Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1695/09.5TAGMR-C.G1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
IRREGULARIDADE
DESPACHO
IRRECORRIBILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O despacho que não conheceu de irregularidades da decisão instrutória invocadas pela arguida e, consequentemente, indeferiu a reparação dessa decisão, é irrecorrível, pois que se trata de um despacho de mero expediente e de ordenamento processual, atenta a matéria invocada no requerimento da arguida/recorrente, porquanto não versa sobre qualquer questão interlocutória, nem põe termo ao processo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

Na Comarca de Braga, Guimarães, Instância Central, 2ª Secção de Instrução Criminal – J1, foi, em 04-07-2016, proferido o seguinte despacho (transcrição):

“Do requerimento da arguida G. M. a fls. 2193 e ss em que suscita a irregularidade(s) da decisão instrutória:

A decisão instrutória proferida não padece de qualquer irregularidade porque fundamentada, de facto e de direito (ainda que não ao encontro das expectativas da arguida requerente), com apreciação das questões suscitadas, sendo que o dever de fundamentação das decisões judiciais não exige nem se esgota com apreciação de cada questão suscitada pelos arguidos, antes uma apreciação global das mesmas.

Assim e sem necessidade de maiores considerandos, indefere-se a requerida reparação da decisão instrutória.

Notifique.”

*

A arguida G. M., a fls.2208 a 2232 dos autos principais (fls.84 a 103 deste Apenso), interpõe recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto da decisão instrutória proferida e do despacho posterior que indeferiu a arguição de irregularidade, uma vez que a decisão instrutória não se pronuncia sobre questões colocadas no requerimento de abertura da instrução.

2. O presente recurso é admissível porquanto, no caso sub judice, se verifica uma verdadeira e completa ausência de apreciação judicial da decisão do Ministério Público (acusação).

3. A decisão instrutória na parte em que não se pronunciou sobre aquelas questões, afronta directamente um dos princípios mais estruturantes do processo penal: o princípio da fundamentação das decisões dos tribunais, prevista no artº 205º nº1 da Constituição que estipula que as decisões judiciais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

4. Aliás, a interpretação que extraída do disposto no artº 310º nº1 do Código de Processo Penal, no sentido de que é irrecorrível a decisão instrutória de pronúncia que cooneste a acusação em termos factuais na medida que não decida ou seja omissa quanto a questões levantadas em sede de requerimento de abertura de instrução é inconstitucional por violação do disposto nos artºs 32º nº1 e 9º e 205º nº1 da Constituição, devendo aquela norma ser desaplicada, à luz do preceituado no disposto no artº 204º da Constituição.

5. O despacho posterior à decisão instrutória que indeferiu a reparação da decisão instrutória, é também recorrível por ter a aqui recorrente arguido irregularidade processual por violação do preceituado in artº 97º nº 5 do Código de Processo Penal.

6. Nenhuma norma do Código de Processo Penal afasta a recorribilidade das decisões posteriores à decisão instrutória que cooneste factualmente a acusação, designadamente o despacho posterior à decisão de pronúncia que indefira a irregularidade decorrente da omissão de pronúncia da decisão instrutória quanto a questões trazidas à fase da instrução, através do requerimento de abertura da instrução.

7. Assim, tem que funcionar o princípio geral do artº 399º do Código de Processo Penal.

8. Por outro lado, a recorribilidade do despacho posterior à decisão instrutória de pronúncia que indefere a arguição de irregularidade por omissão de pronúncia é recorrível, por imperativo constitucional.

9. De facto, a lei ordinária, nos artºs 97º nº5 e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal prevê que as decisões judiciais devem ser fundamentadas de facto e de direito, sendo que não faz qualquer destrinça entre as decisões finais ou interlocutórias, sendo que tais normas surgem como corolário do princípio da fundamentação das decisões dos tribunais, prevista no artº 205º nº1 da Constituição que estipula que as decisões judiciais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

10. E a forma prevista na lei é a de que estas sejam fundamentadas de facto e de direito quer (no caso da decisão instrutória) quanto à avaliação dos indícios, quer quanto à avaliação de eventuais nulidades ou outras questões de que lhe incumba conhecer (artº 308º nº3 do Código de Processo Penal).

