Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
64/19.3T8MTR.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: INSTRUÇÃO DA CAUSA
FACTOS COMPLEMENTARES
BALDIOS
COMPARTES
ASSEMBLEIA DE COMPARTES
DECISÃO DESFAVORÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Apesar de atualmente a qualidade de comparte de determinado baldio poder ser concedida a pessoas que não residem na respetiva comunidade (v. nº 5 do art. 7º da Lei nº 75/2017, de 17 de agosto), só deve ser concedida a quem tem relevantes ligações a essa comunidade, sob pena de se banalizar a atribuição do mencionado estatuto, com os inerentes prejuízos para quem é já comparte, nomeadamente, a diminuição dos recursos de que poderá dispor.
Decisão Texto Integral:
Relatório:

S. A., titular do número de identificação fiscal ………, e P. J., titular do número de identificação fiscal ………, residentes em Rua … e Rua …, Montalegre, vêm intentar a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra COMUNIDADE LOCAL DOS BALDIOS DE X, representada pelo Conselho Diretivo, com sede em Rua …, pedindo a final que a Ré reconheça aos Autores a qualidade e atribuição de compartes daquela Localidade.
Regularmente citada, veio a Ré apresentar contestação.
Os Autores foram convidados pelo Tribunal a apresentar uma nova petição inicial, face às insuficiências apontadas, tendo apresentado em conformidade articulado aperfeiçoado em 24-10-2019.
Para tanto, em síntese, invocaram como causa de pedir o seguinte: i) os AA. têm terrenos na localidade da X, sendo o A. oriundo daquele local onde herdou de seu pai e adquiriu o quinhão hereditário dos seus irmãos; ii) terrenos estes que os AA. destinam a exploração agrícola; iii) existem fortes ligações sociais e de origem à comunidade local da X; iv) os antepassados do A. marido eram daquela localidade e tinham lá os seus bens e haveres que se transmitiram de geração em geração, cultivando os terrenos rústicos os seus produtos que colhiam para seu sustento, colocando o gado nos pastos e baldios de X; v) assim como o fazem agora os AA., convivendo com as pessoas daquela localidade, onde têm amigos, vão a festividades que ali ocorrem , ajudando na limpeza dos matos, regos de água, e onde têm uma exploração agrícola e pastoril em X; vi) os AA. são detentores da marca de exploração pecuária EA71U; vii) apesar do pedido dos AA., a Ré indeferiu o pedido de reconhecimento da qualidade de compartes do Baldio da X; viii) não restando, senão aos AA. recorrer a esta via judicial para que lhes seja reconhecida a qualidade de compartes também da localidade de X, freguesia de ....
A Ré, notificada da petição aperfeiçoada, veio apresentar contestação em 24-10-2019, com os fundamentos aí vertidos, pugnando pela improcedência da ação, não reconhecendo aos Autores a qualidade de compartes, por considerar não se verificarem os pressupostos para o efeito.
A demanda prosseguiu os seus trâmites, tendo sido proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
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Realizou-se o julgamento na sequência do qual foi proferida sentença que julgou a ação nos seguintes termos:

“a) Julgar a ação interposta pelos Autores parcialmente procedente e, em consequência, reconhecer ao Autor P. J. o direito à atribuição da qualidade de comparte da Comunidade Local dos Baldios da X, condenando-se a Ré a reconhecer essa qualidade;
b) Absolver a Ré dos demais pedidos contra si deduzidos pelos Autores;
c) Condenar as partes no pagamento das custas da ação, na proporção do respetivo decaimento.”.
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Inconformado veio o R. recorrer formulando as seguintes conclusões:

