Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2848/19.3T8VNF-A.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
COMERCIANTE
GERÊNCIA
PROVEITO COMUM DO CASAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Do facto de exercer a gerência e ser sócio de uma sociedade comercial de responsabilidade lda, não decorre para o executado (marido da embargante/apelante) a qualidade de comerciante, pois que aí age como representante de uma sociedade, ainda que, no exercício da actividade comercial que esta desenvolve.
II. Ou seja, não exerce o comércio em nome próprio, mas sim da sociedade.
III. Tal impede a invocação da presunção de comunicabilidade da dívida emergente do art. 1691º, nº 1, al. d), do CC, bem como a aplicação do disposto no artº 15º do C.Comercial.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

M. M., executada nos autos principais de que os presentes constituem apenso e onde figura como embargante, deduziu oposição à execução, que sob o nº 2848/19.3T8VNF-A.G1, corre termos no Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão, Juiz 3, Comarca de Braga, mediante embargos, intentada por M. L., exequente, figurando no presente apenso como embargado, peticionando, a final, a extinção da execução apensa contra a ora embargante.

Alegou, para tanto, que:

“ 1º A executada, que não subscreveu o cheque, sem data, cuja fotocópia lhe foi remetida com a nota de citação, não aceita a comunicabilidade da eventual divida.
2º Acresce dizer que a executada também não era titular, nem tem ideia de alguma vez ter sido, da conta aberta no Banco ..., em nome de R. F., mencionada pelo exequente.
3º Nunca autorizou e desconhece que o exequente alguma vez tenha mutuado qualquer quantia ao marido da executada.
4º A executada, felizmente e por força do muito que sempre trabalhou, nunca necessitou de ajuda, empréstimos ou outras entradas para conseguir fazer face aos encargos normais da vida familiar.
5º Sendo certo que a executada não é comerciante em nome individual e também não tem conhecimento que o senhor seu marido seja comerciante em nome individual.
6º São, isso sim, sócios, juntamente com outros, de sociedade comercial que gira e desenvolve os seus negócios em nome dela própria e com as características e especificidades decorrentes da imperativa separação de patrimónios resultante das distintas capacidades jurídicas e diferentes patrimónios – arts. 5º e 6º do CSC.
7º Por tudo isto está plenamente demonstrada a boa fundamentação para a recusa de aceitação da comunicabilidade da eventual divida.
Isto posto, sem prescindir e por mera cautela de patrocínio,
8º A executada tomou conhecimento que o executado, em data anterior, apresentou nos autos embargos á execução nos termos do que constituirá já o apenso “A”.
9º Desconhecendo a executada o que se terá passado entre o exequente e o executado, que sabe serem, ou pelo menos terem sido, até data muito recente, pessoas muito próximas, amigos e confidentes,
10º Sente-se, todavia, confiante em reproduzir aqui o que o executado R. F. invocou nos embargos á execução, ou seja:
11º A exequente avança para a execução munindo-se de um documento particular que sob o nº 2 junta com o requerimento executivo e o qual se denomina de cheque.
12º Mas sem data de emissão e sem comprovativo de que tenha sido apresentado a pagamento, seja no banco sacado, seja ao próprio emitente.
13º Não preenche, nem obedece, esse pretenso cheque, aos mais elementares requisitos para poder ser apresentado, no âmbito de ação executiva, como titulo executivo, para cobrança de divida certa, liquida e vencida.
14º Não configura, por isso, tal pretenso documento, um cheque passível de ser exequível, no âmbito desta Ação executiva.
15º Resultando manifesto que o exequente, não tem titulo executivo, para a instauração desta, particular, espécie de demanda executiva.
16º O que deve conduzir á imediata extinção da instância executiva de que estes são apensos.

Ainda sem prescindir,
17º Também o denominado documento nº 1 não configura qualquer espécie dos limitados títulos executivos.
18º Os quais, atenta a regra do “numerus clausulus” estão devidamente tipificados na lei – artº 703 º do CPC.
19º Não resultando do mesmo a certeza da celebração de qualquer contrato de mutuo.
20º Carecendo, desde logo, de validade formal para tal eventual qualificação.
21º Daqui resultando, também, que o exequente continua sem ser portador de qualquer título executivo que lhe permita instaurar a presente execução.
22º O que, também por aqui, deve conduzir á imediata extinção da instância executiva de que estes são apensos.

