Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
10/17.9T9BRG.G1
Relator: ISABEL CERQUEIRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1- O crime de abuso de confiança pressupõe a inversão do título da posse da coisa "apropriada", inversão que tem que resultar da prática de actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos que convençam que o agente não está apenas a usar e fruir abusivamente da coisa que sabe ser alheia mas sim que a integrou no seu património.

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- Actos positivos e inequivocos que têm que constar da matéria de facto provada, não se bastando, em princípio com o mero depósito, quando se trata de uma determinada quantia monetária, dessa quantia em conta bancária titulada pelo agente ou por sociedade comercial ou unipessoal de que é gerente.

3 - A omissão da descrição desses factos concretos na matéria de facto provada, não bastando a simples conclusão de que o agente se apropriou de determinada quantia integra o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão.

4 - Vício que não determina o reenvio para novo julgamento, quando aqueles factos já não constassem da acusação, por inutilidade, já que os mesmos nunca poderiam constar da decisão, por imposição do princípio do acusatório.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Isabel Cerqueira
Adjunto : Fernando Chaves

Acordam, em conferência, na Secção Criminal deste Tribunal:

Relatório

No Juízo Local Criminal de Braga – Juiz 4, por decisão de 19/09/2019, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi a arguida D. C. condenada na pena de 320 dias de multa, à taxa diária de 7,00 euros, pela prática de um crime de abuso confiança agravado p. e p. pelo art.º 205º n.ºs 1 e 4 alínea a) do Código Penal (a partir de agora apenas referido como CP).

Mais foi a mesma arguida condenada a pagar a cada um dos assistentes/demandantes civis O. C. e M. T. as quantias de 5.550,00 e 400,00 euros, quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, a primeira desde a data dos factos, e a segunda a partir da data da sentença recorrida, ambas até integral pagamento e a título de indemnização civil, respectivamente pelos danos patrimoniais e não patrimoniais aos mesmos causados.

Desta decisão interpôs aquela arguida o presente recurso, no qual, e nas suas conclusões, alega não ter incorporado os montantes em causa nos autos na sua esfera patrimonial, tendo os mesmos entrado sim na esfera patrimonial da sociedade de mediação imobiliária da qual é sócia-gerente, através de transferência bancária, pelo que, deveriam ter sido dado como não provados os factos p e q da matéria provada. Acrescenta nunca ter aquela sociedade recusado devolver as quantias recebidas aos assistentes, estar a decisão recorrida ferida do vício previsto na alínea a) do n.º 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal (a partir de agora apenas referido como CPP), e conclui pela sua total absolvição.

Os demandantes civis/assistentes e a Magistrada do M.P. junto do tribunal recorrido responderam àquele recurso, pugnando todos pela sua total improcedência.

A Ex.m.ª Senhora Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal emitiu o parecer que antecede, no qual se pronuncia no mesmo sentido.
Foi cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 417º do Código de Processo Penal (doravante apenas referido como CPP), foram colhidos os vistos legais, e procedeu-se à conferência, cumprindo decidir.
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Na decisão recorrida, foram considerados provados e não provados os seguintes factos, com a seguinte motivação (transcrição integral):

