Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
563/19.7T8VCT-B.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
FORMULAÇÃO DO PEDIDO
PERÍODO INTERMÉDIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE A APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Em matéria de prazo de que o devedor dispõe para formular o pedido de exoneração do passivo restante, o “período intermédio”, constante do art. 236º,1 CIRE, consiste naquele período de tempo em que já decorreu o prazo de 10 dias após a citação do devedor, mas ainda não terminou a assembleia de credores destinada a apreciar o relatório do Administrador.

II- Quando o legislador diz que se o pedido de exoneração for apresentado no período intermédio, o juiz decide livremente se ele é de admitir ou de rejeitar, não está a dar ao Julgador um poder absoluto e discricionário, mas antes a exigir que este faça a ponderação dos elementos constantes do art. 238º,1, b) a g) CIRE.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

No Juízo de Comércio do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, em processo de insolvência no qual foi proferida sentença datada de 26/7/2019 que declarou a insolvência de C. C., foi proferido o seguinte despacho:

Da exoneração do passivo restante:
Nos presentes autos, após ter sido citado (pessoalmente) com data de 07 de Maio de 2019, veio a ser proferida sentença de declaração de insolvência de C. C., em 26 de Julho de 2019.
Resulta, ademais, dos autos, que com data de 17 de Maio de 2019, o ora insolvente remeteu via e-mail aos ISS, IP pedido de concessão do benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos, bem como de nomeação de patrono, pedido aquele que veio a ser arquivado por falta de resposta (devolvido o expediente inicial, remetido para a morada indicada pelo próprio requerente), por decisão datada de 01 de Julho de 2019, àquele mesmo comunicada, facto não colocado em causa pelo mesmo.
Na referida sentença, foi agendada a Assembleia de Credores para o dia 17 de Setembro de 2019, tendo entretanto, por requerimento datado de 16 de Setembro de 2019, o insolvente apresentado pedido de exoneração do passivo restante.
O art.º 236.º, n.º 1 do CIRE dispõe que “o pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou no caso de dispensa desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio” [o sublinhado é nosso].
Assim sendo, é manifesto que o pedido deduzido é intempestivo, razão pela qual
vai o mesmo indeferido”.

Inconformado com esta decisão, o insolvente dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado, e com efeito meramente devolutivo (art. 14º,5 CIRE e arts. 627º,1,2, 629º,1, 631º,1, 637º,1,2, 638º,1,5, 639º,1,2, 641º,1,5, todos do CPC.
Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. O pedido de exoneração do passivo restante pode ser feito pelo devedor aquando da apresentação à insolvência e, não sendo o devedor o requerente, como sucedeu nos presentes autos, no prazo de 10 dias a contar da citação, o qual será sempre rejeitado se for deduzido após a Assembleia de apreciação do relatório do Administrador de insolvência.
2. A premissa fundamental deste art.º 236.º n.º 1 é que o pedido possa ser discutido na própria Assembleia de credores, única forma de a pretensão ser definitivamente apreciada.
3. No período intermédio, que corresponde ao tempo que decorre entre a citação e o encerramento da assembleia de apreciação do relatório, o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição do pedido.
4. Tendo o pedido sido apresentado no período intermédio, por imposição constitucional e legal, uma decisão de admissão ou rejeição do pedido tem que ser devidamente fundamentada (Art.º 205.º n. º 1 CRP e art.º 154.º nº 1 CPC).
5. A assembleia de apreciação do relatório realizou-se no dia 17.09.2019 e o requerimento no qual peticiona a exoneração do passivo restante foi apresentado no dia 16.09.2019, isto é, antes da realização daquela.
6. O ora apelante invocou o preenchimento de todos os requisitos descritos no art. 238.º n.º 1 al. b) a g) CIRE.
7. O despacho recorrido limita-se a justificar a intempestividade do pedido, não se debruçando sobre os motivos invocados pelo ora recorrente para tempestividade da apresentação do pedido de exoneração do passivo restante, nem tampouco articulou a apreciação do pedido com referência ao preenchimento das premissas/requisitos constantes das alíneas b) a g) do art.º 238.º CIRE.
8. O despacho recorrido não levou em consideração que o apelante insolvente apenas tomou conhecimento da declaração de insolvência no dia 04.09.2019, por não ter sido endereçada para a Rua de …, n.º …, morada que o próprio havia informado nos autos.
9. O apelante requereu apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono, requerimento este junto aos autos para os efeitos previstos no disposto no art.º 24.º n.º 4 da Lei n.º 34/2004, de 29.07, cujo alegado indeferimento nunca lhe foi notificado.
10. A articulação do art.º 236.º n.º 1 com as alíneas b) a g) do art.º 238.º n.º 1 deveria ter sido feita, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência, nomeadamente, pelos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08.07.2010 (proc. n.º 3922/09), de 16.01.2012 (proc. n.º 293/11), de 05.05.2014 (proc. n.º 1317/13) e, ainda, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.01.2016 (proc. n .º 334/14.7TBBGC-C).
11. Tudo isto leva a concluir que, o decurso do prazo de 10 dias após a citação não faz precludir o direito que o insolvente se arroga de requerer a exoneração do passivo restante.
12. O requerimento de exoneração do passivo restante é tempestivo por ter sido apresentado antes da assembleia de credores.
13. O pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo apelante não deveria ter sido indeferido por intempestividade, padecendo a decisão recorrida, salvo o devido respeito, de absoluta ausência de fundamentação, ao arrepio das normas constitucionais imperativas do dever de fundamentação de qualquer decisão judicial.
14. A decisão recorrida ser substituída por outra que, de forma fundamentada e ponderando a situação concreta emergente do processo, admita ou rejeite o pedido de exoneração do passivo restante.

