Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3740/21.7T8VCT.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO
FACTOS INSTRUMENTAIS OU COMPLEMENTARES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - No contrato de seguro, o declaratário corresponde à figura do tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos, tendo em consideração, em matéria de interpretação do contrato, o sentido que melhor corresponda à sua natureza e objecto, devendo-se nas vertentes da “definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos” adoptar o sentido comum ou ordinário dos termos utilizados na apólice.
II – É possível ao tribunal atender a factos instrumentais e complementares, na medida em que há todo o interesse em que o juiz, para melhor compreensão dos factos principais e para uma decisão de mérito, valorize a verdade material, fazendo uso dos factos instrumentais para responder de forma explicativa ou restritiva à matéria controvertida.
III - Incumbe ao segurado ou beneficiário explicitar as circunstâncias da verificação do sinistro e as eventuais causas da sua ocorrência, enquanto que, por sua vez, recai sobre a seguradora o ónus de provar os factos excludentes do risco.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra G... Seguros, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 8.160,00€ (oito mil cento e sessenta euros) a título de danos materiais, acrescida de juros à taxa legal em vigor, até efectivo e integral pagamento; e ainda a pagar ao Autor o dano de privação de uso numa taxa nunca inferior a 25€ por dia até ao trânsito em julgado, e; subsidiariamente, a indemnização que vier a apurar em sede de liquidação de sentença relativamente a danos patrimoniais.
Em síntese alegou que, no dia 22 de dezembro de 2020, no imóvel de que é proprietário, ocorreu um sinistro, ficando com a “cave inundada”, por a bomba ter deixado de funcionar, provocando danos na cave que ascenderam ao montante 8.160,00€, encontrando-se a referida cave ainda por reparar não permitindo o seu uso habitual.
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A Ré contestou, impugnando motivadamente os factos alegados pelo Autor, alegando que o sinistro em causa nos autos não se encontra abrangido pelo contrato de seguro celebrado entre as partes e como tal não é responsável por qualquer indemnização.
Concluiu pedindo a improcedência da acção, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenou a Ré G... Seguros, S.A., a pagar ao Autor AA a quantia de € 7.350,00 (sete mil trezentos e cinquenta euros), acrescidos dos juros à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, absolvendo a Ré do demais peticionado.
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II- Objecto do recurso

Não se conformando com essa decisão, veio a Ré interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. O presente recurso visa discutir a decisão proferida acerca da matéria de facto e de direito que recaiu sobre a questão em mérito nos autos, visando a reapreciação de ambas, a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão que julgue totalmente improcedente o pedido deduzido pelo autor.
2. A recorrente discorda do teor do facto provado n.º 6 constante da sentença, no que tange à natureza das águas escoadas pela bomba que avariou e provocou a inundação da cave do imóvel seguro, nomeadamente onde se refere que se tratam de água pluviais;
3. Tal facto não foi alegado nem pelo autor, nem pela ré, nos respectivos articulados, nem o Tribunal recorrido, ao longo da instrução da causa, tão-pouco o introduziu nos autos, garantindo às partes o contraditório relativamente ao mesmo.
4. Ademais inexiste qualquer prova no processo de que se tratam de águas pluviais, não estando demonstrado, com o menor de rigor, qual a origem das águas bombeadas pela bomba que avariou e, em especial, se tinham a natureza de águas pluviais.
5.O Tribunal recorrido, por seu turno, não manifestou a menor intenção de tentar perceber qual era, de facto, a origem da água que causou danos no imóvel seguro, bem sabendo, por experiência de vida e por hipótese, que podiam ser águas pluviais, águas da rede de abastecimento de água do imóvel ou águas freáticas, naturalmente presentes no solo.
