Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
9217/15.2T8VNF.G1
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
AUDIÊNCIA PRÉVIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- Vários princípios gerais do processo civil têm dignidade constitucional por respeitarem a direitos considerados fundamentais, entre eles o da equidade, nomeadamente nas vertentes da contrariedade e da igualdade de armas das partes;

2- Existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório ideias de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema de comunicações entre as partes e o Tribunal;

3- Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem;

4- Em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, caso o juiz entenda, finda a fase dos articulados, que o processo deverá findar imediatamente com decisão de mérito, deve convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito, sem o que a prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença viola o princípio do contraditório (constituindo uma decisão-surpresa, caso a questão não tenha sido debatida nos articulados);

5- Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

Sumário (elaborado pela relatora - cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

1- Vários princípios gerais do processo civil têm dignidade constitucional por respeitarem a direitos considerados fundamentais, entre eles o da equidade, nomeadamente nas vertentes da contrariedade e da igualdade de armas das partes;
2- Existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório ideias de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema de comunicações entre as partes e o Tribunal;
3- Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem;
4- Em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, caso o juiz entenda, finda a fase dos articulados, que o processo deverá findar imediatamente com decisão de mérito, deve convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito, sem o que a prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença viola o princípio do contraditório (constituindo uma decisão-surpresa, caso a questão não tenha sido debatida nos articulados);
5- Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
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I. RELATÓRIO

João propôs a presente ação declarativa, com forma de processo comum, contra António, proprietário do estabelecimento individual que gira sob o nome de Stand Auto – S., cujo estabelecimento principal se situa na Avenida … Joane e Banco X S.A., pedindo que seja reconhecido que o contrato compra e venda e o contrato de crédito ao consumo para compra do veículo Opel Astra de matrícula HE foram resolvidos com justa causa, e, consequentemente, se condene:

I - o primeiro Réu, António, a pagar:

a) ao Banco x, S.A. a quantia de € 9.762,63 (nove mil setecentos e sessenta e dois euros e sessenta e três cêntimos) correspondente ao valor que o Banco X mutuou e lhe entregou para que o A. comprasse o veículo automóvel Opel Astra HE;
b) ao Autor a quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros) correspondente à diferença de preço da venda do veículo Opel Astra HE, que foi paga com a entrega do veículo Seat Ibiza de matrícula PH;
c) ao Autor a quantia de € 500,00 ( quinhentos euros) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais;

II - o segundo Réu, Banco X, S.A., a pagar ao A. a quantia de € 801,35 (oitocentos e um euros e trinta e cinco cêntimos) correspondente ao dinheiro que recebeu de remuneração do capital que emprestou durante a vigência do contrato, devendo ainda ser o Banco condenado a devolver a Livrança que por força do contrato de mútuo lhe foi entregue sem a preencher.
Alegou, para tanto e em síntese, ter comprado ao Réu António, com financiamento do Réu Banco X, um automóvel que apresentou inúmeras avarias/desconformidades, tendo, por último, deixado de funcionar, pelo que o autor resolveu os contratos de compra e venda e de financiamento, que são interdependentes, sendo que a anulabilidade de um arrasta a anulabilidade do outro.
Contestou António, defendendo-se por exceção, ao invocar a ineptidão da petição inicial e a ilegitimidade ativa, e por impugnação, ao negar as desconformidades alegadas, concluindo pela inexistência de fundamento para a resolução do contrato e, em consequência, pela improcedência da ação.
O Banco contestou, afirmando a independência do contrato de crédito em relação à compra e venda e deduziu reconvenção a título subsidiário, para a hipótese de vir a ser declarada a invalidade do contrato de mútuo e o pedido do A. ser julgado procedente, devendo então o Autor ser condenado a devolver o veículo ao Réu António, bem como o mesmo Réu ser condenado a pagar (devolver) ao Réu Banco X a quantia que oportunamente lhe foi entregue, ou seja, 9.762,63 € (nove mil setecentos e sessenta e dois euros e sessenta e três cêntimos), acrescida dos juros devidos.
O A. respondeu, exercendo o contraditório.
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Foi proferida decisão a não admitir a reconvenção deduzida pelo Banco X e a absolver o A. da instância reconvencional e despacho saneador, onde as arguidas exceções dilatórias da nulidade de todo o processo e da ilegitimidade ativa foram julgadas improcedentes.
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Por se considerar que o estado dos autos permitia conhecer, de imediato, dos pedidos, foi (invocando-se a al. b), do n.º 1, do art. 595º, do CPC) proferido despacho saneador- sentença, onde se julgou a ação improcedente e se absolveram os Réus dos pedidos, com custas a cargo do Autor, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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O Autor apresentou recurso de apelação, pugnando por que seja dado provimento ao recurso, julgando-se o mesmo procedente. Formula as seguintes

CONCLUSÕES:

1.ª - Alteração da matéria de facto, documentalmente ter-se-á de dar por provado, que:

