Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
194/14.8TBCBC.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
AQUISIÇÃO
ÁGUAS PÚBLICAS
PREOCUPAÇÃO
SERVIDÃO DE AQUEDUTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, no sentido de formar a sua própria convicção.
II - Preocupação ou jus preoccupationis é o direito concedido aos que ocupassem as águas públicas por meio de obras apropriadas, como tal se considerando as presas, aquedutos, canais ou levadas, e a sua utilização em determinado prédio ou conjunto de prédios.
III - Para ser reconhecido o direito às águas de uma corrente não navegável nem flutuável, adquirido por preocupação, para determinados prédios, é necessário articular e provar que, desde data anterior à da entrada em vigor do Código Civil de 1867, existem obras de captação e derivação dessas águas, feitas no leito ou margem da corrente, para utilização delas nesses prédios, onde, desde então, têm sido sempre utilizadas.
IV - O n.º 1 do art.º 1561.º do C.C., confere ao titular das águas particulares o direito de as conduzir através de prédio de outrem para as aproveitar num prédio que lhe pertença, seja em proveito da agricultura ou da indústria, seja para gastos domésticos.
V – Esta servidão legal de aqueduto, dizendo respeito à condução da água, tem como pressuposto o direito a essa mesma água, que se quer conduzir.
VI – O dono do prédio serviente não pode executar nele obras que estorvem o exercício da servidão, impedindo ou dificultando o livre curso das águas ou a conservação do aqueduto.
VII – É susceptível de prejudicar o livre curso das águas, a colocação de tubos subterrâneos com o diâmetro de entrada inferior em sete centímetros ao diâmetro de saída, se aquela entrada não comportar todo o caudal da água transportada.
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO
I.- MO e mulher ML, com os sinais de identificação nos autos, intentaram a presente acção comum contra J, também identificado nos autos, pedindo a condenação deste:
- a reconhecê-los como legítimos proprietários do prédio rústico denominado Cerco da Bouça, sito no lugar de Além do Ribeiro, freguesia de Cavez, inscrito na matriz rústica sob o artigo … e descrito na conservatória com o número 53;
- a reconhecer que tal prédio é irrigado, de Junho a Setembro, de 15 em 15 dias, com as águas preocupadas do Rio Vilela e conduzidas pela Levada Velha;
- a reconhecer que o prédio deles, Autores, beneficia de uma servidão de aqueduto que onera o prédio do Réu;
- a repor a servidão que existia antes das obras por si efectuadas, abstendo-se de praticar actos que perturbem ou limitem o exercício do direito de servidão;
- a pagar uma sanção pecuniária compulsória, no montante de € 50 por cada dia de atraso na reposição do aqueduto ou rego como ele existia antes das alterações, nomeadamente, removendo as meias canas e as manilhas subterrâneas.
Fundamentam alegando, em síntese, que adquiriram o prédio por compra que fizeram em 1993, e, por si e pelos antepossuidores, o utilizam há mais de 40 anos, sem a oposição de quem quer que seja; que o referido prédio vem sendo, desde tempos imemoriais, irrigado, de quinze em quinze dias, do S. João ao S. Miguel, com águas preocupadas do Rio Vilela, conduzidas através de um aqueduto construído há mais de 200 anos; que a água, para atingir o prédio dos Autores, percorre o prédio do Réu através de aqueduto, há mais de 150 anos; que o Réu, cerca de dois anos antes da propositura da acção, alterou o aqueduto prejudicando o normal correr da água em direcção do prédio deles, Autores.
Citado, o Réu impugnou os factos invocados pelos Autores, alegando que se limitou a substituir um rego a céu aberto por meia cana, o que evita perdas da água e apenas substituiu um tubo já existente por outro com iguais dimensões e diâmetro.
Deduziu ainda reconvenção, peticionando a canalização subterrânea do rego que atravessa o seu prédio em direcção ao prédio dos Autores, com a consequente extinção do direito dos Autores a transitar pelo seu terreno para limpeza do aqueduto, por desnecessidade.
Os Autores replicaram, impugnando os factos alegados pelos Réus.
Em sede da audiência de julgamento, o Réu desistiu do pedido reconvencional, tendo tal desistência sido homologada por sentença ditada para a acta, a qual não foi objecto de impugnação.
Culminando o julgamento, foi proferida douta sentença que decidiu julgar a acção parcialmente procedente, e:
1. Declarar que os Autores são legítimos proprietários do prédio rústico denominado Cerco da Bouça, Monte ou Montado da Bouça, Plaina da Bouça, Bouça ou Campo da Bouça, sito no lugar de Além do Ribeiro, freguesia de Cavez, inscrito na matriz rústica sob o artigo … e descrito na conservatória com o número …;
2. Condenar o Réu, José Fernando Teixeira de Andrade:
a) a reconhecer que o prédio dos Autores beneficia de uma servidão de aqueduto que onera o seu prédio, através de rego a céu aberto na estrema poente do mesmo prédio, num percurso de cerca de oitenta metros;
b) a reconhecer que, com as obras por si realizadas, que consistiram na colocação de meias canas num percurso de 37 metros e tubos subterrâneos numa extensão de 18 metros, alterou a aludida servidão;
c) a repor a servidão como ela existia antes das obras por si realizadas;
d) a abster-se da prática de quaisquer actos que perturbem ou limitem o direito de servidão dos Autores.
3. Absolver o Réu do demais peticionado.
Inconformado, o Réu impugna esta decisão pretendendo vê-la revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente improcedente e o absolva dos pedidos formulados pelos Autores.
Também os Autores se não conformaram com a decisão, pretendendo seja alterada a matéria de facto quanto ao ponto de facto que impugnam, e seja revertida a decisão quanto ao pedido que foi julgado improcedente.
Respondeu o Réu propugnando para que seja recusado provimento a este recurso dos Autores.