Mais diz o executado R. F. que:
23º Em tempos, aceitou fazer o favor ao exequente de lhe “esconder” algum dinheiro e outros bens e direitos, que o mesmo pretendia sonegar á partilha que estaria em curso com a senhora ex-esposa do mesmo.
24º Chegou a abrir uma conta apenas em seu nome, no Banco ..., para esse mesmo efeito – fazer o dito favor ao exequente - .
25º O que lá foi depositado e escondido pelo exequente já foi restituído ao mesmo.
26º Umas vezes em cheques ao portador que, depois, eram objeto de endosso para terceiras entidades,
27º E outras vezes em dinheiro, para que não pudesse vir a ser detetado pela senhora ex-esposa do exequente.
28º O certo é que nada, a tal título, diz aquele executado, está ainda em divida ao exequente.
29º Deste modo se impugna por falso e contrário á verdade do exequente bem conhecida, tudo quanto vem alegado no requerimento inicial da Acção executiva.”
Notificado, o embargado/exequente M. L. apresentou contestação, pugnando pela improcedência dos embargos deduzidos.

Afirmou para tal, que:

“1º Carece de total acolhimento a tese da embargante.
2º É que, contrariamente ao que o embargante pretende fazer crer a este douto tribunal, a exequente tem Justo e legitimo fundamento para recusar a pretensão do executado, a qual ora se contesta para todos os efeitos legais.

Da alegada inexequibilidade do titulo:

3º É por demais evidente que a executada apresentou como titulo executivo “ outro título com força executiva” e não cheques como títulos de crédito. Esta conclusão é incontornável e não constitui motivo de dissidio no presente processo, razão porque não se justificam longas considerações sobre esta questão, que temos como evidente.
4º Mas para que o embargante fique esclarecido sempre se dirá o seguinte:
5º Ora, os títulos de credito podem ser utilizados como mero quirografo, caso em que como resulta do artigo 703.º,n.º1 al.c), 2º parte, deve o exequente logo ab initio , no requerimento executivo inicial invocar “ os factos constitutivos da relação subjacente”, salvo se os mesmos constarem do próprio documento que serve de titulo executivo.
6º Na verdade, em tal hipótese (como a dos autos), e à luz da alteração introduzida no artigo 703.º n.º1 al c) pelo novo CPC, o exequente que queira usar o título de crédito como “ mero quirografo” deve fazê-lo logo no requerimento inicial executivo, sobre ele construindo os fundamentos e o pedido executivo, nos termos do artigo 724.º n.º 1 al. e) e f) 4 al a), do mesmo código, o que significa ter o exequente credor que alegar, desde logo, no requerimento executivo (não podendo deixar essa matéria para oposição aos embargos), os factos constitutivos da concreta e determinada relação causal subjacente ao título de crédito prescrito.
7º Assim, é inequívoco que a exequente jamais alicerceou esta execução em títulos de crédito cambiários (titulo de credito em si mesmo) mas e como resulta do requerimento executivo no campo titulo executivo “ outro titulo com força executiva”.
8º Fundou a exequente a ação, em título de crédito enquanto mero quirógrafo (isto é enquanto simples documento particular que importa o reconhecimento de uma divida) do devedor perante a exequente.
9º E para tal, dando cumprimento ao estipulado no artigo 703 n.º 1 al c) invocou de forma, clara, abundante e perfeitamente percetível todos os factos que deram origem à emissão dos respetivos títulos, de tal sorte que o embargante dúvidas não teve na sua leitura e cognoscibilidade, que se sentiu capaz de deduzir embargos quanto à matéria fatual deduzida/alegada.
10º Imprestáveis os argumentos da prescrição e da inexequibilidade dos títulos apresentados, pelo que devem improceder.