7. - o A. formalizou o pedido de financiamento em 10 de Setembro de 2014 e levou o automóvel no dia 12 de Setembro de 2014 com garantia total de 12 meses, doc. 4 da P.I.;
8. - em 27 de Outubro de 2014 o carro avariou tendo sido logo rebocado com ordens do primeiro R. para uma oficina indicada por este, vd. doc. 5 da P.I.
9. - O A. enviou ao primeiro R. carta registada com aviso de receção, datada de 10 de Fevereiro de 2015, enunciando todos os seus defeitos solicitando numa prazo de 10 dias a sua reparação definitiva, bem como as facturas de eventuais peças novas que tivesse que usar na reparação do automóvel:
"Dificuldade a pegar em frio e em quente, principalmente em frio;
Problemas na válvula EGR.; Verte óleo do motor no local onde pernoita o mesmo na parte inferior encontra-se completamente ensopado/ babado em óleo; Chauffage apenas deita ar frio ou morno, no seu perfeito estado de funcionamento deveria de deitar frio, morno e quente; Deita imenso fumo pelo escape após ligar o motor, e em andamento; necessário arranjar um copo do filtro do gasóleo compatível com o carro, porque não foi possível encaixar a tampa pertencente ao mesmo quando foi anteriormente trocado, derivado a não ser totalmente indicado; Avaria no Controlo de Estabilidade, (Ângulo de Direcção); após ter sido substituída a placa CIM (Fita de Airbag) na última vez que esteve na Opel, não fez o alinhamento da direcção, logo a mesma, verifica-se desalinhada; sensores de estacionamento, livro de revisões completo, vidro da frente substituído e escovas e gancho de reboque", doc. 6 da P.I..
10 - Neste novo concerto o automóvel ficou 16 dias para reparar, tendo sido entregue ao A. no dia 27 de Fevereiro de 2015, vd. doc. 7 da P.I..
11 - No dia 3 de Setembro de 2015, dentro ainda do período de garantia, o veículo avariou, doc. 4.
12. – A viatura teve de ser rebocada para a residência do A. vd. doc. 8 P.I..
13. - Por carta registada datada de 7 de Setembro de 2015, com aviso de receção, resolveu o contrato de compra e venda de veículo automóvel e o contrato de crédito coligado com o Banco x, S.A., doc. 9 P.I..
14. - O A. enviou carta registada datada de 7 de Setembro de 2015 ao segundo R., o Banco X, resolvendo o contrato de financiamento, informando-o que existiu um incumprimento ou desconformidade – na medida em que o bem vendido não cumpre com a função precípua entre o contrato de compra e venda coligado com o presente contrato de crédito, e uma vez que já interpelou o fornecedor/ vendedor para eliminar os problemas ou desconformidades este não o fez, vd. Doc. 10 P.I..
15. - O A. informou ainda o Banco X que não iria pagar mais prestações, pois não está a usar o bem vendido. Explicou ainda que o automóvel após a sua ultima avaria datada em 3 de Setembro de 2015 foi rebocado para a sua residência pois não o poderia levar para outro lugar, e que este segundo R. o poderia levantar quando assim o entendessem.
2.ª – Além do que deverá ser alterado da matéria de facto, foram alegados factos que se impunha que fossem apurados assim como temas de prova que urgia apurar nomeadamente:
Temas de prova:
1.º - compra e venda de veículo automóvel em segunda mão;
2.º - Coligação de contratos, de compra e venda com o contrato de financiamento:
3.º- cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda;
4.º - resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel;
5.º - resolução do contrato de financiamento para a aquisição do veículo automóvel.
3.ª - Para tanto, impunha-se apurar e pelo menos ver se se provava (documental, testemunhal e eventualmente pericial):
- Se o vendedor garantiu que o automóvel estava em excelentes condições, como novo e que era um excelente negócio que tinha sido sujeito a rigorosa inspeção e não apresentava quaisquer defeitos - Se o A. ficou bastante entusiasmado com o automóvel, ao mesmo tempo que se lamentava das suas dificuldades de vida ao vendedor, explicando que não o podia pagar a pronto e que teria de recorrer a um financiamento.
- Se o vendedor trabalhava com uma agência financiadora mesmo em frente ao seu Stand estes lhe fariam uma simulação, podendo sempre comprar o automóvel pagando-o às prestações, facilitando a financiadora todo o processo relativamente à aquisição de viaturas novas e usadas, e, que o A. deveria considerar como a oportunidade de concretizar o sonho de ter aquela viatura.
- Qual a prestação que o A. podia pagar e como foram feitas as contas para poder comprar a viatura.- Se o mecânico andou com o carro uns metros e apagou os erros que o sistema eletrónico acusava fazendo o carro muito fumo, desculpando-se o primeiro R. sustentando que a viatura estava há algum tempo parada e que era normal.
- Se a garantia dos 12 meses e a confiança que o primeiro R. lhe transmitia, fizeram com que o A., entendesse que estava perante uma boa oportunidade e dirigiram-se à agência financiadora “sua vizinha” para formalizarem o pedido de financiamento.
- Se o A. não conhecia o segundo R., quem lhe impôs realizar crédito com este foi precisamente a agência financiadora que o primeiro R. escolheu para levar o A..
- Se aquando a entrega do automóvel pelo primeiro R. ao A., o vendedor só entregou uma chave do automóvel ao A, dizendo que a suplente deveria andar perdida e que quando a encontrasse entregar-lha-ia.
- Se quando entregou a viatura ao A., o primeiro R. não tinha colocado os sensores de estacionamento, não substituiu o vidro da frente, não trocou as escovas, não entregou o livro das revisões da viatura e não colocou o gancho de reboque, conforme tinha prometido. O R. vendedor do veículo prometeu que num sábado á tarde trataria do que faltava fazer para terminar a venda e que tudo o prometido seria feito por ser devido.
- Se o A. levou o automóvel, esperando assim que o primeiro R. marcasse um sábado á tarde como tinha dito para tratar do que faltava.
- Se nesse dia o A. que iniciava o trabalho às 8:00 da manhã o chegou atrasado e se mais, o A. ficou privado do carro por cerca de uma semana, tendo depender de terceiros para ir trabalhar.
- Se o A. solicitou a colocação de sensores de estacionamento, a substituição do vidro da frente e das escovas, a entrega da segunda chave e do livro de revisões do automóvel e a colocação do gancho de reboque.
- Se o automóvel foi entregue ao A. sendo que o primeiro R. fez crer ao A. que tudo estava tudo resolvido e que o carro tinha sido totalmente reparado, que teve que mudar a bateria e o alternador pois estes tinham avariado.
- Se em meados de Novembro de 2014, a placa do volante do automóvel (Placa CIM) dava erros, deixando o carro de buzinar, os comandos dos sinais intermitentes ou não funcionavam ou funcionavam mal, custava pegar em frio, em quente. Quando pegava fazia muito barulho, vertia óleo na parte inferior do automóvel, a chauffage não fazia calor e a viatura deitava muito fumo pelo escape.
- Se o A. voltou mais uma vez a ficar privado do automóvel durante três semanas, insistindo com o primeiro Réu pelos sensores de estacionamento prometidos, livro de revisões completo, vidro da frente substituído e escovas e gancho de reboque e segunda chave.
- Se a placa do volante (Placa CIM) teve que ser substituída, a segunda chave foi entregue desta vez ao A. pelo primeiro R., foi substituído o volante bimassa, o conjunto de embraiagem e motor de arranque. Junta-se a placa do volante (PLACA CIM) que foi trocada por uma da sucata de uma carro Inglês.
- Se o António fez crer que o carro tinha sido totalmente reparado. Relativamente ao resto prometido e em falta (sensores de estacionamento prometidos, livro de revisões completo, vidro da frente substituído e escovas e gancho de reboque tal não foi feito?
- Se em Dezembro de 2014, o Opel Astra foi novamente para reparação. Se a placa colocada no volante apresentava erros e o motor de arranque colocado na anterior reparação não era o mais indicado? Porquê?
-Se o automóvel voltou a apresentar dificuldades em pegar a frio e quente e quando pegava fazia muito barulho. Voltou a verter óleo na parte inferior do automóvel, voltou a apresentar muito fumo pelo escape quando se ligava e em andamento.
- O que foi feito à viatura?
- Quanto tempo demorou esta reparação?
- Se foi no início de Fevereiro de 2015, que o A. percebeu que o automóvel apresentava defeitos e alguns deles ainda não tinham sido resolvidos?
- Se o António ao entregar a viatura informou o A. que tinha havido um pequeno acidente na oficina onde o automóvel estava para arranjar, facto pelo qual se apresentava com uma mossa na parte dianteira que antes não tinha, mas que seria o seguro a reparar?
- Se em Agosto de 2015 o A. comunicou de imediato ao primeiro Réu os defeitos que a viatura apresentava: voltou a verter óleo originando um consumo bastante excessivo de óleo; voltou a deitar imenso fumo pelo escape após ligar o motor, e em andamento, as luzes de nevoeiro e a buzina deixaram de funcionar, ainda não lhe foi entregue o livro de revisões completo, ainda não foi substituído o vidro da frente e escovas, ainda não lhe foi colocado o gancho de reboque e ainda não lhe foi reparado o parachoques.
- Se o primeiro R. prometeu a reparação do automóvel.
- Se a avaria de dia 3 de Setembro de 2015 do automóvel foi definitiva?
- Se essa avaria ocorreu quando o A. regressava do seu trabalho no seu Opel Astra, o automóvel começou a deitar muito fumo branco e azulado do motor impedindo que este conseguisse ver e a quem circulava naquele momento.
- Se o A. desligou a chave da ignição procurando perceber o que estava a suceder.
- Se o motor continuou a trabalhar, acelerando sozinho.
- Se decorrido algum tempo, o carro se desligou não voltando mais a trabalhar?
- Para onde foi rebocada a viatura e porquê?
- Se a resolução do contrato foi feita com justa causa?
4.ª - O tribunal para decidir como decidiu aplicou o Decreto-Lei revogado, ou seja, o n.º 359/91 de 21 de Setembro, expressamente revogado pelo Decreto-Lei 133/2009 de 02 de Junho.
5.ª - Um processo equitativo e justo, consagrado no artigo 20.º n.º 4 da CRP, que foi violado na decisão recorrida, exige que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses não inferiores aos da parte contrária.
6.ª - O Tribunal tem a obrigação de proceder a um exame efetivo dos meios e argumentos oferecidos pelas partes. Os princípios do contraditório e da igualdade de armas são elementos incindíveis de um processo equitativo. Uma motivação inexata deve ser equiparada a uma falta de motivação, Decisão de 9 de Maio de 1994, queixa n.º 15 384/89, Déc. Rap.77-A, pág. 5. Na “administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática”, conforme preceitua o artigo 202.º n.º 2 da norma normarum.
7.ª - A densificação do conceito de processo equitativo deve ser feita também com a ajuda da jurisprudência das Comunidades. A referência à dimensão equitativa do processo prende-se com um conjunto de garantias processuais onde se destaca a igualdade de armas, o princípio do contraditório, a fundamentação das decisões do tribunal, as condições em que as provas apresentadas foram obtidas (cita-se a título de exemplo uma condenação do Estado Português por violação deste princípio, caso Lobo Machado v. Portugal, n.º 21/1994/468/549, § 31. Citando o Professor Canotilho, ob. cit., pág. 495, a propósito deste caso diz o seguinte:
… Haveria violação do princípio da imparcialidade porque mesmo não perturbando, de facto, a imparcialidade dos juízes, era preciso dar a aparência (“teoria da aparência”) de que o julgamento era verdadeiramente imparcial. Não basta fazer-se justiça; deve parecer que ela é feita (“justice must not only be done; it must be seen to be done”.)
8.ª - O direito ao processo equitativo está positivado no artigo 20.º da CRP, no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 14.º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigos esses que foram violados na sentença.