a) Na PI não foram alegados factos concretos, mas apenas generalidades que se consubstanciam em dois elementos alegados: que os AA. têm prédios na localidade, não se concretizando que prédios são, nem como foram adquiridos e que têm fortes ligações de origem a X, também não se concretizando que ligações são essas. o que não consta da PI, não pode vir a ser sujeito a prova nem valoração, o que aconteceu na sentença recorrida. Não têm que ser articulados factos instrumentais, mas têm que ser os essenciais. Tem de alegar os factos que servem de causa de pedir como dispõe o art. 562 nº 1 al d) e art. 5º nº 1 e 2 do CPC e o Juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto pelo art° 412° do C.P.C.. Estes normativos resultaram violados no caso.
b) Assim, a final foram dados como provados factos que não constam da PI ou da PI corrigida (lembre-se que nesta segunda como dito acima, os pontos 17 a 47, foram dados como não escritos), e como tal extravasam o campo de que o Tribunal pode conhecer. Com efeito os seguintes pontos dos factos dados como provados não se encontram alegados, a saber os pontos 11, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22.
c) Estes factos, não constam das alegações, logo não podem ser tomados em consideração na decisão, razão pela qual deverão estes pontos ser eliminados, pois que não sendo factos alegados, não estão sujeito a prova e logo, não podem ser considerados provados ou não provados, mas sim inexistentes ao processo.
d) A localidade de X, é uma das 15 aldeias da freguesia de ..., mas única que administra por si e de forma autónoma o seu baldio, nunca se confundindo na história com as demais aldeias. E isto porque apresenta uma peculiaridade histórica que a torna única, a começar desde no facto de ter sido o sítio provável do Nascimento do Navegador seiscentista, J. R., descobridor da costa oeste da América daqui resultando uma imensidão de tradições e costumes muito próprio e únicos. E antes disso, já constituía um aforamento, outorgado por D. Dinis aos povoadores de X em 13 de dezembro de 1289 (http://www.jf-....pt/X.php?pg=160).
e) E como resultou não provado, os AA. nunca participaram em qualquer atividade da aldeia.
- Não vão à festa anual que se celebra a 8 de setembro em honra da Srª da Misericórdia, nem contribuíram nunca para a realização da mesma,
- Nunca foram ou ajudaram ou de algum modo participaram na celebração anual que em maio se realiza em honra de N. S. de Fátima.
- Nunca participaram na limpeza anual das levadas de água e sistema de rega
- Nunca participaram na tradição da subida da vezeira em que os participantes em festa organizam uma caminhada e uma merenda
- Tendo-se celebrado anualmente uma festa dedicada a ...ho, igualmente nunca participaram ou ali compareceram
- Em tempos em que o moinho da aldeia era usado nunca participaram em arranjos ou sequer utilizavam para moagem
- Fazendo-se regularmente a limpeza de caminhos em que a aldeia se junta cada um levando tratores ou máquinas de que disponha, nunca os AA. por ali foram vistos, a última das quais foi há 2 anos
- Não vão nem nunca foram ali a qualquer ato religioso
- Nunca participaram em qualquer reunião do baldio, ou discussão informal de qualquer assunto ou preocupação comunitária,
- Nunca pastorearam os montes ou sequer por ali foram vistos,
f) Nunca se consideraram compartes com tudo o que juridicamente isso implica, nem a aldeia de X os considerou como tal e que não têm qualquer tipo de direito de uso dos bens comunitários, sejam eles caminhos, cortes de mato, lenhas, extração de inertes, pastoreio, etc. Nunca exerceram por si ou por terceiros quaisquer destes atos, nem nunca fizeram saber que os detinham, ainda que os não usassem. Todos estes elementos resultam dos factos não provados.
g) Esta explanação é relevante para a apreciação de outra questão de direito que se prende com o facto de analisar a norma aplicável ao caso, que é o art. 7º nº 2 e 5 da Lei dos baldios atual. Note-se que esta norma resultou da última revisão da Lei dos Baldios, e que vem permitir a aquisição da qualidade de compartes a outras pessoas que cumpram certos critérios, nomeadamente que ali detenham uma atividade agrícola.
h) Claro que importa saber o que é uma atividade agrícola, não sendo suficiente para este critério ter ali propriedades nomeadamente lameiros ou toucas de mato. Implicam ter ali o centro de uma exploração, o que não é o caso (como veremos mais adiante). Nestas situações é permitido sob solicitação do interessado, a Assembleia de Compartes admitir este não comparte de origem a essa qualidade, mas este direito configura-se na lei como um direito potestativo, i. é, político, de decisão que cabe exclusivamente á Assembleia de Compartes. A sua sindicabilidade pelo Tribunal, é restrita ao controlo de ilegalidades, por exemplo, a apreciação de quóruns ou confirmar juridicamente alguns dos requisitos previsto no nº 5.
i) O que o Tribunal não pode é subsituir-se à decisão soberana da Assembleia de Compartes nesta matéria. E nisto a Assembleia foi rotunda, no sentido de rejeitar tal pretensão por unanimidade. Ou seja, nem sequer no espírito de qualquer compartes se colocou qualquer forma de dúvida sobre a verificação de algum critério que pudesse deixar ao Tribunal alguma réstia de dúvida (nesse sentido João Gralheiro no seu comentário ao art. 7º da N. Lei dos Baldios).
j) Dito de outro modo, o Tribunal violou o disposto no art. 7º n. 2 e 5 da lei dos Baldios, porquanto não pode substituir-se à decisão soberana, com base num critério de oportunidade que lhe é restrito a si Assembleia de Compartes, não se encontrando em causa, porque nem sequer alegado, a violação de qualquer norma jurídica.
k) Aliás isto remete-nos para a própria história dos baldios e da sua utilidade e aproveitamento em favor dos povoadores de uma localidade ou povoação, como complemento do seu sustento, facto que não é apagado pelas novas utilizações dos baldios, pois que essas utilizações até podem ser novas, o que não põem é em causa saber-se o que é baldio e quem são os seus possuidores ou consortes. E, bem visto que ser compartes não é só um conjunto de direitos, é também um conjunto de deveres e julga-se que também aqui andou muito mal o Tribunal, pois que, conhecendo a finalidade dos AA. que é apenas poderem aproveitar as áreas de X para majorar subsídios agrícolas, se cingiu a ver a parte dos direitos, olvidando todos os deveres de participação, trabalho e zelo que deu como provado não existirem.
l) Julga-se de facto que o Tribunal nem se apercebeu que a atribuição da qualidade de compartes implica o reconhecimento do direito de propriedade comunitária. Conforme refere João Gralheiro no seu comentário ao art. 7º da N. Lei dos Baldios. Na verdade, a discussão feita na douta sentença foi tão redutora que excluiu por exemplo a existência de outras formas de participação na vida comunitária que existem e são válidas, como sejam os convidados e os presentes em reunião sem direito a voto. Esta realidade heterogénica, parte pois de um desconhecimento flagrante do que é a realidade da propriedade de mão comum.