Não houve contra-alegações

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo insolvente foi tempestivo.

III
Com interesse para a decisão, importa atentar na seguinte tramitação processual:

1. O requerido e ora recorrente foi citado pessoalmente para a acção em 7.5.2019.
2. O requerente requereu o benefício do apoio judiciário (nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça, custas, nomeação de patrono e dispensa do pagamento de honorários deste) em 17/5/2019.
3. A 13.6.2019 a Segurança Social informa o Tribunal da intenção de indeferir o pedido
4. A 5.7.2019 a Segurança Social informou que arquivou o processo porque o requerente não recebeu a notificação que lhe foi dirigida, para a morada constante do requerimento.
5. A 26.7.2019 foi proferida sentença de insolvência.
6. O insolvente, por requerimento de 16/9/2019, apresentou pedido de exoneração do passivo restante.
7. A 17.9.2019 realizou-se a assembleia de credores (para apreciação do relatório), tendo estado presente o mandatário do insolvente.

IV
Conhecendo do recurso.

A disposição legal central para a solução do presente recurso (mas não a única) é o art. 236º CIRE, na redacção dada pelo DL 79/2017, de 30 de Junho, com início de vigência a 1 de Julho de 2017).

Dispõe então o nº 1 desse artigo que “o pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio”.
Convenhamos que o regime dos prazos assim gizado não é totalmente claro, e impõe-se um esforço de interpretação.
Recorrendo por isso ao apoio de Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE anotado, 3ª edição): “o pedido é sempre feito por requerimento do devedor; todavia, os termos concretos em que deve ser apresentado dependem de o processo de insolvência se ter iniciado por apresentação do devedor ou por iniciativa de terceiros”.
Nestes autos, que se iniciaram por requerimento de um credor, interessa-nos o segundo caso. Escrevem então aqueles autores: “no caso de a iniciativa do processo caber aos credores ou outro legitimado, o pedido de exoneração deve ser apresentado no prazo de 10 dias posteriores à citação do devedor para o processo (cfr. nº 2), mas nunca depois da assembleia de credores para a apreciação do relatório do administrador da insolvência (art. 156º), mesmo que aquele prazo termine após a sua realização.
Igualmente relevante é o art. 238º,1,a CIRE: “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se for apresentado fora de prazo”.

Resultam daqui dois regimes diversos: a) o juiz deve rejeitar sempre o pedido se for apresentado após a referida assembleia; b) mas já decide livremente sobre a sua admissão ou rejeição se for apresentado no “período intermédio”.

O que entender por “período intermédio”?

Escrevem os supra referidos autores: “a razão de ser desta significativa diferença reside no facto de o pedido de exoneração dever ser dado a conhecer na assembleia de apreciação do relatório, trâmite que, por um lado, ficava prejudicado se se admitisse a apresentação posterior à sua realização, mesmo que dentro dos 10 dias posteriores à citação, mas por outro, também se não justificaria, uma vez que o juiz tem sempre de rejeitar o pedido. Sendo esta a justificação do regime, no caso de não ser convocada a assembleia de credores não há razão para fazer prevalecer o prazo do referido nº 4 do art. 36º (1), pelo que deverá considerar-se sempre tempestivo o pedido deduzido nos dez dias a que se refere o nº 1. Se o pedido de exoneração for apresentado no «período intermédio» - para usar a terminologia da lei- o juiz decide livremente se ele é de admitir ou de rejeitar. Por período intermédio, para o prazo de 10 dias ter sentido, tem de se entender o período de tempo que, com observância desse prazo, decorra entre a citação e o termo da assembleia ou, não existindo ela, até ao 45º dia posterior à sentença declaratória”.