Ambos os recursos foram recebidos como de apelação, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- O Apelante/Réu funda o seu recurso nas seguintes conclusões:
1) A sentença recorrida reconheceu a servidão de aqueduto que onera o prédio do apelante em favor do prédio dos apelados, apesar de não ter reconhecido o direito às águas peticionadas pelos AA. sob o pedido formulado sob o nº 2;
2) Com o devido respeito, entendemos que o Mmº Juiz “ a quo” não decidiu bem;
3) Tendo sido apurado que a água não é propriedade dos AA. não lhes pode ser reconhecido o direito de servidão de aqueduto;
4) A servidão de aqueduto consiste no direito de fazer passar águas de que se é proprietário ou sobre as quais se tem outro direito, através de prédio alheio em direcção ao próprio prédio, utilizando um rego ou cano condutor (Definição de José Luís Santos, Servidões Prediais, 2ª edição aumentada, Coimbra Editora, 1983, p.48.) - artº 1561º do CC.
5) nos presente autos, não resulta provado que os AA. beneficiem de qualquer direito sobre as águas que peticionaram, ónus que lhes incumbia.
6) Pressuposto essencial e prévio para o reconhecimento desta servidão de aqueduto é que a parte que reclama a servidão tenha o direito às águas, o que não aconteceu.
7) Face à matéria dada como provada não podia ter sido reconhecido o direito de servidão de aqueduto a onerar o prédio do Réu e a favor do prédio dos AA., devendo antes o Réu ser absolvido do dito pedido;
8) Mesmo que assim não se entenda, ou seja, decidindo-se manter que o prédio do Réu está onerado com a servidão de aqueduto a favor do prédio dos AA., o que não se concebe nem concede, o Mmº Juiz “ a quo” considerou também que as obras levadas a efeito pelo Réu alteraram a aludida servidão e condenou o Réu a repor a servidão como ela existia antes das obras por si realizadas;
9) O Réu limitou-se a proceder à colocação de meias canas no solo do rego durante um percurso de cerca de 37 metros, atento o sentido norte/sul e colocou, subterraneamente, tubos numa extensão de cerca de 18 metros, desembocando tais tubos já no prédio dos Autores, onde já existiam manilhas, como resulta do relatório pericial.
10) E na sentença reconhece-se que “embora tenha sido demonstrada a ausência de prejuízo causado aos Autores, ficou por apurar a existência de uma sua autorização na alteração da servidão. Ora, sem autorização dos Autores (ou decisão judicial que supra tal consentimento), não poderia o Réu ter procedido à realização de obras no rego da água que atravessa o seu prédio, como veio a realizar, ainda que tal alteração não tenha causado qualquer prejuízo.”
11) Também nesta parte o Mmº Juiz “a quo”, com o devido respeito, não decidiu bem.
12) A matéria de facto provada sob os pontos 7º a 9º da sentença não consubstancia uma alteração do modo de exercício da servidão de aqueduto.
13) Não resultou provado que o Réu, com tal conduta, tenha causado qualquer prejuízo aos AA, designadamente a matéria alegada pelos AA. que “a alteração da fisionomia do aqueduto prejudica seriamente o normal correr da água” e que “a colocação de manilhas de tão reduzidas dimensões impede a total entrada do caudal, derivando, abruptamente, uma porção de água para o prédio do Réu”.
14) Os Senhores Peritos foram unânimes em considerar que “a substituição do rego a céu aberto (em terra e granito) e das meias manilhas de cimento existentes por uma tubagem enterrada nas condições referidas nos quesitos 4º, 5º, e 8º dos AA., melhora a condução e aproveitamento dessa água por inexistência de perdas ao longo do trajecto.”
15) Não existe qualquer tipo de prejuízo para os AA., antes que até os beneficia, melhora a condução e aproveitamento da água.
16) O Réu só fez tais obras porque era óbvio e claro que nenhum agravamento existia e que nenhuma oposição séria iria ocorrer por parte dos AA..
17) Como escrevem P. de Lima e A. Varela, «se, por exemplo, o titular duma servidão de aqueduto em que a condução da água se faz por um rego coberto de pedra quiser substituir este por um tubo de ferro, que melhor proteja contra as perdas ou infiltrações de água, estará sem dúvida dentro dos poderes que lhe são conferidos no artigo 1565º, independentemente de saber se há ou não alteração da servidão». P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 666.
18) Em consequência, a proibição imposta ao proprietário interessado de não modificar unilateralmente a modalidade de exercício da servidão não exclui a possibilidade do recurso a meios mais idóneos para esse exercício, meios tecnicamente mais modernos e eficientes.
19) O essencial é sempre que seja respeitada a função da servidão e tais modificações não se traduzam num agravamento do ónus, o que ocorre in casu, aliás, trouxe vantagens.
20) Não é essencial a maneira, o leito em que a água corre, desde que ela chegue ao local e satisfaça a finalidade a que se destina;
21) Tratou-se de uma simples alteração no leito, no meio de condução da água, e, por isso, tem de ser apreciada como uma modificação cuja legalidade deve ser ponderada unicamente pelo critério do estorvo do uso imposto na 1ª parte do nº 1 do artigo 1568º do CC.
22) Pelo que o pedido da condenação do Réu a repor a servidão como ela existia antes das obras por si realizadas deve ser julgado improcedente e, em consequência, procedente a apelação e revogada a sentença recorrida;
23) A sentença em crise assentou em errados pressupostos de facto, fez uma errada subsunção dos factos ao direito, e violou, na interpretação defendida, o disposto nos artigos 1561º, 1565º e 1568º do Código Civil, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que absolva os RR. dos pedidos formulados.
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III.- Por sua vez, os Apelantes/Autores fundam-se nas seguintes conclusões:
1ª Nos termos do disposto no artº 1386º, nº 1 alínea d) do Código Civil, “São particulares, as águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de Março de 1886, por preocupação, doação régia ou concessão.”
2ª De nada serviria a cautela da lei em ressalvar os direitos adquiridos por preocupação, se fosse forçosa a conclusão de que se torna impossível fazer a prova desse facto. Seria mesmo um absurdo da lei.
3ª Tal absurdo existiria se os Serviços Hidráulicos e os Tribunais exigissem a prova direta da preocupação, para atribuírem validade a esses antiquíssimos aproveitamentos. Mas há muito tempo que, logicamente, não se tem verificado essa exigência: a prova indirecta tem sido considerada suficiente. E assim se evita o referido absurdo.