Dos factos;

11º Por não corresponderem à verdade impugnam-se expressamente os artigos 3º,23º,24º,25º, 26º, 27º,28ºda petição de oposição.
12º Desconhece e não tem que conhecer os fatos constantes da oposição sob os artigos 4º,5º,6º,9º.
13º Mais se impugnam todos os factos que estejam em manifesta contradição com o requerimento executivo.
14º Mais uma vez se reiterando que se tratou de um empestimo ao executado/embargante, assumindo-se assim uma divida comunicável à aqui embargante pelas razões aduzidas e invocadas em termos de petição inicial.
15º. Refere o Prof. Pereira Coelho, o proveito comum afere-se, não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, pelo fim visado pelo devedor, devendo essa finalidade de beneficiar o casal ser apreciada também objetivamente, tendo em conta os interesses dos cônjuges e da família.
16º Importa essencialmente indagar se o cônjuge administrador, ao contrair a dívida, agiu com o objetivo de alcançar um fim comum ao casal, ou se atuou antes com o objetivo de satisfazer um interesse exclusivo seu, próprio. Só o primeiro caso preenche o conceito de “proveito comum”, de que emerge a responsabilidade de ambos os cônjuges pela dívida contraída por um deles; no segundo caso, a dívida é da responsabilidade exclusiva de quem a contraiu, não se comunicando ao outro cônjuge
17º Ora, não é o fato de os executados serem sócios de uma sociedade com as inerentes regras societárias que exclui ab initio a comunicabilidade da divida.
18º Temos de cuidar de saber da aplicação da divida e das relações entre executado e conjugue no âmbito dessa aplicabilidade.
19º Isto porque como alegado em sede própria foi na salvaguarda dos interesses do objectivo social dessa sociedade (que se mostrava sem liquidez) de revenda de produtos têxteis que pelos visto também a embargante é socia cfr artigo 6 da oposição e documento que se junta como n.º1, que o dinheiro foi solicitado ao exequente pelo executado R. F..
20º Em lado algum a embargante concretiza o que faz, para além de ser socia da sociedade comercial em causa denominada X Têxteis. Comércio de Têxteis e Vestuário, Lda., que claramente se tem por assente que a divida não obstante ter sido contraída a solicitação do executado R. F., para injetar capital na sociedade, não pode deixar de ser considerada estendida à embargante que dos proventos da sociedade se serve e que obviamente servem os interesses dos conjugues sócios e da família.
21º Claro se mostra que o executado não agiu, ao contrair a divida junto do exequente para satisfazer um interesse exclusivo seu, próprio.”
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Foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância.
No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção da inexistência de título do executivo.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“5.- Decisão:
Pelo exposto, decido:
5.1.- Julgar improcedentes os presentes embargos à execução e, em consequência, determino o prosseguimento da execução contra a embargante mulher, sem prejuízo da atualização do valor da quantia exequenda nos termos supra expostos.
5.2.- Custas pela embargante.
5.3.- Registe e notifique.
5.4.- Informe o AE do teor da presente sentença (nomeadamente, para atualizar o valor do capital em dívida nos termos supra expostos).”
*
Inconformada com esta decisão, a executada/embargante, dela interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“Em Conclusão:

1 – Na douta sentença recorrida, decidiu-se pela comunicabilidade da divida e, como tal, na existência de título executivo contra a executada, em razão das declarações prestadas pelo marido, co-executado, que declarou ser gerente de uma sociedade da qual a mesma faz parte na qualidade de socia e nas opções que tomou para utilizar os valores resultantes de um “mutuo” nulo por falta de forma.
2 - Sucede que, não podia o MM. º Juiz do Tribunal “a quo” substituir–se ao credor, aqui exequente, na demonstração da alegada comunicabilidade da divida.
3 - É ao credor, aqui exequente, a quem compete o ónus da prova da comunicabilidade da divida entre cônjuges, o que não sucedeu.
4 - Como a responsabilização de ambos os cônjuges tem de assentar na verificação de qualquer uma das circunstâncias elencadas no n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil, os factos que as suportam são considerados constitutivos do direito do credor que, por consequência, os tem de alegar e provar, de acordo com as regras gerais do ónus da prova.
5 - É ao credor a quem compete a alegação e prova dos factos integradores da comunicabilidade da dívida com base no proveito comum e consequente responsabilização da executada, aqui apelante, pelo pagamento da dívida exequenda, nos termos do disposto no artigo 1691.º, n.º 3, do Código Civil.
6 - No caso “sub judice” era necessário demonstrar que a responsabilidade da executada – que não recebeu a quantia transferida em qualquer conta bancária de que fosse co-titular, que não subscreveu qualquer cheque ou confissão de divida - pela dívida exequenda radica no facto de ter consentido ou aproveitado da quantia alegadamente transferida para a conta bancária do executado, por o mesmo ter resultado em proveito comum do casal.
7 - É ao credor/exequente que, relativamente à executada, incumbe alegar e provar a existência do proveito comum do casal ou de qualquer outro dos requisitos de comunicabilidade da dívida previstos no referido art.º 1691.º - neste sentido, podem ver-se, os Acórdãos do STJ, de 07/12/2005 e de 22/10/2009, in www.dgsi.pt.
8 - No presente caso, não se trata de uma divida comercial, antes de um alegado “mútuo” nulo por falta de forma realizado pelo Exequente, à revelia da Embargante/Apelante ao Executado marido, designadamente, em razão da relação de amizade que os unia.
9 - Ou seja, não se trata de uma dívida contraída pelo Executado no exercício do seu comércio – independentemente do destino que o mesmo entendeu dar a tal entrega… -, pelo que, o Exequente não é credor comerciante.
10 - A alegada divida peticionada pelo Exequente, a titulo de restituição, dado o eventual negócio subjacente ser nulo por falta de forma, não tem carácter de acto de comércio e, não pode beneficiar de qualquer natureza inerente à comercialidade de um negócio.
11 - Salvo o devido respeito, em momento algum ficou demonstrado que a “dívida” em causa foi contraída pelo Executado marido no exercício do seu comercio, pelo que, não pode, também por esse motivo, funcionar a presunção prevista no art. 15º do C. Com. e art. 1691º, n.º 1 al. d) do CC.
12 - No caso “sub judice”, não goza o credor/exequente da excepcionalidade de se presumir o proveito comum do casal, a ele incumbindo, o ónus de provar qualquer das circunstâncias que fazem operar a comunicabilidade da dívida, tal como previsto no n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil, no que se inclui a prova de que a dívida exequenda foi contraída em proveito comum do casal.
13 - Repete-se, é ao exequente que incumbe o ónus da prova de que a dívida exequenda foi usada em proveito comum do casal.– in Ac. TC, proc. n.º 427/13.8TBPMS.C1 de 15712/2016, in ww.dgsi.pt
14 - Não o tendo feito, como não fez, e em virtude de se encontrar onerado com tal prova, tem a decisão desta questão de lhe ser desfavorável e, por conseguinte, se declare, que não goza o exequente de título executivo contra a executada.

Acresce que,

15 - É insuficiente para a existência de proveito comum do casal a prova de que uma determinada quantia recebida por um dos cônjuges através de um contrato de mútuo foi, em parte, utilizada para pagamento de dívidas de uma sociedade comercial por quotas e outra parte na alegada “restituição” do empréstimo concedido.
16 – A Embargante/apelante não subscreveu o cheque, sem data, que constitui o titulo executivo, não era titular da conta bancária aberta no Banco ..., em nome de R. F., mencionada pelo exequente e pelo Executado marido.
17 – A Apelante nunca autorizou e desconhecia que o exequente tivesse transferido para a conta bancária de que apenas o Executado marido era titular, qualquer quantia.
18 - Sendo certo que, como ficou demonstrado, a executada não é comerciante em nome individual e também o senhor seu marido não é comerciante em nome individual.
19 - Das declarações prestadas, seja pelo executado marido, seja pelo Exequente, nada do afirmado pela Apelante resulta contestado e, ou, infirmado.
20 – Pelo que, o Tribunal “a quo”, ao conhecer e dar por provados factos que não foram demonstrados pelo Exequente/credor – a quem competia, nesta matéria, o respectivo ónus da prova -, errou na decisão respeitante à questão de facto.
21 - O conceito “proveito comum do casal” é um conceito jurídico, cuja integração e verificação depende da prova de factos demonstrativos de que a destinação da dívida em causa foi a satisfação de interesses comuns do casal.
22 - Em atenção ao princípio fundamental da separação entre os factos e o direito, estrutura e travejamento do nosso sistema processual civil, não basta alegar o direito, antes se impõe a alegação e prova dos factos que permitam a subsunção ao mesmo direito.
23 - Assim, repete-se, não basta alegar-se que a “divida é comunicável (…) porquanto foi contraída em proveito comum do casal para fazer face aos encargos da vida familiar e no exercício do comercio….” para se provar o “proveito comum” e considerar a divida comunicável.
24 - É preciso alegar factos dos quais resulte provado que o casal teve proveito efectivo com a constituição da dívida, assim se convencendo o cônjuge que não se obrigou da efectiva existência desse requisito da sua responsabilidade.
25 - E, assim, o incumprimento do ónus de alegação por banda do Exequente levará necessariamente à improcedência da acção, quanto à Executada/Apelante.
26 - Atentas as regras decorrentes do ónus da prova, aquela falta de prova seja documental, seja testemunhal, não permitia ao Tribunal dar como provado a comunicabilidade da divida em questão.
27 - Padecendo assim a douta Sentença proferida, salvo o devido respeito, do vicio de erro de julgamento, na medida em que, a decisão do Tribunal vai contra o que é razoável extrair da total “ausência de prova” por parte do credor/exequente no que diz respeito à comunicabilidade da divida contraída pelo executado marido.