1. Factos provados

a. A arguida é sócia-gerente da sociedade “D. C. – Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda”, que também usa a designação “Imobiliária X”, que se dedica ao exercício da actividade de mediação imobiliária e a administração de imóveis por conta de outrem, com sede na Rotunda … e Rua …, Centro Comercial de …, em ….
b. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 18 de Julho de 2016, os assistentes O. C. e M. T., deslocaram-se às instalações da sociedade “D. C., Unipessoal, Lda”, com intenção de adquirir um imóvel;
c. Nas circunstâncias espácio-temporais melhor descritas em 2º, e no decurso da conversa com a arguida D. C., foi explicado que o imóvel a adquirir seria no âmbito do programa dos vistos gold, pelo que todo o processo teria que ser bastante célere;
d. Assim, e nas circunstâncias espácio-temporais melhor descritas em 2º, os assistentes seleccionaram um imóvel sito na Rua …, em Braga, propriedade da Caixa ...;
e. Para formalizarem a reserva do imóvel melhor identificado em 4º, os assistentes, no dia 18 de Julho de 2016 e nas instalações da arguida, assinaram uma ficha de reserva e entregaram à arguida o cheque nº 9334230525, no valor de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), sacado sobre a sua conta, titulada no Banco … e no qual constava como beneficiária a sociedade “D. C., Mediação Imobiliária, Lda”, conforme instruções transmitidas pela arguida.
f. Nos termos da ficha se reserva, assinada pelos assistentes, constava: “(…) OS COMPRADORES entregam na presente data à MEDIADORA um cheque de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), em nome do proprietário do imóvel, e que se destina a caucionar a vontade de comprar aqui manifestada, caucionando o pagamento9 do contrato-promessa a outorgar, sem prejuízo de outras quantias que a esse título (sinal e princípio de pagamento) o proprietário exija como condição de celebrar o negócio.
g. Caso o cheque-caução venha a funcionar, total ou parcialmente, como sinal e princípio de pagamento no contrato-promessa a ser celebrado, a MEDIADORA apenas entregará o cheque ao proprietário/vendedor nesse momento a celebração do contrato-promessa.
h. Caso o contrato –promessa de compra e venda não venha a ser realizado, por desinteresse do proprietário do imóvel em celebrar o contrato-promessa, obriga-se a MEDIADORA a restituir aos COMPRADORES o cheque que neste momento lhe é entregue, sem que advenham quaisquer outros direitos ou obrigações para qualquer das partes aqui intervenientes. (…)”.
i. Já no dia 19 de Julho de 2016 e após conversa com a arguida, esta informou os assistentes que teriam que assinar nova ficha de reserva e que teriam que efectuar novo pagamento, desta vez, no valor de €5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), para a conta da imobiliária “D. C. – Mediação Imobilária, Unipessoal, Lda”, como IBAN PT50 ……, os que os assistentes fizeram nesse dia, mas no valor de € 5550,00.
j. No entanto, e pese embora a urgência dos assistentes em realizar a compra do imóvel, uma vez que tal compra estava associada ao processo de obtenção dos vistos gold, a arguida não diligenciou para efectivar a compra do imóvel melhor identificado em 4º.
k. Assim, e após várias insistências dos assistentes durante os meses de Julho e Agosto de 2016, em 19 de Setembro de 2016, o assistente O. C. enviou um email à arguida a comunicar que se a escritura de compra e venda não estivesse agendada até ao final desse dia, iria desistir do negócio.
l. Já no dia 21 de Setembro de 2016 e perante a falta de resposta da arguida, o assistente O. C. comunicou à arguida a desistência formal do negócio, solicitando a devolução do valor já pago de €5.550,00, bem como do cheque melhor identificado em 5º.
m. Apesar da comunicação dos assistentes, a arguida, no dia 22 de Setembro de 2016, informou-os que a escritura estava agendada para o dia 30 de Setembro de 2016, o que sabia não ser verdade.
n. Com efeito, apesar de a arguida ter indicado a data do dia 30 de Setembro de 2016 e outras em datas posteriores, para realização da escritura de compra e venda, fê-lo sem conhecimento da proprietária do imóvel, a Caixa ..., com quem nunca contactou nesse sentido, nem nunca lhes fez a transferência do dinheiro entregue a título de sinal.
o. Também nunca a arguida, e apesar das insistências dos assistentes nesse sentido, devolveu o dinheiro que estes tinham transferido para a conta da sociedade, no valor de €5.550,00, nem o cheque no valor de €2.500,00.
p. Apoderou-se assim a arguida D. C. do montante recebido dos assistentes a título de caução do contrato promessa de compra e venda, no valor de € 5.550,00 (cinco mil e quinhentos e cinquenta euros).
q. A arguida não procedeu à devolução aos assistentes do montante de € 5.550,00, valor que lhe competia devolver aos assistentes em virtude de não se ter concretizado o contrato de compra e venda, nem nunca o entregou à Caixa ..., na qualidade de proprietária do imóvel a comprar, valor este que fez seu, integrando-o no seu património, bem sabendo que este não lhe pertencia e que o deveria devolver aos assistentes no âmbito das funções que exercia e que lhe foram confiadas, agindo assim contra a vontade dos ofendidos.
r. A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

