando-se, na parte em que julgou inexistir fundamento para a condenação da A. como litigante de má-fé, a sentença recorrida, substituindo-se por outra que decrete tal condenação, nos termos peticionados na P.I..

2. QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. (1) Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas (2) que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas. (3)

As questões enunciadas pelos recorrentes podem sintetizar-se da seguinte forma:

a) Se existe obrigação de a Ré prestar contas, de acordo com a matéria considerada pelo Tribunal a quo;
b) Se a Autora litigou de má-fé nos presentes autos.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. FACTOS JULGADOS ASSENTES

- O teor dos estatutos da A., constantes de fls. 10 a 12 dos autos;
- O teor da acta da assembleia geral da A. de 5/12/2012.

3.2. RESTANTE MATÉRIA ALEGADA PELA AUTORA E CONSIDERADA PELA SENTENÇA RECORRIDA.

1. A Autora é uma Associação, com o NIPC …, constituída por escritura pública de 26.11.1990, exarada a folhas 46 e 46vº do Livro N.º …-C do ex- Segundo Cartório Notarial de …, então com a sua sede na Rua …, da cidade de Barcelos – documento n.º 1.
2. Por deliberação da Assembleia Geral de 09.07.2009 a denominação da Autora foi alterada para “Associação (…)” e por deliberação da Assembleia Geral de 05.02.2010 foi alterada para “(…), denominação esta que foi de novo alterada para “(…)”, conforme escritura de 01.08.2013, assim como a sua sede actual, no Largo …, em Barcelos – documento n.º 2.
3. A Ré (…) chegou até a desempenhar as funções de Tesoureira da Direcção, cargo que desempenhou em 2010 e 2011, até 21 de Dezembro de 2011, data em que cessou essas funções, pois reuniu a Assembleia Geral que deliberou pela eleição de novos Corpos Sociais, dos quais deixou de fazer parte.
4. Assim, a partir de 21.12.2011 a Ré …. passou a ser somente associada da Autora, sem desempenho de quaisquer funções sociais ou de qualquer outra natureza.
5. Enquanto tesoureira da Direcção, em Fevereiro de 2010 a Ré integrou no seu património a quantia de 2.165,00 € (dois mil cento e sessenta e cinco euros), para o efeito procedendo á cobrança para si do cheque com o n.º…, do mesmo montante, sacado sobre a conta da Associação, sediada no Banco ... SA, subscrito pela própria Ré, enquanto Tesoureira e pelo então Presidente da Direcção – documento n.º 3.
6. E de novo em Abril de 2010 a Ré integrou no seu património a quantia de 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros), para o efeito procedendo à cobrança para si do cheque com o n.º …, do mesmo montante, sacado sobre a conta da Associação, sediada no Banco ... SA, subscrito pela própria Ré, enquanto Tesoureira e pelo então Presidente da Direcção – documento n.º 4.
7. Finalmente, em Maio de 2010 a Ré integrou no seu património a quantia de 400,00 € (quatrocentos euros), para o efeito procedendo à cobrança para si do cheque n.º …, do mesmo montante, sacado sobre a conta da Associação, sediada no Banco ... SA, subscrito pela própria Ré, enquanto Tesoureira e pelo então Presidente da Direcção – documento n.º 5.
8. Todos aqueles valores inscritos naqueles cheques foram levantados pela Ré, que ficaram na sua posse, ficando a conta bancária da Autora sem aqueles valores, ao ser debitada dos valores dos cheques quando a Ré os apresentou a pagamento e cobrou os respectivos valores.
9. Assim, o património da Ré ficou enriquecido por aqueles valores, ficando o património da Autora, Associação, diminuído nessa exacta medida e valor.
10. Por carta de 23.11.2011 a Autora solicitou à Ré a restituição daqueles valores, restituição que a Ré não fez até hoje, apesar de bem saber ser essa a sua obrigação, por terem cessado as suas funções de tesoureira.
11. Ora, no exercício da gestão daqueles valores, que bem sabia pertencerem à Autora, contra o que foi apreciado e decidido em Assembleia Geral da Associação, a Ré vem recusando ou não prestando voluntariamente até hoje as contas do uso e destino daqueles montantes, pois que nada lhe devia a Autora, nem tais cheques se destinaram a pagar-lhe algo, pois que não lhe eram devidos aqueles montantes a qualquer título.