6. O Tribunal recorrido errou ao julgar provado que “o aqui Autor, verificou que a cave estava inundada e acionou o seguro, sendo que esta inundação, deveu-se a uma bomba que não fez o escoamento de águas pluviais, tendo causado danos no imóvel, que se passam a discriminar…”
7. Não se tratando de um facto alegado pelas partes, nem de um facto introduzido nos autos pelo Tribunal, em sede de instrução, com vista ao exercício do contraditório, pelas partes; e muito menos, por inexistir qualquer prova no processo acerca da origem das águas bombeadas pela bomba que se avariou, impõe-se a revogação da decisão que julgou provado o facto 6 da sentença deve ser revogada, e a sua substituição por outra que julgue provado o seguinte:
“6 - O aqui Autor, verificou que a cave estava inundada e accionou o seguro, sendo que esta inundação, deveu-se a uma bomba que não fez o escoamento de águas, tendo causado danos no imóvel, que se passam a discriminar:
- Pavimento de soalho de madeira levantado e danificado.
- Parte do rodapé danificado
- Parede junto ao chão danificado.”
8. O que se requer.
9. A recorrente discorda da decisão que julgou provado o facto provado n.º 10 constante da sentença, o qual, de acordo com a sentença foi julgado nestes termos mercê da sua aceitação por parte da ré.
10. Compulsados os pontos 11, 12 e 13 da contestação da aqui apelante, facilmente se verifica que a ré impugnou expressamente toda a factualidade atinente à ocorrência da inundação que se verificou no imóvel seguro, tal como ela emerge alegada no petitório.
11. Ao contrário do que vem dito na sentença, a ré não aceitou qualquer dos factos alegados pelo autor no articulado inicial, mormente os atinentes à ocorrência e à causa da inundação aqui em mérito.
12. Mal andou o Tribunal recorrido ao considerar provada toda a factualidade vertida no ponto 10º dos factos provados, na medida em que a ré não a aceitou em momento algum dos autos, nem mesmo quando alegou o teor da conversa tida entre o averiguador da ré e o autor, aquando da averiguação ao sinistro, o que, notoriamente, não se confunde com qualquer aceitação de factos alegados pelo autor no articulado inicial.
13.Aré, atento o que ficou alegado na contestação, não ofereceu aos autos qualquer causa para a inundação verificada na cave do imóvel seguro.
14. Assim, pelo facto de se tratarem de factos não alegados pelas partes e, muito menos, reconhecidos ou aceites pela apelante; por não terem sido introduzidos nos autos pelo Tribunal, em sede de instrução, com vista ao exercício do contraditório, pelas partes; e por não existir qualquer prova no processo em que se estribe a decisão de os ter julgado provados, deve a decisão que julgou provado o facto 10 da sentença ser revogada e substituída por outra que elimine o mencionado facto do elenco dos factos provados/não provados da sentença.
15. Quando assim se não entenda, deve a aludida decisão ser revogada e substituída por outra que que julgue não provado o facto vertido no ponto 10º da sentença.
16. Por uma questão de celeridade e economia processuais, dá-se aqui por reproduzido o teor dos factos provados n.º 1 a 4, constantes da sentença.
17.Quem invoca um direito deve fazer provados factos que lhe  subjazem, pelo  que, no caso em apreço, era ónus do autor alegar os factos que permitissem o enquadramento dos danos que sofreu com a sobredita inundação nos termos da cobertura contratual de danos por água.
18.Ora, a este respeito mostra-se alegado no petitório (e impugnado pela ré…!) que a inundação que se verificou na cave do imóvel seguro ficou a dever-se ao facto de uma bomba ter deixado de funcionar (facto 5º da p.i.), a qual não fez o escoamento de águas, tendo causado danos no imóvel (facto 6º da p.i.).
19. Nada mais vem descrito nos autos a respeito da causa da inundação que se verificou no imóvel seguro, nomeadamente, a natureza da bomba que avariou, onde se situava tal bomba, se se fazia ou não parte do sistema de esgoto de águas pluviais do imóvel seguro e qual a origem das águas que entraram na cave do imóvel seguro.
