Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2927/18.4T8VCT-A.G1
Relator: PEDRO MAURÍCIO
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO - SENTENÇA
DA INEXEQUIBILIDADE E/OU DA INEXIGIBILIDADE
OBRIGAÇÕES RECÍPROCAS
RESTITUIÇÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O preceito contido na alínea a) do 703º do C.P.Civil de 2013 (“sentenças condenatórias”) deve ser interpretado no sentido de que a sentença condenatória que constitui título executivo é qualquer decisão judicial proferida no decurso de processo que contenha, no decisório, pelo menos um segmento de condenação.
II – Por isso, constituem título executivo as decisões que, independentemente da natureza e do objeto da acção, imponham ao destinatário visado o cumprimento de uma obrigação.
III - Relativamente às obrigações condicionais ou cuja exigibilidade dependa do oferecimento da contraprestação, os termos iniciais da acção executiva dependem necessariamente do circunstancialismo que resulta do próprio título executivo e/ou da concreta situação de facto que se verificar mas, como resulta do disposto no nº1 do art. 715º do C.P.Civil de 2013, incumbe ao credor (exequente) alegar os factos e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que se verificou a condição ou que efetuou ou ofereceu a prestação.
IV - E como mais decorre dos nºs. 2 a 4 do aludido art. 715º, a actividade probatória complementar ao título executivo apresentado varia em função dos meios de prova de que o credor (exequente) disponha, sendo que compete ao juiz apreciar se as provas oferecidas convencem da verificação da condição ou da exigibilidade da obrigação.
V - A oposição à alegação de que a condição se verificou ou que o oferecimento da prestação teve lugar, terá de ser rebatida pelo executado em sede de oposição à execução (embargos de executado) - cfr. nº5 do referido art. 715º.
VI - Tendo a Embargada (devedora) oferecido à Embargante (credora) a prestação a que estava judicial (e legalmente) obrigada (entrega/restituição do veículo) mas tendo esta recusado receber o veículo porque exigiu que aquela cumprisse condições (pagamentos) que não têm fundamento na sentença dada à execução (e nem na lei), verifica-se que a Embargante não aceitou, sem motivo justificado, a prestação que lhe é oferecida nos termos legais e, por via disso, incorreu em mora creditoris (cfr. art. 813º do C.Civil).
VII - Tendo recusado injustificadamente o recebimento do veículo no preciso momento em que havia acordado com a Embargada a prestação simultânea das obrigações de restituição, e não tendo procedido à restituição (pagamento) do valor do preço da compra, verifica-se que a Embargante igualmente incorreu em mora debitoris quanto ao cumprimento da prestação estava judicial (e legalmente) obrigada (restituição do valor pago pela compra).
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
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1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Impugnada
           
T... - AUTOMÓVEIS, LDA, executada no proc. nº2927/18.4T8VCT-A.G1, veio deduzir oposição à execução, mediante embargos de executado, contra a Exequente AA, pedindo que: «Termos em que na procedência da presente Embargos o devem as exceções deduzidas serem julgadas procedentes e ser julgada extinta/ suspensa a Execução declarando-se a Inexigibilidade e Inexequibilidade do Título, erro na forma do Processo; Mais se requer seja sempre atribuído efeito suspensivo aos presentes embargos pelas razões e fundamentos supra expostos, mediante prestação de caução através de garantia bancaria on first demand ou outra o tribunal julgue adequada, e ordenado como requerido o levantamento das penhoras e seu cancelamento uma vez recebida a caução que a Embargante se propôs prestar. Tudo sem prejuízo e sem conceder, Serem os presentes embargos julgados procedentes por provados e a Execução extinta em conformidade».
Fundamentou a sua pretensão, essencialmente, no seguinte: «a decisão/sentença dada à execução é inexequível pois pressupunha uma prestação simultânea, a entrega do veículo pela exequente à executada com o pagamento por esta àquela da quantia em que foi condenada; desde Outubro de 2021, a executada sempre solicitou a definição de uma data para entrega do veiculo, o que até hoje não ocorreu mantendo-se o mesmo na posse da exequente; a executada comunicou, em 07/12/2021, que a viatura deveria ser entregue, limpa, sem danos na carroçaria, chapa, pintura, vidros, grupo ótico, jantes, frisos, borrachas das portas e interior (designadamente ao nível de estofos) e que não resultem de uma utilização e desgaste normal, bem como com pneus com piso que respeite o mínimo legal de desgaste, no dia 10 de Dezembro, nas suas instalações, e esclareceu que contra o cumprimento destas condições seria, no acto, efectuado pagamento à exequente; no dia 13 de Dezembro esta apresentou-se nas instalações da executada com o veiculo, mas verificou-se ter danos no estofo do condutor com buraco e rasgão não compatíveis com desgaste decorrente de uso normal, cujo custo de reparação/substituição ascendia a € 600; a Executada abandonou, sem qualquer explicação, as instalações levando o veículo; a executada interpelou por escrito no dia 16 de Dezembro a exequente e fixou um prazo de dois dias para entrega do veiculo contra o pagamento que de imediato efectuaria, mas esta não compareceu nas instalações, não deu qualquer justificação, e instaurou a presente execução; é manifesta a insuficiência do titulo e sua inexequibilidade porque inexiste incumprimento da executada, sendo o incumprimento da exequente; e exequente litiga de má fé».
A Exequente/Embargada contestou, pugnando por: «a) Devem ser julgada não provada e improcedente a questão prejudicial invocada pela Embargante; b) Devem ser julgados não provados e improcedentes os Embargos deduzidos com as legais consequências».
Fundamentou a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «antes de dar entrada com a presente execução, a exequente tentou entregar o seu veículo à executada e foi esta quem se recusou a recebê-lo; no dia 13 de Dezembro de 2021, a executada impôs à exequente o pagamento de 780,00€ para receber o veículo; face à não-aceitação da exequente em pagar tal montante de 780,00€, a executada recusou-se a receber o veículo e a pagar a indemnização que lhe era devida; não assiste à executada o direito a estipular condições para a entrega do veículo e a impô-las à exequente, quando as mesmas não vêm reconhecidas por sentença».
Foi proferido despacho saneador, no qual, para além do mais, se dispensou a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte decisório:
“Em conformidade com o exposto, julga o Tribunal os presentes embargos de executado totalmente improcedentes.