11. Pelo exposto, é inconstitucional a interpretação que se extraia das disposições conjugadas dos artºs 97º nº5, 123º nº1, 308º nº1 e 3, 310º nº1 e 399º do Código de Processo Penal, no sentido de que é irrecorrível a decisão posterior à decisão instrutória de pronúncia do arguido por factos que coonestem os constantes da acusação, que indefira a arguição de irregularidade decorrente de omissão de pronúncia ou falta de fundamentação da decisão instrutória no que toca ao conhecimento de questões suscitadas no requerimento de instrução, por violação do disposto nos artºs 20º nº1, 32º nº1 e 205 nº1 da Constituição.

12. E enunciem-se singelamente as questões enunciadas no requerimento de abertura de instrução que foram ignoradas pela decisão instrutória.

13. A primeira versava sobre a qualificação dos crimes em questão (artºs 8º a 30 do RAI), pois que tratando-se de crimes essencialmente dolosos e não se encontrando previstos tais tipos de crime na sua forma negligente, o dolo deveria estender-se a todos os elementos do tipo, designadamente aos elementos que agravam ou qualificam a conduta.

14. Nesta sede, seria necessário ainda que que o arguido representasse a quisesse realizar o tipo de crime, sendo que, para descrever o dolo, não bastaria alegar-se, utilizando-se a por demais glosada fórmula de que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo da ilicitude da sua conduta, como se fazia na acusação pública.

15. De facto, essa expressão, quando desacompanhada de outras que no caso se imponham consoante o tipo de crime, dificilmente constituiria base factual bastante (cfr. a abundante jurisprudência e doutrina referida no RAI).

16. Ora, a mesma exigência relativamente ao dolo deveria ser colocada relativamente aos elementos qualificativos e agravativos do tipo de crime.

17. A acusação não fez descrever descrever o dolo da qualificação da burla, ou seja que a arguida previu e quis causar prejuízo ou ter benefício de valor elevado, ou melhor dito, que a arguida previu e quis prejudicar o lesado ou obter benefício para si de valor superior a 5100 € (102€x50) – artº 202º al. a) do Código Penal.

18. A acusação não descreveu igualmente o dolo relativo à agravação do crime de falsificação, ou seja, que a arguida sabia que os documentos em causa eram autênticos e que, apesar disso, os quis falsificar.

19. A segunda questão versava sobre saber-se se a receita médica era (ou não) um documento autêntico (artºs 31º a 39º do RAI).

20. No Requerimento de Abertura de Instrução explicou-se detalhadamente que da acusação não constavam narrados factos que permitissem caracterizar qualquer um dos documentos como incorporando qualquer das características mencionadas nas alíneas do nº 1, do artigo 256º do Código Penal.

21. Depois, a acusação não afirmou qual a autoridade ou oficial público que tinha exarado qualquer dos documentos aí referidos e que a receita médica não corporiza qualquer documento autêntico, pelo que também por esta ordem de razões, a arguida não podia ser pronunciada por tal crime.

22. A terceira questão levantada no requerimento de abertura de instrução tratava também do crime de falsificação de documento (artºs 40º a 45º do RAI) pois que se entendia que a arguida não tinha cometido o crime de falsificação de documento, dada a circunstância de não fez constar qualquer facto falso das receitas médicas ou fez uso de documento falso, facultou ou deteve documento falso, nem tais factos surgem indiciados da prova produzida em inquérito ou dos factos carreados para a acusação.

23. Na verdade, o crime de uso de documento falsificado implicava, necessariamente, que o documento tivesse sido falsificado por terceiro e não pelo próprio e não pelo próprio agente.

24. Com efeito, dos factos constantes da acusação não resultava que o documento tenha sido forjado por terceiro, mas, alegadamente, pela própria arguida, não se verificando, portanto, o elemento objectivo do tipo.

25. É que não se referia em lado algum da acusação que tivesse sido a arguida a entregar as receitas na Farmácia Ronfe ou em qualquer outra ou ainda a entregar tais receitas aos co-arguidos –pessoas, aliás, que não são das suas relações.

26. Logo, não se mencionava na acusação qualquer facto de onde se concluísse que era imputável à arguida o uso efectivo de documento falsificado.

27. A quarta questão (erradamente referida no RAI sob ponto 5), examinava crítica e exaustivamente a acusação no que diz respeito à falta de indiciação suficiente, ao uso de prova proibida e à matéria de falsificação grosseira (artºs 46º a 98º do RAI que aqui se dão por reproduzidos).