20. Nenhum destes factos resultou provado nos autos, o que impede o enquadramento dos danos verificados no local de risco da apólice na cobertura de “danos por água” contratada entre as partes.
21. Atenta a factualidade provada, a única causa determinante da ocorrência da sobredita Inundação consistiu na avaria de uma bomba de extracção de águas, desconhecendo-se de onde eram extraídas as ditas águas e para onde as mesmas eram encaminhadas.
22. O autor não alegou nem logrou demonstrar que a bomba em apreço nos autos, que se avariou, estava conectada à rede de esgoto de águas pluviais, bem podendo tratar-se de uma bomba destinada à extracção e nivelamento de águas naturalmente presentes no solo, responsável pela manutenção no nível freático a uma altura que não atinja o imóvel seguro.
23. Atendendo a que a garantia estabelecida na cobertura contratual de “danos por água” abrange os danos, de carácter súbito e imprevisto, provenientes de rotura, entupimento ou transbordamento da rede interna de distribuição de água e esgotos do edifício, incluindo nestes o sistema de esgoto de águas pluviais, onde se encontram os bens seguros, assim como os aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água do mesmo edifício e respectivas ligações, impunha-se ao apelando a alegação e prova da origem dos danos sofridos pelos bens seguros;
24. A circunstância de a bomba em causa nos autos estar ligada à rede de esgotos de águas pluviais do imóvel seguro configurava um facto essencial à procedência da acção, cujo ónus de alegação e prova impendia sobre o autor.
25. De resto, o autor não alegou nem provou que a inundação verificada na cave do imóvel seguro teve como causa uma rotura, um entupimento ou um transbordamento da rede interna de distribuição de água e esgotos do edifício, incluindo nestes o sistema de esgoto de águas pluviais, sendo muito plausível, face à queda de chuvas torrenciais na data do sinistro (facto provado 9), que a dita inundação na cave do imóvel tivesse tido como causa uma simples elevação do nível freático, decorrente de uma forte precipitação verificada no local onde se mostra implantado o imóvel seguro, o que não está contratualmente garantido.    
26. A prova de tais factos, porque constitutivos do direito que invocou contra a ré, competia exclusivamente ao autor, pelo que, mal andou o Tribunal recorrido em ter julgado verificados e demonstrados os pressupostos de facto de que dependia a procedência do pedido formulado contra a aqui recorrida, julgando a acção parcialmente procedente.
27. Atento o exposto, a sentença recorrida deve ser revogada por Vossas Excelências e, em sua substituição, deve ser proferida decisão que absolva a ré do pedido.
28. A decisão ora em apreço viola o preceituado no artigo 406º do Código Civil.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso se fará inteira JUSTIÇA.
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Admitido o recurso, foram colhidos os vistos legais.
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III- O Direito

Como resulta do disposto nos art..ºs 608.º, nº. 2, ex vi do artº. 663.º, n.º 2, 635.º, nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso. 
Assim, face às conclusões das alegações de recurso, cumpre proceder à reapreciação da matéria de facto e, subsequentemente, decidir se é de revogar a decisão como o pugna a recorrente.
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Fundamentos de facto

Factos provados

1 - O Autor é dono e legítimo proprietário de um prédio urbano sito na Rua ..., ... ..., que constitui a sua casa de morada de família.
2 - O Réu, por sua vez, é uma sociedade seguradora que exerce a sua atividade de seguros e resseguros explorando diversos ramos de eguro.
3 - No exercício dessa atividade o ora Réu celebrou com o Autor um contrato de seguros de responsabilidade civil, denominado “Multirrisco Casa, Opção ... “, titulado pela apólice n.º ...69, o qual teve início em 19.09.2020.
4 - Do referido contrato de seguro, entre outras coberturas, destacam-se: danos por água: “A garantia abrange os danos, de carater súbito e imprevisto, proveniente de rotura, entupimento ou transbordamento da rede interna de distribuição de água e esgotos do edifício, incluindo nestes o sistema de esgoto de águas pluviais, onde se encontram os bens seguros, assim como os aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água do mesmo edifício e respetivas ligações “.