12. Porém, a Ré, na medida em que, então, no exercício do cargo de tesoureira da Aurora, administrava ou administrou bens ou valores alheios, que sabia e sabe serem da Autora, está obrigada à prestação de contas dessa administração, tendo a Autora o direito de exigir essa prestação, com a condenação da Ré no pagamento do saldo que venha a apurar-se a favor da Autora.
13. Torna-se necessário o recurso a Juízo pois que a Ré, apesar de estar obrigada a fazer administração criteriosa e em proveito da Autora dos valores titulados por aqueles cheques, até agora apropriou-se deles em benefício pessoal, dando-lhe destino contrário aos interesses e vontade da Autora, bem sabendo que actuava conscientemente, enriquecendo ilegitimamente à custa do património da Autora.
14. Assim, a Ré está obrigada a prestar contas daqueles valores por ela levantados com os três cheques referidos (2.165,00 € + 2.500,00 € + 400,00 € = 5.065,00 €).
15. Na verdade, tendo a Ré então alegado que tais valores se destinavam a adiantar ou a pagar vencimentos e despesas, o certo é que nada lhe era devido na data em que cessou funções de tesoureira, nem posteriormente, nem de outras despesas ou valores era credora da Autora, aliás, conforme contas aprovadas em Assembleia Geral, muito menos tendo entregue documentos contabilísticos que justificassem o gasto lícito e autorizado daqueles montantes.
16. Pelo que dos valores por ela movimentados com aqueles cheques, que integrou no seu património, depois de debitados na conta bancária sacada, de que é titular a Autora, está obrigada a prestar contas.
17. Assim, a Autora, porque a Ré até hoje não prestou voluntariamente as contas, vem, nos termos dos artigos 941º e 942º do CPC provocar e requerer a sua prestação pela Ré, relativamente aos valores movimentados por aqueles três cheques e de que era mera depositária, condenando-se a Ré a pagar à Autora o saldo devedor, de 5.065,00 €, ou o que for apurado, acrescido de juros de mora, à taxa legal e anual, contados desde a data de citação até pagamento integral.
18. Aliás, esse dever de prestar contas e pagamento daquele valor existiria sempre pois que não havia, nem há razão para que a Ré se venha a locupletar à custa do património da Autora naquele montante, sendo óbvia a responsabilidade em pagar tal saldo (5.065,00 €), pois que não consta à Autora que a Ré tenha pago qualquer despesa ou valor em benefício da Autora ou pela Direcção desta tenha sido autorizado qualquer pagamento.
19. Tornou-se necessário o recurso a Juízo porquanto a Ré, tendo-se incompatibilizado com os órgãos sociais da Autora, legítima e legalmente eleitos, se recusa, sem justificação, à prestação de contas ou á restituição daqueles valores, que obviamente são imprescindíveis para a normal gestão da Autora e por estarem ultrapassados todos os prazos razoáveis concedidos á Ré.
20. Nada justifica o comportamento da Ré, que, no limite, sempre configuraria enriquecimento ilegítimo e sem causa por parte da Ré, à custa do empobrecimento da Autora, o que, subsidiariamente, também constitui a Ré na obrigação de prestar contas e de restituir à Autora os valores em causa (artigos 473º e seguintes do Código Civil ).
21. Aliás, o comportamento da Ré dever-se-á ao facto de ter deixado de ser Tesoureira da Direcção da Autora desde Dezembro de 2011 e por escolha dos seus associados, não exercendo desde então quaisquer funções na Associação Autora, e de ter, com terceiros, protagonizado um plano, que veio a revelar-se falhado, de tentativa de tomada de poder.
22. Porém, não ignorava, nem ignora que as quantias em causa não lhe pertencem, mas antes à Autora, locupletamento ilegítimo que foi acompanhado de outros comportamentos, como a retenção de instrumento musical propriedade da autora e de outros valores ou receitas, questões que já foram objecto de acções judiciais próprias para entrega e restituição coerciva, o que só veio, aliás, a concretizar-se depois de ser condenada a tal por sentença.
23. Autora e Ré são partes legítimas e têm personalidade e capacidade jurídicas.”