Mais se julga improcedente o pedido de condenação como litigante de má-fé e, consequentemente, absolve-se a embargada”.
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1.2. Do Recurso da Executada/Embargante

Inconformada com a sentença, a Executada/Embargante interpôs recurso de apelação, pedindo que seja julgado “procedente o presente recurso de conformidade com as precedentes CONCLUSÕES”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:

“1. Vem o presente recurso interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 629.º, e arts. 631.º, e 638.º, n.º 1 e n.º 7 e 639.º e 640.º do CPC., da sentença proferida e do julgamento da matéria de facto efectuada na sentença recorrida bem como da apreciação dos factos e aplicação do direito aos mesmos,
2. nos presentes autos, a questão que ao Tribunal cumpria solucionar prendia-se com a inexequibilidade e insuficiência do título dado à execução.
3. Verifica-se erro de erro de julgamento da matéria de facto e impõe-se sua alteração:
4. Na matéria de facto julgada provada o tribunal a quo julgou que, 7. Após, através de carta registada com aviso de recepção, datada de 14/12/2021 e recepcionada pela embargada em 16/12/2021, a embargante interpelou-a para no prazo máximo de dois dias após a recepção da mesma proceder, mediante agendamento prévio, à entrega da viatura e que “(…) a viatura deveria ser entregue – limpa, sem danos na carroçaria, chapa, pintura, vidros, grupo ótico, jantes, frisos, borrachas das portas e interior (designadamente ao nível de estofos) e que não resultem de uma utilização e desgaste normal, bem como com pneus com piso que respeite o mínimo legal de desgaste. (…)” - cf. documento de fls. 9 v. a 11, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido E, 8. A esta missiva a embargada deu resposta, no dia 21/12/2021, nos termos que constam do documento junto a fls. 13, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente solicitando o agendamento de data e hora para a entrega do veículo e pagamento da indemnização, sem imposição de condições.
5. Porém, e em contradição com a matéria de facto supra referida que julgou provada o Tribunal a quo julgou como não provado o seguinte facto: c) Após a missiva aludida em 7., a embargada não compareceu nas instalações e não deu qualquer justificação.
6. Dos documentos referidos na sentença, e dos documentos juntos aos autos e respectivos articulados resulta que a Exequente após ter recebido a missiva aludida em 7 dos factos provados deu entrada, no mesmo dia e já duas horas depois da recepçao da mesma, ao requerimento executivo de execução de sentença.
7. Ademais, como resulta de 8. dos factos provados a Exequente, ora embargada, não tinha, pese interpelada para entregar a viatura no prazo de dois dias contados da data da recepçao, efectuado a entrega da mesma pois responde por carta no dia 21 (sendo que faz já referencia à existência de processo executivo (instaurado sem que tenha apresentado e entregue a viatura e documentos)).
8. Resulta ainda do requerimento de prova junto aos autos – referencia citius ...59 (e que se da como integralmente reproduzido) - pela embargante que esta em 8 de Março ed 2022 enviou nova carta à Embargante – recebida a 11 de março e à qual a Embargante deu resposta como se constata dos documentos referidos e demais documentos juntos aos autos.
9. em Março de 2022 a embargante pese a interpelação escrita que recebera em 16 de Dezembro continuava sem entregar a viatura ou dirigir-se às instalações da Executada para faze-lo e receber a quantia que lhe era devida.
10. Existe assim, por um lado omissão de pronuncia do tribunal a quo sobre estes documentos – facto que constituiu nulidade que expressamente se arguiu e por outro erro no julgamento da matéria de facto pois deveria ter sido dado como provado, ao invés do que se julgou, que: “Após a missiva aludida em 7., a embargada não compareceu nas instalações, facto que se verifica até à presente data”.
11. Mais deveria ter sido julgado provado pelo tribunal a quo face à prova documental junta e à matéria de facto alegada pela embargante e sua importância para solucionar a questão da inexequibilidade e insuficiência do título dado à execução. que: “A Executada instaurou o processo executivo já depois de ter recebido interpelação por escrito enviada pela embargante, a fixar um prazo de dois dias para a entrega do veículo”.
12. Desta alteraçao, que por raciocínio logico e conjugação dos elementos processuais decorre, resulta e impõe-se a consequente alteração da decisão proferida, pois tem, na opinião da recorrente, a existência de fundamento para a procedência dos embargos por inexigibilidade ou inexequibilidade do titulo.
13. Assim, alterada que seja, na procedência do presente recurso, a decisão e julgamento sobre a matéria de facto no sentido indicado, importará então verificar se da factualidade fique dada como demonstrada decorre a improcedência dos embargos, ou como se defende uma necessária alteração da decisão, julgando os mesmos totalmente procedentes.
14. O Exequente instaurou a execução na forma de “pagamento de quantia certa” quando, bem sabia do teor da decisão que executava e que a mesma era INEXEQUIVEL (alínea a) do art. 729.º do CPC) pois pressupunha uma prestação simultânea da sua parte – a entrega do veiculo à ora Executada – e com o cabal e pontual cumprimento desta entrega o pagamento pela ora embargante da quantia em que foi condenada.
15. Há ademais errada aplicação do direito à matéria de facto constante da presente sentença.
Na verdade,
16. a embargada deu entrada à presente execução pese no dia 16 de Dezembro de 2021, pelas 16 horas tenha recebido e assinado uma carta registada com aviso de recepçao enviada pela ora Embargante – ponto 7 dos factos provados – na qual interpelou expressamente a Embargada para no prazo máximo de dois dias após a recepçao da mesma proceder, mediante agendamento, à entrega da viatura mais informando que, no acto, efetuaria o pagamento da quantia devida.
17. Porém, a embargada, tendo conhecimento expresso da interpelação efectuada e da vontade da Embargante em cumprir a sentença, omitiu de forma deliberada tal facto, omitiu e não cumpriu com a obrigação que também para si decorria da sentença e era condição necessária para a existência da obrigação de pagamento (devolução do preço) por banda da Embargante e nesse mesmo dia duas horas depois de ter recebido a carta procedeu ao pagamento da taxa de justiça necessária à presente execução – cfr requerimento executivo e data e hora do mesmo que se dá como reproduzido.