5 - No dia 22 de dezembro de 2020, no imóvel supra descrito em 1, deu-se um sinistro que constitui no seguinte: “cave inundada”, por bomba deixar de funcionar.
6 - O aqui Autor, verificou que a cave estava inundada e acionou o seguro, sendo que esta inundação, deveu-se a uma bomba que não fez o escoamento de águas pluviais, tendo causado danos no imóvel, que se passam a discriminar:
- Pavimento de soalho de madeira levantado e danificado. - Parte do rodapé danificado
- Parede junto ao chão danificado.
7 – O valor dos danos sofridos pelo Autor em consequência do sinistro dos autos mencionados em no número 6), é de € 7.350,00.
8 – O Autor não efetuou a reparação do pavimento e dos restantes danos.
9 – Na data do sinistro registou-se forte intempérie na zona onde se situa o imóvel do Autor, nomeadamente com quedas de chuvas torrenciais.
10 – Face  ao enorme volume de precipitação ocorrida, a bomba de extração de águas, deixou de funcionar, deixando de ter capacidade de bombear as águas pluviais que se introduziram na cave do Autor.
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Factos não  Provados

a) Os danos sofridos pelo autor em consequência do sinistro narrado nos autos importa a quantia de € 8.135,00€ (oito mil cento e trinta e cinco mil euros) sem IVA.
b) O Autor procedeu à reparação da bomba no valor de € 25.
c) A bomba em causa nos autos, não se encontrava, à data do sinistro, ligada à rede interna de distribuição de água e esgotos do edifício seguro, ou do seu sistema de esgoto de águas pluviais.
d) O Autor encontra-se privado do uso da cave.
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Apreciação sobre o mérito

Começa a recorrente por discordar com o teor do facto dado como provado no ponto 6, no que tange à natureza das águas aí ditas como pluviais, entendendo não se tratar de um facto alegado pelas partes, nem alvo de instrução, e igualmente não ter sido produzida prova nesse sentido.
De facto, no âmbito de um processo cível, a alegação de factos e a sua prova constitui o cerne fundamental sobre o qual incidirá uma decisão de mérito.
Pois, de acordo com o princípio do dispositivo, incumbe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (forma de oposição), razão por que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.
Todavia, o art.º 5.º, n.º 2, al. a) e b), a que corresponde o anterior 264.º, n.º 2, do Código de Processo Civil permite ao juiz a consideração, mesmo oficiosa, respectivamente, dos factos instrumentais, bem como dos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciarem.
Na noção dada por CASTRO MENDES (Direito Processual Civil, II, p. 208), factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos actos pertinentes.
Já segundo TEIXEIRA DE SOUSA (Introdução ao Processo Civil, p. 52), tratam-se de factos que indiciam os factos essenciais.
Por outras palavras, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais.
Conforme distingue muito claramente LOPES DO REGO (Comentário ao CPC, p. 201), "factos instrumentais definem-se, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da acção e da defesa e, por isso mesmo, não carecem de ser incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material", enquanto que "factos essenciais, por sua vez, são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu".
Já o poder inquisitório confere ao juiz tomar em consideração na decisão os factos que "sejam complemento ou concretização de outros que as partes oportunamente hajam alegado", visando suprir certas deficiências da alegação, e não a completa omissão de factos essenciais à procedência da pretensão formulada ou da excepção deduzida, conforme decidiu o STJ no Ac. 01.07.2004, proc. 03B3417, Cons. Noronha do Nascimento, dgsi.pt.
De qualquer modo, tem-se também entendido que o tribunal não está obrigado a indicar especificada e concretamente os factos instrumentais que o conduziram à fixação dos factos finais ou fundamentais (Ac. STJ, 17.06.1998, BMJ, 478, p. 101), se os mesmos não constarem da aludida selecção da matéria de facto.
