Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3380/18.8T8BRG.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: DECISÃO DO PRESIDENTE DO IRN.I.P.
RECURSO HIERÁRQUICO
NOTÁRIO
CONSERVADOR
LEI ESTRANGEIRA
CONHECIMENTO OFICIOSO
APLICAÇÃO DA LEI
REGISTO PROVISÓRIO POR DÚVIDAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Salvo disposição especial em contrário, o Notário e o Conservador estão obrigados a conhecer oficiosamente da lei estrangeira indicada como competente, ficando sujeitos aos mesmos deveres do Juiz na aplicação da lei estrangeira.

II – Nos termos do art. 43.º-A do CRP atribui-se ao Conservador a identificação da lei aplicável e, se esta for estrangeira, comete-se ao interessado o dever de demonstrar documentalmente o respetivo conteúdo.

III – Constando da inscrição da aquisição (e do título) que os sujeitos passivos da hipoteca voluntária são casados segundo o regime da comunhão de adquiridos e sendo os mesmos de nacionalidade estrangeira, a circunstância de não constar do documento particular autenticado que a entidade autenticadora tenha acionado o Direito Internacional Privado (art. 52º e 53º do CC) e não tendo o apresentante do pedido de registo demonstrado documentalmente o respetivo estatuto patrimonial dos cônjuges à luz do direito estrangeiro, constitui fundamento de qualificação do registo como provisório por dúvidas (art. 70º do CRP).
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

P. B., solicitador, com domicílio profissional na Rua …, Braga, impugnou judicialmente a decisão proferida pelo Presidente do Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado, no âmbito do processo R.P. 31/2018 STJSR-CC, datada de 25/05/2018(1), que julgou parcialmente procedente o recurso hierárquico por si interposto da decisão de recusa de registo proferida pelo Senhor Conservador da Segunda Conservatória do Registo Predial de Braga, traduzida na requalificação da recusa impugnada para provisoriedade por dúvidas do registo pedido.

Para tanto, e em síntese, alegou que:

- aquela decisão ampliou sem fundamento legal o objecto da impugnação, tendo conhecido de matéria nova que não foi suscitada por nenhuma das partes e sem que a seu respeito previamente o recorrente tivesse sido ouvido, violando desta forma os princípios do dispositivo e do contraditório, o que importa a sua nulidade;
- tal decisão mostra-se errada nos seus fundamentos, uma vez que consente a atribuição ao Conservador de competência para promover diligências ou investigações acessórias, para além dos documentos que lhe são apresentados, com vista à realização do registo, e impõe ao autenticador do acto a registar a realização de um estudo a fim de aferir se o regime de bens de casamento dos intervenientes no acto que se pretende registar está de facto condizente com o vigente no País de origem, o que constitui violação do art. 68.º do CRP.
- não compete ao Conservador, no âmbito da sua função mais nobre, que é a de qualificar um pedido de registo, por em causa a declaração das partes, nem lhe compete promover quaisquer diligências ou investigações acessórias, para além dos documentos que lhe são apresentados, não competindo ao autenticador fazer um qualquer estudo ou investigação para aferir se o regime de bens do casamento dos intervenientes está, de facto, condizente com o vigente no país de origem.
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Remetida a impugnação ao Juízo Local Cível de Braga - Juiz 4 – do Tribunal Judicial da Comarca de Braga foi aberta vista ao Ministério Público, nos termos do art. 146.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, que emitiu parecer no sentido de ser julgada procedente a impugnação judicial (cfr. fls. 54).
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Posteriormente, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu decisão (cfr. fls. 55 a 57), nos termos da qual julgou totalmente procedente a impugnação judicial deduzida pelo recorrente P. B. e, consequentemente, revogou parcialmente a decisão proferida pelo Sr. Presidente do Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado no âmbito do processo R.P. 31/2018 STJSR-CC, determinando que o registo pretendido pelo recorrente seja lavrado sem a menção da provisoriedade.
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Inconformada, a Presidente do Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. interpôs recurso dessa decisão (cfr. fls. 59 a 64) e formulou, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«I- Não constitui fundamento de nulidade de decisão proferida pelo Presidente do Conselho Diretivo do IRN,I.P. em sede de impugnação de decisão de qualificação de pedido de registo, a circunstância de ter sido incluída na pronúncia questão não suscitada na decisão impugnada, se a omissão de pronúncia puder conduzir à realização de um registo nulo, nem a circunstância de o recorrente não ter sido previamente auscultado sobre essa nova questão.
II- Cabe na referida possibilidade de ampliação do objeto do recurso situação que demande que seja acionado o Direito Internacional Privado e não resulte do título que assim se tenha procedido - resultando manifestado que a relação jurídica em causa foi tratada como tendo uma índole puramente interna - porque do normativo legal que caiba aplicar, pode resultar uma nulidade do facto nos termos em que se mostra titulado, da qual resultaria uma nulidade do registo efetuado nos termos em que foi pedido (artigo 16°/b)).
III- De acordo com o disposto no art. 43-A da CRP, o direito estrangeiro que haja que aplicar em sede da formação do juízo sobre a viabilidade do pedido de registo, tem que ser provado pelo interessado, mediante documento idóneo do respetivo conteúdo.