3.3. DO DIREITO APLICÁVEL

3.3.1. A obrigação de a aqui Ré prestar contas

A Recorrente entende que a factualidade apurada consente que se impute à Ré, a título individual e com base no disposto nos arts. 941º e 942º, do C.P.C., o “dever” de prestar contas.
Acontece que o dever, ou melhor, a obrigação de efectuar determinada prestação decorre, prima facie, sem prejuízo de outras, de um contrato ou de uma norma legal.

No caso, sem mais, a Recorrente pretende que as normas adjectivas que cita sustentam a existência, na esfera jurídica da Ré, dessa obrigação, o que, desde logo, não nos parece correcto afirmar.

Com efeito, o citado art. 941º, do CPC, apenas estipula que a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

E como refere Luís F. P. Sousa, por referência a norma idêntica do C.P.C. anterior, na obra citada na sentença recorrida (4): “Inexiste norma legal que genericamente determine quando é que alguém tem de prestar contas. A norma processual do art.1014º (5) pressupõe a existência de normas de direito substantivo que imponham a obrigação de prestar contas.”

Assim, o que resulta do citado art. 941º é apenas A regulamentação desse processo especial de “prestação de contas”, estabelecendo os critérios para se aferir a legitimidade das partes nele envolvidas e o seu “objecto” (6), carecendo, por isso, de sentido, invocar esse dispositivo como norma da qual decorre o “dever” aqui exigido pela Recorrente.

Destarte, tal como salientou a decisão recorrida, a doutrina vem entendendo que, na falta de norma especial, a obrigação de prestar contas emanará sim da obrigação geral de informação contida no citado art. 573º, do C.C., onde se estabelece que a obrigação de informação existe, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.

