Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
735/15.3T9GMR.G1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: RAI
NÃO IDENTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
NÃO REJEIÇÃO
ARTº 287º
Nº 3 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A circunstância de não constar do RAI a identificação do arguido não constitui causa de rejeição liminar de tal peça processual.

II) É o que sucede, in casu, pois que tendo a assistente na denúncia apresentada e que deu origem aos presentes autos, identificado o denunciado, tendo este sido constituído arguido e interrogado nessa qualidade, e constatando-se que o despacho de arquivamento, proferido pelo Mº Pº e que o assistente visa submeter a sindicância do JIC, em sede de instrução, se refere apenas àquele arguido, pelo que, não poderão suscitar-se quaisquer dúvidas sobre a identidade da pessoa e a quem a assistente imputa a prática dos factos que narra no RAI e cuja pronúncia pretende seja proferida, em sede de instrução, tratando-se do arguido, devidamente identificado nos autos.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

1 – RELATÓRIO
No âmbito dos presentes autos, tendo o Ministério Público deduzido despacho de arquivamento, nos termos do disposto no artigo 277º, nº. 2, do C.P.P., relativamente aos factos por que a ofendida Maria apresentou queixa contra José veio a ofendida, que se se constituiu assistente, requerer a abertura da instrução, visando a pronúncia do arguido pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217º, nº. 1 e 218º, nº. 1, este último com referência ao artigo 202º, al. a), todos do Código Penal.
O Mmº. Juiz de Instrução Criminal, por despacho datado de 18/01/2016, rejeitou o requerimento de abertura da instrução, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 3, do C.P.P., por inadmissibilidade legal, «designadamente, por não narrar os factos que permitam afirmar a tipicidade objectiva e subjectiva das condutas, bem como o pressuposto da culpa, e sobretudo por não identificar o arguido.»
Inconformado veio a assistente interpor recurso do aludido despacho, apresentando a respetiva motivação e desta extraindo as seguintes conclusões:
1º-) O presente recurso versa apenas sobre matéria de direito.
2º-) No RAI da Recorrente mostram-se suficientemente preenchidos todos os requisitos previstos nos artigos 287º, nº 2, e nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º, ambos do C.P.Penal;
3º-) O RAI apresentado pela Assistente cumpre estas exigências processuais, na medida em que descreve de forma pormenorizada e devidamente circunstanciada todos os factos imputados ao arguido, contendo os elementos objectivos e subjectivos do crime que lhe é imputado e os respectivos pressupostos da culpa;
4º-) O RAI enuncia também as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente ao despacho de arquivamento;
5º-) O facto de no cabeçalho do RAI não estar expressamente identificado o arguido, não importa a rejeição da abertura de instrução;
6º-) A omissão expressa do nome do arguido é absolutamente irrelevante para a verificação dos pressupostos de admissão da instrução requerida, porquanto o nº 2 do artigo 287º do C.P.P. apenas remete, para efeitos de formalidades do RAI, para as alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º e já não para a alínea a) desse mesmo nº 3 do artigo 283º, esta sim referente às indicações tendentes à identificação do arguido;
7º-) O facto de apenas existir um único arguido nos autos, basta para se saber a quem são imputados os factos, sendo que a existir despacho de pronúncia o Juiz de Instrução tem nos autos todos os elementos quanto à sua completa identificação, não havendo qualquer possibilidade de erro na identificação do arguido e da pessoa a quem são imputados os factos e a quem é dirigida a pronúncia;
8º-) Ao ler-se o RAI infere-se, com toda a certeza e segurança, que o mesmo se dirige ao arguido José, por ser o único denunciado nos autos, encontrando-se o mesmo devidamente identificado na queixa e nos autos, nomeadamente aquando da sua constituição como arguido;
9º-) Contrariamente ao decidido no douto despacho recorrido, o RAI contém a delimitação de todas as circunstâncias de “tempo, modo, como e quando”, como resulta dos pontos 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º e 24º do RAI, nos quais estão devidamente narrados e discriminados todos os factos e todas as circunstâncias de “tempo, modo, como e quando”;
10º-) Tais factos são suficiente para inferir a tipicidade objectiva e subjectiva da conduta do arguido, bem como dos pressupostos da sua culpa;
11º-) O RAI acha-se correctamente elaborado e estruturado, tendo preenchido todos os requisitos formais referidos no artigos 287º do C.P.P.;
12º-) A decisão ora recorrida viola os princípios da confiança, da certeza e da segurança jurídica e a ainda o princípio da legalidade.