Sem prescindir e, por mera cautela de patrocínio,
29 – É fácil perceber que o alegado contrato de mútuo, porque nulo por vício de forma, não é, “qua tale” exequível.
30 - De facto, exigindo a lei substantiva certo tipo de documento para a constituição ou prova da obrigação, não se pode admitir execução fundada em documento de menor valor probatório para o efeito de cumprimento de obrigações correspondentes ao tipo de negócio ou acto em causa.
31 - Sendo nulo o contrato de mútuo subjacente à relação jurídica invocada, que emerge de um contrato formal, o documento em causa não pode constituir título executivo.
32 - Assim, em face desse vício formal, a pretensão exequenda é inexequível, o mesmo acontecendo com o próprio título (neste sentido Remédio Marques, in Curso do Processo Executivo à Face do Cód. Revisto, Almedina, pp. 70-71, Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 61, Anselmo de Castro, in A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 2ª ed., C. Editora, pp. 41-42 e, ainda, Lopes Cardoso, in Manual da Acção Executiva, 3ª ed., Almedina, pág. 44).

Por outro lado,
33 - Também o denominado documento nº 2 – cheque – não preenche, nem obedece, aos mais elementares requisitos para poder ser apresentado, no âmbito de acção executiva, como titulo executivo, para cobrança de divida certa, liquida e vencida contra quem nenhuma intervenção teve na emissão, parcial preenchimento e subscrição do mesmo.
34 - Aliás, também não foi a Embargante/Apelante quem recebeu, directa ou indirectamente, o valor que o exequente diz ter entregue ao executado marido.
35 - A Embargante/Apelante, foi ignorada quer pelo exequente, quer pelo executado marido e ambos á sua total revelia, sem mero conhecimento ou consentimento da mesma, engendram um esquema de alegada transferência de dinheiro para uma conta bancária da qual a mesma não faz parte.
36- O dinheiro é utilizado também sem conhecimento e, sobretudo, sem qualquer intervenção da mesma, que lhe desconhece o destino e sorte – Para depois um dizer que não pagou, o outro que somente recebeu uma parte … -
37- E passar a Embargante/Apelante a ser perseguida e até executada para pagar o que não deve, nem sabe se efectivamente é devido e, muito menos sabe onde foi gasto… por quem foi gasto… e em que condições é que foi gasto…!!!
38- Resultando manifesto que o exequente, não tem título executivo bastante, para exigir da embargante/apelante a comunicabilidade da obrigação de restituição que lhe esteja subjacente.

Pelo que,
39 - Salvo o devido respeito, a douta Sentença recorrida violou e, ou, interpretou erradamente, entre outros, o conjugadamente disposto, por um lado nos arts. 342º, 1142º e 1691º e sgts. do Cod. Civil, art. 5º e 6º do C.S.C, e nos arts. 411º, 607º nº 4do CPC e, por outro lado, o disposto nos art. 703º, 741º, 742º do CPC.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deve ser dado integral provimento ao presente recurso de apelação, revogando-se a douta sentença proferida e, julgar-se procedente os embargos de executada deduzidos pela apelante, com as devidas e legais consequências, assim se fazendo inteira e merecida, Justiça!”
*
O recorrido contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.
*
O recurso foi admitido, por despacho de 18/05/2020, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1. Da comunicabilidade da dívida, e do ónus da sua prova.
2. Da exequibilidade do título.
*
III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