m) Conforme resulta de depoimento conjugado do A. P. J., da testemunha L. J. e do depoimento de parte do Presidente do Conselho Diretivo do R., em 2016, o A. este presente numa reunião da Assembleia de Compartes e da ata nº 3 da Assembleia de Compartes de X, verifica-se com clareza que o A. ali esteve como convidado com vista a prestar um serviço externo, isto é, foi convidada uma associação da qual ele é presidente que se dedica á instrução de procedimentos com vista à implementação de perímetros pecuários e nessa qualidade foi contratado para prestar ao A. esse serviço e que a final não veio a ser implementado. Infere-se deste facto, ocorrido em 2016, que já nessa altura recente o A. não se apresentou nem reivindicou qualquer qualidade de comparte. Inferindo destes elementos um indício de que assim não é, como concluiu o douto Tribunal a quo, violou o disposto no art. 615 al. c) do CPC.
n) Também este preceito foi violado no que concerne à averiguação pelo tribunal da origem e uso que são dados os prédios que o A. herdou nos limites de X, 2 cortes e 4 terrenos. Resultou dos depoimentos conjugados do A. P. J., da testemunha A. G., D. P. e depoimento de parte do R. bem como das fotografias juntas que estas cortes são hoje ruínas e, portanto, abandonadas desde que os avôs do A. faleceram e que nenhum uso lhes é dado. Neste aspeto é muito relevante o depoimento da testemunha D. P.. Este aspeto foi ignorado pelo Tribunal.
o) Também foi mal apreciado o uso que é dado pelo A. às propriedades rústicas, terrenos. Com efeito, confirma o tio do A. A. G., secundado pelo A. pelo seu tio D. P. e por todas as testemunhas do R. que o único terreno trabalhado é o da P., todos os demais estão a monte, incultos, abandonados e neste terreno, resulta do depoimento da testemunha A. G. que o gado vai para lá em março ou Abril e fica lá a dormir no lameiro, uns 10 ou 12 dias seguidos e depois regressam a …, porque depois era deixado para feno e depois do corte não voltam lá porque não tem nada para comer. Considerando que entre … e X medeia 6 km, de outra forma ditam as regras da experiência que não poderia ser andando o gado a pé, assim se contrariando os quesitos 11, 16 e 17 dos Factos provados, que devem ser considerados não provados e provados apenas que o terreno da P. é pastoreado uma vez por ano entre março e abril e depois deixado para feno.
p) Igualmente resultou do depoimento desta testemunha A. G., um facto muito importante da vida comunitária, quando referiu que X tem vezeira e que este ano (2020), foi levada à serra, mas no grupo de X o seu sobrinho não está, o gado dele sobe juntamente com o de ..., nota muito importante para demonstrar que de facto nem o A. se considera comparte, nem é tido como tal pela comunidade.
q) A vida comunitária é feita de entreajuda, pelo que o que determina a pertença ou não a uma comunidade deriva por um lado dessa presença, do contributo, dos usos e costumes e do conjunto de prova, testemunhal e documental, e que de resto também resulta da douta sentença, essas ligações não existem, até pelo contrário. Passando junto ao tal terreno da P. um caminho e tendo o mesmo sido alargado pela Câmara em benefício da comunidade, à época o A. P. J. opôs-se a ceder à aldeia para o dito fim um pequeno espaço desta propriedade, só acabou por ceder após o Município lhe ter retribuído com a feitura de um muro.
r) Provou o R. que o A. nunca participou ou esteve presente na festa de 3 de janeiro em honra do navegador J. R., nunca participou nas procissões de 13 de maio que se fazem todos os anos, a vezeira de X é organizada juntamente com Santa Marinha e Covêlo do Gerês (lugares de outra freguesia) e da qual o gado do A. nunca fez parte ou pastoreou, também nunca participou no S. João que anualmente se faz a 24 de julho. Festa maior da aldeia, 8 de setembro em honra de Senhora da Misericórdia, padroeira da aldeia, também nunca esteve ou por lá foi visto, anualmente limpam-se caminhos (caminho do …, de Cela cavalos, de Cha de Lagonte da presa) e Levadas (o tanque de água de Riba) com o povo junto de que nunca fez parte o A..
s) Relembre-se que a sacristia da capela foi feita recentemente pela aldeia de X, custou 23 000,00€ dos quais a Junta de ... comparticipou com 7 000 e aldeia reuniu entre os vizinhos 16 000,00€, ora do A. nem um cêntimo, nem por ali ajudou a nada.
t) Chegados aqui, cumpre questionar, afinal o que é ser comparte e para que serve. Explicamos nas palavras da testemunha M. P., presidente da Associação de Agricultores que explicou que a importância do baldio para os agricultores prende-se por um lado com o pastoreio e por outro com os subsídios agrícolas. O RPB (Regime de Pagamento Básico), tem por base a área e daqui a importância de acrescentar área baldio quando não se tem própria. Explicou que quando o A. fez a candidatura tinha que ter 40 hectares ou própria ou baldia. Nisto é que reside o verdadeiro interesse desta ação (Vide depoimento testemunha M. P., Min. 1 a 18).
u) O que verdadeiramente motiva os AA. é a intenção de que, sendo compartes, lhes possa ser atribuída área baldia para pastoreio, relevante para acrescentar às suas candidaturas ao Pedidos Únicos e demais subsídios agrícolas.
v) Sendo ali compartes, em igualdade de circunstâncias teria de lhe ser atribuída área e nessa medida rateando-a com os demais verdadeiros compartes, porque moradores, assim os prejudicando.
x) Portanto os AA. não pretendem fazer parte da vida comunitária, adquirindo os respetivos direitos mas também os deveres. O que os AA. querem é área de borla, para majorar os subsídios agrícolas que por essa via teriam direito, o que, até nesta medida constituiria uma fraude à lei. E este facto foi apreendido pelo Tribunal a quo, que percebeu perfeitamente que por trás, não estão nem usos nem costumes, mas só e apenas a necessidade de área baldia para, fraudulentamente, majorar subsídios agrícolas. O demais são pretextos. No entanto também este aspeto contraria o art. 1º, 2º, 3º e 7 da L. dos Baldios e constitui uma fraude à própria lei e às suas finalidades E neste aresto, a critério da detenção, defendido na douta sentença, é contrário aos normativos citados, pois que os baldios são aproveitados, nomeadamente, como logradouro comum pelos moradores dessa freguesia e que a lei considera indispensáveis, sob essa forma de utilização, à economia local, e a qualidade de comparte não se herda, nem se transmite por qualquer forma de direito», antes «radica em condições ligadas à pessoa» – cf. Jaime Gralheiro, Comentário À Nova Lei dos Baldios”, referindo-se o autor pois a todo o repositório histórico de usos e costumes de aproveitamento e ligação e a atual configuração da lei não se basta com a mera detenção de propriedades no lugar, porque tal contraria o art. 1º, 2º, 3º e 7º d a Lei dos baldios na redação atual e para além disso, careceria nesse caso de aprovação pela Assembleia de Compartes como seu requisito constitutivo, requisito esse que não é suprível por sentença.
z) Ainda que se entenda que a detenção é causa aquisitivo da condição de compartes, que não é, haveria, pois que verificar previamente quais os seus requisitos legais e um desses requisitos é uma deliberação favorável da Assembleia de Compartes, que não se verifica.
Concluindo, roga-se a V. Exª a revogação da decisão em recurso, fazendo improceder a ação, assim fazendo, como sempre aliás, a costumada
JUSTIÇA