[Do pedido de indemnização civil]

s. Em consequência dos factos descritos na acusação os assistentes ficaram privados dos € 5550,00 que entregaram à arguida;
t. Em consequência dos factos descritos na acusação os demandantes sofreram incómodos e aborrecimentos.
u. Os demandantes tiveram de recorrer às suas poupanças para obter igual montante para aquisição de outro imóvel em Braga;

Mais se provou:

v. Os assistentes cancelaram o cheque de € 2500,00 que haviam emitido a favor da sociedade de que a arguida é gerente;
w. A arguida foi condenada no processo comum singular 409/14.2IDBRG do Tribunal da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal, J2, por sentença datada de 17-05-2016, transitada em julgado a 16-06-2016, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 7,00, pela prática em 16-05-2014 de um crime de abuso de confiança fiscal,

2. Factos não provados

Inexistem com relevo para decisão da causa.

3. Motivação da decisão de facto:

A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida e a livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma.
Assim, para prova do facto constante da al. a), da matéria de facto dada como provada o tribunal levou em consideração o teor da certidão comercial junta aos autos a fls. 107 a 111.
A demais matéria dada como provada resultou das declarações dos assistentes, O. C. e M. T., que de forma clara, objectiva e sincera a descreveram. Ambos afirmaram que se dirigiram à imobiliária gerida pela arguida com vista a adquirir um imóvel cujo anúncio tinham visto e que logo lhes foi pedido, pela funcionária que os atendeu, que preenchessem a fica de reserva constante de fls. 6. e que entregassem um cheque de € 2500,00, o que fizeram (cfr. com documentos de fls. 100). Referiram os assistentes que solicitaram urgência na compra do imóvel pois pretendiam beneficiar do programa Vistos Gold, sendo que para tal apenas dispunham de 90 dias. Afirmaram depois que, em reunião com a arguida e a funcionária da mesma, lhes foi pedido que fizessem uma transferência de € 5500,00, para que fosse entregue à Caixa ..., vendedora do imóvel, a título de sinal, o que seria uma exigência desta última. Acederam mais uma vez a este pedido, que lhes pareceu normal, tendo o assistente transferido a quantia de € 5550,00 e não € 5500,00, para que desta forma a transferência fosse mais facilmente identificável. Esta transferência está comprovada, nos autos, a fls. 81, no extracto de movimentos da conta da Imobiliária de que a arguida é gerente. Os assistentes relataram depois que, desde então, e na ausência de notícias por parte da arguida, foram insistindo pela marcação da escritura, a qual era sucessivamente protelada, tendo eles finalmente desistido da compra em causa, visto que estavam a ficar sem tempo para poderem beneficiar do referido programa de vistos Gold. Nessa altura, foram contactados pela arguida que referiu que a escritura estava marcada para dia 30 de setembro, quando já estavam em negociações para adquirir outros imóveis. Afirmaram que desde então pediram por várias vezes que a arguida lhes devolvesse os € 5550,00, mas sem que ela o fizesse, tendo deixado de responder aos seus emails. Souberam depois, por intermédio de um funcionário da Caixa ..., que lhes ligou, que a escritura estaria marcada para dia 4 de Outubro e que nunca a vendedora (Caixa ...) havia solicitado ou recebido qualquer sinal.
Ouvido o funcionário da Caixa ..., J. M., este veio dizer que a Caixa ... não recebeu e nem pediu qualquer sinal, uma vez que o imóvel seria pago a pronto. Disse que a Caixa ... apenas exige sinal nos contratos de compra e venda que se realizem com recurso s crédito bancário, o que não era o caso dos aqui assistentes
No que toca aos factos do pedido cível, os mesmos resultaram das declarações dos assistentes, que relataram desde logo que tiveram de recorrer a outro dinheiro que tinham guardado para adquirir outro imóvel e descreveram ainda o estado de stress em que ficaram com a situação gerada pela arguida, estado que foi ainda confirmado pela testemunha M. F., que por eles foi contactado enquanto mediador imobiliário com vista à aquisição de imóveis, para que pudessem beneficiar do referido programa. Esta testemunha relatou que os assistentes estavam muito pressionados pelo tempo que haviam perdido com a arguida e com a possibilidade de poderem não conseguir o visto gold. Referiu ainda que se mostraram muito nervosos com a situação gerada e com a não entrega do dinheiro pela arguida.
Foi ainda considerado o CRC de fls. 127 e 128 para prova dos antecedentes criminais da arguida.
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Fundamentação de direito