4ª Só no regime anterior ao Código Civil – e sobretudo antes do alvará de 27 de novembro de 1804 – é que a preocupação das águas públicas, por meio de obras de captação e condução, era inteiramente livre de fiscalização administrativa.
5ª Posteriormente a 1892, apenas em regime de concessão ou de licença é que esses aproveitamentos são admitidos. Daqui resulta esta conclusão: em princípio, um aproveitamento imemorial, sem licença nem concessão, deverá ser anterior ao Código Civil. Haverá, pelo menos, uma presunção nesse sentido.
6ª A douta sentença, ao exigir a prova direta na indagação da aquisição do direito às águas preocupadas coloca os recorrentes e todos aqueles que, desde tempos imemoriais, irrigam seus prédios, derivando a água de rios ou ribeiros, por meio de antigos aquedutos, sem qualquer tutela jurídica para essa prática imemorial.
7ª Do cotejo das transcrições dos depoimentos das testemunhas em cima referenciadas resulta com clareza que a utilização da água captada por represa no Rio Vilela e conduzida através da Levada Velha ocorre desde sempre. Todas as testemunhas já ouviam seus pais falar na água da Levada Velha e uma delas, a testemunha Domingos Teixeira Leite, ouviu os seus avós a falar da água da Levada Velha.
8ª Foi produzida prova que habilita o Tribunal a conclusão de que, pelo menos, há já três gerações a água da Levada Velha, captada por represa no Rio Vilela, é utilizada para irrigação do prédio dos recorrentes.
9ª Tomando como referência a idade da testemunha Irene Machado – 72 anos – o Tribunal podia e devia, dar por provado que o prédio dos autores vem sendo irrigado, entre o S. João e o S. Miguel, de quinze em quinze dias, por água proveniente do rio Vilela, obtida através de captação por represa construída no rio há pelo menos 200 anos (3x70 anos), sendo a água conduzida através do aqueduto denominado Levada Velha.
10ª Nada justifica nem aconselha a exigência de prova direta para prova de um facto impossível de provar com recurso a essa prova; não existem pessoas com 150 anos!
11ª O Tribunal deveria, no processo valorativo da prova, ter recorrido à prova por presunções regulada nos artigos 349º e 351º do Código Civil.
12ª A prova coligida nos autos permitia ao Tribunal estabelecer a correspondência a deduções lógicas e racionalmente fundamentadas naquela prova, concluindo, a final, pelo reconhecimento do direito dos recorrentes à preocupação das águas do Rio Vilela, conduzidas pela Levada Velha, derivadas desta conduta para o rego construído no prédio do réu até atingir o prédio dos autores, o Cerco da Bouça.
13ª A douta sentença errou na avaliação da prova produzida em audiência e errou não só no pressuposto de que parte – exigência de prova direta que, no caso, se traduz numa impossibilidade de prova – como descurou todos os sinais que o recurso a quadros de normalidade proporcionaria.
14ª Todos aqueles factos conhecidos, apreensíveis e até com lastro no acervo probatório, permitiam ao julgador tirar a ilação de que aquela água do Rio Vilela já irriga o prédio dos autores (e tantos outros) há mais de 150 ou 200 anos.
15ª A interpretação restritiva (exigência de prova direta) que a douta sentença faz do artigo 1386º, nº 1 alínea d) do Código Civil torna impossível o reconhecimento da tutela jurídica do direito dos recorrentes às águas preocupadas, esvazia de sentido aquela norma que pretendeu dar proteção efetiva aos direitos adquiridos por preocupação e viola o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
16ª Inconstitucionalidade que fica aqui assim arguida para todos os efeitos legais.
17ª O ponto 4 da matéria de facto provada deve ser alterado para a seguinte redação: “O prédio dos Autores vem sendo irrigado entre o S.João e o S.Miguel, (junho a setembro) de quinze em quinze dias, por água proveniente do Rio Vilela, obtida através de captação por represa construída no rio há, pelo menos, 160 ou 200 anos, sendo a água conduzida através do aqueduto denominado Levada Velha”.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Como se extrai das conclusões acima transcritas, cumpre:
i) Relativamente ao recurso do Réu:
- reapreciar a decisão jurídica da causa nos dois segmentos impugnados:
a) não provado o direito à água o pedido de reconhecimento da servidão de aqueduto tem de improceder;
b) não resultando prejuízo para a condução das águas as obras devem manter-se.
ii) Relativamente ao recurso dos Autores:
- reapreciar a decisão de facto quanto ao ponto impugnado;
- reapreciar a decisão jurídica quanto ao pedido julgado improcedente.
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Posto que o Réu faz depender a procedência do seu recurso do pedido cuja decisão os Autores impugnam, conheceremos em primeiro lugar do recurso destes.
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B) - FUNDAMENTAÇÃO
- DO RECURSO DOS AUTORES -
V.- Os Autores impugnam a decisão da matéria de facto relativamente à facticidade constante do n.º 4, que pretendem ver alterada, quanto ao tempo em que a água do Rio Vilela vem sendo utilizada para rega, fundando-se em três depoimentos testemunhais, transcrevendo os trechos que, a seu ver, impunham decisão no sentido que propugnam.
Mostram-se, assim, cumpridos todos os ónus impostos pelo art.º 640.º do C.P.C., não só os que constam das três alíneas do n.º 1 como igualmente o imposto pela alínea a) do n.º 2.
Não há, pois, impedimento legal à reapreciação da matéria de facto.
2- Na reapreciação, cumpre observar o que dispõe o art.º 662.º do C.P.C., sem excluir que, como consta da “Exposição de Motivos”, foi intenção do legislador reforçar os poderes da Relação, reconhecendo-se-lhe o poder, que é vinculado, de investigação oficiosa, com o objectivo primordial de evitar o julgamento formal, apenas baseado no ónus da prova, privilegiando o apuramento da verdade material dos factos, que é pressuposto de uma decisão justa.
Assim, não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, no sentido de formar a sua própria convicção.
Como refere o Ac. do S.T.J. de 11/02/2016, “Sendo a decisão do tribunal a quo o resultado da valoração de meios de prova sujeitos à livre apreciação, tais como documentos particulares sem valor confessório, relatórios periciais ou declarações da parte a que não corresponda confissão, desde que a parte interessada cumpra o ónus de impugnação prescrito pelo art. 640º, a Relação, como tribunal de instância, está em posição de proceder à sua reavaliação, expressando, a partir deles, a sua convicção com total autonomia.