Supomos que o regime que o legislador quis instituir aqui foi este:

1. O devedor é citado para a acção, e tem o prazo de 10 dias para formular este pedido de exoneração do passivo restante. Sendo que 10 dias é igualmente o prazo para este deduzir oposição ao pedido de insolvência (art. 30º,1).
2. Se o pedido for deduzido dentro desse prazo de 10 dias, o mesmo é tempestivo.
3. Se o devedor deixar passar esse prazo de 10 dias, e deixar igualmente terminar a assembleia de credores, está irremediavelmente proscrita para ele a possibilidade de requerer esse benefício. A razão para o pedido de exoneração ter que ser apresentado até ao termo da assembleia de apreciação do relatório é permitir aos credores e ao administrador de insolvência a sua apreciação (art. 236º,4 e art. 238º,2 CIRE).
4. Agora imagine-se que o devedor apresenta o pedido já após o decurso do prazo de 10 dias após a citação, mas ainda antes do fim da assembleia de credores. Aqui é que estamos no período que o legislador considera de “intermédio”, e, no qual, segundo o regime instituído, o Juiz pode decidir livremente sobre a sua admissão ou rejeição.

Aqui chegados, deparamos com outro problema interpretativo. O que se deve entender por poder o Juiz decidir livremente, sobretudo numa situação em que estão em causa direitos patrimoniais relevantes quer do devedor quer dos seus credores ?

Certamente que não estamos perante um poder absoluto e discricionário, coisa jamais vista num sistema jurídico pertencente à família da civil law tradition.

Assim, a decisão a ser proferida não só tem de ser fundamentada, por imposição constitucional e legal (art. 205º,1 CRP e art. 154º,1 CPC), como tem de assentar no regime instituído nas alíneas b) a g) do nº 1 do art. 238º CIRE, normativo que fornece as razões que no entender do legislador justificam o indeferimento liminar do pedido de exoneração.

Neste mesmo sentido, vejam-se os acórdãos desta Relação de 21 de Janeiro de 2016 (Relatora- Helena Gomes de Melo) e da Relação do Porto de 16 de Janeiro de 2012 (Relatora- Ana Paula Vasques de Carvalho), consultáveis em www.dgsi.pt, e ainda jurisprudência e doutrina aí citada.

Não podemos deixar de considerar que este regime jurídico não prima pela linearidade nem pela clareza, pois teria sido bem mais simples e compreensível para os intérpretes fazer constar na lei algo como que o pedido de exoneração do passivo restante pode ser apresentado até à realização da assembleia de credores. Salvo o devido respeito, complicou-se o que devia ter sido simples.

Posto isto, neste nosso caso concreto, sabemos que o devedor foi citado em 7.5.2019, a Assembleia de Credores foi agendada para o dia 17 de Setembro de 2019, e o devedor apresentou o requerimento de exoneração do passivo em 16 de Setembro de 2019.

De acordo com a interpretação que defendemos, o óbvio decurso do prazo de 10 dias após a citação não permite, sem mais, como fez a decisão recorrida, considerar o pedido intempestivo e indeferir o mesmo.

E isto porque o pedido foi apresentado em pleno “período intermédio”, ainda perfeitamente a tempo para ser apreciado pela assembleia de credores, e logo exigia-se da parte do Julgador uma ponderação e uma fundamentação que não vemos na decisão recorrida, a qual se limitou a centrar as atenções no prazo de 10 dias após a citação, ignorando o conceito de “período intermédio” e o facto de o pedido ter sido formulado no decurso deste, e considerou, sem mais, extemporâneo o pedido.

Assiste assim razão ao recorrente, nomeadamente quanto ao que afirma nas conclusões 3ª, 4ª, 7ª, 11ª, 12ª, e 13ª.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar procedente o recurso e revoga a decisão recorrida, considerando tempestivo o requerimento do devedor, devendo a mesma ser substituída por outra que, fundamentadamente, e após cumprimento do contraditório, pondere as vicissitudes concretas emergentes do processo, a fim de admitir ou rejeitar o pedido de exoneração do passivo restante.

As custas são encargo da massa insolvente (art. 304º CIRE).

Data: 30/1/2020

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1. “Nos casos em que não é designado dia para realização da assembleia de apreciação do relatório nos termos da alínea n) do n.º 1, os prazos previstos neste Código, contados por referência à data da sua realização, contam-se com referência ao 45.º dia subsequente à data de prolação da sentença de declaração da insolvência”