Além dessa fonte normativa, em conformidade com o que acima adiantámos, a obrigação de prestar contas pode também derivar de negócio jurídico ou mesmo do princípio geral da boa-fé, sendo característica uniforme de todas as fontes dessa obrigação a administração de bens alheios, tal como defende Vaz Serra (7).
A boa-fé em causa será a objectiva, i. é, enquanto norma de conduta que se encontra no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efectivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral (8).
Na versão factual da Recorrente relativa a essa “administração” e, contrariamente ao defendido pela decisão em impugnada, está em causa a gestão pela Recorrida de bens alheios, nomeadamente os da associação de cuja “Direcção” fazia parte.
Este órgão administrativo colectivo é o que se encontra previsto no citado art. 4º, dos seus estatutos, os dados como assentes em 3.1. supra, e era composto por três figuras estatutárias: o presidente, o secretário e o tesoureiro, tendo este último sido personificado pela aqui Recorrida.
Tal órgão, como resulta da norma especial do art. 172º, nº 1, do C.C., tem obrigação de apresentar contas – o balanço, a aprovar pela sua assembleia geral.
Decorre, por sua vez, da acta dada como assente em 3.2. que tal obrigação, a de apresentar balanço, abrangendo o período em que a Recorrida exerceu as funções administrativas que poderiam ser geradoras da obrigação de informar, foi cumprida, com aprovação da Recorrente, nos idos de 2012.
Além disso, haverá que salientar que, por um lado, a Autora afirma ainda agora, peremptoriamente e por diversas vezes que as quantias em causa lhe pertencem, ainda hoje e que, sic: Nem se destinaram a pagar o que quer que fosse, pois que nenhum crédito tinha a Ré sobre a Autora. (…) Autora, nem tais cheques se destinaram a pagar-lhe algo, pois que não lhe eram devidos aqueles montantes a qualquer título.
Sublinha ainda a Recorrente que a Ré agiu fora do âmbito da administração de que fazia parte, a título individual.
Ora, tal como defendeu a sentença em crise, julgamos que a obrigação imputada à Ré na administração das coisas da Autora só àquela “Direcção” pode ser, como foi, exigida, carecendo de sustento imputar àquela uma obrigação que a Recorrente insistentemente refere agora como tendo sido exercida “a título individual”, fora do âmbito daquela mas que das suas alegações resulta ter sido realizada em conjunto com o Presidente da Direcção, como resulta do alegada em 5. a 7. (9).
É que, além de mais, na versão da Autora, estamos perante um acto que não é de administração mas, tal como está descrito, de pura e simples apropriação isolada, fora do âmbito dos poderes de que estava investida a Ré, o que, de modo nenhum configura uma actuação sujeita a prestação de contas, sim, em tese, um acto ilícito de apossamento dos bens em causa que pode gerar uma singela obrigação de repôr.
Aliás, outra razão que destrói o sustento e a coerência da posição da Autora é a referida segurança na existência de tal apropriação ilícita, ou seja, esta não tem qualquer dúvida (muito menos “fundada”), sanável nos termos do art. 573º, do C.C., por via da acção prevista no art. 941º, do CPC.
Em suma, por um lado, estamos perante uma obrigação que, a existir, se extinguiu em 5.12.2012, por cumprimento, com a apresentação e aprovação das contas que envolveram a “administração” protagonizada, além de mais, pela Recorrida no período em causa, sendo por referência às mesmas que o eventual direito da Recorrente se deve definir.
Por outro lado, tal como está configurada a versão da Autora, estamos perante um acto de alegada apropriação individual, ilícita, fora do âmbito da citada administração, caso em que o eventual dever de prestar, ou seja, o de devolver as quantias em apreço, não exige, nem justifica a acção prevista no art. 941º, do CPC.
Diante do enunciado supra, carece de sustento a invocação do princípio da boa-fé para exigir da Ré a prestação de contas sobre uma disposição do património da Autora, até por que esta, como acima se afirmou, está certa de que tal movimento carece de qualquer justificação e, portanto, inexiste, à partida, qualquer deficit informativo ou interesse atendível na sua realização, devendo, por essas razões, improceder a apelação desta última.

3.3.2. Da alegada má-fé da Autora

Em recurso subordinado, a Recorrida defende que a Autora agiu com má-fé no processo, porque deduziu pedido cuja falta de fundamento ignorava ou não deveria desconhecer, porque já anteriormente pedira a restituição das quantias em causa e tal pretensão lhe fora indeferida, tendo feito um uso reprovável do presente processo.

Entende, portanto, que a sentença que absolveu a Autora do seu pedido incidental deve ser revogada.

Com vimos defendendo…

Está aqui em causa o dispositivo do actual art. 542º, do Código de Processo Civil, que dita o seguinte comando: (1) Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Com lembrava Alberto dos Reis (10), verifica-se então um caso de responsabilização agravada. A responsabilização normal está definida nos arts, 456º e 458º [responsabilidades por custas – actuais arts. 527º e ss.] (….). Se a parte se comportou por maneira a merecer a qualificação de litigante de má-fé, a sua responsabilidade sobe de ponto: além de incorrer na condenação em custas, há-de ser condenada em multa e indemnização (sem que isso importe acumulação das suas, dado que também a parte vencedora pode ser sancionada).

Numa breve resenha histórica que interessa à interpretação actual da norma, é necessário sublinhar que foi com o D.L. 390-A/95 que, como refere José Lebre de Freitas (11), se passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má-fé, com o intuito, como se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilidade das partes (12).