Nos termos expostos, e/ou nos demais de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a douta decisão, confirmando-se a decisão proferida pelo Presidente do IRN.l.P. no recurso hierárquico em causa Pº R.P. 31/2018 8TJ8R-CC)».
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Contra-alegou o recorrido P. B., pugnando pela improcedência do recurso interposto e confirmação da sentença recorrida (cfr. fls. 67 e 68).
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cfr. fls. 70).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s) – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:

1.ª – Da não verificação da nulidade da decisão proferida pelo Presidente do Conselho Diretivo do IRN,I.P. em sede de impugnação hierárquica da decisão de qualificação de pedido de registo, derivada da violação do princípio do pedido e do contraditório.
– Da (indevida) desconsideração pela sentença recorrida do disposto no art. 43°-A do Código de Registro Predial, dado a situação demandar que seja acionado o Direito Internacional Privado.
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III. Fundamentos

I. A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos (que se transcrevem):
a) Pela AP. n.º 2810, de 22/12/2017, foi formulado um pedido de registo de hipoteca voluntária sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., freguesia de …, concelho de ..., registo que foi recusado.
b) A apresentação do registo referido em A) foi instruída com o contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca autenticado que consta de fls. 26 a 34, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
c) Deste acto de recusa veio a ser interposto recurso hierárquico, que foi julgado parcialmente procedente nos termos da decisão que consta de fls. 48 a 53, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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A estes acrescem os seguintes factos (quer por se mostrarem documentalmente provados – cfr. fls. 26 a 37, 43 a 45 –, quer por correspondem a actos processuais – cfr. fls. 47 a 57 – quer por não terem sido impugnados):

d) No Documento Particular Autenticado (DPA) supra referido na al. b) interveio procuradora dos compradores, identificados como casados na comunhão de adquiridos e residentes na Suécia, por um lado comprando em nome de ambos os cônjuges e, por outro, celebrando o contrato de mútuo com hipoteca exclusivamente em nome do cônjuge mulher e prestando o consentimento do cônjuge marido na constituição de hipoteca, constando da respetiva procuração que ambos os cônjuges conferiam poderes para comprar e hipotecar.
e) O mesmo registo já havia sido anteriormente pedido na 1ª Conservatória do Registo Predial de … pela 43 de 18-08-2016 - precedido do pedido de registo de aquisição, efetuado como definitivo -, tendo sido lavrado provisoriamente por dúvidas (entretanto caducado) nos seguintes termos:
«(...) No título (OPA) apresentado consta como devedor apenas o cônjuge marido, autorizando a constituição de hipoteca, quando na realidade o cônjuge marido é titular do imóvel hipotecado, pelo que deverá também hipoteca-lo e não dar o seu consentimento.
Terá que ocorrer a retificação do título em conformidade com a procuração arquivada junto ao OPA.»
f) Concordando com os fundamentos que haviam sido invocados na qualificação daquele primeiro pedido, o senhor Conservador da 2ª Conservatória do Registo Predial de … recusou o registo com fundamento no art. 69°/1/e) do Código de Registo Predial.
g) Da referida decisão de recusa interpôs o apresentante recurso para o Presidente do Conselho Diretivo do IRN,l.P., o qual mereceu procedência parcial, traduzida na requalificação da recusa impugnada para provisoriedade por dúvidas do registo pedido, nos termos das seguintes conclusões:

«I- Relativamente a imóveis comuns, a circunstância de, em caso de intervenção simultânea de ambos os cônjuges nos atos previstos do art. 1682-A do Código Civil, um dos cônjuges prestar a declaração negocial e o outro prestar o consentimento, não deve constituir fundamento para considerar o ato anulável por falta do consentimento legalmente exigido, relativamente ao cônjuge que se limitou a consentir (art. 1687°/1 do Código Civil).
II- O mesmo se diga, concretamente em situação de constituição de hipoteca voluntária, para o caso em que os cônjuges se encontram representados pelo mesmo procurador - ao qual ambos conferiram poderes para hipotecar - e este declara constituir a hipoteca em nome de um e declara prestar o consentimento em nome do outro.
III- Na situação referida no ponto anterior não é admissível invocar-se a falta de poderes para prestar o consentimento (caso em que o ato seria anulável por falta de consentimento, por força da ineficácia prevista no art. 268° do CC), nem a forma como o procurador utilizou os poderes que lhe foram conferidos permite considerar que o título padece de erro, por desconformidade com a procuração.
IV- Constando da inscrição de aquisição (e do título) que os sujeitos passivos da hipoteca são casados segundo o regime da comunhão de adquiridos e constatando-se que os mesmos são de nacionalidade estrangeira, a circunstância de não constar do documento particular autenticado que a entidade autenticadora tenha acionado o Direito Internacional Privado (artigos 52° e 53° do CC) constituí fundamento de qualificação do registo como provisório por dúvidas.»
h) Em face da improcedência parcial da impugnação hierárquica, traduzida na "substituição" da recusa pela provisoriedade por dúvidas, pela consideração de motivo não invocado na decisão objeto de impugnação, foi interposta a impugnação judicial daquela decisão hierárquica, que obteve a seguinte decisão:
«Termos em que se decide julgar totalmente procedente a impugnação deduzida pelo recorrente P. B. e, consequentemente, revoga-se parcialmente a decisão proferida pelo Sr. Presidente do Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado no âmbito do processo R.P.3112D18 STJSR-CC, determinando-se que o registo pretendido pelo recorrente seja lavrado sem a menção da provisoriedade».
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IV. Do objecto do(s) recurso(s)

1 – Da não verificação da nulidade da decisão proferida pelo Presidente do Conselho Diretivo do IRN,I.P. em sede de recurso hierárquico, por violação do princípio do pedido e do contraditório.

No recurso interposto pugna a recorrente pela revogação da decisão impugnada na parte em que, «com fundamento na violação do âmbito do recurso, considerou nula a decisão hierárquica em causa», bem como «quanto à falta de audição prévia do recorrente».

Analisada a decisão recorrida constata-se, efetivamente, que nela foi considerada verificada a nulidade da decisão proferida em sede de recurso hierárquico, quer por nesta ter sido conhecida uma questão nova (a "relação jurídica internacional”), que não fazia parte do âmbito do recurso, quer por falta de audição prévia do recorrente, o que, no entendimento da Mmª Juíza “a quo”, consubstancia violação dos princípios do pedido e do contraditório, respetivamente.