Fazendo incidir sobre os meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607º, nº 5, do NCPC) ou da aquisição processual (art. 413º do NCPC), deve reponderar as questões de facto em discussão e expressar o resultado que obtiver: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo” (ut Proc.º 907/13.5TBPTG.E1.S1, Cons.º Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt).
De acordo com o art.º 341.º do C.C. as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Sem embargo, não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta (objectivo impossível de atingir) mas tão-só a um elevado grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (cfr. MANUEL DE ANDRADE in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192), mas quem tem o ónus da prova de um facto tem de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como escreveram ANTUNES VARELA et Al. (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420).
As regras sobre o ónus da prova constam dos art.os 342º. a 346.º do C.C., sendo que o princípio basilar é o que vem estabelecido no primeiro daqueles preceitos legais: quem invoca um direito tem de fazer a prova dos factos que o constituem. Já os factos impeditivos, modificativos ou extintivos têm de ser provados por aquele contra quem o direito é invocado.
Complementarmente àquelas regras e princípios de direito material, cumpre ainda ter presente o princípio de direito adjectivo consagrado no art.º 414.º do C.P.C., de interpretação da dúvida sobre a realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, que se resolve contra a parte à qual o facto aproveita. O art.º 346.º do C.C. reporta-se, precisamente, à contraprova destinada a tornar duvidosos os factos – não se conseguindo ultrapassar a dúvida, a questão é decidida contra a parte onerada com a prova.
A importância das referidas regras e princípios radica na proibição do tribunal deixar de julgar alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio, nos termos consagrados no n.º 1 do art.º 8.º do C.C..
Desde que seja admitida a prova testemunhal, é igualmente admissível o recurso às presunções judiciais, de acordo com o que dispõe o art.º 349º., do C.C., que são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
VAZ SERRA escreveu que “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência” (in B.M.J. nº. 112º., pág. 190).
Ou seja, o juiz, provado um facto e valendo-se das regras da experiência, conclui que esse facto revela a existência de outro facto porque normalmente andam associados.
Também ANTUNES VARELA et Al., referem que “as presunções naturais, judiciais ou de facto são aquelas que se fundam nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos havidos através da observação (empírica) dos factos” e, prosseguem, “É nesse saber de experiência feito que mergulham as suas raízes as presunções continuamente usadas pelo juiz na apreciação de muitas situações de facto” (in ob cit. pág. 486).
Uma vez que as presunções naturais podem ser ilididas, a prova “dirige-se contra o facto presumido, visando convencer o juiz de que, não obstante a realidade do facto que serve de base à presunção, o facto presumido não se verificou …” (ob. cit., pág. 488).
Há-de ser, pois, à luz de quanto vem de ser referido que a decisão da matéria de facto vai ser reapreciada.
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VI.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:
i) julgou provado que:
1. Os Autores são proprietários do prédio rústico denominado Cerco da Bouça, Monte ou Montado da Bouça, Plaina da Bouça, Bouça ou Campo da Bouça, sito em Lugar de Além do Ribeiro, freguesia de Cavez, inscrito na matriz rústica sob o artigo … e descrita na conservatória com o número ….
2. O Réu é proprietário de um prédio rústico sito no mesmo Lugar de Além do Ribeiro, da freguesia de Cavez, concelho de Cabeceiras de Basto, inscrito na matriz respectiva sob o artigo …, e descrito na conservatória sob o nº ….
3. O prédio dos Autores e o do Réu são contíguos.
4. O prédio dos Autores vem sendo irrigado, entre o S. João e o S. Miguel, de quinze em quinze dias, por água proveniente do Rio Vilela, obtida através de captação por represa construída no rio há, pelo menos, 70 anos, sendo a água conduzida através do aqueduto denominado Levada Velha.
5. No período de rega, a água da Levada Velha, para atingir o prédio dos Autores, percorre o prédio do Réu através de aqueduto ou rego a céu aberto, localizado na estrema poente deste prédio, num percurso de cerca de oitenta metros.
6. Desde há pelo menos 40 anos que os autores e seus antepossuidores, ininterruptamente, à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição de quem quer que seja e com a convicção de exercerem um direito próprio, fazem conduzir a água para irrigação do seu prédio através do aludido rego.
7. Cerca de dois anos antes da propositura da acção, o Réu, sem qualquer autorização ou consentimento, procedeu à colocação de meias canas no solo do rego durante um percurso de cerca de 37 metros, atento o sentido norte/sul.
8. Ainda, imediatamente antes do prédio dos Autores, o Réu, igualmente sem autorização dos Autores, colocou, subterraneamente, tubos numa extensão de cerca de 18 metros, desembocando tais tubos já no prédio dos Autores.
9. Os tubos têm à entrada um diâmetro de 13 cms e, à saída, um diâmetro de 20 cm.
10. No início do rego que atravessa o terreno do Réu encontra-se construído um talhadouro.
i) julgou não provado:
1. Que as obras de captação e construção da Levada Velha tenham ocorrido há mais de 100 ou 200 anos.
2. Que há mais de 40 anos que os Autores e seus antepossuidores, ininterruptamente, à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição de quem quer que seja e com a convicção de exercerem um direito próprio, façam conduzir a água para irrigação do seu prédio através do rego que atravessa o prédio do Réu.
3. Que o talhadouro existente no terreno do Réu tenha sido por este construído dois anos antes da propositura da acção.
4. Que as obras levadas a efeito pelo Réu no rego em causa tenham causado uma redução no caudal de água disponível para os Autores.
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VII.- O Tribunal a quo fundamentou assim a sua decisão quanto à facticidade impugnada, transcrita sob o n.º 4 dos “factos provados”: “A prova do facto n.º 4 resulta, no essencial, do depoimento conjugado do Autor e de todas as testemunhas. No que concerne ao tempo de utilização da represa, embora as testemunhas tenham referido que a mesma existe “desde sempre”, o Tribunal apenas pôde confirmar a sua utilização desde que a testemunha I, de 72 anos de idade, era criança, não dispondo de mais elementos que lhe permitam concluir que a aludida represa existisse há mais tempo. Assim, fixou o tempo de utilização da represa tendo por base a memória da aludida testemunha.”.