28. A aliás douta decisão instrutória pronunciou a arguida pelos factos constantes da acusação pública, omitindo, no entanto, fundamentação suficiente e não tendo conhecido das questões levantadas (ou pelo menos da sua maioria) no requerimento de abertura de instrução, assim dando origem a violação do disposto no artº 97º nº5 do Código de Processo Penal.

29. Efectivamente, nada é ali referido quanto aos "não factos", ou quanto à ampla factualidade colocada em crise no RAI in artrºs 46º a 80º, sobre a utilização de prova ilícita (cfr. artºs 64º a 73º), ou sobre a matéria da hipótese do falso grosseiro (cfr. artºs 81º a 89º).

30. Por mais que se leia e releia a decisão instrutória, não se consegue extrair da mesma que aquelas questões tenham sido alvo de “apreciação das questões suscitadas”, ou sequer de “apreciação global”, mesmo que efectuada por forma tímida e distante, como se alega na decisão que recaiu sobre a arguição de irregularidade da decisão instrutória.

31. Diga-se também que o manto da irrecorribilidade não pode servir para validar decisões que omitem pronúncia sobre questões que se ligam a direitos básicos e essenciais dos arguidos, fundamentando-se aquelas decisões quase e apenas em transcrições integrais de factos constantes da acusação e algumas considerações de direito genéricas e abstractas. Como é o caso…

32. O próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TDH), partindo do artº 6º, §1 da CEDH, considera que o direito a um processo equitativo tem essencialmente subjacente dois pressupostos: o primeiro é que a motivação é essencial para a qualidade e transparência da justiça, levando o juiz a controlar os fundamentos da sua decisão, ao mesmo tempo que é um fator contra o arbítrio; o segundo, é que as partes tenham conhecimento das razões que levaram à decisão, permitindo aqueles um controlo dos fundamentos desta última e eventualmente, a sua impugnação mediante recurso.

33. O que ocorre nos presentes autos é o total afastamento, a total não consideração pura e simples das questões candentes e basilares levantadas em sede de instrução, com uma repetição de comportamento omissivo e não fundamentado no despacho último.

34. Assim, erradamente se decidiu no despacho recorrido pela inexistência de irregularidade da decisão instrutória, não podendo tal despacho manter-se.

35. A decisão instrutória e o despacho subsequente violaram ou fizeram errada interpretação do disposto nas normas referidas na motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão que indeferiu a arguição das irregularidades da decisão instrutória e a mesma, determinando-se que seja proferida nova decisão fundamentada, por só assim se fazer Justiça.

*

Em 10-10-2016, a fls.2220 dos autos principais (fls.127 deste Apenso) foi proferido despacho com o seguinte teor (transcrição):

“Interposição de recurso a fls.2208

Considerando que o recurso interposto pela recorrente diz respeito a decisão instrutória de pronúncia por factos constantes da acusação pública e, como tal irrecorrível, (art.310º, nº1, do CPP), e que os fundamentos invocados não se subsumem a nulidades (art.310º, nº3, do CPP), ao abrigo do disposto no art.310º do CPP, não se admite o recurso interposto (cfr.art. 399º e 400º, nº1, al.g), do CPP) quanto à decisão instrutória, sendo admissível apenas e tão só quanto ao despacho de fls.2203, sendo este em separado e com efeito devolutivo (art.406º 2 e 408 a contrario do CPP).

Notifique, sendo o MP e restantes intervenientes processuais nos termos em para os efeitos do disposto no art.411º, nº6 e 413º nº1, ambos do CPP.

(…)”

*

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto nos seguintes termos:

“Não se conformando com o douto despacho de fls. 2203, de 04.07.2016, em que o M.mº JIC considerou inexistir qualquer irregularidade da decisão instrutória, conforme suscitado e invocado pela arguida G. M. após notificação de tal decisão (cfr. fls. 2193), a mesma dele veio interpor o presente recurso.

Aceite que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação que delimitam o objecto do recurso (cfr. artºs 119, nº 1, 123º, nº 2 e al. a), b) e c) do nº 2, do artº 410º, do CPP, Ac. de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado em 28.12..95 e, entre outros, Ac. do STJ de 25.06.98, BMJ 478, pág. 242 e Ac. STJ de 03.02.99, BMJ 484, pág. 271), a questão a decidir consiste em saber se a decisão instrutória padece de alguma irregularidade, visto que, o M.mº JIC não conheceu de todas as questões levantadas pela recorrente no RAI que apresentou, assim violando o disposto no artº 97º, nº 5, do CPP.