Assim, conclui-se que é possível ao tribunal atender a tal factualidade instrumental e complementar, na medida em que há todo o interesse em que o juiz, para melhor compreensão dos factos principais e para uma decisão de mérito, valorize a verdade material, fazendo uso dos factos instrumentais para responder de forma explicativa ou restritiva à matéria controvertida.
Valorando esta prática, o STJ (Ac. 17.06.2003, proc. 03B1007, Cons. Pires da Rosa, dgsi.pt) decidiu que "a resposta explicativa ou restritiva a um facto incluído na base instrutória pode incluir factos instrumentais, factos que ajudem à descoberta da verdade, da essencialidade daqueles que constituem a causa de pedir, porquanto seja preciso explicar o que a simples expressão naturalística destes não possa fornecer" – neste sentido veja-se também o Acórdão do STJ, de 28.03.2006, proc. 06A407, Cons. João Camilo, in dgsi.pt).
Por esta via, ao juiz são facultados os meios tidos por necessários para produzir uma decisão de mérito que atinja, tanto quanto possível, o ideal da justiça material.
Ora, como se constata da contestação, concretamente do alegado nos arts. 23.º e 24.º, desse articulado, o próprio A. declarou ao averiguador mandatado pela Ré que, no dia do sinistro, se registou uma forte intempérie naquela zona onde se situa o imóvel e que, atendendo ao enorme volume de precipitação ocorrida, a bomba de extracção de águas freáticas entrou em sobre esforço e consequentemente sobreaquecimento que fez com que deixasse de funcionar.
Em face do aí alegado concluiu que foi essa água proveniente do solo encharcado que acabou por emergir através da placa térrea da habitação, por forma a excluir o risco segurado por não existir, para além do mais, qualquer ligação da aludida bomba à rede interna de distribuição de água e esgotos do imóvel.
Constata-se, assim, que foi a Ré quem veio introduzir esta temática em sua defesa perfeitamente enquadrável nos temas de prova respeitantes ao contrato de seguro e interpretação das cláusulas contratuais.
Ora, como se sabe, água pluvial é a água provinda das chuvas, que é colectada pelos sistemas urbanos de saneamento básico nas chamadas galerias de águas pluviais ou esgotos pluviais e que pode ter tubulações próprias (sendo chamado, neste caso, de sistema separador absoluto, sendo posteriormente lançada nos cursos d'água, lagos, lagoas, baías ou no mar).
Aliás, como resulta da factualidade vertida no ponto 9, dos factos dados como provados, e que não foi alvo de qualquer impugnação, na data do sinistro, registou-se forte intempérie na zona onde se situa o imóvel do A., nomeadamente com quedas de chuvas torrenciais.
Como tal, não se pode deixar de afirmar que a questão quanto à natureza das águas como sendo pluviais foi equacionada nos autos e alvo da respectiva instrução.
Por outro lado, quer quanto a essa factualidade, quer quanto ao facto de se ter dado como provado no ponto 10 que foi devido ao enorme volume de precipitação ocorrida que a bomba de extracção de águas deixou de funcionar e, assim, de ter capacidade de bombear as águas pluviais que se introduziram na cave do A., o tribunal a quo apontou as concretas razões pelas quais deu essa matéria como provada, sem que tenhamos razões para valorar de forma diferente a prova produzida.
Concretamente como foi explicitado, sem que a Ré/Recorrente ponha em causa tais depoimentos e declarações, a testemunha BB, companheira do Autor, atestou ter ocorrido uma rotura dos tubos de drenagem da canalização exterior da casa que fez com que a bomba avariasse, sendo que esses tubos tem ligação à bomba em questão, o que provocou danos em todo chão de madeira da cave, o que foi conjugado com as declarações do A. que confirmou os factos dados como provados, em consonância com a demais prova produzida nesse sentido.