Acontece que, por entender que «a decisão proferida também se (…) afigurava errada nos seus pressupostos», «ao invés de julgar verificada a aludida nulidade e (…) determinar a remessa do processo à entidade recorrida para proferir nova decisão infundada», a Mmª Julgadora decidiu antes que se deveria «salvar os seus efeitos e conhecer desde logo da impugnação dos fundamentos da decisão (cfr. art. 195.º, n.º 3, do CPC)».

Quer isto dizer que, em lugar de retirar qualquer efeito da verificação das apontadas nulidades da decisão hierárquica impugnada, nomeadamente a sua anulação com a consequente devolução do processo à entidade recorrida para proferir nova decisão após sanação dos referidos vícios, a Mmª Julgadora, lançando mão do regime previsto no art. 195º, n.º 3 do CPC (2), optou por salvaguardar ou manter incólumes («salvar») os seus efeitos e conhecer desde logo dos fundamentos (de mérito) da impugnação daquela decisão, tendo concluído ser errada a decisão nela proferida, pelo que, a final, decidiu julgar totalmente procedente a impugnação deduzida e, consequentemente, revogou parcialmente a decisão proferida pelo Sr. Presidente do Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado no âmbito do processo R.P.3112D18 STJSR-CC, determinando que o registo pretendido pelo recorrente seja lavrado sem a menção da provisoriedade.

Daqui resulta, claramente, não ter sido extraído qualquer efeito da apontada nulidade da decisão hierárquica, posto que o tribunal recorrido, na impugnação judicial, entendeu que tal não obstava ao conhecimento do fundo do recurso.

Para o que aqui importa tal releva na medida em que não poderá concluir-se que a recorrente ficou vencida quanto a esse concreto fundamento, uma vez que o mesmo foi considerado inócuo para a sorte ou decisão do recurso hierárquico interposto.

Tal reconduz-nos à falta de legitimidade por parte da recorrente na impugnação desse fundamento da sentença recorrida, porquanto a conclusão retirada quanto à verificação da apontada nulidade não foi repercutida no segmento decisório, tanto mais que quanto à decisão impugnada foi entendido que se deveriam «salvar os seus efeitos».

Para o efeito importa ter presente o estabelecido no art. 631º do CPC, que, sob a epígrafe “Quem pode recorrer”, dispõe:

«1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
2 - As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
(…)».

Regra geral, só a parte principal que tenha ficado vencida na causa pode recorrer. Vencido equivale a prejudicado, ou seja, reporta-se à pessoa ou entidade em relação à qual a decisão recorrida tenha sido desfavorável. É aquele que no litígio não logrou o resultado mais vantajoso, ou seja, o que saiu prejudicado com a decisão.
O ser-se vencido, para estes efeitos, não respeita aos fundamentos, mas sim à parte dispositiva da decisão, e na medida em que objetivamente afete os interesses da parte respetiva.
Terá, assim, legitimidade para recorrer se a decisão é apta a causar prejuízo na esfera jurídica do recorrente.

Nas palavras de António Santos Abrantes Geraldes (3), o «vencimento ou o decaimento devem ser aferidos em face da pretensão formulada ou da oposição assumida pela parte relativamente à questão que tenha sido objecto de decisão. É parte vencida aquela que é objetivamente afectada pela decisão, ou seja, a que não tenha obtido a decisão mais favorável aos seus interesses. O autor é parte vencida se a sua pretensão foi recusada, no todo ou em parte, por razões de forma ou de fundo; o réu quando, no todo ou em parte, seja prejudicado pela decisão.

Nessa medida, o que sobreleva é o resultado final e não tanto o percurso trilhado pelo tribunal para o atingir. Sendo o réu absolvido do pedido, pouco importa se, para o efeito, o tribunal fundou a convicção na decisão na falta de prova dos factos alegados pelo autor ou na verificação de uma excepção peremptória, aduzida pelo réu, ou ainda se, em, lugar de determinado vício do contrato, invocado pelo réu, o conheceu oficiosamente de um outro que determinou a improcedência da acção. Quanto ao autor, não deixa de ser parte vencedora se a sua pretensão foi acolhida, ainda que sem a argumentação jurídica aduzida. Em ambos os casos, mais do que as razões que presidiram à decisão, interessa a análise do resultado na esfera jurídica da parte».