É certo que este Tribunal da Relação apenas dispõe da imediação mitigada que é proporcionada pelas gravações, mas também não é menos certo que uma atenção cuidada à postura da voz, às hesitações e a eventuais contradições, assim como à colocação das perguntas e ao teor das respostas, permitem formular um juízo suficientemente seguro e sustentado sobre a credibilidade de um depoente, sendo ainda certo que o art.º 662.º do C.P.C. consagra os instrumentos adequados a fazer remover a dúvida, que tem de ser “séria”, sobre “a credibilidade do depoente” ou sobre “o sentido do seu depoimento”.
Assim é que se revisitaram todos os depoimentos, incidindo atenção especial nos das testemunhas mais idosas: referida I, mas tamém F, que disse ter trabalhado naquela quinta «vinte e oito anos», apenas a tendo deixado quando os Autores adquiriram o prédio, o que aconteceu em 1993, como se vê da cópia da escritura pública de fls. 16, remetendo-nos, assim, para a década de sessenta do século passado; C, com 74 anos, cujo pai também trabalhou «naquelas terras»; e Francisco Pereira de Andrade, com 80 anos, cujo sogro granjeou aqueles prédios durante «cinquenta anos» e perguntado se “conhece a Levada Velha” respondeu, espontaneamente e sem hesitar «ela deve ter à volta dos 400 anos. Seguramente 400 anos».
Considerados, assim, estes depoimentos, a antiguidade da levada (as pedras e os terrenos com os sinais que neles existem também “falam”, e por vezes mais “eloquentemente” que uma testemunha: uma pedra de granito com sulcos provocados pelos rodados de um carro de bois transmite uma mensagem certa e segura de uma servidão de passagem antiquíssima; uma árvore adulta existente na estrema de um prédio diz-nos que a linha de demarcação com o prédio confinante se tem mantido estável ao longo dos anos que leva de crescimento), e, in casu, a inacção das autoridades perante a utilização daquela água, que é represada no rio, e conduzida através de uma levada, a céu aberto, e por isso, perfeitamente visível, fazem presumir uma utilização com mais de duzentos anos, porque se assim não fosse os Serviços de Hidráulica tinham, evidentemente reagido, designadamente à construção do açude ou represa no leito do rio e, por isso, haveria registos escritos dessa acção.
Ainda que sem a notoriedade das homónimas da Madeira, as levadas do Minho são igualmente muito antigas, cuja construção foi, do mesmo modo, ditada pelas razões do acidentado do terreno, e têm subjacente a satisfação das mesmas necessidades de rega dos terrenos férteis, como o são os desta região, sejam ou não confinantes com o curso de água do qual são derivadas.
Assim sendo, como, de facto, é, e sabendo-se, como se sabe, da antiguidade destes sistemas de rega, não pode ser exigida uma prova formal (neste caso transformada em «prova diabólica») da data de construção dos açudes e das levadas, porque é impossível de ser obtida de pessoas vivas, sem prejuízo de não raras vezes essa prova poder ser colhida de outros indícios, como, por exemplo, a confrontação do prédio com “a levada”, quando a inscrição matricial ou o registo na Conservatória sejam de data aproximada das primeiras décadas do século XIX, um documento a regular o uso da água ou a reconhecer um direito especial de rega a algum dos prédios, uma sentença sobre um conflito de utilização da água, etc.
Como refere MÁRIO TAVARELA LOBO, face à reconhecida impossibilidade de, hoje, fazer a prova directa do facto material da preocupação das águas públicas, tem-se considerado suficiente a prova indirecta, como a que é proporcionada pelos “sinais ou obras visíveis e permanentes anteriores àquele alvará de 1804, ou antiquíssimos, que revelem a derivação das águas da corrente para fins agrícolas, laboração de engenhos ou outros …”, obras que podem mesmo ser “toscas ou pouco perfeitas uma vez que, na sua materialidade, revelem decisão e continuidade do aproveitamento da água e no exercício de um direito” (in “Manual do Direito das Águas”, vol. I, Coimbra Editora, 1989, pág. 297).
Também JOSÉ CÂNDIDO DE PINHO refere que “o mais evidente elemento de prova se cifra na demonstração da existência de obras visíveis com carácter de permanência, tendentes à derivação das águas para determinados fins (rega, lima ou merugem, moagem, etc.). Esta prova será corroborada ou completada, normalmente, através do recurso à análise documental (datas gravadas na pedra; documentos escritos com referência àquele uso, etc.) e depoimento testemunhal (testemunhos de pessoas idosas portadoras de conhecimentos que lhes tenham sido transmitidos pelos seus antepassados, etc.) (in “As Águas no Código Civil”, Almedina, 1985, págs. 35-36).
Atenta a provada existência da represa ou açude construída no leito do rio Vilela, e da levada que conduz a água para rega, designadamente, até ao campo dos Apelantes/Autores, considerados ainda os depoimentos supramencionados, não havendo notícia de os Serviços de Hidráulica alguma vez terem reagido, quer contra a construção do açude no rio, quer contra a “captação” da água através da levada, é de presumir que o aproveitamento desta mesma água, para fins de rega, já venha de há mais de cento e oitenta ou duzentos anos.
Cumpre, pois, conceder provimento ao recurso quanto a este segmento da alteração da decisão de facto.
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VIII.- Na procedência do recurso decide-se:
i) – alterar o n.º 4 da matéria de facto dos “factos provados”, dando-lhe a seguinte redacção:
“O prédio dos Autores vem sendo irrigado, entre o S. João e o S. Miguel, de quinze em quinze dias, por água proveniente do Rio Vilela, obtida através de captação por represa construída no rio há, pelo menos, 200 anos, sendo a água conduzida através da denominada “Levada Velha”.
ii) – eliminar do acervo factual “não provado” o que consta sob os n.ºs 1 e 2.
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IX.- Nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do art.º 1386.º do Código Civil (C.C.) são particulares as águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de Março de 1868, por preocupação, doação régia ou concessão.