18. Assim, ao contrario do expendido na sentença recorrida, temos que, quando é dada à execução uma sentença condenatória, pela análise do título executivo há-de determinar-se a espécie de prestação e da execução que lhe corresponde, entrega de coisa, prestação de facto, dívida pecuniária, o quantum da prestação.
19. Quem executa tem de atender aquilo que foi ponderado no âmbito da decisão exequenda, o que in casu, não ocorreu.
20. Não tendo entregue a viatura e sendo as prestações simultâneas, não poderia a exequente exigir o pagamento, ademais porque estava em cumprimento do prazo que lhe foi concedido.
21. Assim, ao contrario do julgado nos presentes embargos, legítimo executada opor-se a um título executivo, consubstanciado em sentença, a excepção de não cumprimento traduzida no facto de a exequente não ter restituído à executada a bem (veiculo) cujo contrato de compra e venda foi anulado, ou não oferecer o cumprimento simultâneo dessa restituição com o pagamento do preço que reclama em execução, quando do titulo exequendo decorre, por via da resolução do negocio, a correspectiva condenação do embargado/exequente na restituição da viatura ajuizada.
22. Existe uma efectiva situação de cumprimento de obrigação simultânea da prestação pecuniária que lhe foi reconhecida,contra a entrega do bem, e tanto bastará para reconhecer que estamos perante uma obrigação condicional e dependente de prestação a efectuar pela Exequente, donde a aplicação da excepção de não cumprimento e do regime previsto nos art.º 715º do Código de Processo Civil.
23. Tendo a Embargante diligenciado para cumprir a respectiva obrigação, remetendo para o efeito, uma carta com a/r á Exequente , endereçada para a morada por estes disponibilizada nos autos, que recebeu , temos por eficaz a aludida declaração.
24. Não havendo a necessária actuação colaborante por parte da Exequente, tendo-se já aprestado a devedora a cumprir, remetendo para o efeito, uma carta com a/r, endereçada para a morada por estes disponibilizada nos autos, temos que a mora ou atraso no cumprimento da obrigação de entrega não é da Executada, mas da Exequente, nos termos do art.º 813º do Código Civil, pelo que durante a mora, a dívida deixa de vencer juros, quer legais, quer convencionais.
25. no caso dos autos, não há dúvida que ao declarar resolvido o contrato de compra e venda a sentença que serve de título executivo, comporta, além da restituição do preço pago pela embargada, o reconhecimento/condenação desta na obrigação de restituir o veículo. As obrigações de restituição, nos termos do disposto no art.º 290.º do Código Civil (C.C.) devem ser cumpridas simultaneamente, devendo o exequente, nos termos do disposto no art.º 715.º do C.P.C., alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que efectuou ou ofereceu a prestação.
26. Resulta á saciedade que a Exequente não efetuou nem ofereceu a prestação quando interpelada por escrito (ponto 7.) pela Exequente.
27. Pelo que, deve ao invés do julgado, considerar-se ser inerigível e inexequível o titulo e em consequência ser revogada a sentença e substituída por outra que julgue procedentes os embargos.
28. Em suma, posto que a sentença dada à execução transitou em julgado e inexequível e não constitui título executivo pelo que o tribunal fez errada interpretação e aplicação do art. 703º, nº 1, al. a) do CPC)”.
A Exequente/Embargada apresentou contra-alegações, pugnando por ser negado provimento ao recurso interposto.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito suspensivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[1] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[2]).
Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pela Embargada/Recorrente, são três as questões a apreciar por este Tribunal ad quem:
1) Se a sentença recorrida deve ser alterada no que concerne à matéria de facto nos termos indicados pela Embargante;
2) E se o título (sentença) dado à execução é inexequível e/ou a obrigação é inexigível.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos:

1. Por sentença judicial proferida em 22/10/2020, nos autos principais, foi a acção julgada parcialmente procedente e, consequentemente, decidiu-se: a) Declarar resolvido o contrato de compra e venda relativo veículo automóvel, da marca ..., modelo ..., 1.6 diesel, 120cv, com a matrícula ..-QP-.., celebrado entre a Autora, ora exequente, e a Ré T... - AUTOMÓVEIS, Ldª; ora executada; b) Condenar a Ré T... - AUTOMÓVEIS, Ldª, ora executada, a restituir à Autora, ora exequente, o valor pago pela compra do referido veículo, no montante de €26.750,00 (vinte e seis mil, setecentos e cinquenta euros), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento; c) Condenar, solidariamente, a Ré T... - AUTOMÓVEIS, Ldª e a chamada S..., S.A. a pagar à Autora a quantia de €1.000,00 (mil euros), devida a título de indemnização por danos não patrimoniais.
2. A referida sentença foi objecto de recurso pela ora Embargante para o Tribunal da Relação de Guimarães sendo revogada e posteriormente na sequência de recurso apresentado pela Embargada veio a ser confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 14 de Outubro de 2021, já transitado em julgado.
3. A embargada, agendou, com a embargante, a entrega do referido veículo, nas instalações desta, para o dia 13 de Dezembro de 2021, pelas 17:00, por contrapartida do pagamento da indemnização que lhe foi arbitrada, que calculou no montante de 31.270,61€, da seguinte forma: 26.750,00€ a título de capital, 1.000,00€ a título de danos não patrimoniais, 3.476,77€ pelos juros do capital e 43,84€ pelos juros dos danos não patrimoniais.
4. A embargante concordou com o valor da indemnização calculado pela embargada, tendo-se assim, comprometido a pagar a quantia de 31.270,61€, no dia e hora da entrega do referido veículo, mais concretamente, no dia 13 de Dezembro de 2021, pelas 17:00, através de transferência bancária para a conta titulada pela embargada na Banco 1....
5. Quando a embargada, chegou às instalações da embargante, no dia e hora acordados (13 de Dezembro de 2021 pelas 17:00), esta após observar o referido veículo, alegou que não o receberia sem o pagamento da quantia de 600,00€ para reparar o desgaste que o estofo do banco do condutor apresentava e 180,00€ para substituir dois pneus do veículo.
6. Nestas circunstâncias, a Embargada solicitou a um seu funcionário a avaliação do custo de reparação/substituição do estofo e informou a Embargante que o mesmo ascendia a € 600,00.