Assim, como refere o citado autor, «ainda que a parte destinatária de uma decisão favorável seja confrontada com uma resposta negativa ou a todos os argumentos ou questões que suscitou, não fica legitimada a interpor recurso. A atendibilidade de outros fundamentos, para além dos que foram considerados na decisão, é matéria que a parte vencedora eventualmente deve introduzir nas contra-alegações do recurso que venha a ser interposto pela parte vencida, nos termos do art. 636º, n.º 1, por forma a assegurar ou reforçar o resultado já obtido, ainda que por uma via diversa da que foi trilhada na decisão recorrida».

Ora, relativamente à recorrente inexiste vencimento ou decaimento quanto a esse concreto fundamento, já que o mesmo não foi tido como relevante para a decisão final proferida na impugnação judicial deduzida.

A apreciação da questão seria, sim, relevante se porventura tivesse havido ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos e para os fins do disposto no art. 636º do CPC, na medida em que, verificando-se pluralidade de fundamentos da ação, poderia aquele ter requerido, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, a apreciação e o reconhecimento da nulidade da decisão proferida em sede de recurso hierárquico, prevenindo a hipótese de virem a ser acolhidas questões suscitadas pela recorrente.

Em suma, relativamente à questão atinente à nulidade da decisão, uma vez que a decisão recorrida dela não retirou qualquer efeito jurídico, não se poderá concluir que nessa parte a recorrente decaiu materialmente.

Resta, por isso, concluir que a recorrente carece de legitimidade para interpor recurso daquele fundamento da decisão recorrida, o que obsta à sua apreciação em sede desta apelação.
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2 – Da (indevida) desconsideração na sentença recorrida do disposto no art. 43°-A do Código de Registro Predial e da não atendibilidade do Direito Internacional Privado.

Na impugnação hierárquica deduzida da recusa do registo, o Presidente do Conselho Diretivo do IRN,l.P., tendo decidido pela sua parcial procedência, procedeu à requalificação da recusa impugnada para provisoriedade por dúvidas do registo pedido.

Diversamente, na decisão recorrida, tendo-se concluído que «do pedido de registo e dos documentos que o instruíam constavam todos os elementos (incluindo a nacionalidade dos cônjuges e o regime de bens do respectivo casamento) que permitiriam à entidade encarregue do registo verificar da legalidade do acto cujo registo era pedido, inexistindo por isso qualquer deficiência no processo de registo que justificasse que o registo fosse, ao abrigo do art. 70.º do CRP, efectuado provisório por dúvidas», foi decidido revogar «parcialmente a decisão proferida pelo Sr. Presidente do Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado no âmbito do processo R.P. 31/2018 STJSR-CC, determinando-se que o registo pretendido pelo recorrente seja lavrada sem a menção da provisoriedade».

Desta decisão discorda a recorrente, contrapondo que, de acordo com o disposto no art. 43º-A da CRP, o direito estrangeiro que haja que aplicar em sede da formação do juízo sobre a viabilidade do pedido de registo tem que ser provado pelo interessado, mediante documento idóneo do respetivo conteúdo, o que no caso não foi cumprido.

Vejamos como decidir.

O art. 68.º do Código de Registro Predial, sob a epígrafe “Princípio da legalidade”, prescreve:

“A viabilidade do pedido de registo deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos atos neles contidos”.

Resulta do citado normativo que a apreciação da viabilidade do pedido de registo é feita em função de duas coordenadas: a) disposições legais aplicáveis; b) documentos apresentados e dos registos anteriores.