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questões a decidir:
- Verificar se os factos constantes dos pontos 11, 14, 15, 16, 17, 18, 18, 20, 21 e 22 poderiam ser considerados pelo Tribunal apesar de não terem sido alegados.
- Caso se conclua pela afirmativa relativamente ao ponto anterior, verificar se a prova desses factos resultou da instrução da causa;
- Verificar se o Tribunal podia sindicar a decisão da Assembleia de Compartes respeitante ao indeferimento do pedido do A. de ser considerado comparte da Comunidade Local de Baldios de X;
- Caso a resposta à questão anterior seja positiva, analisar se o Réu pode ter a qualidade de comparte da mencionada Comunidade.
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Cumpre apreciar e decidir:

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1. Os Autores têm residência em Rua … n.º .. e Rua das … n.º 5, ..., localidade da freguesia de ....
2. A freguesia de ... é composta por várias localidades, entre as quais ... e X.
3. A localidade de X fica próxima da localidade de ..., ambas da freguesia de .... 4. Os Autores são casados entre si desde 15 de agosto de 2009 em regime de bens de adquiridos, embora já namorassem há uns anos.
5. O Autor nasceu na Alemanha, em - de dezembro de 1977.
6. Os pais do Autor eram oriundos de ..., onde sempre viveram, tendo emigrado para a Alemanha apenas por uns anos onde o Autor nasceu, mas tendo regressado a Portugal, a ..., onde tinham as suas origens e os prédios rústicos e urbano, onde o Autor foi criado até aos dias de hoje.
7. A Autora nasceu em - de agosto de 1980, na freguesia de …, freguesia limítrofe e confinante com ..., tendo desde criança e os seus pais ido residir para ....
8. O Autor tem terrenos na freguesia de ..., freguesia esta composta por várias localidades, uma delas X.
9. O Autor herdou do seu pai determinados imóveis e adquiriu o quinhão hereditário dos seus irmãos, ficando ele com todos os prédios da herança do seu pai e dos demais herdeiros, prédios rústicos estes localizados na freguesia de ..., a saber:
a) Cultura arvense de sequeiro com 04 oliveiras em …, inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo ….º, a confrontar do Norte e Nascente com caminho, Sul com J. P., Poente com a estrada, com a área de 0,283200.
b) Mato na Contada …, inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo …, com a área de 0,045200, a confrontar do Poente com estrada, Norte com A. M., Sul J. V., Nascente com J. M..
c) ½ do lameiro e pastagem na Corga, inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo …, com a área de 0,250000, a confrontar do Norte e Nascente com caminho, Sul com J. A., Poente com A. C., prédio este que se localiza na X;
d) …, Eira e Corte, inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo …, com a área de 0,033500, a confrontar do Norte com A. B., Sul com Percurso Pedestre, Nascente com Rua e J. R., Poente com rego de água, prédio este que se localiza na X;
e) Corte no Biqueiro da Eira, inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo 3554, com a área de 0,002000, a confrontar do Norte e Nascente com caminho público, Sul e Poente com A. G., prédio este que se localiza na X;
f) Cultura arvense de sequeiro, Lameiro e pastagem na P. e Fonte, inscrito na matriz sob o artigo ….º, com a área de 1,000000 a confrontar do Norte, Sul e Nascente com M. J., Poente com caminho, prédio este que se localiza na X;
g) Lameiro, Pastagem e Mato em …, inscrito na matriz sob o artigo ...º, com a área de 3,449300, a confrontar do Norte com J. A., Sul, Nascente e Poente com caminho público, prédio este que se localiza na X;
h) ½ Mato e 3 Carvalhos, na Tapada …, inscrito sob o artigo ….º, com a área de 2,329500, a confrontar do Sul e Poente com baldio, Nascente estrada Municipal, Norte com Terrenos baldios, prédio este que se localiza na X.
10. Os prédios identificados nas alíneas c) a h), localizados na X, encontram-se registados a favor do Autor P. J., tendo como causa de aquisição registada: “Sucessão hereditária e partilha”.
11. O Autor destina aqueles prédios a exploração agrícola.
12. Os Autores solicitaram à Ré a atribuição da qualidade de compartes, tendo submetido à apreciação da mesma requerimentos escritos a fundamentar as suas pretensões, acompanhados de meios de prova.
13. O Autor é proprietário e possui áreas agrícolas na X.
14. O Autor desenvolve nessas áreas atividade agrícola e pastoril.
15. Os antepassados do Autor eram da localidade de X, nomeadamente o pai e os avós paternos, e tinham lá os seus bens e haveres que se transmitiram de geração em geração, cultivando os terrenos rústicos, colhendo os seus produtos para seu sustento, e colocando o gado nos pastos da X.
16. O Autor tem uma exploração agrícola e pastoril em X.
17. O Autor coloca gado a pastar em X.
18. O Autor limpa o mato em terrenos localizados na X, dos quais é proprietário.
19. O Autor tem terrenos na X, que explora.
20. Apesar do pedido dos Autores para serem reconhecidos como compartes da Comunidade Local dos Baldios da X, a Ré indeferiu esse pedido.
21. O pai do Autor P. J. nasceu na X, mas casou para a aldeia de ... e para lá foi viver.
22. O Autor P. J. herdou prédios rústicos pertencentes aos avós paternos.
23. Os Autores também têm residência em Braga.