7. Após, através de carta registada com aviso de recepção, datada de 14/12/2021 e recepcionada pela embargada em 16/12/2021, a embargante interpelou-a para no prazo máximo de dois dias após a recepção da mesma proceder, mediante agendamento prévio, à entrega da viatura e que “(…) a viatura deveria ser entregue – limpa, sem danos na carroçaria, chapa, pintura, vidros, grupo ótico, jantes, frisos, borrachas das portas e interior (designadamente ao nível de estofos) e que não resultem de uma utilização e desgaste normal, bem como com pneus com piso que respeite o mínimo legal de desgaste. (…)” - cf. documento de fls. 9 v. a 11, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
8. A esta missiva a embargada deu resposta, no dia 21/12/2021, nos termos que constam do documento junto a fls. 13, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente solicitando o agendamento de data e hora para a entrega do veículo e pagamento da indemnização, sem imposição de condições.
9. O estofo do veículo está “coçado” pelo uso.
10. No dia 27 de Novembro de 2021, o veículo passou na inspeção.
11. Face à não-aceitação de pagar tal montante de 780,00€, a Embargada recusou-se a entregar o veículo e a Embargada a pagar a indemnização que lhe era devida.
Na mesma sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos:
a) Nas circunstâncias referidas em 5., verificou-se que a viatura tinha danos no estofo do condutor com buraco e rasgão.
b) Na sequência do referido em 7., a embargada inopinadamente abandonou, sem qualquer explicação, as instalações da Embargante levando o veiculo consigo.
c) Após a missiva aludida em 7., a embargada não compareceu nas instalações e não deu qualquer justificação.
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Da Alteração da Matéria de Facto

Nos termos do art. 640º/1 do C.P.Civil de 2013: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No que respeita à especificação dos meios probatórios, a alínea a) do nº2 do referido art. 640º, estatui que “Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Têm sido suscitadas dúvidas sobre se sobre se os requisitos do ónus impugnatório previsto neste art. 640º/1 devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também têm que integrar as próprias conclusões, sob pena do recurso ser rejeitado (cfr. art. 635º/2 e 639º/1 do C.P.Civil de 2013). Porém, tem vindo a constituir entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça que: 1) o Recorrente tem sempre que indicar os «concretos pontos de facto» que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; 2) o Recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, mas não sendo necessário que tal especificação também conste das conclusões; 3) relativamente aos «pontos de facto» cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em «prova gravada», para além da supra referida especificação dos meios de prova, o Recorrente está obrigado a indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos, mas não sendo necessário que tal indicação conste das conclusões; e 4) na motivação, o Recorrente tem expressar a decisão que, no seu entendimento, deve ser proferida sobre os «concretos pontos de facto» que impugnou, tendo em atenção a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se compreende em razão do reforço do ónus de alegação, com vista a evitar a interposição de recursos com conteúdo genérico ou inconsequente[3].
Com efeito, entre outros decidiu o Ac. do STJ de 29/10/2015[4], “1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas - indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC). 2. Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando - apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso”.
E entendeu-se no Ac. do STJ de 01/10/2015[5] que “I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe. II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação. IV - Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação”[6]. Explica-se neste aresto que «as exigências que o legislador entendeu consagrar nesta matéria e que impõem ao Tribunal o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova, no actual art. 607º, nº 4, do CPC, encontra o seu contraponto na igual exigência imposta à parte Recorrente, que pretenda impugnar a decisão de facto, do respectivo ónus de impugnação, devendo o Recorrente expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal “a quo” (…) recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus: Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão (…)» (os sublinhados são nossos). E conclui: «O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC. A saber: - A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados; - A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa; - E a decisão alternativa que é pretendida».
Ainda relevante se mostra o Ac. do STJ de 22/09/2015[7] que clarifica: “II – Na impugnação da decisão de facto, recai sobre o Recorrente “um especial ónus de alegação”, quer quanto à delimitação do objecto do recurso, quer no que respeita à respectiva fundamentação. III – Na delimitação do objecto do recurso, deve especificar os pontos de facto impugnados; na fundamentação, deve especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspectiva, impunham decisão diversa da recorrida (art. 640.º, n.º 1, do NCPC) e, sendo caso disso (prova gravada), indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda (art. 640.º, n.º 2, al. a), do NCPC). IV – A inobservância do referido em III é sancionada com a rejeição imediata do recurso na parte afectada. V - Se essa cominação se afigura indiscutível relativamente aos requisitos previstos no n.º1, dada a sua indispensabilidade, já quanto ao requisito previsto no n.º2, al. a), justifica-se alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão. VI - Se a falta de indicação exacta das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo tribunal, a rejeição do recurso, com este fundamento, afigura-se uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável” (o sublinhado é nosso).
A análise do cumprimento destes ónus (exigências legais) deve ser realizada, como explica António Abrantes Geraldes[8], à luz de um critério de rigor. Trata-se afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços que todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento da realização da justiça” (o sublinhado é nosso).
É um dado objectivo que, nas alegações de recurso, existe uma forte tendência para “combinar” e “misturar” a impugnação de facto com a impugnação de direito, sendo que muitas vezes são invocadas meras “opiniões” sobre o que foi dado como provado e/ou não provado, afirmando-se um entendimento distinto mas, mesmo assim, há conformação com uma parte da decisão que foi tomada, havendo efectiva impugnação relativamente a outra parte. Logo, e como resulta da alínea a) do nº1 do referido art. 640º, impõe-se que o recorrente, nas respetivas conclusões, indique concretamente quais são os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser dado como «assente» e/ou como «não assente», relevando e apresentando a sua pretensão de uma forma inequívoca e que permita separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da pretensão fundamentada quanto à alteração da matéria de facto.
O incumprimento de qualquer dos ónus supra indicados conduz à imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto (rejeição que será total ou parcial, consoante o incumprimento seja relativo a todo o âmbito da impugnação ou seja relativo apenas a uma parte da impugnação), não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões. Como resulta do disposto na alínea a) do nº1 do art. 652º do C.P.Civil de 2013, os poderes do relator, em matéria de convite ao aperfeiçoamento, estão inequivocamente limitados às situações previstas no nº3 do art. 639º do mesmo diploma legal , que não incluem incumprimento dos referidos ónus. Entre outros, refere-se aqui o Ac. do STJ de 25/03/2021[9], no qual se decidiu que “III - Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na alínea a) e c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões”[10].