13º-) O RAI não pode ser rejeitado;
14º-) O douto despacho recorrido violou os artigos 287º, n.º 2, e 283º n.º 3, alínea a), b) e c) do CPP.
O recurso foi regularmente admitido.
O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso interposto pela assistente, nos termos constantes de fls. 129 a 135, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1. A nosso ver, no requerimento de instrução em apreço a assistente observou o disposto nos artºs 287º, nº 2 e 283, nº 3, al. b) e c), do CPP, pois que contém todos os elementos objectivos e subjectivos típicos do crime de burla qualificada que é imputado ao arguido;
2. É certo que no RAI a assistente não identifica o arguido, nem sequer mencionando o seu nome, sendo que, de harmonia com o artº 311º, nº 3, al. a), do CPP, a acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a identificação doa arguido;
3. Porém, a Instrução com base no RAI apresentado pela assistente é exequível, visto que nos presentes autos apenas existe o arguido José, sendo indubitável que o RAI a ele necessariamente diz respeito, nenhuma dificuldade surgindo na sua identificação, por constar dos autos.
4. Em face do exposto, somos de entendimento de que o recurso merece provimento.
Neste Tribunal da Relação, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à posição defendida pelo Ministério Público junto da 1ª Instância, na resposta que o mesmo ofereceu e concluindo nos mesmos termos, no sentido de o recurso dever merecer provimento.
Foi cumprido o disposto no nº. 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir:

2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Decisão recorrida
O despacho recorrido é do seguinte teor:
«(…)
- Da inadmissibilidade legal da abertura da instrução:
A Assistente Maria, não se conformado com o arquivamento dos autos, requereu a abertura de instrução pelos fundamentos aduzidos a fls 86 e ss.
Analisada a peça processual de abertura de instrução, conclui este Tribunal que não se verificam os requisitos necessários para permitir uma abertura de instrução.
Vejamos,
Preceitua o artigo 287 n.º 2 do CPP que o requerimento de abertura de instrução pelo assistente (…) deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação. Trata-se de uma imposição legal essencial para que o arguido tenha a plena noção daquilo que o assistente o acusa e possa defender-se convenientemente, em respeito ao princípio do contraditório.
A assistente tem que, ainda que sumariamente, delimitar os factos suficientes para integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que entende ter sido violado, sendo estes factos que delimitam a actividade investigatória do juiz de instrução criminal.
Como resulta do artigo 303.º e 309.º do CPP o juiz de instrução criminal está limitado nos seus poderes de cognição pelo requerimento do assistente para que se abra a instrução. Os factos apresentados pelo assistente são a base de trabalho do juiz de instrução criminal, já que a instrução não é um suplemento de investigação e não visa a substituição do MP na função investigatória. O escopo legal da instrução é a comprovação judicial da decisão acusatória ou do arquivamento em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Não é uma segunda fase investigatória desta feita levada a cabo pelo juiz ( Souto de Moura, Inquérito e instrução, p. 125.), mas sim uma fase processual essencialmente garantística, adequando-se perfeitamente à natureza, que segundo a Constituição lhe cabe, de direito das pessoas e garantia do Processo Penal - Figueiredo Dias, Para uma reforma global, p. 228.
A necessidade do assistente indicar no seu requerimento os factos que considere indiciados ou que pretende vir a indiciar justifica-se pelo facto do requerimento equivaler à acusação, definindo e delimitando o objecto do processo a partir da sua apresentação. Substancialmente o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente contém uma verdadeira acusação. Os requisitos a que deve obedecer uma acusação constam do artigo 283.º do CPP, ali se estabelecendo, nomeadamente nas alíneas a), b) e c), aplicável ao requerimento de abertura de instrução ex vi n.º 2 do artigo 287.º CPP, que a acusação contém, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.