Assim, como se refere nas alegações de recurso, do normativo citado «constitui uma evidência considerar que tal juízo demanda o conhecimento da lei aplicável, nacional e/ou estrangeira», pelo que – em total consonância com o explicitado na decisão recorrida –, dir-se-á competir ao «Conservador verificar da legalidade dos actos em face das disposições legais aplicáveis, aqui se incluindo aquelas que regem os efeitos do casamento quanto aos bens dos cônjuges, concretamente, os regimes de bens», sendo «pressuposto lógico de tal sindicância (…) desde logo o conhecimento da lei, seja ela nacional ou internacional».

A doutrina maioritária aponta precisamente no sentido de que deverá haver uma «equiparação plena das autoridades não judiciais aos tribunais no que tange à aplicação de lei estrangeira», pelo que, salvo disposição especial em contrário, é de considerar que o Notário e o Conservador «estão obrigados a conhecer oficiosamente da lei estrangeira indicada como competente», ficando sujeitos «aos mesmos deveres do Juiz na aplicação da lei estrangeira» (4).

Segundo o art. 70º do CRP, “[s]e as deficiências do processo de registo não forem sanadas nos termos do artigo 73.º, o registo deve ser feito provisoriamente por dúvidas quando existam motivos que obstem ao registo do ato tal como é pedido e que não sejam fundamento de recusa”.

No caso, como é referido na decisão recorrida, o fundamento da provisoriedade foi a falta de menção no documento particular autenticado de que a entidade autenticadora teria acionado o Direito internacional Privado, nos termos do art. 53.º, n.º 1, do Código Civil, por se ter entendido que, no caso de hipoteca voluntária, lhe competia acionar tal Direito.
Isto porque, é importante relembrar, estamos perante uma situação de relação jurídica internacional, dada a nacionalidade estrangeira dos titulares inscritos na aquisição e sujeitos passivos da hipoteca e o disposto nos arts. 52º e 53º do Código Civil.

Nos termos do n.º 1 do art. 52º do CC, “[s]alvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei nacional comum”.

E o art. 53º do mesmo diploma legal, que versa sobre convenções antenupciais e regime de bens, estipula que:

«1. A substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, legal ou convencional, são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo da celebração do casamento.
(…).
3. Se for estrangeira a lei aplicável e um dos nubentes tiver a sua residência habitual em território português, pode ser convencionado um dos regimes admitidos neste código».

À lei designada por este artigo cabe definir o regime de bens, legal ou convencional, os efeitos diretamente decorrentes desse particular regime de bens sobre as relações entre os cônjuges, a admissibilidade de convenções antenupciais a validade das respetivas cláusulas (5) (6).

Da inscrição de aquisição consta tão só a menção de que os sujeitos ativos são casados segundo o regime da comunhão de adquiridos em conformidade com o respetivo título, que é o mesmo que foi apresentado para o pedido de registo e do qual nada consta quanto à aplicação de direito internacional privado imposta pela referida nacionalidade.

Porém, «tratando-se de dois estrangeiros e havendo que acionar, por isso, o Direito Internacional Privado, fixar o direito material regulador deste regime de bens reclama conhecer os dados que, no caso concreto, preenchem os elementos de conexão contidos na norma de conflitos (art. 53º do CC).

Com efeito, só conhecendo os elementos ou circunstâncias concretas que representam a conexão escolhida pela norma de conflitos atinente às convenções antenupciais e ao regime de bens a que se refere o art. 53º do CC lograríamos «localizar» o regime de bens declarado (e mencionando na inscrição de aquisição) num espaço legislativo determinado e aplicar os preceitos jurídico materiais dessa lei» (7).