9.ª - O que se verifica é que o Tribunal aplicou uma norma que não está em vigor no nosso ordenamento jurídico. Tudo visto e sopesado o processo não é equitativo nem justo.
10.ª - Nos termos do disposto no artigo 203.º da CRP e do disposto nos artigos 5.º, 7.º e 8.º todos do Código Civil que têm de ser interpretados em conformidade com o disposto na CRP, e que foram violados na decisão em crise, dir-se-á: os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei que se encontrar em vigor e que foi aplicável. Ora o diploma a aplicar não é o que foi aplicado pois que revogado pelo Decreto9-Lei 133/2009, que transpôs a Diretiva Comunitária para o ordenamento jurídico português e no seu artigo 33.º expressamente revogou o diploma que a Mma. Juiz aplicou, artigo esse que foi violado na decisão recorrida.
9.ª - Acolhe-se agora na nossa legislação uma única noção de contrato coligado, isto sempre com o escopo e tendo em vista a proteção do consumidor. A conexão que existe agora entre os dois contratos resulta do normativo legal, pois por um lado o contrato de crédito está coligado com o contrato de compra e venda, até porque o financiador (que é quem elabora o clausulado do contrato de crédito tem de estar ciente dos riscos a que o consumidor adere) tem conhecimento do mútuo que servirá para uma determinada aquisição, in casu, para a compra do veículo automóvel.
10.ª - Existe agora a possibilidade que deitou por terra o conceito de unidade económica antigo e ultrapassado a que se refere a decisão recorrida segundo a qual basta que o bem ou serviço esteja previsto no contrato de crédito como é o caso. A proteção do consumidor é por isso mais ampla, ou pelo menos seria não fosse aplicar-se lei revogada…
11.ª - A resolução do contrato de crédito também é uma das pretensões que o consumidor pode exercer junto do financiador, nos termos do art. 18.º n.º3 alínea c) do DL 133/2009 de 02 de Junho e no ponto 14 n.º 3 do contrato de crédito celebrado entre todos, ou seja, consumidor, fornecedor e mutuante. Esta possibilidade existe quando o consumidor tenha resolvido o contrato de compra e venda nos termos gerais do 790.º do C.C. ou no âmbito do regime especial da compra e venda de bens de consumo, art.4.º n.º1 do DL 67/2003.
12.ª - O A. e aqui recorrente deu todas as oportunidades ao primeiro R. de reparar o automóvel, este nunca o fez e consequência disso é que o automóvel deixou de vez de circular, estando parado desde o dia 3 de Setembro de 2015 e estando desde esta altura o A. privado do automóvel.
13.ª - No período em que o A. teve o Opel Astra, num espaço inferior a um ano, este avariou cinco vezes e dessas vezes ou foi mal reparado ou não foi de todo, impossibilitando o A. de usufruir em pleno o bem que adquiriu com tanto esforço financeiro. Todos os defeitos foram prontamente comunicados ao primeiro Réu dentro dos dois meses, dentro dos dias seguintes após o conhecimento, permitidos legalmente, pessoalmente ou por carta.
14.ª - O segundo R. após a resolução do contrato feita pelo A., não a aceitou e não considerou resolvido o contrato, porquanto entendeu que a resolução do contrato feita pelo A. não reúne os requisitos legalmente estabelecidos para o efeito.
15.ª - O A. tinha direito à entrega do bem em conformidade com o contrato, respondendo o primeiro R. por qualquer desconformidade, artigo 2.º n.º1 e 3.º n.º 1 do DL 67/2003 de 8 de Abril, com as alterações do DL 84/2008 de 21 de Maio.
16.ª - Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, um dos direitos que o consumidor pode exercer consiste em exigir ao vendedor que a conformidade seja reposta através da reparação, assim o A. deu todas as oportunidades para o primeiro R. reparar o bem que estava em desconformidade e este apesar de dizer que tinha efetuado a reparação, a verdade é que nunca o fez.
16.ª - Durante as quatro vezes que o Opel esteve para reparação, pelos períodos de duas e três semanas consecutivas, o A. tinha que implorar que o primeiro R. lhe emprestasse um automóvel de substituição, o que este só fez por duas vezes após muita insistência.
17.ª - O A. não teve outra hipótese senão resolver o contrato de compra e venda com justa causa. E como tal, ao A. não restou alternativa diferente da resolução do contrato de crédito coligado.
18.ª - A resolução do contrato implica a destruição dos seus efeitos, tendo em princípio eficácia retroativa, nos termos do art. 434.º do C.C.
Neste caso, o fundamento da resolução é a desconformidade do bem com o contrato, ou seja, o incumprimento da obrigação por parte do vendedor/fornecedor e a não reparação ou não eliminação dos defeitos.
19.ª - A resolução implica a devolução do valor pago pelo consumidor, não sendo admissível, salvo acordo entre as partes, que esse valor seja creditado numa eventual conta do consumidor junto do profissional, para utilização em futuros contratos, vide Sentença de Julgados de Paz do Porto de 13 de Junho de 2013, processo 1379/12.
20.ª - O direito de resolução pode ser exercido “mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivos não imputáveis ao comprador”, nos termos do art. 4.º n.º4 do DL 67/2003 de 8 de Abril com alterações introduzidas pelo DL 84/2008 de 21 de Maio. Assim, resolução do contrato tem efeitos retroativos, nos termos do art. 434.º n.º1 do C.C. e a falta de conformidade presume-se existente no momento da entrega artigo 3.º do DL 67/2003 pelo que a regra é a de que o consumidor não tem que pagar qualquer valor pela utilização do bem. Vide Ac. do RL, de 06/12/2011, processo n.º 2881/08.0YXLSB.L1-7.
21.ª - Relativamente ao contrato de financiamento celebrado entre o A. e o Banco X S.A., segunda R., é um contrato de crédito ao consumo coligado com um contrato de compra e venda do automóvel em causa, regulado pelo DL 133/2009 de 2 de Junho, de acordo com o qual o primeiro R. assume a posição de Fornecedor, estando mesmo descrito o bem como “ descrição do equipamento” marca OPEL, modelo Astra GTC 1.9 CDTi, matricula HE.
22.ª - Foi o primeiro R. que propôs ao A. o contrato de crédito e que este subscreveu e que por força do disposto no artigo 4.º n.º1 alínea o) i) e ii) do DL 133/2009 de 02 de Junho, normas violadas na decisão recorrida, se considera-se que o contrato de crédito está coligado a um contrato de compra e venda ou de prestações de serviços específicos, se “O crédito concedido servir exclusivamente para financiar o pagamento do preço o contrato de fornecimento de bens ou prestações de serviços específicos” e “Ambos os contratos constituírem objectivamente uma unidade económica, designadamente se o crédito ao consumidor for financiado pelo fornecedor ou pelo prestador de serviços ou, no caso de financiamento por terceiro, se o credor recorrer ao fornecedor ou ao prestador de serviços para preparar ou celebrar o contrato de crédito ou se o bem ou o serviço específico estiverem expressamente previstos no contrato de crédito.” Tal verificou-se e consta do contrato de crédito n.º …, sendo o preenchimento cumulativo dos dois pressupostos é necessário para se concluir no sentido da existência de conexão entre os dois contratos.
23.ª - A quantia “mutuada” nunca foi posta pelo credor à disposição do mutuário consumidor que, ao invés, a entregou directamente ao seu “parceiro interessado” vendedor.
24.ª - O A. resolveu o contrato de crédito de consumo por força da resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel e vice39/ versa, artigo 18.º n.º 1 e 2 do DL 133/2009 de 02 de Junho e 14.º n.º 1 e 2 do contrato de crédito.
25.ª - O contrato de financiamento celebrado com o segundo R. não consegue assim subsistir sem o contrato de compra e venda, deixando aquele de ter sentido se este for resolvido. Assim, a resolução do contrato de compra e venda acarreta a resolução do contrato acessoriamente celebrado, pois este sem aquele deixa de ter qualquer razão de existir.
26.ª - Existe uma relação funcional entre a compra e venda e o contrato de crédito. Este tipo de contrato, revela a sua estrutura serem pensados pelas partes como um conjunto económico envolvente de um nexo funcional, do que resulta, em regra, depender a validade e vigência de um dos contratos da validade e vigência do outro. Vide, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Ob. e Loc. cits.
27.ª - Entende-se assim que estamos perante um contrato de compra e venda conexo com um contrato de crédito ao consumo, portanto articulados entre si, em termos de preço correspondente ao primeiro ser pago ao vendedor/alienante pelo sujeito mutuante outorgante do segundo.
No fundo, o que ocorreu foi uma alienação de um automóvel por via de uma união de contratos intrinsecamente sendo um dependente do outro.
28.ª - O contrato de crédito celebrado com os segundos Réus, destinou-se a um empréstimo ao A. que lhe permitisse comprar o automóvel. Temos assim dois contratos: um de compra e venda e outro de mútuo, ligados funcionalmente um ao outro desde o seu inicio, porquanto cada um existe em função do outro. “Trata-se de uma união de contratos, em que existe entre estes um nexo funcional que influi na respectiva disciplina, que crie entre eles uma relação de interdependência bilateral ou unilateral, em que um deles pode funcionar como condição, contraprestação, base negocial de outro, ou outra forma de dependência criada por clausulas acessórias ou pela relação de correspetividade ou de motivação que afetam um deles ou ambos. A existência de uma coligação funcional entre dois ou mais negócios produz efeitos jurídicos relevantes, na medida em que, em virtude dessa dependência funcional, as vicissitudes de um acabam por se repercutir sobre o outro ou outros.” Ac. S.T.J. de 14.02.2008, proc. 08B074.
29.ª - Cabendo assim ao vendedor, a entrega do valor mutuado ao credor, devendo por sua vez o consumidor restituir ao vendedor o objecto alienado, artigo 18.º n.º1 e 2 e 4 do DL133/2009. Cfr. GRAVATO MORAIS, Obs. e loc. cits..
30.ª - Do contrato de mútuo consta o nome do vendedor, descreve-se o bem cujo financiamento se faz, identifica-se a finalidade concreta do mútuo concedido, o que se não pressupõe que houve um acordo prévio para a realização do mútuo entre a financiadora e o vendedor, pelo menos a lei atribui-lhe o efeito de contrato de crédito coligado cumprindo os requisitos estabelecidos pelo artigo 4.º n.º 1 alínea o) do Decreto de Lei 133/2009 de 02 de Junho, diploma aplicável e que foi violado na decisão recorrida e cumpriria mesmo o estabelecido nos artigos 2.º e 6.º n.º 3 a) e 12.º do Decreto Lei n.º 351/91, revogado.
31.ª - Ao comprar o veículo, o Opel Astra, o A. estava a celebrar um contrato de crédito ao consumo; identifica o vendedor/fornecedor o credor e o bem vendido, sendo por isso, que o crédito obtido foi de acordo com o vendedor do bem e com a financiadora do capital.
32.ª - O conceito de contrato de crédito coligado constitui um conceito central e unitário, cfr. FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Ob. e Loc. cits..
33.ª - O crédito tem de se destinar ao financiamento do pagamento do preço de um bem ou de um serviço especifico, devendo esta finalidade ser exclusiva, o que se verifica uma vez que o contrato de crédito especifica o bem financiado bem como o vendedor/ fornecedor.
34.ª - Exige-se a existência de unidade económica entre os dois contratos. A lei indica expressamente várias situações em que se considera existir essa unidade económica e determinando essa mesma existência.
Deve considerar-se existir essa unidade económica, desde logo sempre que o financiador e o fornecedor do bem coincidam, ou seja que o crédito seja concedido pelo vendedor. Caso não coincidam, sendo o crédito concedido por um terceiro, como é o caso, a lei aponta vários fatores dos quais se presume, de forma inilidível, em ordem a proteger o consumidor, a unidade económica: utilização do vendedor por parte do financiador para a negociação ou a celebração do contrato de crédito, caso em que perante o consumidor aparece num dado momento apenas uma pessoa; indicação expressa do bem ou serviço no contrato de crédito.