Como explica esse mesmo Professor: As partes têm o dever de pautar a sua actuação processual por regras de condutas conforme a boa-fé [actual art. 8º, do Código de Processo Civil]. A lide diz-se temerária, quando essas regras são violadas com culpa grave ou erro grosseiro, e dolosa, quando é intencional e consciente.

Acrescenta Alberto dos Reis (13) que, na base desta sanção meramente civil emergente de ilícito processual, que nasce, no confronto com a garantia de acesso aos tribunais plasmada hoje no art. 2º do Código de Processo Civil, está o princípio da responsabilidade subjectiva: a culpa ou dolo do litigante. Se a parte procedeu de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a sua conduta é perfeitamente lícita; por isso, em caso de insucesso, suporta unicamente o peso das custas, como risco inerente à sua actuação. Mas se procedeu de má-fé ou com culpa, se sabia que não tinha razão ou se não ponderou com prudência as pretensas razões, a sua conduta assume o aspecto de conduta ilícita. Demandando ou contestando em tais circunstâncias, pratica um facto ilícito, um facto contrário à ordem jurídica; daí a sua responsabilidade subjectiva, emergente precisamente do seu estado de consciência – do dolo ou da culpa. (…) A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos; (…) Mas ao princípio da licitude do exercício dos meios processuais a mesma ordem jurídica põe uma limitação: que o exercício seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão.

Como exemplifica este mesmo professor, podemos caracterizar a lide de acordo com a seguinte hierarquia relevante:

a) Lide cautelosa: caso em que a parte esgotou todos os meios para se assegurar de que tinha razão;
b) Lide simplesmente imprudente: quando a parte comete uma imprudência levíssima ou leve;
c) Lide temerária: quando incorreu em culpa grave ou erro grosseiro – foi para juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas que comprometiam a sua pretensão;
d) Lide dolosa: sabia que não tinha razão e, apesar disso, litigou.