Ou seja, a assistente deverá descrever factos que permitam identificar no tempo e espaço acções (ou omissões), típicas, ilícitas, culposas e puníveis, pois só indiciariamente provados factos que permitam o preenchimento destes elementos é que se poderá afirmar a existência de um crime.
Ora, desde logo a assistente não identifica o arguido, o que por si é motivo de rejeição da abertura de instrução (a propósito ac. do STJ, de 12.03.2009, relator Conselheiro Arménio Sottomayor, em cujo sumário se escreveu I - A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento. II - A inadmissibilidade legal constitui uma das três formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução. III -Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art. 137.º CPC, aplicável ao processo penal nos termos do art. 4.º do CPP, por o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal. IV -Há afloramentos deste princípio em diversas normas do CPP, nomeadamente no art. 311.º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada, e no art. 420.º, que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência. V - Dado o paralelismo entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, deve aquilatar-se da possibilidade de aplicação ao requerimento para abertura da instrução do disposto no art. 311.º, que considera manifestamente infundada a acusação: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime. VI -Se o requerimento para abertura de instrução requerida pelo assistente não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde ela consta, a instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis. VII - De igual modo, se, pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. VIII - No conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral).
Por outro lado, compulsado o RAI, constata-se que a Assistente expende um conjunto de argumentação, que na sua óptica, deveria ter conduzido a decisão diversa do MP, requerendo a pronúncia pela prática de um crime burla qualificada, sem que, contudo, tenha deduzido uma verdadeira acusação (alternativa á do MP ou como este deveria ter acusado).
Contudo, constituindo o RAI uma “verdadeira” acusação deveria, em segmento próprio, e devidamente autonomizado, cumprir-se o disposto no art. 283.º do CPP, nomeadamente, identificando na peça processual o arguido cabalmente, e concretizando todos os factos que permitam a subsunção no crime pelo qual se pretende a pronúncia, ou seja, em local perfeitamente delimitado no RAI, alegar as circunstâncias de “tempo, modo, como e quando”.
A assistente não procedeu a uma verdadeira acusação, antes elencou alguns factos, que são insuficientes para se considera uma acusação alternativa á do MP levantou questões (cfr. artº 15º), referindo que o inquérito poderia e deveria ter ido mais longe no sentido de saber quem era Maria, e a razão do cheque lhe ter sido entregue.
Como já se disse, o requerimento de abertura de instrução pelo assistente, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, equivale à acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação.
Entende este tribunal que a descrição deficiente do requerimento de abertura de instrução, designadamente por não narrar os factos que permitam afirmar a tipicidade objectiva e subjectiva das condutas, bem como o pressuposto da culpa, e sobretudo por não identificar o arguido, é um dos casos de rejeição da instrução por inadmissibilidade legal.
Na verdade, os casos em que o requerimento de abertura de instrução pode ser rejeitado encontram-se taxativamente tipificados no artigo 287.º n.º 3 do CPP (O requerimento pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução), mas partem do pressuposto de que aquele requerimento reúne os requisitos prévios, de forma e de fundo, designadamente as menções indicadas no artigo 283.º n.º 3, para que remete o artigo 287.º n.º 2 do CPP, sendo ainda a falta de tais menções de integrar no conceito de inadmissibilidade legal da instrução enunciado no artigo 287.º n.º 3 do CPP.
Por outro lado, está vedado ao Tribunal um convite ao Assistente para aperfeiçoar o seu requerimento e suprir tais lapsos.
O juiz de instrução criminal não pode convidar o assistente a aperfeiçoar um requerimento deficiente factualmente, pois tal comportamento viola a letra, o espírito da lei, a estrutura acusatória do processo criminal e diminui as garantias de defesa do arguido, o que é incompatível com a função jurisdicional que impõe aos tribunais, nos termos do artigo 202.º n.º 2 da CRP, de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
É esta a posição uniformizada da jurisprudência – veja-se acórdão uniformizador de jurisprudência Acórdão n.º 7/2005 (D.R.n.º212,SérieI-A de 2005-11-04), do STJ, segundo o qual “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Atento tudo o que ficou dito, rejeito a abertura da instrução por inadmissibilidade legal.