Preocupação ou jus preoccupationis é o direito concedido aos que ocupassem as águas públicas por meio de obras apropriadas. LABÃO sintetizou assim os requisitos deste direito: «Diz-se tê-las preocupado aquele que primeiro designou o lugar para a obra, que preparou os materiais para ela, que de alguma maneira lhe deu princípio, que declarou e protestou judicialmente por alguma convenção ou ajuste. E para preferir a outro basta que a tenha principiado primeiro por algum dos ditos modos ou semelhantes, ainda que outro primeiro o conclua”.
Foi o alvará de 27 de Novembro de 1804 que, entre nós, consagrou legislativamente pela primeira vez este título de aquisição, permitindo “empreender o tirar de algum rio, ribeira, paul ou nascente de água de algum canal ou levada para regar as suas terras, ou para as esgotar sendo inundadas”, sendo, para tanto, necessário requerer “a qualquer dos ministros da vara branca do termo ou da comarca, para que lhe demarque e assigne o lugar e sítio mais commodo por onde ella pode ser construída”, não podendo opor-se os proprietários dos terrenos por onde passarem tais águas, sendo obrigados a “deixarem construir o aqueduto” (apud Mário Tavarela Lobo, in “Manual do Direito das Águas”, vol. I, pág. 295).
GUILHERME ALVES MOREIRA escreveu “A apropriação do direito às águas das correntes não navegáveis nem flutuáveis dava-se, em geral, por meio da preocupação, sendo derivadas as águas dessas correntes mediante presas nelas feitas, por aquedutos, canais ou levadas para a irrigação dos prédios, que tanto podiam ser marginais das correntes, como ficarem a grande distância delas, e para fins industriais ou abastecimento de povoações” (in “As Águas no Direito Civil Português, Livro I, Propriedade das Águas”, Coimbra Editora, 1960, pág. 407).
O Código Civil de 1867 respeitou os direitos derivados da preocupação, que tenham sido adquiridos anteriormente à data da sua entrada em vigor, ou seja, 22 de Março de 1868.
E, regulando nos art.o 434.º a 436.º os direitos dos donos dos prédios atravessados por quaisquer águas correntes não navegáveis nem flutuáveis de usarem dessas mesmas águas em proveito dos seus prédios, no art.º 438.º impõe o respeito pelos direitos adquiridos.
O Decreto n.º 5787-IIII, de 10 de Maio de 1919 (“Lei das Águas”) considerando do domínio público as “correntes de água não navegáveis nem flutuáveis” – cfr. artigo 1.º, n.º 3.º -, respeita, no art.º 33.º, os direitos que à data da sua entrada em vigor tenham sido adquiridos por qualquer pessoa “singular ou colectiva”.
Como decidiu a Relação do Porto, no Ac. de 27/07/1978, “A «preocupação» consiste na apropriação exclusiva de determinada quantidade de água pública, por meio de obras adequadas, como a presa, aqueduto ou levada, e a sua utilização em determinado prédio ou grupo de prédios. Para ser reconhecido o direito às águas de uma corrente não navegável nem flutuável, adquirido por preocupação, para determinados prédios, apenas é necessário articular e provar que, desde anteriormente à vigência do Código Civil de 1867, existem obras de captação e derivação dessas águas, feitas no leito ou margem da corrente, para utilização delas nesses prédios, onde, desde então, têm sido sempre utilizadas” (in C.J., Tomo IV, pág. 1228).
Decidiu o S.T.J. no Ac. de 29/05/1973, que “têm direito às águas de uma corrente não navegável nem flutuável, adquirido por preocupação e ressalvado pelos artigos 438.º do Código Civil de 1867, 33.º do Decreto n.º 5.787,-IIII, e 1386.º, n.º 1, alínea d) do Código Civil actual, os proprietários de certos prédios rústicos, uns marginais e outros não, quando se mostre que aqueles, por si e pelos seus antecessores, ininterruptamente há mais de 150 anos, à vista e com conhecimento de toda a gente e mediante regime estável da sua distribuição entre eles estabelecido, vêm aproveitando a água da referida corrente para rega e lima desses seus prédios, por meio de obras visíveis e aparentes, designadamente uma presa, feitas no leito da corrente pelos seus antepassados e por estes e seus sucessores permanentemente mantidas e reparadas para aquele efeito, à vista de toda a gente e sem oposição de quem nisso mostrasse interesse”, mais decidindo que “uma vez adquirido por preocupação o direito às águas, estas tornaram-se particulares e como tal passaram a poder ser objecto de negócio jurídico ou de usucapião nos termos gerais” (in B.M.J., 227º, págs. 159-164).
Na situação sub judicio, (face à alteração à matéria de facto ora introduzida) provaram os Apelantes que o seu prédio vem sendo irrigado por água proveniente do Rio Vilela, captada por represa construída nesse mesmo rio, e conduzida pela denominada “Levada Velha, há, pelo menos, 200 anos.
Os períodos de irrigação são de quinze em quinze dias entre o São João e o São Miguel.
Adquiriram, pois, o direito à água do Rio Vilela por preocupação, de 15 em 15 dias no período compreendido entre o São João (24 de Junho) e o São Miguel (29 de Setembro).
Destarte, merece provimento o recurso dos Apelantes, impondo-se revogar o segmento decisório da 1.ª Instância que absolve o Réu do pedido de condenação a reconhecer aquele direito.
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- DO RECURSO DO RÉU -
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X.- Como se alcança das conclusões acima transcritas, o recurso do Réu pode cindir-se em duas partes: uma respeita ao reconhecimento do direito de servidão de aqueduto a beneficiar o prédio dos Autores (conclusões 3 a 7) e a outra à condenação na reposição da servidão no estado anterior às obras por si realizadas (conclusões restantes).
A) Assiste razão ao Apelante/Réu quando defende que, não tendo sido reconhecido o direito de propriedade dos Autores à água, também não poderia ser reconhecido o direito de servidão de aqueduto.
O Decreto n.º 5787-IIII, já referido, reconhecendo o direito “a qualquer” (pessoa) “encanar subterraneamente ou a descoberto, em proveito da agricultura ou da indústria, as águas a que tenha direito, através de prédios rústicos alheios”, determinou que quem pretendesse estabelecer esta servidão um dos pressupostos que teria de provar era o de que a água lhe pertence – cfr., respectivamente, art.os 114.º e 115.º, alínea a).