No caso das als. a) e b), do nº 2, do art. 542º, tal como defendia esse mesmo Professor (14), estamos perante relação jurídica material, a lide substancial, enquanto na al. c), se está em face da lide na sua componente instrumental ou adjectiva.
Como referência fundamental desta norma sancionatória e na sua antítese, está a boa-fé processual que, desde o citado D.L. nº 329-A/95 tem previsão expressa, actualmente no art. 8º (15), do Código de Processo Civil vigente (16).
Estamos perante norma que reafirma o que decorre de outros preceitos e visa, segundo Lebre de Freitas, modernizando o processo civil, impor deveres aos intervenientes no processo, outrora concebido como mera coutada de ónus, poderes e faculdades.
Como se acentua no Ac. do Tribunal da Relação do Porto, relatado pelo Des. Ramos Lopes (17): Trata-se, como assinala Pedro Albuquerque, de uma responsabilidade com cunho próprio, que a distingue da responsabilidade civil (não interferindo uma com a outra, podendo perfeitamente coexistir), assentando em deveres de cooperação e probidade, pressupondo, por isso, violação de obrigações ou situações processuais, autónomas relativamente ao direito substantivo.
O instituto não tutela interesses ou posições privadas e particulares, antes acautelando um interesse público (18) de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má-fé processual, que transforma a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial.
Esta configuração normativa do instituto da litigância má-fé significa que a tutela ‘das posições substantivas ou materiais eventualmente atingidas pela parte responsável por má-fé processual caberá, por conseguinte, a outros institutos próprios do direito substantivo como o abuso do direito e a responsabilidade civil’. (…)
A afirmação da litigância de má-fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má-fé.
Atendendo aos fundamentos do instituto (princípio da cooperação e dever de boa fé processual), aos interesses que através dele se pretende afirmar (respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça) e finalidades que se visam alcançar (moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça) e, também, à própria natureza sancionatória do instituto (dele resulta a aplicação de multa), tem de considerar-se que o critério para aferir e apreciar a negligência que ele pressupõe não pode coincidir com o critério para apreciação da culpa na responsabilidade civil extracontratual (critério de apreciação objectiva, em que a culpa se afere pelo confronto com o tipo abstracto de pessoa normalmente diligente e prudente – o bom pai de família, nos termos do art. 487º, nº 2 do C.C.).
O que está em verdadeiramente causa é o desrespeito ou violação, pela parte, dos seus deveres de cooperação e probidade (cfr. arts. 266º e 266º-A do C.P.C.), incorrendo assim em ilícito processual.
As carências pessoais, seja por falta de conhecimentos, de perícia, de forças físicas ou intelectuais, ou de particulares inaptidões são tidas em conta na configuração normativa do ilícito processual, como resulta do art. 266º, nº 4 do C.P.C.. O dever de cooperação que impende sobre a parte e que lhe legalmente exigido tem de ter correspondência nas suas naturais faculdades para o cumprir.
Assim, o critério para apreciação da negligência (tanto mais que estamos a reportar-nos a uma sanção por ilícito processual, diverso do ilícito civil), não pode deixar de ser referenciado ao padrão de conduta exigível ao agente (à parte), ajustado à sua idade, às suas carências pessoais e particulares inaptidões.
A prática do ilícito processual pela parte (por aquela concreta pessoa que é parte no processo) só pode ser-lhe imputada a título de negligência quando não proceder com o cuidado e diligência (o padrão de conduta) a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e era capaz. Trata-se de um critério subjectivo e concreto, pois que as capacidades próprias da parte são o limite aos seus deveres de boa-fé processual e de cooperação – para lá das capacidades próprias da parte não existe dever de cooperação e logo, não poderá haver negligência (aliás, para lá das possibilidades de ‘diligenciar’ e ‘cuidar’ não pode haver dever de cooperação).
Na avaliação e graduação da culpa, para apurar de litigância de má-fé, deve atender-se à diligência do bom de família (ao padrão de conduta exigível a uma pessoa razoável, normalmente cuidadosa e prudente) mas atender ainda às circunstâncias do caso concreto.
Esta aferição da culpa em função das capacidades pessoais do agente coaduna-se coma exigência legal ‘que deflui imediatamente, como corolário, do axioma antropológico da dignidade da pessoa humana proclamado pelo art. 1º da nossa Lei Fundamental, pois ninguém porá em causa o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação injusta como litigante de má-fé’, sendo certo que a má-fé processual ‘é, actualmente, uma má-fé ética, encontrando os seus limites ou contraponto, na boa-fé ética’.
Interessa ainda assinalar que são sancionáveis pelo instituto da litigância de má-fé tanto os comportamentos da parte que fundamenta a sua pretensão num conjunto de factos inverídicos ou insusceptíveis de conduzir ao efeito pretendido como os comportamentos da parte que invoca enquadramento jurídico de todo desajustado à situação de facto que invoca.
Tem de atentar-se que a mera sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correcta interpretação da lei não implica, em regra, por si só, a litigância de má-fé por quem as sustenta, sendo certo que a manifesta falta de apoio jurídico será mais fácil de detectar em fase de recurso, pois que neste caso já uma primeira decisão judicial terá feito enquadramento jurídico demonstrador da manifesta incorrecção da posição jurídica defendida pela parte.