A recorrente começando por requerer a reapreciação da prova gravada, sem indicar qual ou quais, e alegadamente transcrevendo partes bastante truncadas das declarações dos assistentes não referenciadas relativamente à gravação da audiência, gravação feita em estrita obediência ao disposto no do art.º 364º do CPP, nomeadamente ao seu n.º 3, acaba por concluir que os factos p e q da matéria provada não poderiam ter sido dados como provados, designadamente por além do mais serem contraditórios com outro facto provado por documento, como o aspecto de o depósito do cheque de 5.550,00 euros em causa nos autos ter sido feito numa conta bancária da sociedade unipessoal D. C. – Mediação Imobiliária, Ldª e não em qualquer conta bancária da recorrente.
Ora, a reapreciação de prova gravada que é feita quando o recorrente impugna matéria de facto nos termos do art.º 412º do CPP, implica que este indique as partes concretas dos depoimentos das testemunhas por referência à gravação da audiência, que impõem decisão diversa, não remetendo para eles na sua totalidade, ou seja de uma forma vaga e imprecisa, já que, aquela impugnação não corresponde a um novo julgamento, mas sim ao remédio jurídico para eventuais erros de julgamento.

A recorrente não cumpriu aquele ónus, não fazendo uma impugnação da matéria de facto prevista naquele normativo legal, e por isso, não se ouviu a gravação das declarações indicadas, assim reapreciando prova gravada.

No entanto, a alteração da matéria de facto pode resultar da ocorrência na decisão de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º do CPP, ou seja, da insuficiência para a decisão de facto da prova produzida, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova.

Vícios que têm que resultar apenas do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com regras de experiência comum, ou seja, sem o recurso a elementos extrínsecos à decisão, e que são de conhecimento oficioso para o tribunal de recurso, além de a recorrente no caso em análise pareça alegar a existência do primeiro e do segundo.

Referindo-se o primeiro apenas à “decisão justa” que devia ter sido proferida (ver, neste sentido, Acs. do STJ de 13/02/1991 e 13/05/1998, citados em anotação ao art.º 410º no Código de Processo Penal de Maia Gonçalves), prendendo-se exclusivamente com a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, e nada tendo a ver com a falta ou insuficiência da prova para a decisão de facto.
Por sua vez, o segundo daqueles vícios (o da alínea b)), ocorre quando, há uma incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através do texto da decisão recorrida, entre os factos provados, entre factos provados e não provados ou entre a fundamentação e a decisão de facto. Fala-se do vício da contradição insanável «(…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal” – Ac. do STJ de 13/10/1999, in Colectânea de Jurisprudência ano VII, tomo II, pág.84, relatado pelo Conselheiro Armando Leandro.

Finalmente, existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, é manifesto que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão diferente daquela a que chegou o tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detectado pelo homem médio.

No caso sub judice, à recorrente era imputado um crime de abuso de confiança, que na sua forma simples, é definido pelo n.º 1 do art.º 205º do CP, por recurso à noção de inversão do título de posse – “quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Impõe-se, pois, embora de forma sucinta, que nos reportemos aos conceitos de “posse” e de “inversão do título de posse” plasmados no nosso direito civil.

“Posse” é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – art.º 1251º do Codigo Civil.

Ela caracteriza-se por dois elementos essenciais, geralmente designados por “corpus” e “animus”.

O primeiro elemento, de natureza objetiva, consiste na atuação de facto correspondente ao exercício do direito, ou seja, na fruição normal e completa das utilidades que uma coisa pode prestar.

O elemento subjetivo (“animus”), por sua vez, traduz-se na intenção de fruir a coisa em nome e no interesse próprios.

Assim, só existe “posse” quando do adquirente desta se possa dizer que procedeu em tudo como um proprietário, e se conclui que o “detentor” da coisa pode usa-la e frui-la, de modo pleno, sem ter a posse. Será assim sempre que ele não acompanhar a fruição com a intenção – o “animus” – de ser o proprietário.

O “animus” nem sempre acompanha o “corpus”, nunca o acompanhando nos casos de detenção em nome alheio.