(…).»

2.2. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando os fundamentos do recurso a única questão suscitada e que há que apreciar e decidir é a de saber se existe fundamento para que seja liminarmente rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente.

2.3. Do conhecimento do recurso
O Sr. Juiz a quo rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido por inadmissibilidade legal”.
Sufraga o Sr. Juiz a quo o entendimento de que deve ser liminarmente rejeitado um RAI, com conteúdo daquele que a assistente apresenta, sobretudo por dele não constar a identificação do arguido, mas também por não narrar os factos que permitam afirmar a tipicidade objetiva e subjetiva das condutas, bem como o pressuposto da culpa, não podendo haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento do RAI para suprir tal omissão e deficiência, conforme jurisprudência uniformizada pelo AUJ nº. 7/2005, de 12/05/2005.
Por seu lado, a assistente e o Ministério Público sustentam que o RAI que a assistente apresentou, ainda que não identifique o arguido, existindo um único arguido nos autos, não podendo, por isso, subsistir a dúvida quanto à identidade do mesmo e descrevendo-se no RAI factos que são suficientes para integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla qualificada, que é imputado ao arguido, observa o disposto nos artigos 287º, nº. 2 e 283º, nº. 3, al.s b) e c), do C.P.P., pelo que, inexiste fundamento para a rejeição do RAI apresentado pela assistente.
Vejamos:
Sobre e o âmbito da instrução dispõe o artigo 286º, nº. 1, do Código de Processo Penal – diploma legal a que pertencem todas as normas legais que venham a citar-se sem menção da respetiva origem –: “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”
E sobre o requerimento para abertura da instrução, estatui o artigo 287º, na parte que para o caso vertente releva:
1. A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação (…) do arquivamento:
a) (…)
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2. O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente (…) à não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos, que através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº. 3 do artigo 283º. (…).
3. O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
(…).
O artigo 283º, nº. 3, alíneas b) e c) – “Acusação pelo Ministério Público” –, para que remete o artigo 287º, nº. 2, aplicável ao requerimento do assistente, dispõe:
A acusação contém, sob pena de nulidade:
A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada. - al. b) -;
A indicação das disposições legais aplicáveis. - al. c) -.
Tal como decorre do disposto no artigo 286º do C.P.P., quando requerida pelo assistente, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de arquivamento, isto é, visa discutir essa decisão «apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes» de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (artigo 308º, nº. 1)» – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 750 e Rita Serrano, “A Irrecorribilidade do Despacho de Pronúncia”, in Prova Criminal e Direito de Defesa, Almedina, pág. 192.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 754: «O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente é constituído pelas seguintes partes:
a. a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou uma medida de segurança, sendo aplicável o disposto no artigo 283º, nº. 3, al. b);
b. as disposições legais violadas pelo arguido e as razões de direito de discordância relativamente ao arquivamento do MP.
c. a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo (…)
d. e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.»
Os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução são os previstos no nº. 3 do artigo 287º, a saber:
- A extemporaneidade do requerimento;
- A incompetência do juiz
- A inadmissibilidade legal da instrução.
Se os fundamentos da extemporaneidade e da incompetência do juiz não suscitam dificuldades de maior, estando regulados na lei (cfr. artigos 87º, nº. 1 e 32º), já o conceito da «inadmissibilidade legal da instrução», como bem se salienta no Acórdão da R.L. de 16/02/2016, in C.J., Ano 2016, T. II, págs. 126 a 127, tem sido objeto de larga elaboração, quer doutrinária, quer jurisprudencial.
Como poderá verificar-se consultando a jurisprudência dos nossos tribunais, que se encontra publicada, referente à matéria, a rejeição do requerimento de instrução quando apresentado pelo assistente, prende-se, sobretudo, com a delimitação do campo factual que pode ser objeto da instrução, v.g., por se verificar a falta de narração dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança ou, por no requerimento se narrarem factos que não constituem crime (cfr. casos indicados pelo Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 750, anotação 1 e também pelos Conselheiros António Henriques Gaspar e outros, in Código de Processo Penal, Almedina, 2ª edição, pág. 962).