Factos Não Provados

Com relevo para a decisão da causa, não se provou, para além daquela que se encontra em oposição com a dada como provada, a seguinte factualidade:

A. Os Autores residem na localidade da X. B. O Autor é natural da X.
C. A Autora tem terrenos na freguesia de ....
D. A Autora S. A. é proprietária dos prédios melhor identificados em 9).
E. A Autora destina os prédios elencados em 9) à exploração agrícola. F. A Autora é detentora de áreas agrícolas em X.
G. A Autora é proprietária de áreas agrícolas em X. H. A Autora é usufrutuária de áreas agrícolas em X. I. A Autora é superficiária de áreas agrícolas em X. J. A Autora é arrendatária de áreas agrícolas em X. K. A Autora é possuidora de áreas agrícolas em X.
L. A Autora detém a administração de áreas agrícolas em X.
M.A Autora desenvolve nessas áreas, na X, atividade agrícola e pastoril.
N. Os Autores são detentores de áreas agrícolas no baldio da X.
O. Os Autores desenvolvem nas áreas do Baldio da X atividade agrícola e pastoril.
P. Os antepassados do Autor colocavam o gado nos baldios de X.
Q. Os Autores cultivam nos terrenos rústicos os produtos que colhem para o seu sustento.
R. Os Autores colocam o gado nos baldios de X. S. A Autora coloca gado a pastar na X.
T. Os Autores convivem com as pessoas da localidade da X, onde têm amigos. U. Os Autores vão às festividades que ocorrem na X.
V. Os Autores ajudam na limpeza dos matos e dos regos de água comunitários. W. A Autora tem uma exploração agrícola e pastoril em X.
X. A Autora tem terrenos que explora na X. Y. Os Autores têm baldios na X que exploram.
Z. Os Autores são detentores da marca de exploração pecuária EA71U.
AA. Os Autores nasceram na localidade da X.
BB. Os Autores habitam na localidade da X. CC. Os Autores nasceram na freguesia de ....
CC. Os Autores nasceram na freguesia de ....
DD. É conhecida da Ré a verdadeira razão pela qual os AA. pretendem ver-lhes reconhecida a qualidade de comparte deste baldio.
EE. O que verdadeiramente motiva os AA. é a intenção de que, sendo compartes, lhes possa ser atribuída área baldia para pastoreio, relevante para acrescentar às suas candidaturas ao Pedidos Únicos e demais subsídios agrícolas.
FF. Sendo ali compartes, em igualdade de circunstâncias teria de lhes ser atribuída área e nessa medida rateando-a com os demais verdadeiros compartes, porque moradores, assim os prejudicando.
GG. Portanto os AA. não pretendem fazer parte da vida comunitária, adquirindo os respetivos direitos, mas também os deveres. O que os AA. querem é área de forma gratuita, para majorar os subsídios agrícolas que por essa via teriam direito.
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Apreciando:

O Recorrente argui que o Tribunal a quo incluiu na matéria de facto provada diversos factos, acima enumerados, que não foram alegados pelos AA. e que são factos essenciais, que, por isso, não poderiam ser considerados.
Relativamente aos pontos 20 e 21, no entanto, não tem razão de ser a observação da Ré uma vez que os factos constantes dos mesmos foram alegados, tendo a matéria do ponto 21 sido alegada pela própria Ré no art. 8º da contestação. No que respeita à matéria do ponto 22, a mesma retira-se do que foi alegado no art. 5º da petição inicial, pelo que, também aqui não tem razão a Recorrente.
Quanto à intervenção oficiosa do tribunal subsequente à instrução da causa, resulta do art. 5º, nº 2 do C. P. Civil que, só poderá ter por objeto factos instrumentais ou factos essenciais, mas que sejam complementares ou concretizadores de outros alegados pelas partes, pois que quanto aos factos essenciais “nucleares” que a origem do direito do recorrente, continua a manter-se sem restrição o princípio do dispositivo. Pode ainda o Tribunal servir-se dos factos notórios ou daqueles que tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (v. art. 412º do C. P. Civil).
Quanto aos factos instrumentais, para Castro Mendes (1), são "os que interessam indiretamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes".
Teixeira de Sousa refere-se-lhes como sendo "os que indiciam aqueles factos essenciais" (2).
Lopes do Rego (3) diz que "factos instrumentais se definem, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da ação e da defesa e, por isso mesmo, não carecem de ser incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material".
Os factos complementares ou concretizadores são aqueles que especificam e densificam os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor - a causa de pedir - ou do reconvinte ou a exceção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, e, nessa qualidade, são decisivos para a viabilidade ou procedência da ação/reconvenção/defesa por exceção. (4)
P. J. Pimenta, na sua comunicação “Temas de Prova” (5), explica que os factos “nucleares” constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da exceção, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora.

Analisando os factos constantes dos pontos 11, 14, 15, 16, 17, 18 e 19 inseridos na matéria de facto provada, verificamos que os mesmos não são essenciais mas sim complementares, pois limitam-se a densificar os factos anteriormente alegados.
Os factos complementares podem ser tidos em conta pelo Tribunal, desde que resultem da instrução da causa e desde que que as partes tenham tido a possibilidade de sobre eles se pronunciarem (art. 5º, nº 2 – b) do C. P. Civil).
Ora, a Ré nos pontos 19 e 20 da contestação refere que os avós do P. J. tinham 4 prédios rústicos na X mas que o A. não os explora. Assim, pode considerar-se que, ainda que antecipadamente, se pronunciou sobre tais factos, não sendo, pois, necessário cumprir o contraditório quanto aos mesmos, sob pena de se praticarem atos inúteis uma vez que, como foi dito, nos autos já se conhece a posição da Ré sobre esses mesmos factos e sendo certo que as testemunhas por esta indicadas também se pronunciaram sobre os mencionados factos.
Os factos em causa podiam assim, ser tidos em consideração pelo Tribunal na sentença, caso tenham resultado da discussão da causa e é isso que veremos de seguida.

Esses factos têm a ver essencialmente com a circunstância de o A. explorar ou não os terrenos situados em X e que adquiriu por herança dos seus avós.
Do que disseram as testemunhas inquiridas, quer as indicadas pelos AA, quer as indicadas pela Ré (V. P., A. F., D. P., M. N., M. J., M. F., D. P., Manuel, M. C., A. B.) resultou essencialmente que o A. possui, no todo ou em parte, quatro parcelas de terreno na localidade de X mas que apenas utiliza uma dessas parcelas duas vezes por ano (a parcela denominada P.), para apascentar algumas das cabeças de gado que possui e que, dessa parcela, retira ainda feno. Resultou ainda que o A. tem cerca de 60 cabeças de gado numa exploração situada em ...., circunstância que foi confirmada pelos AA. nos seus depoimentos. Quanto às outras parcelas de terreno, algumas das testemunhas referiam que o A. corta o mato de pelo menos duas delas.
Deste modo, há que reformular alguns dos pontos referidos, de acordo com o que resultou da prova produzida, pois da mesma resultou que o A. apenas explora um dos terrenos que tem na localidade de X. O facto de limpar o mato de, pelo menos dois dos restantes não faz concluir que os A. os explora, pois nada se sabe do que faz com o mato que corta, sendo certo que a obrigatoriedade de efetuar a limpeza de terrenos rústicos resulta da lei.
Quanto a matéria do ponto 16, a mesma não resultou da prova produzida, pois nenhuma das testemunhas ouvidas e nem sequer os AA. disseram que o A. tinha uma exploração agrícola e pastoril em X, mas sim em .... Este ponto será assim, eliminado.
Os pontos 14 e 17 serão eliminados pois, a sua reformulação de acordo com a prova produzida limitar-se-ia a reproduzir no todo ou em parte o que constará do ponto 11.
O ponto 19 será também eliminado pois a primeira parte do mesmo é uma conclusão que se retira da matéria do ponto 9 e a segunda parte deste ponto teria que ser reformulada de acordo com o que acima se expôs sobre a prova produzida, sendo que após a reformulação, passaria a ser uma duplicação do que constará do ponto 11.

Em conformidade com o que foi dito, reformular-se-ão os pontos 11, 18, que passarão a ter a seguinte redação:

11. O Autor explora um dos prédios que tem em X, denominado P. utilizando-o para apascentar algumas cabeças de gado e retirando ainda feno desse terreno.
18. O Autor limpa o mato de, pelo menos, duas parcelas de terreno que possui em X.
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Cumpre agora analisar se o Tribunal poderia ter sindicado a decisão da Ré no sentido de indeferir aos Autores a qualidade de comparte.