“1.- Em 27/01/2017, o exequente emprestou ao executado marido a quantia de € 85.000,00, para este fazer face aos encargos na sua empresa.
2.- Conforme combinado, a restituição dessa quantia tinha de ocorrer no prazo de dois anos a partir daquela data, o que ainda não aconteceu.
3.- Para garantia de pagamento do valor ainda em dívida, o executado marido entregou ao exequente o cheque por si preenchido no valor de € 70.000,00 euros, junto como documento n.º 2 com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
4.- Até à presente data, o executado marido já restituiu ao embargado a quantia total de quarenta e cinco mil e trezentos euros.
5.- Os executados são sócios da sociedade comercial causa denominada X Têxteis . Comércio de Têxteis e Vestuário, Lda..
6.-A gerência dessa sociedade é exercida pelo executado marido.
7.- O executado/embargante utilizou uma parte do valor identificado em 1., para pagar aos fornecedores da empresa X Têxteis . Comércio de Têxteis e Vestuário, Lda. e a outra parte para liquidar parcialmente esse empréstimo.”
*
Quanto aos factos não provados, afirmou-se o seguinte:

“Não resultaram provados os demais factos alegados partes que não estejam mencionados nos factos provados, ou estejam em contradição com estes.”.
*
IV. Reapreciação de direito.

Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (artigo 10º, nº 5, do Código de Processo Civil).
Diz-nos Lebre de Freitas in “A Ação Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5ª edição, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pag. 29” que o título executivo constitui um pressuposto de ordem formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva.
E mais à frente, a fls. 71, afirma que o título executivo constitui condição necessária e suficiente da acção executiva, na medida em que não há execução sem título, o qual tem de acompanhar o requerimento de execução e a obrigação exequenda tem de constar do título e a sua existência é por ele presumida.
Nos termos dispostos pelo art. 703º nº 1 al c) do CPC, um título cambiário pode valer como título executivo, podendo ter validade como quirógrafo, “desde que neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”.
Como se afirma no Ac. desta Relação de Guimarães, de 30 de Abril de 2015, disponível in www.dgsi.pt.: Nos casos em que o cheque vale como quirógrafo da obrigação subjacente, não se trata de um negócio abstracto, antes com presunção de causa em que ocorre inversão do ónus da prova (artº 458º do CC). O legislador parte do princípio e bem, que se alguém reconhece uma dívida, como acontece quando alguém subscreve um cheque dando ordem de pagamento a outrém, presume-se que este negócio tem uma causa, dispensando o credor de provar a relação subjacente. Quem tem que provar que não há causa para o reconhecimento de dívida é o devedor.”

No caso dos autos, provou-se que o cheque foi emitido pelo executado (marido da embargante/apelante) para garantia de pagamento do valor ainda em dívida, referente a um montante global de € 85.000,00 que lhe havia sido emprestado pelo exequente para fazer face aos encargos na sua empresa, da qual é gerente, sendo a embargante/apelante sócia da mesma.
Mais se provou que o executado utilizou uma parte do valor de € 85.000,00 para pagar a fornecedores da empresa de que é sócio gerente, e a outra parte para liquidar parcialmente o empréstimo.
Assim, provou-se existir uma causa para a emissão do cheque.
Nada impedia que o executado (marido da embargante/apelante) assumisse pessoalmente o pagamento de encargos da sociedade de que era sócio-gerente, assunção de dívida concretizada através da emissão de um cheque emitido por si enquanto pessoa singular, sacado sobre uma conta de que era titular.
Questão diferente é a que respeita ao proveito comum do casal.
Quanto a esta matéria, apurou-se apenas que o executado é sócio gerente de uma sociedade e que a embargante/apelante é igualmente sócia de tal sociedade.
Contudo, do facto de exercer a gerência e ser sócio de uma sociedade comercial de responsabilidade limitada não decorre para o executado (marido da embargante/apelante) a qualidade de comerciante.
É que, o art. 13º do Código Comercial define comerciante nos seguintes termos: «São comerciantes as pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão e as sociedades comerciais».
Ora, do facto de exercer a gerência e ser sócio de uma sociedade comercial de responsabilidade lda, não decorre para o executado (marido da embargante/apelante) a qualidade de comerciante, pois que aí age como representante de uma sociedade, ainda que, no exercício da actividade comercial que esta desenvolve. Ou seja, não exerce o comércio em nome próprio, mas sim da sociedade.