O n.º 1 do art.º 1561.º do C.C., confere ao titular das águas particulares o direito de as conduzir através de prédio de outrem para as aproveitar num prédio que lhe pertença, seja em proveito da agricultura ou da indústria, seja para gastos domésticos.
JOSÉ CÂNDIDO DE PINHO escreve que a servidão legal de aqueduto “consiste no direito atribuído ao dono de um prédio de fazer passar as águas a que tem direito, através de um prédio alheio, subterraneamente ou à superfície”, e prossegue, “a servidão, porque se prende com a condução (conduz-se algo) carece da existência, prévia ou simultânea, de um direito à água que se quer conduzir, não importa a que título (propriedade, servidão, usufruto, etc.). Nesta perspectiva, a servidão é sempre um acessório do direito à água. A vida daquela pressupõe a deste. Não se concebe a servidão sem o objecto da condução” (in “As Águas no Código Civil”, Almedina, 1985, pág. 193).
Ora, como vem de ser decidido, lograram obter provimento os Autores quanto ao reconhecimento do seu direito à água do Rio Vilela para irrigação do seu prédio, no tempo e modo já acima referidos.
A procedência do recurso dos Autores importa a improcedência deste primeiro segmento do recurso do Réu.
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B) Ainda de acordo com o n.º 1 do art.º 1561.º do C.C., a condução das águas pode fazer-se através de rego a céu aberto ou por cano subterrâneo ou tubo enterrado no solo.
Podem, pois, materializar a servidão não só um rego a céu aberto como também um cano subterrâneo ou um tubo enterrado no solo.
Como refere GUILHERME ALVES MOREIRA, o facto que “constitui a existência da servidão de aqueduto e pela qual se limita o direito de propriedade, é o cano ou rego condutor que atravessa prédios alheios” (in “As Águas no Direito Civil Português”, Coimbra Editora, 1960, Livro II, pág. 208).
As servidões são direitos reais de gozo, definindo-as o artº 1543.º do Código Civil (C.C.) como o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, dizendo-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o prédio que dela beneficia.
As servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título - cfr. art.º 1564.º, do C.C..
Se a servidão foi constituída por usucapião, o seu conteúdo ou extensão e o seu exercício determinam-se pela posse do titular respectivo, de acordo com o princípio tantum praescriptum quantum possessum.
No que se refere à extensão do direito de servidão, deve ter-se por compreendido nele tudo o que é necessário para a sua conservação, de acordo com o disposto no art.º 1565.º, n.º 1 do C.C..
Em caso de dúvida quanto à extensão e ao modo de exercício entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente, nos termos do disposto no n.º 2 do referido preceito legal, que consagra, assim, um duplo objectivo – o da maior utilidade possível para o prédio dominante e do menor dano possível para o prédio serviente, deste modo se obtendo o equilíbrio dos interesses do dono do prédio dominante e do dono do prédio serviente.
MÁRIO TAVARELA LOBO defende que, no exercício do seu direito, o titular da servidão concedida para certo volume de água pode aumentar esse caudal se não houver prejuízo para o prédio serviente, podendo ainda utilizar o aqueduto “fora do tempo autorizado para a condução da água” mas só se tiver autorização do dono do prédio serviente.
Refere ainda o mesmo AUTOR como compreendido no âmbito daquele exercício “o direito de expurgação e limpeza”, no âmbito do qual “pode depositar o lodo e o limo extraídos das bordas do aqueduto, bem como altear ou rebaixar este para facilitar o curso das águas, refazer e compor o aqueduto”. Já, porém, exclui o direito de “cortar torrões no prédio serviente para formar as bordas do aqueduto e lançar de ambos os lados deste o limo ou lodo que dele extrair”, salvo a extensão da servidão abranger tal direito (in “Manual do Direito das Águas”, Coimbra Editora, 1990, vol. II, págs. 393-394).
Proibindo o dono do prédio serviente de estorvar o exercício da servidão, reconhece-lhe o art.º 1568.º do C.C. o direito de, a todo o tempo, exigir a mudança dela para sítio diferente ou até para um prédio diferente, desde que não prejudique os interesses do proprietário do prédio dominante, cabendo-lhe suportar todos os gastos decorrentes da mudança.
Como defendem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, naquela proibição estão abrangidos “não apenas os actos que embaraçam o exercício da servidão propriamente dita, como ainda os que impedem ou dificultam a conservação das obras necessárias a esse exercício” (in “Código Civil Anotado”, vol. III, nota 2 ao artigo 1568.º).
O art.º 118.º do Decreto n.º 5787-IIII, reconhecendo aos donos dos prédios servientes “tudo o que os marachões ou motas produzem naturalmente”, expressamente lhes impunha a obrigação de “dar passagem para a inspecção do aqueduto ou para nele se fazerem os consertos necessários” e o dever de “não fazer coisas que de qualquer forma prejudique o aqueduto ou o curso das águas”, reconhecendo-lhes ainda, no art.º 119.º o direito de, “em qualquer tempo” exigir a mudança do aqueduto.
Com fundamento naquele dispositivo legal, GUILHERME ALVES MOREIRA defendeu que o direito de propriedade do dono do prédio serviente “apenas fica limitado no seu exercício quanto à prática dos actos que de qualquer modo prejudiquem o aqueduto, já pelo que respeita ao livre curso das águas já à conservação do mesmo aqueduto”, não ficando, assim, inibido de “fazer quaisquer construções sobre o aqueduto, desde que por elas não embarace o curso das águas nem danifique o aqueduto”, podendo realizar “no próprio aqueduto obras que, sendo convenientes para ele, não prejudiquem o aqueduto”, podendo, assim, cobri-lo “para passar sobre ele e até para cultivar o terreno” (in “As Águas no Direito Civil Português”, Coimbra Editora, 1960, Livro II, págs. 236-237).