Perante este entendimento, que se acolhe e se segue, atento o conteúdo quer da respectiva motivação/fundamentação quer das respectivas conclusões, afigura-se-nos que as alegações da Embargante/Recorrente cumprem, minimamente, todos os requisitos formais que a Lei prescreve.
Como decorre das conclusões 5ª a 11ª (em conformidade com o teor da motivação aduzida no «corpo alegatório»), a Embargante/Recorrente impugna o facto não provado c), pretendendo que parte da matéria nele contida seja eliminada da factualidade não provada e passe a integrar a factualidade provada («Após a missiva aludida em 7., a embargada não compareceu nas instalações, facto que se verifica até à presente data»), e impugna a falta de inclusão na factualidade provada da matéria consistente em «A Executada instaurou o processo executivo já depois de ter recebido interpelação por escrito enviada pela embargante, a fixar um prazo de dois dias para a entrega do veículo».
Por força do disposto no nº1 do art. 662º do C.P.Civil de 2013, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Como refere Abrantes Geraldes[11], “Com a redacção do art. 662º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo de correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos, e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência… fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia… sem embargo, das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que circunscrevem o objecto de recurso”.
A decisão de facto consiste que na apreciação que o Tribunal faz, em função da prova produzida, sobre os factos alegados pelas partes (ou oportuna e licitamente adquiridos no decurso da instrução) e que se mostrem relevantes para a resolução do litígio, pelo que tal decisão tem por objeto os juízos probatórios parcelares, positivos ou negativos, sobre cada um desses factos relevantes, embora com o alcance da respetiva fundamentação ou motivação. Neste quadro, no âmbito do recurso, a apreciação do erro de julgamento da decisão de facto está circunscrita aos pontos impugnados, mas em termos de latitude da investigação probatória, o Tribunal da Relação tem um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, como decorre do estatuído no referido art. 662º/1 do C.P.Civil de 2013, incluindo os mecanismos de renovação ou de produção dos novos meios de prova, nos exatos termos das alíneas a) e b) do nº2 do mesmo preceito, sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido: “… como é hoje jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal, a reapreciação da decisão de facto impugnada pelo tribunal de 2.ª instância não se limita à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a quo, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”[12].
Em jeito de resumo e conclusão, traz-se aqui à colação o Ac. do STJ de 04/10/2018[13], que define bem o “quadro” em que funciona a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação: “I. A apreciação da decisão de facto impugnada pelo Tribunal da Relação não visa um novo julgamento da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal de 1ª Instância com vista a corrigir eventuais erros da decisão. II. No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em primeira instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [ cfr. nº 2, als. a) e b) do artigo 662º do CPC], à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. III. O Tribunal da Relação, tal como decorre do preceituado nos artigos 5º, nº 2, alínea a), 640º, nº 2, alínea b) e 662º, nº1, todos do Código de Processo Civil, tem um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa e não está adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes nem aos indicados pelo Tribunal de 1ª Instância, apenas relevando o fator da imediação prevalecente em 1ª Instância quando o mesmo se traduza em razões objetivas. IV. Em sede de reapreciação da decisão de facto é conferido ao Tribunal da Relação o poder de se socorrer, mesmo oficiosamente, de todos os meios de prova constantes do processo bem como do uso a presunções judiciais, nos termos permitidos pelos artigos 349º e 351º, ambos do Código Civil” (os sublinhados são nossos).
Estatui o art. 607º/5 do C.P.Civil de 2013, que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, sendo que esta previsão resulta do disposto nos arts. 389º, 391º e 396º do C.Civil, respectivamente para a prova pericial, para a prova por inspecção e para a prova testemunhal. Porém, desta livre apreciação pelo juiz estão legalmente excluídos os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes - cfr. 2ªparte do nº5 do referido art. 607º.
Toda a prova tem que ser apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica: “… segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas[14].
A prova idónea (suficiente) alicerça-se num juízo de certeza (jurídica) e não um juízo de certeza material (absoluto): a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)… a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta,… A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto[15].
O juiz está vinculado a identificar quais os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção e a indicar as razões pelas quais, relativamente ao mesmo facto, concede maior credibilidade a um meio probatório em detrimento de outro de sinal oposto, sendo que este é caminho que evita que a «livre apreciação da prova» não se transforme numa «arbitrária apreciação da prova»: o “juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)”[16].
É inquestionável que, uma vez que é perante si que toda a prova é produzida, é o juiz da 1ªinstância quem se encontra na posição mais favorável e privilegiada para proceder à sua valoração, nomeadamente no que concerne especificamente à prova testemunhal: com efeito, atenta a respectiva imediação, o juiz da 1ªinstância está totalmente habilitado a dectetar no comportamento das testemunhas todos os elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos seus depoimentos, incluindo aqueles elementos frequentemente não transparecem da gravação (esta constitui apenas um registo «áudio», e não um registo «vídeo», pelo que não pode transmitir todo os comportamentos da testemunha que respeitam directamente às suas reacções que só observáveis através de imagem). Por conseguinte, a modificabilidade da matéria de facto só deverá ordenada quando, ao cumprir a supra referida incumbência de formar o seu próprio juízo probatório, o Tribunal da Relação conclua no sentido de que a prova produzida tem um sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida pelo Tribunal da 1ªInstância, ou seja, quando consiga alcançar um juízo certo e seguro de que existe erro de julgamento na matéria de facto[17]. Como explica Ana Luísa Geraldes[18], “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
Ainda a propósito da decisão da facto, importa ter presente que, conforme resulta do disposto no art. 607º/4 do C.P.Civil de 2013, o Tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, não envolvendo esta pronúncia aqueles pontos que contenham matéria conclusiva, irrelevante ou de direito. Como se decidiu no Ac. do STJ de 28/09/2017[19], “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos(o sublinhado é nosso).