35.ª - Estão pois preenchidos de forma inequívoca, os dois pressupostos ou requisitos que a lei impõe para que se possa falar de um contrato deste tipo, e, consequentemente, trata-se de um contrato de crédito coligado ao contrato de compra e venda do automóvel Opel Astra GTC, matricula HE.
36.ª - Nos termos do artigo 18.º n.º 2 do Decreto Lei 133/2009, artigo esse que foi revogado na decisão em crise, “a invalidade ou a revogação do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado”. Ora, “No contrato de crédito ao consumo, a credora, entidade financiadora, responde pelo incumprimento da vendedora, perante a consumidora mutuária, desde que provada a afetação do crédito ao contrato respetivo”, Ac. RE de 03/02/2010 (proc. 45/09.5TBETZ.E1, “No contrato de crédito ao consumo, a credora, entidade financiadora, responde pelo incumprimento da vendedora, perante a consumidora mutuária, desde que provada a afetação do crédito ao contrato respetivo”.
37.ª - Estamos perante uma operação de “crédito ao consumo”, operação contratual complexa composta por dois contratos: um contrato de consumo, de compra e venda de um veículo automóvel, e um contrato de crédito, consistente no mútuo celebrado para financiar o pagamento daquele bem, situação regulada pelo Dec.-Lei n.º133/2009 de 2/6 entretanto alterado pelo Decreto lei 42-A/2013 de 28 de Março, cujo artigo, 4.º n.º 1 alínea o) foi violado.
38.ª - Nos termos do disposto no Dec.-Lei n. º133/2009 de 2/6 que regula atualmente a matéria em causa, não faz qualquer exigência de um acordo de exclusividade para que o comprador/mutuário possa fazer valer os seus direitos perante o financiador, bastando-se com a verificação do nexo de coligação entre os contratos.
39.ª - Estamos perante um negócio com sinalagma trilateral: um fornecimento de bens com financiamento por terceiro. Ou seja, aquilo a que CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, chama um contrato plurilateral (no caso trilateral) de troca.
40.ª - Tendo-se o produto mutuado destinado, ao pagamento do preço do veículo vendido pelo Stand, o dinheiro foi entregue diretamente ao vendedor pela entidade financiadora, pelo que, o A. como consumidor pode opor-se à entidade financiadora, recusando a sua prestação atinente ao contrato de mútuo, denunciando defeitos que levam ao incumprimento do contrato de compra e venda e pela sua não eliminação dos defeitos e perecimento da coisa, resolvendo o contrato com justa causa, não estando, por isso, o A., como mutuário, que nada recebeu a não ser a viatura (o produto mutuado foi diretamente para vendedor) obrigado a pagar a importância mutuada por se ter destinado à compra que foi resolvida com juta causa.
41.ª - Não subsistindo o contrato de compra e venda, que fundamentava a existência do contrato de mútuo, o 2.º R. está obrigado a restituir ao A. as prestações que este já efetuou, conforme aliás, Cfr. Artigo 433.º e 289.º do CC, artigos esses que foram violados na decisão recorrida.
42.ª - Ao 2.º R. por força das vicissitudes do aludido contrato de compra de venda, que estão subjacentes ao contrato de crédito, não lhe restará, querendo, outra alternativa que não seja a de demandar directamente o vendedor para obter a restituição integral do montante mutuado.
43.ª - Padecendo o veículo, objeto do contrato de compra e venda, de toda aquela parafernália de defeitos e tendo resolvido o contrato com justa causa, é legítimo ao A. como consumidor, opor à entidade financiadora, a exceção de incumprimento do contrato resolvido com justa causa por parte do vendedor por força da dependência dos contratos.
44.ª - Tendo a quantia mutuada do contrato de mútuo, passe a repetição, sido entregue diretamente ao vendedor e não ao A., este por força da aludida dependência dos contratos de mútuo e de compra e venda, pode opor à entidade financiadora a exceção de não cumprimento / nulidade deste último contrato, já que pelo menos relativamente a um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda não se verificou, cfr. artigo 879.º al. a) do CC, artigo este que foi violado na decisão recorrida.
45.ª - E por força das apontadas vicissitudes do contrato de compra e venda, o A., mutuário, não está obrigado a continuar a pagar ao 2.º R. o montante mutuado devendo ser ressarcido nos termos precisos em que o faz. Não subsistindo o contrato de compra e venda, que fundamentava a existência do contrato de mútuo, em virtude da sua resolução, o 2.º R. está obrigado a restituir ao A. as importâncias que este pagou a título de prestações, cfr. artigos 433.º e 289.º do CC, artigos esses que foram violados na decisão recorrida.
46.ª - Cessando os dois contratos, como é o caso, a lei impõe a devolução dos valores recebidos por cada uma das partes na relação triangular. É o que nos diz o artigo 18.º n.º4, do Decreto lei 133/2009, ficando assim claro que “o consumidor não está obrigado a pagar ao credor o montante correspondente àquele que foi recebido pelo vendedor.”, vide, Acórdão Tribunal da Relação do Porto, de 28/03/2012, sentença do JP de Coimbra, de 25/11/2011 estando por isso a causa de pedir articulada e em consonância com o pedido, pelo que se impõe a alteração da decisão, que ordene o prosseguimento dos autos.
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A Ré Banco X, SA apresentou contra alegações pugnando por que seja negado provimento ao recurso, e, em consequência, confirmada, integralmente a sentença recorrida, concluindo:1. A improcedência da acção declarativa interposta pelo Autor, aqui Recorrente, derivada da inadmissibilidade dos pedidos face à causa de pedir invocada comporta consequências para o recurso aqui em análise.
2. Os pedidos foram considerados inadmissíveis face à causa de pedir invocada, uma vez que o “aqui Recorrente não alegou nenhum facto em que o pedido formulado em a) se apoie e que a restituição do prestado em consequência da declaração de nulidade do mútuo seja pedido a favor do Banco e não do Autor”.
3. O Tribunal a quo considerou, assim que os pedidos formulados contra o primeiro Réu teriam de improceder.
4. Não tendo o Recorrente efectuado qualquer referência à supra mencionada decisão, é pacífico concluir que o mesmo se conformou com o sentenciado pelo Tribunal a quo quanto aos pedidos formulados I.
5. Ficando, consequentemente, toda a matéria do recurso aqui em análise fica desprovida de sentido e razão de ser.
6. Uma vez que a globalidade do recurso se baseia no facto de que a sentença proferida aplicou um Decreto-lei revogado, norma revogada essa que não confere ao consumidor que tenha resolvido o contrato de compra e venda a possibilidade de resolver o contrato de crédito junto do financiador.
7. Alega, assim, o Recorrente que o consumidor poderá resolver o contrato de crédito junto do financiador nos casos em que se operou a resolução do contrato de compra e venda.
8. Ora, conforme resulta claro da contestação apresentada pelo Réu António e da sentença proferida, em momento algum foi dado como provada a resolução com justa causa do contrato de compra e venda, nem tão pouco foi pedida a nulidade do mencionado contrato, pelo que é forçoso concluir que não se verifica, desde logo, preenchido o principal requisito, isto é, a resolução do contrato de compra venda, para que se possa sequer colocar a hipótese de se ter operado a resolução com justa causa do contrato de crédito.
9. Não se dando como provada a resolução com justa causa do contrato de compra e venda, todo o resto terá de obrigatoriamente cair por terra, nomeadamente tudo o alegado contra o Banco Recorrido.
10. Não obstante, no que à alegada invalidade do contrato de crédito diz respeito, sublinhe-se que, apenas por mera cautela e dever de patrocínio,
11. Como é sabido, há actividades reservadas por lei a determinados
profissionais e, em particular, as instituições de crédito gozam de exclusividade em determinadas áreas, principalmente no respeito à chamada intermediação de crédito.
12. Não cabe, assim, no leque de actividades do Banco X a comercialização de viaturas automóveis.
13. Desconhece o Banco X todo o processo que levou à escolha e venda da viatura.
14. Apenas sabe que celebrou com o Recorrente um contrato de mútuo, cuja aquisição foi efectuada no stando do vendedor do bem, sendo que o Banco foi totalmente alheio quer à escolha da viatura, quer quanto ao preço acordado entre o Recorrente e o Recorrido António.
15. Resulta evidente que estamos perante dois contratos totalmente autónomos.
16. Um de compra e venda, em que o Banco X não foi parte
17. E outro de financiamento celebrado entre o Banco X e o Recorrente.
18. Dúvidas não restam de que o Banco X, no exercício da sua actividade, financia a aquisição de bens, não tendo qualquer intervenção na negociação, promoção, venda ou fornecimento desses bens, não tendo alguma vez existido entre o mesmo e o Recorrido António qualquer acordo ou contrato de exclusividade que tivesse como objectivo a concessão de crédito.
19. O hipotético relacionamento negocial entre a entidade vendedora do veículo e o Recorrente, bem como tudo o que dele terá resultado, não é oponível ao Banco X.
20. Isto porque o Banco não foi parte no contrato de compra e venda, nem participou na sua conclusão.
21. Aliás, como muito bem refere o Tribunal a quo, o Recorrente não alegou nem conseguiu demonstrar, como era seu ónus, que o contrato de mútuo tenha sido concluído no contexto de uma colaboração planificada entre os Recorridos, pelo que as vicissitudes do contrato de compra e venda não podem influenciar o contrato de crédito.
22. No que ao abuso de respeito diz respeito, ficou demonstrado pelo Recorrido António que o Recorrente, antes de proceder à aquisição da viatura, solicitou experimentar e levá-la a uma oficina mecânica da sua confiança a fim de aí ser examinada.
23. O que se veio a verificar, tendo a oficina assegurado que o veículo estava em boas condições de funcionamento.
24. Em abono da verdade, sempre se diga que o Recorrente apresentou algumas reclamações ao Recorrido António relativamente ao funcionamento do veículo.
25. Reclamações essas que foram atendidas, e às quais foi dado andamento em tempo útil.
26. Após ter sido dado seguimento às reclamações, e após ter-se verificado que o veículo se encontrava em perfeitas condições, o Recorrente continuou a mostrar o seu desagrado, sem qualquer fundamento justo e válido para tal.
27. É, assim, evidente que, de acordo com o período de garantia estipulado, e atentas as reparações e melhorias efectuadas, o veículo se encontrava pronto a circular e em perfeito estado de funcionamento.
28. Pelo que a invocação do direito à resolução, após efectuadas as devidas reparações reclamadas pelo Recorrente, de acordo com o direito à reparação do bem por si invocado, fica esgotado, constituindo o comportamento do Recorrente uma violação das regras de boa-fé.
29. Aliás, importa também sublinhar que toda a actuação do Recorrente desde a celebração do contrato consubstancia um claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
30. Seja na utilização de um comportamento apto a convencer o Banco X de que não havia qualquer anomalia com o contrato de crédito, já que efectuou o pagamento das prestações contratualizadas durante um ano sem que alguma vez tenha comunicado ao Banco algum problema,
31. Seja na convicção que justificadamente fundou no Recorrido António de que, após as reparações por este efectuadas, não havia problemas com a viatura, não se justificando a tentativa de resolver o contrato de compra e venda.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