Com efeito, nas extensas conclusões que formula, a recorrente refere, essencialmente, que suscitou ao tribunal, além do mais, o conhecimento de quatro questões sobre as quais o M. JIC não se pronunciou.

A primeira questão dizia respeito à qualificação dos crimes em causa; a segunda consistia em saber se uma receita médica era ou não um documento autêntico; a terceira tratava também sobre o crime de falsificação, pois que a recorrente entendia que não fez constar qualquer facto falso nas receitas médicas, nem fez uso de tal documento e a quarta questão dizia respeito ao uso de prova proibida e à matéria de falsificação grosseira.

II

Questão prévia:

Da rejeição do recurso:

Comecemos, antes de mais, por tentar perceber o caminho trilhado pela recorrente após a acusação pública, onde lhe é imputada a prática, em co-autoria, de um crime de burla qualificada e, em concurso efectivo, de um crime de falsificação, p. e p., respectivamente, pelos artºs 217º, nº 1, 218º, nº 1, por referência aos artigos 202º, al. a), 255º, al. a), 256º, nº 1, als. d), e) e f) e nº 3, 26º, 30º, nº 1 e 14º, nº 1, todos do C. Penal.

Inconformada com tal acusação a arguida G. M. veio requerer a abertura da instrução, nos termos do artº 287º, nº 1, al. a), do CPP.

Após prolação do respectivo despacho de abertura da instrução, foram efectuados os atos de instrução tidos por necessárias à realização das finalidades referidas no nº 1 doa rtº 286º do CPP.

Procedeu-se ao respectivo debate instrutório, nos termos do artº 297º e seg. do CPP.

Proferida decisão instrutória, o M.mº JIC pronunciou a arguida G. M. (e os demais arguidos) pelos factos e disposições legais constantes da acusação pública, cujo teor deu por reproduzido (fls. 2138 a 2182).

O ilustre mandatário da arguida foi notificado dessa decisão por carta registada de 13.06.2016 e esta por carta com prova de depósito de 16.06.2016.

Por requerimento que entrou na secretaria deste tribunal em 21.06.2016 (fls. 2193 a 2197), a arguida veio arguir a irregularidade da decisão instrutória, nos termos conjugados dos artºs 97º, nº 5 e 123º, nº 1, do CPP.

Conhecendo tal requerimento, o M.mº JIC, na esteira do promovido pelo Ministério Público, proferiu em 04.07.2016 o seguinte despacho:

“A decisão instrutória proferida não padece de qualquer irregularidade porque fundamentada de facto e de direito (ainda que não de encontro das expectativas da arguida requerente), com apreciação das questões suscitadas, sendo que o dever de fundamentação das decisões judiciais não exige nem se esgota com a apreciação de cada questão suscitada pelos arguidos, antes uma apreciação global das mesmas.

Assim e sem necessidade de maiores considerandos, indefere-se a requerida reparação da decisão instrutória.

Notifique”.

Em 29.09.2016, a arguida veio apresentar o presente recurso, referindo, além do mais, no respectivo requerimento:

“Nos autos supra referenciados, vem a arguida G. M.,

Notificada da decisão instrutória e do despacho datado de 04 de Julho transacto que indeferiu a arguição de irregularidade por falta de fundamentação da mesma,

Deles (sublinhado nosso) interpor recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.

O recurso é admissível (artº 399º e 310º e 400º a contrário sensu do Código de Processo Penal), a recorrente tem legitimidade e está em tempo (cfr. alínea b) do nº 1 do artº 401º e nº 1 do artº 411º do referido diploma legal).

O recurso deve ser admitido a subir imediatamente (artº 407º nº 1 do Código de Processo Penal), nos próprios autos e com efeito suspensivo…”

Parece bem evidente que a arguida, quer quanto à forma, quer quanto ao conteúdo do seu recurso, o que verdadeiramente pretende é questionar no Tribunal da Relação uma decisão instrutória de pronúncia que a lei lhe veda directamente.