Mas o mesmo STJ, através do seu aresto de 22/03/2018[20], sustenta que a inexistência no C.P.Civil de 2013 de um preceito como o do art. 646º/4 do antigo C.P.Civil (que titulava de “não escrita” as respostas do coletivo sobre questões de direito) “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui «matéria de facto» e «matéria de direito»”No que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961… A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961…”. Defende-se que, em face da modificação formal da produção de prova em audiência ter por objeto temas de prova e à opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja «matéria de direito» ou «matéria conclusiva» que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso... a patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como «matéria de facto provada» pura e inequívoca matéria de direito…”[21].
Perante esta divergência no STJ, afigura-se-nos relevante o “caminho” indicado pelo Ac. da RG de 11/11/2021[22]: “Não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir «factos provados» para esse efeito as afirmações que «numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido»… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a «assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto»…” (os sublinhados são nossos).
Prosseguindo este “caminho” (e sabendo-se que a linha divisória entre a matéria de facto e a matéria de direito não é fixa, dependendo em larga medida dos termos em que a lide se apresenta), afigura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor[23] e que é de acolher o ensinamento do Ac. da RP de 07/12/2018[24]: Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais” (o sublinhado é nosso)[25].
Frise-se que a questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado[26], e, por via disso, quando o recurso tem por objecto saber se um determinado facto julgado provado pelo tribunal contém ou não matéria conclusiva, ao abrigo dos seus poderes decisórios previstos no art. 662º do C.P.Civil de 2013, pode o Tribunal de Recurso, caso conclua afirmativamente, eliminá-lo do elenco dos factos provados[27]: como se refere no Ac. da RG de 30/09/2021[28], “Daí que a inclusão na fundamentação de facto constante da sentença de matéria de direito ou conclusiva configure uma deficiência da decisão, vício que é passível de ser conhecido, mesmo oficiosamente, pelo Tribunal da Relação, tal como decorre do artigo 662.º, n.º2, al. c), do CPC”.
Realizados estas considerações jurídicas, analisemos então «concretos pontos de facto» impugnados pela Embargante /Recorrente.

Quanto ao facto não provado c).
Na decisão recorrida, o Tribunal a quo formou o respectivo juízo da falta de demonstração probatória deste ponto de facto com base no seguinte: “As respostas negativas relativas aos restantes factos, e para além do que já ficou dito, deveram-se à ausência e/ou insuficiência de prova sobre os mesmos, nomeadamente, pericial, testemunhal ou documental, decidindo-se contra a parte onerada com o ónus probatório respectivo”.
Analisando os fundamentos invocados (nas respectivas motivação e conclusões) para a impugnação deste  matéria de facto e procedendo à reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal a quo sobre esta matéria (na qual, e mesmo apesar de não ter sido indicado qualquer depoimento nem qualquer declaração, de parte ou testemunhal, se procedeu à integral audição de todos os depoimentos/declarações prestados), este Tribunal ad quem forma, necessariamente, um juízo probatório no sentido de ficar parcialmente demonstrada a primeira parte da matéria aqui em causa, ou seja, a prova produzida permite formar uma convicção certa e segura no sentido de «após a missiva aludida em 7., a embargada não compareceu nas instalações» (frisando-se, desse já, para além de não ter sido sequer alegado, mostra-se totalmente irrelevante e inócua a inclusão do segmento indicado pela Embargante/Recorrente - «facto que se verifica até à presente data» -, acrescendo que esta nem sequer fundamentou e justificou tal inclusão, limitando-se pura a simplesmente a acrescentá-la).
Concretizando.
A Embargante começa por argumentar que «tendo o Tribunal julgado como provada a matéria constante dos factos nºs. 7 e 8, entrou em contradição quando julgou como não provado o facto c)». Trata-se de uma alegação de caracter absolutamente conclusivo, sendo que não foi concretizada qual a efectiva contradição. Ora, basta atentar no concreto teor das matérias em causa para se verificar que inexiste qualquer contradição já que os factos provados nºs. 7 e 8 respeitam a realidades completamente distintas da realidade contida no facto não provado c): aqueles dois factos incidem sobre as cartas (missivas) que a Embargante e a Embargada trocaram entre si nas datas de 14/12/2021 e de 21/12/2021, e sobre os respectivos conteúdos, enquanto este facto não provado incide sobre um contexto distinto e temporalmente posterior, respeitante a se, após a carta de 14/12/2021, a Embargada compareceu (ou não) nas instalações da Embargante e/ou deu (ou não) alguma justificação. Nestas circunstâncias, porque se tratam de realidades com contextos diversos, inexiste qualquer dependência, incompatibilidade e/ou oposição entre elas, pelo que, apesar de estar demonstrada a existência (e conteúdo) daquelas cartas, tem todo o cabimento lógico que, após as mesmas, a Embargada tanto possa ter comparecido como possa não ter comparecido nas instalações e/ou tanto possa ter apresentado justificação como possa não ter apresentado justificação. Assim, revela-se totalmente infundado este argumento.
De seguida, a Embargante argumenta que a demonstração probatória da matéria aqui em análise [facto não provada c)] resulta «Dos documentos referidos na sentença, e dos documentos juntos aos autos, especialmente do requerimento de prova junto aos autos – referencia citius ...59» (frise-se que eventual falta de ponderação de qualquer documento por parte do Tribunal a quo, poderá quando muito conduzir a um erro de julgamento, jamais podendo configurar uma nulidade como se invoca na conclusão 10ª).
Quanto aos documentos de fls. 11v a 12v dos autos, é inequívoco que não têm a mínima relevância probatória para a matéria em causa, já que correspondem a emails trocados entre os mandatários das partes e entre o mandatário da Embargante e esta, relativamente às custas de parte da acção declarativa. Portanto, respeitam a uma realidade que não têm conexão com a realidade em apreciação.