Os factos cuja narração deve ser feita do Requerimento de Abertura da Instrução, quando apresentado pelo assistente, são os enunciados na al. b) do nº 3 do artigo 283º, aplicável ex vi do artigo 287º, nº. 2. Nesta matéria e, de harmonia com a jurisprudência uniformizada que é citada pelo Srº. Juiz a quo, consignada no Acórdão n.º 7/2005, do S.T.J., de 12/05/2005, publicado no D.R.-I Série, de 04/11/2005, “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, impondo-se, por conseguinte, a sua rejeição.
Revertendo ao caso dos autos, a rejeição do R.A.I. apresentado pela assistente, baseou-se, em dois fundamentos:
- O primeiro e principal fundamento é o de não constar do requerimento a identificação do arguido;
- O segundo fundamento prende-se com a circunstância de a narração dos factos ser deficiente não observando o disposto na al. b) do nº. 3 do artigo 283º, nº. 3, aplicável ex vi do artigo 287º, nº. 2, ambos do C.P.P.
Vejamos:
Em relação à não identificação do arguido no requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, verifica-se que efetivamente não consta essa identificação.
Todavia, em nosso entender, tal omissão não constitui fundamento para que seja rejeitado o RAI apresentado pelo assistente.
Explicitando:
Entre os elementos que devem constar do requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente, enunciados no nº. 2 do artigo 287º do C.P.P., não é referenciada a identificação do arguido, sendo que esse elemento devendo constar, sob pena de nulidade, da acusação deduzida pelo Mº.Pº. (cfr. al. a) do nº. 3 do artigo 283º) e/ou pelo assistente (por remissão dos artigos 284º, nº. 2 e 285º, nº 3, para o nº. 3 do artigo 283º), o certo é que o nº. 2 do artigo 287º, não remete para a al. a) do nº. 3 do artigo 283º, mas apenas para as al.s b) e c).
Não se põe em causa que, como regra geral, no requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo assistente deverá constar a identificação do arguido, porém, entendemos, que essa omissão não constitui fundamento para a rejeição liminar daquele requerimento.
Como dão conta o assistente e o Ministério Público, na jurisprudência que acolhe o entendimento que preconizamos existem duas orientações, a dos que defendem que deverá o JIC dirigir convite de aperfeiçoamento ao assistente para que apresente novo requerimento que contenha a identificação do arguido (neste sentido, cfr., entre outros, os arestos citados pelo Exmº. PGA no parecer emitido, Ac. da R.C. 26/01/2011, proc. nº. 45/07.0GASJP.C1, Ac. da R.P. de 13/01/2016, proc. 136/14.0T9VFR.P1 e Ac. da R.L. de 03/02/2010, proc. 3261/08.3TDLSB.L1, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt), não tendo aplicação quanto a este concreto elemento a jurisprudência uniformizada pelo STJ no citado AUJ nº. 7/2005; e outra que preconiza que nos casos em que não se suscitem dúvidas sobre quem é arguido nos autos, designadamente, nos casos em que a queixa ou a denúncia de quem se veio a constituir assistente nos autos foi apresentada contra pessoas determinadas, as mesmas foram constituídas arguidas ou o inquérito correu contra as mesmas, surgindo identificadas no despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº. 2, do CPP, não se justifica que haja lugar ao convite ao aperfeiçoamento do RAI dirigido ao assistente (neste sentido, vide, entre outros, Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 25/01/2016, proferido no proc. 136/14.0TAVNF.G1, acessível no endereço ww.dgsi.pt).
No caso vertente, compulsados os autos, verifica-se esta última situação, tendo a ora assistente na denúncia apresentada e que deu origem aos presentes processo, identificado o denunciado, José (cfr. fls. 2), tendo este constituído arguido e interrogado nessa qualidade (cfr. fls. 46 e 47), e constatando-se que o despacho de arquivamento, proferido pelo Ministério Público, a fls. 77 a 80 dos autos e que o assistente visa submeter a sindicância do JIC, em sede de instrução, se refere apenas àquele arguido, pelo que, não poderão suscitar-se quaisquer dúvidas sobre a identidade da pessoa a a quem a assistente imputa a prática dos factos que narra no RAI e cuja pronuncia pretende seja proferida, em sede de instrução, tratando-se do arguido José, devidamente identificado nos autos.