Em face do exposto, analisemos os factos acima expostos e a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Este concluiu que a posição da Autora não merece a qualificação pretendida pela Requerente/Ré, alertando para a circunstância de os contornos da acção nº 1114/15 não serem, no plano dos factos apurados, abonadores da posição que esta vem defendendo.
Neste ponto, é preciso anotar que este Tribunal de apelação reavalia as concretas decisões da primeira instância e não aquelas que virtualmente poderiam ter sido proferidas e, neste caso, dos factos apurados, inquestionados pela Recorrente subordinada, não transparece, por si, alguma das condutas previstas no art. 542º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Caso se analise essa alegada falta de sustento na perspectiva da sua fundamentação jurídica, também neste caso concreto não encontramos razões para considerar que a conduta da Autora seja absolutamente descabida, antes emerge de uma deficiente interpretação das normas em apreço, por vezes caricata, é certo, que nos reconduz, utilizando as palavras do Prof. Alberto dos Reis, a uma imprudência leve ou com negligência leve que, porém, não atinge o patamar subjectivo de responsabilização exigido pelo citado art. 542º, nº 1.
Por isso, inexistindo outro dado que o suporte, julgamos que não se verifica aqui a invocada má-fé instrumental, já que o recurso legítimo a esta acção judicial foi minimamente justificado e, de qualquer modo, o seu desfecho negativo não deixará de ser reflectido nas custas devidas à parte contrária.
À vista disto, não encontramos motivos para alterar a decisão recorrida, devendo improceder a apelação da Recorrida.

4. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedentes as apelações (principal e subordinada), confirmando-se, pois, a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes, na respectiva lide (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
*
*
Guimarães, 13-05-2019

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. José Flores
1º Adj. - Des. Sandra Melo
2º - Adj. - Des. Conceição Sampaio


1. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
2. Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
3. Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
4. Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, p.121
5. Actual art. 941º
6. O citado Art. 942º ainda tem menos relevo aqui, dado que se limita a regulamentar a citação dos demandados nessa acção especial…
7. Apud Luís F. Sousa, ob. cit., p. 123
8. Sobre esse conceito assim escreve Lopes do Rego, no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.5.2012, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/43062520cfe1121a80257a0d0032578b Cf. também sobre esse princípio orientador o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4.4.2017, in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/56b20489c0d2a5f080258114003a0e50?OpenDocument - É que o princípio da boa-fé revela determinadas exigências objectivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabili­dade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objectivos, indicando um certo modo de actuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé ([20]), a qual deve estar presente no âmbito das tarefas valorativas e aplicativas aos casos concretos, tendo em conta a natureza e função económico-social do contrato ([21]) a que se visa aplicar ([22]) e da relação jurídica estabelecidas entre as partes. Assim, é hoje patente o papel relevante do princípio da boa-fé, fundando, por vezes, mormente em situações de desigualdade entre as partes ([23]), designadamente quando uma delas esteja sujeita a deficit informativo, a imposição legal de deveres de informação, mas ainda de lealdade e protecção, de uma parte à outra, por forma a salvaguardar o fim contratual tido em vista por esta última – aqui o princípio da boa-fé “constitui o fundamento jurídico”, enquanto o “fundamento material” se encontra “na desigualdade ou desnível da informação” (esta de carácter técnico e complexo), em situação de “particular necessidade de protecção” de um dos interlocutores ([24]), no escopo de, na medida do possível, deixar, afinal, compensada, em termos substanciais, aquela desi­gualdade anterior.
9. Onde se assinala que os cheques foram subscritos pelos dois…
10. In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 1981, p. 255
11. E outros, em Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, acerca da norma equivalente do Código de Processo Civil anterior, - art. 456º, p. 195, nota 2.
12. Cf. o respectivo preâmbulo: (…) Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagram-se expressamente o dever de boa-fé processual, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos (…).
13. Ob. citada, p. 261
14. Cf. ob. Citada, p. 263/264
15. As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior.
16. No Código de Processo Civil de 1961, numa fórmula mais limitada, dizia o legislador, nos termos do seu art. 264º, nº 2: as partes têm, porém, o dever de, conscientemente, não formular pedidos ilegais, não articular factos contrários à verdade nem requerer diligências meramente dilatórias.
17. In https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2009:30010.A.1995.P1/
18. Neste sentido, vide também Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 4.3.2010: I- Com o instituto da litigância da má-fé pretende-se acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela própria justiça. Pretende-se, pois, assegurar a moralidade e eficácia processual na medida em que com ela se reforça o respeito pelas decisões dos tribunais. II-O regime instituído após a última reforma do direito processual civil traduz uma substancial ampliação do dever de boa-fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má-fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva como na objectiva.