Vejamos:

Os baldios surgiram da necessidade social de os agricultores com menos recursos económicos utilizarem espaços desocupados e/ou abandonados das respetivas freguesias, nomeadamente, para apascentação de gado e para apanha de mato ou de lenha.
Jaime Gralheiro (6) refere que “os Baldios são bens comunitários afetos à satisfação das necessidades primárias dos habitantes de uma circunscrição administrativa ou parte dela, e cuja propriedade pertence à “comunidade” formada pelos utentes de tais terrenos que os receberam de seus antepassados para, usando-os de acordo com assuas necessidades e apetências, os transmitirem intactos aos seus vindouros.”
Na Lei 75/2017 de 17 de agosto (regime aplicável aos baldios e aos demais meios de produção comunitários), que é aplicável ao presente caso, a definição de baldio é-nos dada pela al. a) do art. 2º que diz que “Baldios” são os terrenos com as suas partes e equipamentos integrantes, possuídos e geridos por comunidades locais, nomeadamente os que se encontrem nas condições aí definidas, nomeadamente, os terrenos considerados baldios e como tais possuídos e geridos por comunidade local.
No nº 1 do art. 3º do mesmo diploma esclarece-se que os baldios constituem, em regra, logradouro dos compartes, designadamente para efeitos de apascentação de gados, de recolha de lenhas e de matos, de culturas e de caça, de produção elétrica e de todas as suas outras atuais e futuras potencialidades económicas, nos termos da lei e dos usos e costumes locais.
No al. b) do nº 2 desse Dec. Lei, refere-se que “comparte” é a pessoa singular à qual é atribuída essa qualidade por força do disposto no art. 7º. Neste preceito esclarece-se, na parte com interesse para o caso em apreço que Compartes são os titulares dos baldios (nº 1) O universo dos compartes é integrado por cidadãos com residência na área onde se situam os correspondentes imóveis, no respeito pelos usos e costumes reconhecidos pelas comunidades locais, podendo também ser atribuída pela assembleia de compartes essa qualidade a cidadão não residente (nº 2).
Pode a assembleia de compartes atribuir a qualidade de comparte a outras pessoas singulares, detentoras a qualquer título de áreas agrícolas ou florestais e que nelas desenvolvam atividade agrícola, florestal ou pastoril, ou tendo em consideração as suas ligações sociais e de origem à comunidade local, os usos e costumes locais (nº 5). Para efeitos do número anterior, qualquer cidadão pode requerer ao conselho diretivo a sua inclusão na proposta de relação de compartes a apresentar à assembleia de compartes, indicando os factos concretos em que fundamenta a sua pretensão, com apresentação de meios de prova, incluindo, se entender necessário, testemunhas (nº 6).
O conselho diretivo deve apreciar a prova produzida e decidir no prazo de 60 dias após a produção da prova (nº 7). Se a decisão for desfavorável, o conselho diretivo submete obrigatoriamente a sua decisão à assembleia de compartes, que delibera sobre a proposta de relação de compartes ou a sua atualização, confirmando-a ou alterando-a (nº 8) Se a pretensão do cidadão requerida nos termos do n.º 6 for negada ou o pedido não for decidido no prazo de 90 dias, este pode pedir ao tribunal competente o reconhecimento do direito pretendido (nº 9).
A Ré sustenta que o Tribunal não pode substituir-se à decisão soberana de Assembleia de Compartes, que rejeitou por unanimidade a pretensão dos AA. no sentido de serem considerados compartes, dizendo que não foi violada qualquer norma jurídica.
Não concordamos, no entanto, com este entendimento pois, o art. 7º da Lei 75/2017, de 17 de agosto é clara ao permitir no seu nº 9, que o interessado que peticionou a qualidade de comparte e recebeu uma decisão desfavorável da assembleia de compartes, possa “pedir ao tribunal competente o reconhecimento do direito pretendido”.
Podia, assim, o Tribunal a quo apreciar mencionado pedido de reconhecimento da qualidade de comparte que lhe foi formulado pelo AA..
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Da qualidade de comparte:

Na vigência da Lei 69/93, de 4 de setembro, apenas podiam ter a qualidade de compartes os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios ou que aí desenvolvam uma atividade agroflorestal ou silvo pastoril ou os menores emancipados que sejam residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios. (nºs 3 e 4 do art. 1º). Esta Lei estabelecia assim uma conexão entre a qualidade de morador em determinada localidade e a qualidade de comparte dessa respetiva comunidade.
A Lei 75/17, de 17/8, veio alargar a possibilidade de ter o estatuto de comparte de determinada comunidade a pessoas singulares detentoras de áreas agrícolas ou florestais e que nelas desenvolvam atividade agrícola, florestal ou pastoril, ou tendo em consideração as suas ligações sociais e de origem à comunidade local, os usos e costumes locais.
Conforme refere João Carlos Gralheiro (7) em razão da alteração introduzida neste novo diploma legal relativamente ao reconhecimento da qualidade de comparte “se deve interpretar a mesma no sentido de se considerar que nela foi reposto o pressuposto da “atividade no local”, exigido pelo art. 4º do Dec. Lei 39/76. E isto porque na sua nova versão expressamente se reconhece a possibilidade de ser considerado como comparte quem em tal comunidade desenvolva uma atividade agroflorestal ou silvo pastoril, ainda que aí não seja residente.
No Acórdão do STJ de 24/10/2019 (8) explica-se que “a realidade histórica consistente no aproveitamento, ao longo de séculos, pelas comunidades locais dos terrenos baldios para complementar a subsistência dos seus membros – colhida essencialmente duma agricultura rudimentar, com a obtenção das utilidades por aqueles propiciadas, mediante a apicultura e, sobretudo, a pastorícia e a extração de frutos e materiais, como lenhas, madeiras e matos para “acamar” os animais e estrumar as terras – alterou-se profundamente nas últimas décadas, com a desertificação das serras e do espaço rural, com o desaparecimento generalizado da agricultura rudimentar tradicionalmente complementada com a exploração dos baldios e o decorrente abandono destes e dos espaços florestais.
Entretanto, como já se observou no acórdão da Formação prevista no art. 672º do CPC, desde há algum tempo, vimos assistindo ao fenómeno de um certo “regresso às origens” disseminado por alguns pontos do país – como da factualidade assente resulta ser o caso –, que tem movido pessoas oriundas dos meios urbanos e suburbanos a alterar radicalmente o seu modo de vida e a fixar-se permanentemente nesses locais e outros a procurar aí apenas refúgios de férias e fins-de-semana – como tem sucedido com profissionais liberais, quadros dos serviços ou elementos da pequena e média burguesia –, todos, atraídos pelo bucolismo e pela qualidade de vida de que lá podem usufruir.
(…)
A profunda evolução sofrida pela realidade socioeconómica dos baldios terá levado o legislador a consagrar na lei actualmente vigente a possibilidade de a assembleia de compartes atribuir a qualidade de titular do baldio (comparte) até a um cidadão não residente no local, deixando ao critério da assembleia a definição dos requisitos para tanto impostos, pois não explicita qualquer exigência quanto à natureza e ao grau da sua ligação ao correspondente logradouro comum.”.

Efetivamente, resulta da exposição de motivos da Lei nº 75/2017, nomeadamente, o seguinte:

“Os baldios desde sempre tiveram uma determinante dimensão social, constituindo-se como um importante sustento para as economias familiares de milhares pequenos agricultores, fundamentalmente, no centro e norte do país e de que deles têm usado e fruído ao longo do tempo.

(…)
Com a Lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, os compartes passaram a ser todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais independentemente da sua maior ou menor relação com as áreas comunitárias, bem como foram excluídos do processo, sempre complexo é certo, de recenseamento de compartes. Com aquelas alterações, os dados nacionais do recenseamento eleitoral, no fundo, passaram a ser a base de registo dos compartes de determinado baldio em detrimento de um caderno de recenseamento específico, cuja validação e aprovação deve caber aos seus pares em assembleia de compartes e, posteriormente, tornado público. Não negligenciando a existência de dinâmicas sociais de migração ou até económicas de criação de riqueza e de postos de trabalho, a definição de compartes deve ser o suficientemente aberta para permitir que um qualquer cidadão detentor de áreas agrícolas ou florestais ou que nelas desenvolva atividade agrícola, florestal ou pastoril, ou um cidadão que passe a residir na área do baldio, possa requer à assembleia de compartes o devido reconhecimento, que terá um prazo para se pronunciar sobre o pedido.”
É assim necessário analisar se a circunstância de o A. ser proprietário, no todo ou em parte, das parcelas de terreno situadas em X e identificadas no ponto 9 dos factos provados e ainda do facto de explorar uma delas através da apascentação de parte do gado que possui e recolha do feno dessa mesma parcela, são bastantes para lhe conferir a qualidade de comparte daquela Comunidade.
Em face da génese da criação dos baldios, acima referida e apesar de se ter ampliado a possibilidade de alguém ser comparte de determinada comunidade a fim de evitar a desertificação dos meios rurais, promovendo a sua dinamização, parece-nos que a concessão de tal estatuto não se basta com a mera apascentação de algumas cabeças de gado numa parcela de terreno e com a obtenção de feno da mesma, sendo certo que a sede da exploração do A. se encontra noutra freguesia. Ou seja, o centro da atividade do A. não se encontra em X, mas sim em localidade distinta.
Na verdade, entendemos que a qualidade de comparte, apesar de atualmente poder ser concedida a pessoas que não residem em determinada comunidade, só pode ser concedida a quem tem relevantes ligações a essa comunidade, sob pena de se banalizar a atribuição do mencionado estatuto, com os inerentes prejuízos para quem é já comparte, pois, os compartes, entre outras coisas, dividem os recursos existentes nos respetivos baldios e a respetiva área disponível é distribuída pelos utilizadores para concessão de alguns subsídios (9). Assim, naturalmente, quanto mais compartes, menos recursos cabem a cada um deles.
Parece-nos, pois, que a matéria de facto provada não é suficiente para conceder ao A. a qualidade de comparte, procedendo assim, o recurso.
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DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrido.
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Guimarães, 13 de janeiro de 2022

Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira
José Cravo


1. in Direito Processual Civil, 1968, 2º, pág. 208
2. in Introdução ao Processo Civil, 1993, pág. 52
3. In Comentário ao Código de Processo Civil, pág. 201
4. v. Ac. R. C. de 23/2/2016 in www.dgsi.pt
5. disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Texto_comunicacao_Paulo_Pimenta.pdf
6. Comentário à Nova Lei dos Baldios, pág. 53
7. Dos Baldios até à Lei 75/2017, de 17 de agosto, 2ª ed. atualizada e ampliada, pág. 55
8. www.dgsi.pt
9. www.ifap.pt