Ora, não obstante a verificação de elementos de estraneidade, como é a nacionalidade estrangeira dos outorgantes, a Mmª Juíza a quo, após ter concluído pela inexistência de qualquer norma legal donde se retire a obrigatoriedade da menção exigida pela decisão em recurso, bem como de qualquer motivo para se exigir da entidade autenticadora a consignação de que o acto que autentica é permitido à luz dos preceitos legais internacionais aplicáveis, considerou que o pedido de registo e os documentos que o instruíam continham «todos os elementos (incluindo a nacionalidade dos cônjuges e o regime de bens do respectivo casamento) que permitiriam à entidade encarregue do registo verificar da legalidade do acto cujo registo era pedido, inexistindo por isso qualquer deficiência no processo de registo que justificasse que o registo fosse, ao abrigo do art. 70.º do CRP, efectuado provisório por dúvidas (…)».

Nesta parte, com o devido respeito por opinião contrária, discordamos da fundamentação e da conclusão acolhida na decisão impugnada.

Para o efeito releva o regime especial estabelecido no art. 43.º-A do CRP (8):

«Quando a viabilidade do pedido de registo deva ser apreciada com base em direito estrangeiro, deve o interessado fazer prova, mediante documento idóneo, do respetivo conteúdo».

Este normativo consagra, em sede de registo predial, um regime muito próximo daquele que vigora para os Notários na escritura de habilitação de herdeiros (art. 85º, n.º 2 do Código do Notariado) (9): «atribui-se ao Conservador a identificação da lei aplicável e, se esta for estrangeira, comete-se ao interessado o dever de demonstrar documentalmente o respetivo conteúdo. Da norma parecer resultar que a falta desse documento implicará a recusa do Registo» (10).

Certamente ciente das dificuldades práticas vivenciadas nos processos registais e da atividade notarial com a cognição do direito estrangeiro, com os inerentes efeitos nefastos na rapidez e celeridade de tais processos, a que se soma a ausência de apoio institucional a tais serviços no conhecimento oficioso da lei estrangeira, o legislador pretendeu sobretudo atenuar os deveres do Conservador nessa busca do conteúdo do direito estrangeiro, chegando inclusivamente a dizer-se que foi além do que lhe era exigido, posto que com essa solução “pura e simplesmente eliminou o dever de conhecimento oficioso da lei estrangeira(11).
Para o caso submetido à nossa apreciação o que releva é o facto do apresentante do registo não ter feito essa prova do conteúdo do direito estrangeiro, sendo que tal era necessário para a decisão acerca da registabilidade da hipoteca voluntária, na medida em que esta pressupõe o conhecimento do estatuto patrimonial dos cônjuges à luz do direito Internacional Privado, na medida em que estes sã estrangeiros, competindo ao interessado carrear prova, mediante documento idóneo, dos fatores de conexão nos termos dos arts,. 52º e 53º do CC.

Concordarmos com a recorrente quando defende que o referido conhecimento da lei é também exigível à entidade que titula o facto (neste caso o solicitador que interveio no Documento Particular Autenticado) – cfr. art. 4°, n.º 1 do Código do Notariado e art. 24°, n.º 1 do Dec. Lei. n.º 116/2008, de 4 de julho – resultando do título em causa que, não obstante apresentar elementos de estraneidade relativamente à lei do foro, a relação jurídica em causa foi tratada como se tivesse a índole puramente interna.