Como se afirma no sumário do Ac. STJ de 10/12/2015, relator Abrantes Geraldes, disponível in www.dgsi.pt: “O facto de o cônjuge devedor exercer a função de gerente da sociedade não o qualifica como comerciante, impedindo a invocação da presunção de comunicabilidade da dívida emergente do art. 1691º, nº 1, al. d), do CC.
Com efeito, a sociedade comercial tem autonomia jurídica relativamente aos detentores do respectivo capital social ou aos gerentes.
Assim, os actos praticados em benefício da sociedade só por via indirecta se podem repercutir na esfera dos demais interessados, maxime do gerente, seja este ou não simultaneamente sócio da mesma sociedade.
E como se afirma ainda no Ac. STJ supra citado, que agora seguimos de perto: “Não cumpre o desiderato do proveito comum do casal a constituição de uma dívida que aproveita directamente a uma sociedade de que o cônjuge é gerente, sendo indiferente para o caso, por revelar um interesse meramente reflexo ou mediato, o facto de tal dívida representar um incremento na actividade da sociedade, com efeitos reflexos na futura distribuição de dividendos pelos sócios ou na capacidade da sociedade para suportar a remuneração atribuída ao cônjuge na sua qualidade de gerente.”
Nos termos do art. 1691º, nº 1, al. d), do CC, com ressalva do regime de separação de bens, presume-se o proveito comum na contracção de dívidas efectuada por qualquer dos cônjuges actuando no exercício do comércio.
E, nos termos do art. 15º do Cód. Com., presumem-se contraídas no exercício do comércio as dívidas comerciais do cônjuge comerciante.
Contudo, para se extrair, por via de presunção legal, o proveito comum do casal seria imprescindível que pudesse afirmar-se que o desempenho pelo executado (marido da embargante/apelante) do cargo de gerente da sociedade por quotas o transformava em comerciante, conclusão que não encontra sustentação.
Só o exercício em nome próprio é susceptível de tornar um sujeito comerciante. Os actos praticados em nome de outrem repercutem-se na esfera jurídica do representado ou mandatário ou, em qualquer caso, e na falta de relação jurídica que funde um tal resultado, não produzem efeitos na esfera do sujeito que actua, e não conduzem por isso à aquisição da qualidade de comerciante por quem os pratica – poderão é, se se verificarem os respectivos pressupostos, ser aptos para tornar comerciante o sujeito em cuja esfera vão ter eficácia” (Cassiano Santos, Direito Comercial Português, vol. I, pág. 113).
De facto, de acordo com o já referido art. 13º do Código Comercial, são comerciantes, para além das sociedades comerciais, as pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem disso profissão.
E tal não sucede com os gerentes de sociedades por quotas. Quem deve ser qualificado como comerciante é a sociedade, não havendo base legal para considerar que, pelo facto de alguém exercer o cargo de gerente, está, ipso facto, a exercer, de forma profissional, a actividade de comerciante.
A representação da sociedade não constitui, por si, o exercício do comércio.
Daí, não podermos concluir, como se concluiu na sentença recorrida, que o marido da embargante/apelante seja comerciante.
Assim sendo, e quanto à embargante/apelante, não se aplica o disposto na alínea d) do nº1 artº 1691º do CC em que para afastar a comunicabilidade da dívida, há que provar que a dívida não foi contraída em proveito comum do casal, prova essa que não foi feita.
Logo, também não tem aqui aplicação o disposto no artº 15º do C.Comercial, de acordo com o qual, tal dívida se presume contraída no exercício do comércio daquele.
E não se tendo provado quaisquer factos que permitam a subsunção do caso às demais alíneas do nº 1 do artº1691º do CC, a dívida não pode ser considerada da responsabilidade de ambos os cônjuges.

Procede, pois, a apelação, sem necessidade de conhecimento da segunda questão suscitada, porque já não relevante e inútil.
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V. Decisão.

Perante o exposto, acordam as Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a sentença recorrida e determinando-se a extinção da execução no que à embargante/apelante concerne.
Custas pelo apelado.
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Guimarães, 4 de Junho de 2020

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Alexandra Viana Lopes
Anizabel Pereira

(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações” efectuadas que o sigam)