Nesse sentido, o tribunal a quo teve em consideração também o facto da testemunha CC, que presta serviços de peritagem à Ré e que confirmou os danos que a cave do Autor apresentava, ao atestar que o sinistro teve origem na bomba do poço que não conseguir bombear a água da chuva e que se não tivesse chovido tanto, o sinistro não teria ocorrido.
Apesar de ter afirmado que a bomba não tinha ligação a esgotos, nem a águas pluviais do edifício, nessa parte, não mereceu qualquer credibilidade do tribunal, visto que o mesmo também afirmou que não fez qualquer visualização da bomba, daí não se perceber, se não viu a bomba, como pôde afirmar a falta de ligação a esgotos e sistema de águas pluviais do edifício do Autor.
Acresce que, apesar da Ré/recorrente referir não ter aceite a factualidade constante da primeira parte do ponto 10, da matéria dada como provada, o facto é que mencionou no ponto 6, da sua contestação, que quando a ruptura, entupimento ou transbordamento de água, tenha tido origem ou ficado a dever-se, como sucedeu, e o próprio A. confessou, devido ao facto da bomba não ter efectuado o escoamento das águas, não preenche os requisitos da cláusula que a obrigava a assumir o risco, ou seja, por esta via, admitiu que a ocorrência se ficou a dever a essa circunstância.
Ora, conjugado o aí alegado com o depoimento da sua própria testemunha nos moldes apontados e da demais prova, tem esse facto de ser mantido, tanto mais que no ponto 5, dos factos provados, se dá como provado que o sinistro consistiu no facto da cave ter ficado inundada por a bomba ter deixado de funcionar, sem que a Ré/Recorrente tenha vindo pôr em causa esta factualidade.
Como tal, é de manter a factualidade impugnada nos factos dados como provados.
Perante essa factualidade, é pacífico que estamos perante um contrato de seguro do ramo multirriscos habitação, titulado pela apólice integrada pelas condições gerais, especiais e particulares acordadas.
O mesmo contrato rege-se, pois, pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas pela lei, resultantes do mero consenso entre as partes, pelo regime do contrato de seguro, com os limites nele indicados e os decorrentes da lei geral, e, subsidiariamente, pelas disposições da lei comercial e da lei civil.
O autor, na qualidade de segurado, para poder exigir da ré seguradora a prestação acordada, no caso de verificação de algum dos riscos por esta cobertos, tem o ónus de alegar e provar a ocorrência efectiva desses riscos - Cfr. acórdão da Relação do Porto de 16.12.2015 proferido no processo 2833/14.1TBMTS.P1 e, ainda, Contrato de Seguro, Coimbra Editora 1999, José Vasques, página 257.
Posto isto, o que importa é saber se, no âmbito do contrato de seguro, aqui em causa, socorrendo-se da interpretação das Condições Gerais e Particulares da Apólice de Seguro - riscos cobertos e exclusões - se deve, ou não, ter por excluído o direito à indemnização peticionado pelo Autor, face ao teor da cláusula especificada no ponto 4, dos factos provados.
A este respeito como se referiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 08.03.2012, Proc. N. 2187/08.5/VLS.L1. S1, “é pacífico o entendimento, segundo o qual é matéria de direito a interpretação do negócio jurídico” e que “faltando o conhecimento desta vontade real, deve seguir-se os critérios previstos nos art.ºs. 236.º n.º 1 e 238.º  n.º 1 do C. Civil”, competindo, assim, neste quadro legal, aos tribunais determinar o sentido em que deve ser fixado o objecto contratual.
Mais, no mesmo se acrescenta que no contrato de seguro “o declaratário corresponde à figura do tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos, tendo em consideração, em matéria de interpretação do contrato, o sentido que melhor corresponda à sua natureza e objecto”, devendo-se nas vertentes da “definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos” adoptar o sentido comum ou ordinário dos termos utilizados na apólice.