Ora, a “inversão do título de posse” é um ato característico do detentor em nome alheio. Ela dá-se “por oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía” – art.º 1265º do C. Civil.

Isto é, o mero detentor, em determinado momento (o da oposição), passa a atuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem.

A oposição tem de traduzir-se em atos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos – Henrique Mesquita, Direitos Reais 1967, pag. 98, e entre outros, Acórdãos deste Tribunal de 7/11/2005 e 11/01/2010 e do TRE de 6/12/2016, relatados respectivamente pelos Ex.mºs Senhores Desembargadores Miguez Garcia, Fernando Monterroso e Martins Simão.

E, sendo um facto do foro psicológico, só é demonstrável através da prática de atos que inequivocamente convençam que o agente não está apenas a usar e fruir abusivamente um bem que sabe ser alheio, mas que, mais do que isso, o integrou no seu património.

Porém, no caso sub judice, lendo-se os factos, constata-se que se menciona que “a arguida não procedeu à devolução aos assistentes do montante de € 5.550,00 (…) valor este que fez seu, integrando-o no seu património, bem sabendo que este não lhe pertencia…” [facto q provado)).

Com esta redação enuncia-se a “inversão do título de posse”, nos termos que acima foram referidos: a arguida em determinado momento fez seus os 5.550,00 euros que tinham sido entregues a título não translativo de propriedade, a si ou à sua sociedade unipessoal.

Porém, trata-se duma redação meramente conclusiva, porque não se indica (nos factos provados ou na motivação da decisão de facto) quais os atos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos, praticados pela arguida, que demonstram a inversão do título de posse sobre o dinheiro em causa.

Tais atos podem ser de natureza múltipla, tais como: A arguida transferiu o dinheiro para outra conta de que só ela é titular? Gastou o dinheiro, que estava consignado para ser devolvido, noutros fins?

Nenhum ato deste cariz, ou outro de alcance similar, é referido nos factos provados, ou na motivação da decisão de facto, que permita a conclusão de que a arguida fez seu o montante de 5.550,00 euros.

Para além da afirmação conclusiva de que integrou no seu património os 5.550,00 euros, apenas consta que “a arguida não procedeu à devolução aos assistentes do montante de € 5.550,00, valor que lhe competia devolver aos assistentes em virtude de não se ter concretizado o contrato de compra e venda, nem nunca o entregou à Caixa ..., na qualidade de proprietária do imóvel a comprar…”.

Porém, por si só, a não devolução do dinheiro apenas configura o não cumprimento dum contrato, a ser decidido nos meios cíveis. O direito penal tutela valores distintos, não podendo ser usado como uma forma mais expedita, porque mais coerciva, de se obter a cobrança de dívidas.

Em síntese e conclusão, da simples leitura da sentença, mesmo sem recurso a elementos que lhe sejam externos, é possível concluir que foi considerada provada a inversão do título de posse sobre o dinheiro em causa, sem a imprescindível indicação dos atos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos que a demonstram.

Tal omissão da indicação de actos positivos inequívocos da inversão da posse (que já se verificava na acusação), elemento essencial do crime de abuso de confiança, integra o vício da insuficiência da matéria de facto para decisão – art.º 410º nº 2 alínea a) do CPP, a determinar, em princípio o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do n.º 1 do art.º 426º do mesmo diploma legal.

No entanto, no caso dos autos é manifesto, perante a prova por declarações e documental que foi produzida, e perante a omissão de factos essenciais à integração do crime imputado na acusação pública (o que não permitiria sob pena de violação do princípio do acusatório, que tal matéria constasse da decisão recorrida), que um novo julgamento não iria sanar tal omissão, pelo que, por falta de um elemento constitutivo do crime imputado à recorrente, desde já se absolve a mesma da prática do crime de abuso de confiança que lhe era imputado e dos pedidos de indemnização civil formulados pelos assistentes (estes, face aos ensinamentos constantes do Acórdão de Fixação de Jurisprudência 7/99).
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Decisão

Pelo exposto, os juízes deste Tribunal acordam em julgar procedente o recurso interposto pela arguida D. C., absolvendo-a da prática do crime que lhe era imputado e do pedido de indemnização civil formulado pelos assistentes.
Sem custas, quanto à parte crime, e custas quanto à parte cível, pelos demandantes.
Guimarães, 27 de Abril de 2020