Ou seja, como nos termos do disposto artº 310º nº 1 do CPP a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artº 283º ou do nº 4 do artº 285º, como é o caso dos autos, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidade e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento, a arguida procurou por outra via fazê-lo, “inventando” irregularidades da decisão instrutória e suscitando ao JIC que as conhecesse, por forma a poder recorrer do eventual despacho de indeferimento, como aconteceu.

Mais. A arguida não só recorre desse despacho como, contra legem, recorre da própria decisão instrutória, ou melhor (com é bem evidenciado na respectiva motivação), só põe em causa a decisão instrutória.

Tem mesmo a insensatez de, também ao arrepio da lei processual atinente, caso o recurso fosse possível (o que não é o caso como veremos), requerer que o mesmo fosse admitido a subir nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Ora, do disposto nos artºs 309º e 310º, nº 1 e 3, do CPP, resulta que perante uma decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artº 283º ou do nº 4 do artº 285º, como é o caso dos autos, a mesma é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidade e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento, salvo quando for invocada e arguida a sua nulidade na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para a abertura da instrução.

Não é o caso dos autos, pelo que a decisão instrutória é irrecorrível, devendo nessa parte, ser rejeitado o recurso.

Resta, portanto, o recurso do despacho do M. mº JIC proferido em 04.07.2016, que não conheceu das irregularidades da decisão instrutória invocadas pela arguida e, consequentemente, indeferiu a reparação da decisão instrutória.

Este despacho, quanto a nós, também é irrecorrível, pelo que o recurso também deve ser rejeitado.

Claro que, nos termos do disposto no artº 399º do CPP, constitui princípio geral de processo penal a recorribilidade de todas as decisões, tendo a irrecorribilidade de qualquer decisão de decorrer de modo expresso e inequívoco da lei, o que quer dizer que, em caso de dúvida sobre o sentido da disposição de exceção ou de qualquer outra disposição atinente ao recurso, vale o principio geral da recorribilidade. Por isso, perante disposição legal susceptível de leituras distintas sobre a admissibilidade do recurso, a dúvida terá de resolver-se a favor da admissibilidade de recurso.

Porém, no caso em apreço, a irrecorribilidade da decisão instrutória é expressa, nos termos do artº 310º nºs 1 e 3 do CPP, preceito que seria violado caso fosse admissível o recurso do despacho em crise, pois que seria deixar entrar pela janela o que não se permitiu que entrasse pela porta.

O despacho em causa, que acima se transcreveu, foi proferido na sequência de um requerimento da arguida a invocar a existência de irregularidades da decisão instrutória, nos termos dos artºs 97º nº 5 e 123º nº 1 do CPP.

Como se viu, a decisão instrutória de pronúncia é irrecorrível, pois que não foi invocada, por inexistente, a sua nulidade nos termos do artº 309º, nº 1, do CPP.

Assim sendo, ainda que ferida de qualquer irregularidade, o que não é o caso, como adiante veremos, a decisão instrutória continuaria irrecorrível, impondo-se a remessa dos autos para julgamento, como aconteceu.

Aliás, sendo aquela decisão irrecorrível, por maioria de razão o despacho em crise que não conheceu das irregularidades da decisão instrutória invocadas pela arguida e, consequentemente, indeferiu a reparação da decisão instrutória, é irrecorrível, pois que trata-se de um despacho de mero expediente e de ordenamento processual, atenta a matéria invocada no requerimento da arguida/recorrente, porquanto não versa sobre qualquer questão interlocutória, nem põe termo ao processo (artºs 97º, nº 1, al. b) e 400, nº 1, al. a), do CPP).

Impõe, pois, que também quanto ao alegado despacho se rejeite o recurso.

III

Do mérito do recurso:

Na eventualidade de admissão do recurso, o que não se vislumbra, sempre se dirá que à recorrente não assiste qualquer razão, pois que a decisão instrutória não está ferida de qualquer nulidade, muito menos da alegada irregularidade, traduzida no não conhecimento de todas as questões suscitadas pela mesma no RAI que apresentou.

Alega a recorrente que suscitou ao tribunal, além do mais, o conhecimento de quatro questões sobre as quais o M. JIC não se pronunciou, o que fez nos termos do disposto nos artºs 97º nº 5 e 123º nº 1 do CPP:

A primeira questão dizia respeito à qualificação dos crimes em causa; a segunda consistia em saber se uma receita médica era ou não um documento autêntico; a terceira tratava também sobre o crime de falsificação, pois que a recorrente entendia que não fez constar qualquer facto falso nas receitas médicas, nem fez uso de tal documento e a quarta questão dizia respeito ao uso de prova proibida e à matéria de falsificação grosseira.