Relativamente à questão da alteração da forma do aqueduto, MÁRIO TAVARELA LOBO tratou dela na perspectiva do proprietário do prédio dominante, defendendo que “quer o desgaste do material utilizado e o advento de novos materiais mais apropriados, quer os novos processos de técnica hidráulica mais eficientes, podem aconselhar a substituição da forma de condução da água”, defendendo não ser proibida a substituição de um “cano de ferro por um tubo de plástico da mesma grossura, se o aqueduto mantiver a mesma capacidade de condução da água (in “Manual do Direito das Águas”, vol. II, pág. 395-396).
Na situação sub judicio quem procedeu às obras foi o Apelante/Réu, dono do prédio serviente, obras que consistiram na “colocação de meias canas” no leito do rego, num percurso de 37 metros, e na colocação de tubos, “subterraneamente”, numa extensão de 18 metros, tubos que desembocam já no prédio dos Autores - cfr. n.os 7 e 8 da facticidade provada.
Não consubstanciando tais obras uma alteração da servidão, mas apenas uma alteração da forma do aqueduto, não carecia o Apelante/Réu da autorização prévia dos Apelantes/Autores, donos do prédio dominante, e a obrigação de as demolir só poderá justificar-se se elas constituírem uma ofensa à proibição de estorvar o exercício da servidão.
A provada substituição de um leito em terra por meias canas, e a colocação de tubos subterrâneos, em termos abstractos, não causam nenhum estorvo ao exercício da servidão por não estorvarem o livre curso da água, antes o facilitam e potenciam o seu máximo aproveitamento já que os referidos materiais, sendo estanques, impedem a sua perda através das fissuras e dos buracos abertos pelos animais, no leito ou nas margens do rego em terra.
Já, porém, resultará prejuízo para o exercício da servidão se as referidas meias canas e os tubos não permitirem a mesma capacidade de condução da água.
O Tribunal a quo julgou não provado que “as obras levadas a efeito pelos Réus no rego em causa tenham causado uma redução no caudal de água disponível para os Autores” (n.º 4 da “matéria de facto não provada), alicerçando-se no relatório pericial.
Sem embargo de esta decisão não ter sido impugnada, cumpre referir que os Senhores Peritos, como declararam no laudo, não verificaram, aquando da visita ao local, “qualquer escoamento de água”, e afirmaram que “um tubo com 20 cm. de diâmetro conduz maior caudal do que nas condições actuais”, de condução por “rego” e “aqueduto” (que distinguem por este último “ter as paredes e o fundo revestidos por elementos rígidos, tendencialmente impermeáveis, de qualquer natureza” - cfr. fls. 97 e 98 dos autos). Mais referiram, em resposta ao quesito 6.º formulado pelo ora Apelante, entenderem que “a melhor solução deverá ser uma tubagem em PEAD com 200 mm de diâmetro” – cfr. fls. 118.
Ora, como também ficou provado, os tubos aplicados pelo Réu, tendo à saída o diâmetro de 20 cm. (ou 200 mm.), são mais estreitos à entrada, apresentando um diâmetro de 13 cm. – cfr. n.º 9 da facticidade provada.
Não se verifica, assim, o pressuposto referido pelos Senhores Peritos já que o menor diâmetro dos tubos à entrada (e em 7 cm.!) poderá constituir um entrave à livre circulação da água, afunilando-a ao entrar nos tubos de menor diâmetro, se o respectivo caudal for superior ao comportado por eles.
Ora, se é verdade que em pleno século XXI não há já motivo relevante para manter intocáveis usos coevos da utilização exclusiva da enxada como instrumento de trabalho, sendo até conhecidas situações em que, quer o Estado, quer a União Europeia, numa prática do máximo aproveitamento da água, subsidiaram o entubamento e/ou a colocação de meias canas, em substituição dos regos em terra e a céu aberto, com o que se evitam os desperdícios advindos do escoamento da água através das fissuras e buracos no terreno, para além de, praticamente dispensarem trabalhos de manutenção, também não deixa de ser verdadeira a exigência de que se mantenham as condições de escoamento da água, porque um tubo ou uma meia cana com uma capacidade de escoamento inferior ao caudal da água faz com que parte desta transborde, não chegando ao seu destino, que é o prédio dominante.
Do exposto é de concluir que, sendo susceptíveis de prejudicar o livre curso das águas, a colocação dos tubos com o diâmetro de, apenas, 13 cm. consubstancia um acto passível de estorvar o exercício da servidão e, por isso, proibido ao Apelante, dono do prédio serviente.
Tais tubos devem, assim, ser retirados, podendo ser substituídos por outros que tenham à entrada o mesmo diâmetro da saída: 20 centímetros.
Quanto a esta parte das obras impõe-se que se mantenha a decisão impugnada, sem embargo de se dever conceder provimento ao recurso quanto às demais obras que o ora Apelante executou.
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C) DECISÃO
Considerando tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
A) julgar procedente o recurso de apelação interposto pelos Apelantes/Autores, e, conforme decorre da alteração da decisão da matéria de facto, condenam agora o Apelado/Réu a reconhecer que o prédio daqueles é irrigado, entre o São João (dia 24 de Junho) e o São Miguel (dia 29 de Setembro), de 15 em 15 dias, com as águas do Rio Vilela, que são conduzidas até ao prédio dos primeiros pela “Levada Velha”, que passa pelo prédio do segundo.
B) julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Apelante/Réu e, consequentemente:
i) revogar a decisão impugnada nos segmentos b. e c. do n.º 2, essencialmente no que respeita à condenação do mesmo Apelante a repor a servidão como ela existia antes das obras por si realizadas, de colocação de meias canas na supra referida Levada, ao longo do percurso de 37 metros;
ii) confirmar a decisão quanto aos segmentos condenatórios restantes, designadamente o da reposição da servidão como existia antes das obras, no que se refere aos tubos subterrâneos, que poderão ser substituídos por outros que tenham um diâmetro de 20 (vinte) centímetros.
Custas da apelação dos Autores pelo Apelante/Réu.
Custas da apelação do Apelante/Réu por este e pelos Apelantes/Autores, na proporção de metade.
Guimarães, 11/05/2017
(escrito em computador e revisto)

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(Fernando Fernandes Freitas)


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(Lina Aurora Castro Bettencourt Baptista)


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(Maria de Fátima Almeida Andrade)