Assim sendo, salvo o devido respeito pela posição em sentido contrário, consideramos que se revela despiciendo convidar a assistente a apresentar novo RAI do qual conste a identificação do arguido.
Por conseguinte, pelas razões sobreditas, não existindo qualquer dúvida de identificação do arguido, contra quem a assistente requer a abertura da instrução, entendemos, contrariamente ao decidido no despacho recorrido, que a circunstância de não constar do RAI a identificação do arguido não constitui causa para que para que o RAI seja liminarmente rejeitado.
Passando agora a analisar o segundo fundamento considerado no despacho recorrido para a rejeição do RAI, importa apreciar narração dos factos efetuada pela assistente, no RAI que apresentou, a fls. 86 a 95 dos autos, se mostra deficiente ao ponto de inviabilizar as finalidades da instrução:
Conforme acima se deixou referido, o requerimento para a abertura de Instrução, formulado pela assistente, – como é o caso – sendo-lhe aplicável o disposto no art. 283º, nº 3, al. b), do CPP, por força do disposto no art. 287º, nº 2 do CPP, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção.
Analisado o RAI da assistente, entendemos que, pese embora, a narração dos factos nele feita, do ponto de vista da construção desta peça processual, não seja modelar, posto que, a melhor técnica recomenda que se assemelhe à estrutura de uma acusação, merece-nos inteira concordância o entendimento defendido pelo Digno Procurador da República, na resposta ao recurso, que foi acolhido pelo Exmº. PGA, no parecer que emitiu, no sentido de que a narração dos factos feita no RAI contém a delimitação de todas as circunstâncias “de tempo, modo, como e quando” (cfr. pontos 5º a 14º, 17º a 24º) e vem enunciado que, com a sua conduta o arguido “apenas pretendia enganar a assistente em seu proveito … enriquecendo assim de forma ilegítima à custa do prejuízo patrimonial da assistente” (cfr. ponto 19º) e que “agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei” (pontos 41º e 42º).
Tal como se decidiu no Ac. da R.P. de 17/11/2010, proferido no proc. 83/08.5TAMTR.P1, não deve ser rejeitado o requerimento para abertura da instrução [RAI] que, embora desajeitado, prolixo e confuso, mencione todos os factos que integrem o tipo do crime imputado ao arguido, cabendo ao juiz de instrução, em eventual despacho de pronúncia, sintetizar e clarificar os mesmos.
Considera-se, assim, que os factos narrados pela assistente, no RAI, são suscetíveis de, em abstrato, integrarem os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º, nº. 1 e 218º, nº. 1, com referência ao artigo 202º, al. a), todos do C.P., denunciado pela assistente e por cuja prática pugna que o arguido seja pronunciado.
Assim sendo, não constituindo a omissão da identificação do arguido no RAI, não se suscitando dúvidas sobre essa identificação, pelas razões sobreditas, fundamento para a rejeição do RAI e observando o requerimento para a abertura da instrução, apresentado pela assistente, as exigências previstas nos artigos 287º, nº. 2 e 283º, nº. 3, al.s b) e c), do C.P.P., e considerando que, mediante os termos em que tal requerimento é formulado, se mostra possível alcançar a finalidade a instrução, forçoso é concluir que não pode subsistir o entendimento sustentado pelo Sr. Juiz a quo, no despacho recorrido, de rejeição do RAI.
Nesta conformidade, não se estando perante um caso de «inadmissibilidade legal da instrução», não pode subsistir o despacho recorrido, impondo-se a sua revogação e substituição por outro, que admita o R.A.I., declarando aberta a instrução e seguindo-se os ulteriores termos do processo.
Consequentemente, o recurso merece provimento.

3 – DISPOSITIVO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente Maria e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro, que admita o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente, declarando aberta essa frase processual e seguindo-se os ulteriores termos do processo.

Sem tributação, por não ser devida, face à procedência do recurso.

Notifique.

Guimarães, 11 de setembro de 2017