É, desde logo, a seguinte a questão a decidir:
- Se a decisão recorrida foi proferida com violação do princípio do contraditório.
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II.A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram os seguintes os factos considerados assentes, alegados pelo A. e aceites pela parte contrária, com relevância para a decisão a proferir:

1 – O veículo automóvel Opel Astra GTC, 1.9 CDTI, matrícula HE, do ano 2008 foi vendido pelo 1º R. ao A. por € 13.762,63 (treze mil setecentos e sessenta e dois euros e sessenta e três cêntimos), tendo € 4.000,00 (quatro mil euros) sido pagos com a entrega do veículo Seat Ibiza PH, tendo o restante sido pago com o financiamento obtido com um contrato de crédito para o consumo, onde identifica o bem vendido, veículo automóvel de marca Opel, modelo Astra GTC 1.9 CDTI, de matrícula HE.
2 - Para financiamento da aquisição do veículo automóvel, foi solicitado um empréstimo ao R., Banco X, S.A., no valor de 9.762,63 € (nove mil setecentos e sessenta e dois euros e sessenta e três cêntimos).
3 - O referido Contrato de Mutuo, com o n° …, foi concretizado, no dia 10 de Setembro de 2014, e por via disso foi paga pelo R. Banco X, S.A., a quantia de 9.762,63 € (nove mil setecentos e sessenta e dois euros e sessenta e três cêntimos) ao R. António.
4- Por carta registada, datada de 7 de Setembro de 2015,com aviso de receção, o autor resolveu o contrato de compra e venda de veículo automóvel e o contrato de crédito com o Banco X, S.A..
5 - Nesse mesmo momento, o A. enviou carta registada datada de 7 de Setembro de 2015 ao segundo R., o Banco X, resolvendo o contrato de financiamento, alegando que existiu um incumprimento ou desconformidade – na medida em que o bem vendido não cumpre com a função precípua entre o contrato de compra e venda e o contrato de crédito, e uma vez que já interpelou o fornecedor/vendedor para eliminar os problemas ou desconformidades este não o fez.
6- O A. informou ainda o Banco X que não iria pagar mais prestações, pois não está a usar o bem vendido. Explicou ainda que o automóvel após a sua ultima avaria datada em 3 de Setembro de 2015 foi rebocado para a sua residência pois não o poderia levar para outro lugar, e que este segundo R. o poderia levantar quando assim o entendessem.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da violação do princípio do contraditório