Já da conjugação do teor dos documentos de fls. 13/13v (carta datada de 21/12/2021 remetida pela Embargada à Embargante), de fls. 19v/20 (carta datada de 18/03/2022 remetida pela Embargante à Embargada), de fls. 26/26v (carta datada de 08/03/2022 remetida pela Embargada à Embargante), e de fls. 27v (carta datada de 06/04/2022 remetida pela Embargada à Embargante) dos autos (documentos estes que não foram impugnados), resulta que, após o sucedido no dia 13/12/2021 (cfr. factos provados nºs. 5 e 6) e a carta datada de 14/12/2021 (cfr. facto provado nº7), a Embargante sempre comunicou à Embargada que «caso esta pretendesse receber o veículo e pagar a indemnização e juros, sem imposição de condições (que não constam da sentença), devia informar da data e hora», o que releva uma vontade, clara e inequívoca, daquela em apenas comparecer nas instalações desta para entregar o veículo caso não fossem (voltassem a ser) feitas exigências da pagamento de quantias relativas ao estado da viatura (como ocorreu no dia 13/12/2021 e como constam da carta de 14/12/2021). Como não foi apresentada nos autos qualquer comunicação da Embargante à Embargada a alterar a sua posição de exigência relativas ao estado do veículo (não foi apresentada, e também não foi alegada a sua existência), exigência que está expressa na carta de 14/12/2021 (“a viatura deveria ser entregue… sem danos na carroçaria, chapa, pintura, vidros, grupo ótico, jantes, frisos, borrachas das portas e interior (designadamente ao nível de estofos) e que não resultem de uma utilização e desgaste normal, bem como com pneus com piso que respeite o mínimo legal de desgaste…”) e que não foi expressamente “eliminada/dispensada” na carta de 08/03/2022 (e nesta carta até se acrescenta nova exigência - «informamos que, contra o comprovativo da desistência da instância por parte de V. Exa e levantamento da penhora… estamos, como sempre estivemos à sua disposição para receber, em dia e hora que indique e seja da sua conveniência, a viatura»), mostra-se lógico, adequado e coerente (até perante as regras da experiência comum) que a Embargante não tenha (voltado) a comparecer nas instalações da Embargada para proceder à entrega do veículo (aliás, frise-se que esta não alegou que o tivesse feito).
Porém, da conjugação do teor dos referidos documentos (fls. 13/13v, fls. 26/26v, e fls. 27v dos autos), também decorre, clara e inequivocamente, que “tal falta de comparência” não foi “injustificada”: como supra já se referiu, a Embargante comunicou sempre à Embargada que «caso esta pretendesse receber o veículo e pagar a indemnização e juros, sem imposição de condições (que não constam da sentença), devia informar da data e hora», o que demonstra que aquela apresentou sempre uma justificação (aliás, a mesma). Logo, estes documentos comprovam, inquestionavelmente, a verificação de uma realidade contrária à alegada «pura e simples ausência de justificação», mas não provada [cfr. segunda parte do facto não provado c)], que, aliás, não foi objecto de impugnação no presente recurso.   
O legal representante da Embargante (quer no depoimento parte quer nas declarações de parte) e as testemunhas BB, CC e DD não se pronunciaram concretamente sobre esta matéria (aliás, também não foram questionadas sobre a mesma, sendo que apenas a testemunha BB afirmou que «nunca mais teve nenhum contacto com a cliente»). Portanto, não decorre daqui qualquer elemento probatório em sentido contrário e/ou que afecte a credibilidade dos referidos documentos de fls.  13/13v, fls. 19v/20, fls. 26/26v, e fls. 27v dos autos.
E nenhuma outra prova foi produzida sobre esta matéria

Nestas circunstâncias, e perante estes “elementos probatórios”, impõe-se efectivamente a formulação de um juízo probatório distinto do realizado pelo Tribunal a quo, ocorrendo um erro de julgamento quanto a este ponto de facto concretamente impugnado, pelo que a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida deve ser alterada nos seguintes termos:
- é aditado um facto provado nº12 com o seguinte teor: «Após a missiva aludida em 7., a embargada não compareceu nas instalações»;
- e o facto não provado c) passa a ter o seguinte conteúdo - «A embargada não deu qualquer justificação para a não comparência aludida em 12)».

Faz-se aqui a seguinte nota: ao contrário do alegado pela Embargada/Recorrida em sede de contra-alegações, inexiste qualquer contradição entre o teor daquele novo facto provado nº12 e o teor do facto provado nº8: com efeito, a missiva/carta que integra este facto não impede que aquela não tenha voltado a comparecer nas instalações, e até indicia que tal não iria acontecer, uma vez que, nessa missiva/carta, até se justifica a «não comparência» em razão das condições que a Embargante/Recorrente insistia em continuar a impor. 
Quanto à inclusão da matéria «A Executada instaurou o processo executivo já depois de ter recebido interpelação por escrito enviada pela embargante, a fixar um prazo de dois dias para a entrega do veículo».
Não assiste qualquer razão à Embargante/Recorrente na presente pretensão porque tal matéria não consubstancia um verdadeiro facto, configurando sim e apenas uma conclusão, a qual pode e deve ser extraída pelo Tribunal a partir do elemento objectivo da data da instauração da execução e da data da carta que se encontra demonstrada no âmbito do facto provado nº7 (ou seja, carta datada de 14/12/2021).
E, como supra se explicou, as formulações absolutamente conclusivas não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos nºs. 3 e 4 do art 607º do C.P.Civil de 2013.
Mais acresce que é precisamente em tal conclusão («tendo sido fixado um prazo de dois dias para entrega do veiculo, a Embargada não compareceu nas instalações, e instaurou a presente execução») que a Embargante/Recorrente fundamenta a sua alegação jurídica de «insuficiência do titulo e sua inexequibilidade porque inexiste incumprimento da executada», pelo que está diretamente relacionada com o thema decidendum e, por isso, não pode integrar a matéria de facto.
Nestas circunstâncias, inexiste qualquer erro de julgamento quanto este ponto de facto concretamente impugnado.
Consequentemente, conclui-se que deve ser alterada a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida nos termos supra assinalados, pela existência de um erro de julgamento quanto a um dos pontos de facto concretamente impugnados no presente recurso, e, por via disso, esta parte da pretensão recursória da Embargante/Recorrente procede parcialmente.
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4.2. Da Inexequibilidade e/ou da Inexigibilidade

A acção executiva pressupõe sempre o dever de realização de uma prestação, de uma obrigação e tem por finalidade a reparação efectiva de um direito violado - arts. 2º/2 e 10º/4 do C.P.Civil de 2013.
E, nos termos do nº5 do referido art. 10º do C.P.Civil de 2013, “toda a execução tem por base um título executivo, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva”.