Entende, assim, a recorrente que o M.mº ao proferir a decisão instrutória não a fundamentou, pois que não especificou os motivos de facto e de direito da sua decisão.

Tal não corresponde à verdade.

Como resulta da simples leitura da decisão instrutória de pronúncia alegadamente irregular, o M.JIC fundamentou-a de facto e de direito, sem deixar de analisar os elementos objectivos e subjectivos típicos dos crimes em apreço, face aos factos que considerou mostrarem-se indiciados.

Claro que o fez por forma que colide com as expectativas da recorrente, mas por isso não passou a ser irregular, antes contrária aos interesses da mesma.

Na verdade, o M.mº JIC analisou as provas e pronunciou-se quanto aos factos que considerou indiciados, descrevendo-os, tomando posição quanto à sua qualificação jurídica de forma até exaustiva, analisando de forma objectiva e clara os elementos objectivos e subjectivos típicos dos crimes em causa (burla e falsificação), incluindo a análise do conceito de documento do receituário utilizado pela arguida, que considerou como documento autêntico, considerando indiciados os referidos ilícitos em concurso real (que também ponderou e analisou juridicamente de forma pormenorizada).

Quanto à quarta questão (uso de prova proibida e à matéria de falsificação grosseira), naturalmente que o M.mº JIC ao considerar a prova que atendeu e referenciou naturalmente o fez por entender ser a mesma perfeitamente legal, sendo que a questão da falsificação grosseira, face à qualificação operada, é irrelevante.

Termos em que se conclui que não assiste razão à recorrente, devendo ser rejeitado o recurso, ou, em caso de conhecimento, ser negado provimento ao mesmo.”

*

No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da rejeição do recurso.

*

Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, a recorrente respondeu ao Parecer, nos termos que constam a fls.153 a 156 verso destes autos de recurso, aqui dadas por integralmente reproduzidas para todos os legais efeitos, concluindo que “deve o recurso ser admitido e julgado totalmente procedente”.

*

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

*

Cumpre decidir

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice a questão suscitada pela recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se deve o despacho em que se indeferiu “a requerida reparação da decisão instrutória” ser revogado.

*

Apreciando

A arguida/recorrente interpôs recurso da decisão instrutória proferida e do despacho posterior que indeferiu a arguição de irregularidade.

Compulsados os autos, dos mesmos resulta o seguinte:

- Por decisão instrutória de 1 de Junho de 2016, foi a arguida, ora recorrente, pronunciada pelos factos e disposições legais constantes da acusação pública (cfr. fls.2138 a 2184 dos autos principais (fls.35 a 81 destes autos de recurso)).

- Segundo a acusação, é imputada à arguida/recorrente, a prática, em co-autoria, de um crime de burla qualificada, em concurso efetivo com um crime de falsificação de documento e uso de documento falsificado agravado, p. e p., respetivamente, nos artigos 217º, nº1, 218º, nº1, por referência ao artigo 202º, al.a, artigo 255º, nº, al.a), 256º, nº1, al.d), e) e f) e nº3, 26º, 30º, nº1 e 14, nº1, todos do Código Penal (cfr. fls.1723 a 1741 dos autos principais (fls.3 a 21 destes autos de recurso)).

- Apresentado requerimento pela arguida onde suscitava a irregularidade da decisão instrutória – cfr. fls.2193 e ss. dos autos principais (fls. 115 a 123 destes autos de recurso) - foi tal requerimento indeferido por despacho judicial datado de 4 de Julho de 2016 – cfr. fls.2203 dos autos principais (fls.82 destes autos de recurso).

- Deste despacho e do despacho de pronúncia recorreu a arguida (cfr.fls.2208 a 2219 dos autos principais (fls. 84 a 96 destes autos de recurso)), tendo sido proferido, em 10-10-2016, a fls.2220 dos autos principais (fls.127 deste Apenso) despacho onde se decidiu:

“Interposição de recurso a fls.2208

Considerando que o recurso interposto pela recorrente diz respeito a decisão instrutória de pronúncia por factos constantes da acusação pública e, como tal irrecorrível, (art.310º, nº1, do CPP), e que os fundamentos invocados não se subsumem a nulidades (art.310º, nº3, do CPP), ao abrigo do disposto no art.310º do CPP, não se admite o recurso interposto (cfr.art. 399º e 400º, nº1, al.g), do CPP) quanto à decisão instrutória, sendo admissível apenas e tão só quanto ao despacho de fls.2203, sendo este em separado e com efeito devolutivo (art.406º 2 e 408 a contrario do CPP).