Conclui o Autor (cfr. concl. 4 e segs) ter sido violado o direito constitucional a um processo equitativo e justo e o princípio do contraditório, desde logo por o Tribunal ter decidido, sem lhe ter dada a possibilidade de se pronunciar e sem analisar os argumentos das partes e as provas oferecidas, aplicando, para surpresa sua, um diploma revogado.
O Banco Réu refere, desde logo, que o Tribunal decidiu pela improcedência da ação por ter considerado que os pedidos formulados eram inadmissíveis face à causa de pedir invocada.
Cumpre, pois, analisar o despacho saneador-sentença proferido a fls 66 a 72 e decidir se a decisão recorrida viola do princípio do contraditório, por o Tribunal, antes de decidir do mérito da causa e com vista a uma decisão justa e equitativa, ter de ouvir os argumentos das partes.
Estamos perante uma ação que segue a forma de processo comum, a qual tem forma única (cfr. art. 548º), sendo que o seu valor é superior a metade da alçada da Relação (este 15.000,00€ e à ação foi fixado o valor de 29.762,63€ - cfr. fls 66).
O Tribunal a quo, decidindo pela não realização da audiência prévia, ao abrigo da al. b), do nº1, do art. 592º, do Código de Processo Civil, sendo deste diploma todos os preceitos citados sem outra referência, apreciou do mérito da causa e julgou, de imediato, a ação improcedente quanto a ambos os Réus, no despacho saneador.
Concluiu o Autor ter sido violado o princípio do contraditório por o Tribunal ter decidido sem atentar nos argumentos das partes.
Vejamos, pois, se o Tribunal a quo as devia ter ouvido antes de decidir do mérito da causa.
O preceito supra referido consagra que a audiência prévia não se realiza quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
Ora, como vimos o processo findou no despacho saneador, não pela procedência de exceção dilatória, mas por apreciação de mérito.
Na verdade, o Tribunal a quo apreciou o mérito da causa (cfr. fls 68 a 72), tendo decidido ser a ação improcedente relativamente a ambos os Réus e absolveu-os dos pedidos formulados.
Não estamos, pois, perante nenhuma das situação de consagração legal (v. art. 592º) em que se não realiza audiência prévia.
E, fora da situação consagrada na referida al. b), caímos, efetivamente, em violação do princípio do contraditório, por decisão-suspresa (art. 3º, nº3), como veremos.
Vários princípios gerais do processo civil têm dignidade constitucional por respeitarem a direitos considerados fundamentais, entre eles o da equidade, nomeadamente nas vertentes da contrariedade e da igualdade de armas das partes.
E tem sido considerado, no âmbito da jurisprudência formada na aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que o princípio da equidade postula quer a igualdade das partes (princípio do contraditório e princípio da igualdade de armas) quer os direitos à comparência pessoal das partes em determinadas situações, à licitude da prova (do meio de prova em si mesmo e do modo de o obter) e à fundamentação da decisão, imposta, entre nós, pelo art. 208º, nº1 da Constituição. Estando entre as finalidades dos Tribunais a de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos - art. 205º, nº 2 da Constituição -, a lei fundamental passou a preocupar-se com o próprio conteúdo das decisões.
O direito ao contraditório é uma decorrência natural do princípio da igualdade das partes, consagrado no art. 4º. Corolário do princípio da igualdade das partes na medida em que garante a igualdade das mesmas ao nível da possibilidade de pronúncia sobre os elementos suscetíveis de influenciar a decisão, “possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma acção ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta”(1).

Existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório ideias de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema de comunicações entre as partes e o Tribunal.

Nos últimos tempos e nesta sociedade em que o direito de acesso à justiça é um direito fundamental do cidadão, vem-se assistindo a uma crescente tendência de substituição de um processo estritamente individualista, privatístico, por um direito processual mais justo e socialmente mais aberto, sendo notória a mudança das linhas de orientação adjetiva, passando o juiz a ser visto não como um mero garante das regras do jogo honesto mas, antes, empenhado na solução concreta do conflito e mais aberto na consideração das consequências das soluções, tendo sempre o dever de fundamentar a sua decisão e deixando-se às partes o direito de a influenciar.

Assim, o direito de acesso aos tribunais engloba, também, a garantia do contraditório, quer num sentido mais restrito – visto como direito de, ao longo de todo o processo, cada uma das partes responder à posição tomada pela parte contrária – quer no sentido mais lato que presentemente lhe vem a ser dado – entendido como direito das partes intervirem, ao longo de todo o processo, para influenciarem, em todos os elementos que se prendam com o objeto da causa e que se antevejam como potencialmente relevantes para a decisão, – pois a colaboração das partes é vista como primordial para que o processo atinja plenamente o seu fim – a justa composição do litígio. Privilegiando-se a bondade da decisão de mérito em detrimento da de forma e sendo tudo processado segundo um esquema de cooperação recíproca, é mais facilmente obtida a verdade material e alcançada a verdadeira função dos tribunais – administrar a justiça resolvendo os conflitos de interesses das partes de acordo com o direito material.

Agora, o princípio do contraditório significa muito mais do que um jogo de ataque e defesa ao longo do qual o processo se desenvolve, sendo entendido como garantia do direito de influenciar a decisão, mediante a possibilidade de participação efetiva de ambas as partes em todos os elementos em que o litígio se manifesta - o plano da alegação de facto, o plano da prova e o plano do direito - que em qualquer fase do processo surjam como potencialmente relevantes para a decisão, ficando marcado por uma dupla crivagem ou entrelaçamento de perspetivas de grande valia para alcançar a justa decisão do caso concreto.
Os factos, as provas de tais factos e os critérios jurídicos aplicáveis aos mesmos são as três bases ou níveis em que assenta a decisão do Tribunal e, por isso, a possibilidade de ambas as partes influírem na decisão, pronunciando-se sobre a intervenção processual da outra, reporta-se a todos eles.
O princípio do contraditório, visto como o direito de influenciar a decisão, é uma garantia de participação efetiva das partes no desenrolar do litígio, acompanhando-o em toda a sua longevidade, mediante a possibilidade de as mesmas a influenciarem em todos os planos - quer no âmbito da alegação fáctica, quer na âmbito das provas quer quanto ao direito -, manifestando a sua perspetiva, garantindo-se a ambas condições de absoluta igualdade ou paridade (2).
O objetivo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou de resistência à atuação da parte contrária, para passar a ser a influência positiva e ativa na decisão, ou seja, passou a ser visto como o direito de provocar uma decisão favorável: o direito de intervir, participando para, usando os melhores argumentos, tentar convencer o julgador e obter um desfecho favorável, para si, do processo.
E tem por objeto quer os argumentos factuais, incluindo provas, quer os jurídicos.