Aduz-se, ainda, que “em casos de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações” (cf. Também Ac. STJ de 19/10/2010 – Proc. 13/07 .1TBCHV. G1: J. C. Moitinho de Almeida “Contrato de Seguro” Estudos pag. 124; José Vasques “Contrato de Seguro pag. 350 e 355).
Ora, no caso de “seguros de danos”, como é o caso em apreço, visa o segurado acautelar os prejuízos causados por um determinado evento no seu património, daí pretender cobrir esse risco, por forma a ser ressarcido no caso daquele evento se verificar.
Considerando os princípios basilares enunciados, importa atentar no teor da referida cláusula de cobertura do risco por danos por água, onde se lê que a[A] garantia abrange os danos, de carater súbito e imprevisto, proveniente de rotura, entupimento ou transbordamento da rede interna de distribuição de água e esgotos do edifício, incluindo nestes o sistema de esgoto de águas pluviais, onde se encontram os bens seguros, assim como os aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água do mesmo edifício e respetivas ligações“.
Ora, como já se referiu, incumbe ao segurado ou beneficiário explicitar as circunstâncias da verificação do sinistro e as eventuais causas da sua ocorrência, enquanto que, por sua vez, recai sobre a seguradora o ónus de provar os factos excludentes do risco.
Como se mencionou na decisão impugnada, fazendo alusão ao Acórdão do STJ de 10.03.2016, proferido no proc. 4990/12.2TBCSC.L1.S1“…Nem sequer se afigura que recaia sobre o segurado o ónus de provar a causa específica que teve na origem das ocorrências configuradas no contrato como integradoras do risco, o que constituiria, de resto, uma tarefa quantas vezes impossível para o próprio segurado. O que se lhe impõe, nos termos do n.º 2 do artigo 100.º da LCS, é que explicite as circunstâncias do sinistro e as eventuais causas da sua ocorrência com vista a permitir à seguradora, precisamente, fazer tal indagação por via pericial…”
Ora, no caso em apreço, como resulta da factualidade apurada, face à ocorrência de chuvas torrenciais pela intempérie registada na zona onde se situa o imóvel do A., as águas pluviais introduziram-se na cave da habitação do A. em consequência do enorme volume de precipitação ocorrida.
Considerando que a água pluvial é colectada pelo saneamento básico ou esgotos pluviais tem de se concluir que tal não se verificou, ou seja, esse sistema, por si só, não foi capaz de escoar tais águas devido ao volume anormal de precipitação verificada no dia do sinistro, daí a inundação.
Resulta, assim, ter-se verificado um fenómeno súbito e imprevisto que fez transbordar a água para a cave, por a rede de água e esgotos do edifício do A. não ter sido capaz de escoar a água das chuvas, agravado pelo facto da bomba de extracção de águas ter deixado também de funcionar.
Tal bomba serviria de reforço àquele sistema.
Contudo, não dispondo o segurado de um tal sistema extra, sempre se teria de verificar encontrar-se o sinistro a coberto do seguro.
Esse risco que o Autor, ao celebrar o contrato de seguro em causa nos autos com a Ré, pretendia acautelar perante situações análogas à ocorrida, é, a nosso ver, enquadrável na clausula que previa a garantia de danos nos bens seguros provocados por água, considerando a prova do nexo de causalidade entre o sinistro ocorrido e os danos existentes
 Acresce que a Ré/Recorrente não logrou demonstrar os factos excludentes do risco, como pretendia com a visada alteração dos factos e pela sua visão restritiva da análise da factualidade dada como provada que se julga permitir as ilações apontadas.
Nestes termos, deve, pois, o recurso ser julgado improcedente e consequentemente, a mantida a decisão.
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IV- Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar o recurso improcedente, devendo, em consequência, ser mantida a decisão.
Custas pela Ré/Recorrente.
Registe e notifique.
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Guimarães, 20.4.2023
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária, sem observância do novo acordo ortográfico, a não ser nos trechos transcritos, e é por todos assinado electronicamente)