Nesta conformidade, constando da inscrição da aquisição (e do título) que os sujeitos passivos da hipoteca voluntária são casados segundo o regime da comunhão de adquiridos e sendo os mesmos de nacionalidade estrangeira, a circunstância de não constar do documento particular autenticado que a entidade autenticadora tenha acionado o Direito Internacional Privado (art. 52º e 53º do CC), bem como não tendo o apresentante do pedido de registo demonstrado documentalmente o respetivo estatuto patrimonial dos cônjuges à luz do direito estrangeiro (art. 43.º-A do CRP), constitui fundamento de qualificação do registo como provisório por dúvidas (art. 70º do CRP).
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Nesta conformidade, impõe-se a procedência da apelação.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I – Salvo disposição especial em contrário, o Notário e o Conservador estão obrigados a conhecer oficiosamente da lei estrangeira indicada como competente, ficando sujeitos aos mesmos deveres do Juiz na aplicação da lei estrangeira.
II – Nos termos do art. 43.º-A do CRP atribui-se ao Conservador a identificação da lei aplicável e, se esta for estrangeira, comete-se ao interessado o dever de demonstrar documentalmente o respetivo conteúdo.
III – Constando da inscrição da aquisição (e do título) que os sujeitos passivos da hipoteca voluntária são casados segundo o regime da comunhão de adquiridos e sendo os mesmos de nacionalidade estrangeira, a circunstância de não constar do documento particular autenticado que a entidade autenticadora tenha acionado o Direito Internacional Privado (art. 52º e 53º do CC) e não tendo o apresentante do pedido de registo demonstrado documentalmente o respetivo estatuto patrimonial dos cônjuges à luz do direito estrangeiro, constitui fundamento de qualificação do registo como provisório por dúvidas (art. 70º do CRP).
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V. DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, e, em consequência, revogando a sentença recorrida, confirmam a decisão proferida pelo Presidente do IRN.l.P. no recurso hierárquico em causa no processo R.P. 31/2018 8TJ8R-CC, datada de 25/05/2018.
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Custas da apelação a cargo do apelado.
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Após trânsito, observe-se o disposto no art. 147º, n.º 6 do CRP.
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Guimarães, 14 de fevereiro de 2019

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)


1. E não, como por lapso refere o impugnante, a impugnação judicial do despacho proferido em 19/01/2018 pelo senhor Conservador da 2ª Conservatória do Registo Predial de …, que recusou o registo da apresentação nº 2.810 de 22-12-2017, respeitante ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº 1797/...
2. Dispõe o citado dispositivo: «Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo». Donde resulta que «os atos que tenham uma dupla funcionalidade só se verão afectados no âmbito do efeito que o vício não permita atingir» - cfr., José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 4ª ed., Almedina, p. 404.
3. Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª ed., Almedina, p. 78.
4. Cfr. Afonso Nunes de Figueiredo Patrão, Poderes E Deveres De Notário E Conservador Na Cognição De Direito Estrangeiro, Centro de Estudos Notariais e Registais, 2, Coimbra Editora, pp. 17/20 e 36. Em sentido contrário, porém, Luís de Lima Pinheiro sustenta existirem regras específicas no quadro da função notarial que permitem concluir que “perante o direito vigente os notários não estão obrigados a conhecer oficiosamente do Direito estrangeiro aplicável”; mas já relativamente ao Conservador, entende dever “aplicar-se analogicamente o regime estabelecido para os tribunais” (cfr. Direito Internacional Privado, Vol. I, Introdução e Direito de Conflitos – Parte Geral, 2ª ed. Almedina, 2008, pp. 580/581).
5. Cfr. Maria Helena Brito, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, Almedina, 2017, p. 79.
6. Foi, entretanto, adotado o Regulamento (UE) 2016/1103 do Conselho de 24 de junho de 2016, que implementa a cooperação reforçada no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais (aplicável, quanto à generalidade das suas disposições, a partir de 29 de janeiro de 2019).
7. Cfr. Parecer n.º R.P.81/2012 SJC, disponível em www.irn.mj.pt/Doutrina.
8. Introduzido pelo Dec. Lei n.º 125/2013, de 30 de agosto.
9. Dispõe o citado dispositivo: «Quando a lei reguladora da sucessão não for a portuguesa e o notário a não conhecer, a escritura deve ser instruída com documento idóneo comprovativo da referida lei». Significa isto que, para a escritura de habilitação, o notário não tem a obrigação de cognição oficiosa da lei estrangeira, podendo recusar-se a lavrar escritura se os interessados não fizerem prova documental do respetivo conteúdo.
10. Cfr. Afonso Nunes de Figueiredo Patrão, obra citada, pp. 34/35.
11. Cfr. Afonso Nunes de Figueiredo Patrão, obra citada, pp. 33/36.