Deste modo, o princípio do contraditório passou a ter um sentido amplo que abarca quer o direito ao conhecimento e pronuncia sobre todos os elementos suscetíveis de influenciar a decisão carreados para o processo pela parte contrária (contraditório clássico ou horizontal) quer o direito de ambas as partes intervirem para influenciarem a decisão da causa, assim se evitando decisões surpresa (contraditório vertical).
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A necessidade da contradição, aflorada, em diversas disposições do Código de Processo Civil, vem genericamente concretizada no artigo 3º, que, sob a epígrafe “Necessidade do pedido e da contradição”, presentemente, de modo mais justo, abrangente e amplo, dispõe:

“1. O Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2. Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3. O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4. Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final”.
O nº 3, do referido artigo 3º, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido, como vimos, como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.

Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório - que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito - já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido.
A referida conceção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida pelo Professor Lebre de Freitas (3) para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (4).
Esta vertente do contraditório, que surgiu no nosso direito processual como uma inovação, revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade recíproca dos vários intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais que passam, sempre, a ser previstas pelas partes.
E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta - leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litígio seja a mais adequada e justa, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.

Como vimos, e como refere o ilustre professor Lebre de Freitas, cuja lição vimos seguindo, o princípio do contraditório materializa-se, pois, em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.

Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa (5).

É, ainda, uma decorrência do princípio do contraditório a proibição da decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, como dispõe o nº 3, do referido artigo 3º.
A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art. 3º, em casos de manifesta desnecessidade.
Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas.
Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão.
A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº3, do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar” (6).
Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada “a priori”possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico.

Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.
Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.
A citada norma, introduzida pela Reforma de 1995/1996, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, consagrando mais uma garantia de discussão dialética entre as partes no desenvolvimento de todo o processo, consagrando de forma ampla o direito a exprimir posição para influenciar a decisão.
Para que os referidos objetivos de melhor, mais rápida e definitiva composição dos litígios fossem alcançados, foi consagrado que uma das finalidades da audiência prévia é a de “Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (art. 591º, nº 1, al. b)).
Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influi ativamente na decisão. (7) A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a solução para que apontam.
Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem. (8)
O dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes.
A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar.
Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio.
Quanto ao momento processual adequado para o juiz fazer atuar a regra do contraditório com vista a evitar uma decisão-surpresa, quanto à aplicação de diferentes regras de direito, cumpre dizer que a questão pode, desde logo, ser suscitada pelo juiz na audiência prévia, naqueles casos em que o processo reúna os elementos necessários à apreciação imediata.

Assim, o exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.
Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração (9).
Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar (10).
O juiz tem o dever de participar na decisão do litígio, participando na indagação do direito – iura novit curia –, sem que esteja peado ou confinado à alegação de direito feita pelas partes. Porém, a indagação do direito sofre constrangimentos endoprocessuais que atinam com a configuração factológica que as partes pretendam conferir ao processo.(…) Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio. (…) Não tendo as partes configurado a questão na via adoptada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos" (11).
Cabe ao juiz observar e fazer cumprir o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de se pronunciarem sobre as mesmas (12).
Nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação, não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592º do CPC, e se a acção não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da acção, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito.(…) A convocação da audiência prévia para o fim previsto no art. 591º, nº 1, al. b) do CPC visa assegurar o respeito pelo princípio do contraditório, e, assim, evitar decisões-surpresa, pelo que o juiz só poderá dispensar, nestes casos, a audiência prévia, ao abrigo do disposto nos arts. 6º e 547º do CPC, se aquele conhecimento assentar em questão suficientemente debatida nos articulados (13).

Se, em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, o juiz entender, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, que o processo deverá findar imediatamente com prolação de decisão de mérito, deverá convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito.(…) A não realização de audiência prévia, neste caso, quando muito só será possível no âmbito da gestão processual, a título de adequação formal (artigos 547.º e 6.º n.º 1 do CPC), se porventura o juiz entender que no processo em causa a matéria alvo da decisão foi objeto de suficiente debate nos articulados, tornando dispensável a realização da dita diligência, com ganhos relevantes ao nível da celeridade, sem prejuízo da justa composição do litígio; tal opção carecerá, porém, de prévia auscultação das partes (cfr. art.º 6.º n.º 1 e 3.º n.º 3 do CPC). (…)A prolação de decisão final de mérito em saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, assente tão só na asserção de que “o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa”, desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso, implicando a revogação da decisão que dispensou a convocação da audiência prévia e a consequente anulação do saneador-sentença proferido (14).

Assim, analisada a lei, vista a doutrina e a jurisprudência não pode deixar de se decidir, pelos argumentos expostos que tinha, pois, o Tribunal a quo, antes de decidir, de ouvir os argumentos das partes.
Assiste, deste modo, razão ao apelante, ao concluir pela violação do contraditório, elevado, até, à categoria de princípio constitucional.
Deste modo, procedendo a apelação por ter ocorrido violação do princípio do contraditório, não pode a decisão de mérito recorrida ser mantida, tendo os autos de prosseguir, com realização de audiência prévia.
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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão de mérito recorrida.
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Custas pela parte vencida a final.
Guimarães, 1 de março de 2018

Eugénia Marinho da Cunha
Dr. José Manuel Alves Flores
Sandra Melo


1. Acórdão do STJ de 27/10/98, processo 98A817, in www.dgsi.pt
2. FREITAS, José Lebre de (2002). Estudos sobre direito civil e processo civil. Coimbra: Coimbra Editora, pág 17 a 19 e FREITAS, José Lebre de (2006). Introdução ao Processo Civil. Conceitos e princípios gerais, 2ª ed.. Coimbra: Coimbra Editora, pág 107.
3. FREITAS, Lebre de (1992). “Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil”, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, pp. 35 a 38.
4. FREITAS, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui (1999). Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, pág 8.
5. Freitas, 2006:115 a 118
6. REGO, Carlos Lopes do (2004). Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I. Coimbra: Almedina, pág 32
7. cfr. Ac. do STJ de 04/05/99, processo nº 99057,in dgsi.net
8. cfr, neste sentido Ac. do STJ de 15/10/2002, processo nº 02A2478, Ac. da RL de 11/03/2008, processo nº 2051/2008-7, Ac. da RL de 21/05/2009, processo nº 1490/04.8TBPDL.L1-6 e Ac da RP de 10/01/2008, processo 0736877, todos in dgsi.net
9. Acórdão de Relação de Coimbra de 13/11/2012, processo572/11.4TBCND.C1,in dgsi.net
10. Acórdão da Relação de Coimbra de 20/9/2016, processo 1215/14.0TBPBL-B.C1, in dgsi.net
11. Acórdão do STJ de 27/9/2011, processo 2005/03.0TVLSB.L1.S1, in dgsi.net
12. Acórdão do STJ de 3/12/2015, processo 210/12.8TTFAR.E1.S1, in dgsi.net
13. Ac. da Relação de Lisboa de 5/5/2015, processo 1386/13.2TBALQ.L1-7, in dgsi.net
14. Acórdão da Relação de Lisboa de 9/10/2014, processo 2164/12.1TVLSB.L1-2, in dgsi.net