Notifique, sendo o MP e restantes intervenientes processuais nos termos em para os efeitos do disposto no art.411º, nº6 e 413º nº1, ambos do CPP.”

- Deste despacho foi a recorrente notificada por via postal expedida em 17 de Outubro de 2016 (cfr.fls.2 destes autos de recurso).

- O Ministério Público respondeu ao recurso defendendo a não recorribilidade do despacho e a consequente não admissão daquele. Dizendo ainda que a arguida recorre agora, de forma indireta, do próprio despacho de pronúncia. De qualquer modo, a ser admitido e apreciado, o mesmo deve ser julgado improcedente.

-Nesta instância, o Ex.mo Sr. PGA emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser rejeitado por inadmissibilidade.

Ora, dispõe o art. 310º n.º1 do CPP:

1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.

É, pois, agora indiscutível a total irrecorribilidade da decisão instrutória que determinar a sujeição do arguido a julgamento pelos atos comportamentais imputados na acusação do Ministério Público.

A solução normativa que se retira do texto do normativo supra citado é a de que o âmbito de irrecorribilidade abrange, quer a decisão de questões prévias ou incidentais no despacho de pronúncia, quer a decisão de questões prévias ou incidentais em despacho prévio e autónomo ao de pronúncia, quer posteriores a este despacho e com o mesmo conexas.

A não se entender assim punha-se em causa a celeridade processual que o legislador visou em sede instrutória quando, como é o caso, a decisão instrutória pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.

A decisão de uma irregularidade em instrução, quer na decisão instrutória, quer em decisão prévia à decisão instrutória, quer em decisão posterior a esta, não forma caso julgado se essa questão contender com a afirmação da responsabilidade penal, não só porque a decisão dessa questão é irrecorrível e como tal não pode assumir carácter definitivo nem ficar ao abrigo do caso julgado, sob pena de flagrante violação das garantias de defesa, mas principalmente porque a decisão – definitiva – cabe sempre ao juiz ou tribunal do julgamento e, em última instância, ao tribunal de recurso que vai julgar a decisão final. Esta é a solução que se retira de uma interpretação e aplicação dos preceitos legais perspetivada a partir da Constituição e levada a cabo de acordo com esta.

“É que, também aqui – e não se olvide que a norma sindicada (artigo 310.º, n.º 1, do CPP) é uma norma criminal adjetiva cuja avaliação constitucional deve ser feita, sobretudo, em função dos parâmetros que integram a Constituição Processual Criminal, que tem o seu assento fundamental no artigo 32.º da Constituição – não está em causa a impossibilidade de o arguido ver reapreciada, em sede de recurso, a decisão judicial de dada questão prévia suscitada nos autos. O que está apenas em causa é, no pressuposto de que o arguido pode renová-la em fase de julgamento e o tribunal de julgamento reapreciá-la (artigos 310.º, n.º 2, e 311.º, n.º 1, do CPP) – que foi o adotado pelo tribunal recorrido –, a compressão do correspondente direito em termos de admitir o seu exercício apenas numa fase ulterior do processado, em face da decisão que a esse propósito o juiz de julgamento venha a proferir, «de modo a não paralisar ou introduzir bloqueamentos relevantes no desenrolar de um processo (criminal) que visa assegurar a proteção de direitos fundamentais ofendidos com a prática do crime» (…)” (cfr.Acórdão do Tribunal Constitucional nº437/2013).

Decidir em desconformidade com o acima referido seria, afinal, permitir, por via indireta, a recorribilidade de uma decisão cuja irrecorribilidade resulta claramente da lei, em desrespeito pelos textos legal e constitucional.

*

Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- rejeitar o recurso interposto pela arguida G. M., por inadmissibilidade legal.

- Fixar em 3 UC a taxa de justiça devida pela recorrente.

*

Elaborado e revisto pela primeira signatária

Guimarães, 6 de Março de 2017

-------------------------------

Laura Goulart Maurício

-------------------------------

Alda Tomé Casimiro