Segundo Miguel Teixeira de Sousa[29], «o título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização coactiva da correspondente prestação, através de uma acção executiva. Esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar no património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação. E nas palavras de Remédio Marques[30], o título executivo «trata-se de um documento a que, com base na aparência ou na probabilidade do direito nele documentado, o ordenamento jurídico assinala um suficiente grau de certeza e de idoneidade para constitui uma condição de exequibilidade extrínseca da pretensão».
O prosseguimento da acção executiva depende da verificação de dois pressupostos: um pressuposto formal, constituído pelo título executivo (art. 10º do C.P.Civil de 2013) e um pressuposto material, constituído por uma obrigação certa, exigível e líquida (art. 713º do C.P.Civil de 2013).
Importa notar que o título executivo judicial ou extra-judicial não dá ao Tribunal a certeza absoluta da existência do direito, mas tão somente a probabilidade séria da sua existência. Como salienta Pessoa Jorge[31], «só há certeza jurídica de que o direito existe no momento em que o título é emitido; no momento em que o credor pretende desencadear as actuações coercivas, a existência do direito é hipotética».
É, por isso, que a defesa dos direitos do executado pode sempre exercitar-se através do meio de oposição previsto no art. 728º do C.P.Civil de 2013 - embargos de executado -, na qual o executado exerce a sua defesa na execução, com base num fundamento processual ou material.
A oposição à execução mediante embargos de executado consubstancia uma acção declarativa, estruturalmente autónoma, mas instrumental e funcionalmente dependente e ligada à acção executiva, pela qual o executado pretende impedir a produção dos efeitos do título executivo. Os embargos de executado apresentam-se como que uma contra-acção que visa o acertamento da situação substantiva, da obrigação exequenda, ou destruindo o título executivo ou reduzindo-o aos seus justos limites: «O credor só pode dar início à acção executiva desde que tenha título executivo. Este é a condição necessária (sem título executivo não há execução) e suficiente (apresentado a juízo seguem-se de imediato os demais termos da execução) da acção executiva... A lei atendendo ao interesse do credor na realização rápida e eficaz do seu crédito, conferiu força executiva a documentos autênticos... Ao interesse do credor em ver o seu direito satisfeito com celeridade contrapõe-se o do devedor em não ver o seu património envolvido na execução sem que o direito do credor portador do título esteja devidamente comprovado, corresponda à verdade. A lei não podia deixar de tomar em consideração como tomou, a contraposição de interesses do credor e do devedor, do exequente e do executado, tentando conciliar, na medida do razoável, o interesse do credor que exige que a execução seja pronta, com o interesse do devedor, que exige que a execução seja justa. A conciliação destes interesses faz-se concedendo a lei ao devedor a faculdade de debater a relação jurídica material, entre ele e o pretenso credor formada, numa acção de oposição enxertada pelo devedor na acção executiva - os embargos de executado»[32]. E, como se sustenta no Ac. do STJ de 25/03/2004[33], “Os embargos de executado ou a oposição à execução assumem a estrutura de contra acção declarativa tendente a obstar aos efeitos da execução por via da afectação dos efeitos normais do título executivo, em que o executado pode invocar factos de impugnação ou de excepção, regendo-se o ónus de prova pelo disposto no artigo 342º do Código Civil”.
Apesar da sua função de defesa, é o tipo de título executivo que determina a maior ou menor amplitude dos fundamentos que o executado pode invocar na petição embargos: quando esse título for constituído por uma sentença, a oposição apenas se pode alicerçar nos fundamentos discriminados no art. 729º do C.P.Civil de 2013 [sendo que, a petição aproximar-se-á, nuns casos, do recurso de revisão por ilegalidade - por exemplo, no caso previsto na alínea d) -, e, noutros casos, das acções de reabertura de contraditório por factos supervenientes - por exemplo, no caso previsto na alínea g)], mas quando a execução for baseada noutro título, atento o disposto no art. 731º do mesmo diploma legal, para além daqueles que constam do art. 729º, o executado pode alegar quaisquer outros fundamentos que possam ser invocados como defesa no processo de declaração (a petição de embargos aproximar-se-á de uma contestação, com conteúdo impugnatório e dedução de excepções).
No caso em apreço, no requerimento executivo, a Exequente/Embargada indicou, como título executivo, a sentença judicial proferida em 22/10/2020 (nos autos principais) que julgou a acção parcialmente procedente e decidiu «a) Declarar resolvido o contrato de compra e venda relativo veículo automóvel, da marca ..., modelo ..., 1.6 diesel, 120cv, com a matrícula ..-QP-.., celebrado entre a Autora, ora exequente, e a Ré T... - AUTOMÓVEIS, Ldª; ora executada; b) Condenar a Ré T... - AUTOMÓVEIS, Ldª, ora executada, a restituir à Autora, ora exequente, o valor pago pela compra do referido veículo, no montante de €26.750,00 (vinte e seis mil, setecentos e cinquenta euros), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento; c) Condenar, solidariamente, a Ré T... - AUTOMÓVEIS, Ldª e a chamada S..., S.A. a pagar à Autora a quantia de €1.000,00 (mil euros), devida a título de indemnização por danos não patrimoniais», sentença esta que veio a ser confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 14/10/2021, já transitado em julgado (cfr. factos provados nºs. 1 e 2).
Nos termos do art. 703º do C.P.Civil de 2013 (na parte que aqui releva), “1 - À execução apenas podem servir de base: a) As sentenças condenatórias…”.
Este preceito deve ser interpretado no sentido de que a sentença condenatória que constitui título executivo é qualquer decisão judicial proferida no decurso de processo que contenha, no decisório, pelo menos um segmento de condenação.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[34], «Numa primeira leitura, a expressão sentenças condenatórias leva a supor que apenas abarca as decisões de mérito, total ou parcialmente favoráveis ao autor (ou ao reconvinte), proferidas no âmbito de ações declarativas de condenação definidas pelo art. 10º, n°3, al. b). Todavia, uma análise mais profunda do preceito, também na sua vertente histórica e racional, permite a inclusão de quaisquer outras decisões que tenham um carácter injuntivo ou das quais resulte alguma imposição a que o réu (ou reconvindo) fique adstrito. Aliás, raramente as ações declarativas se apresentam com um figurino exclusivamente condenatório, tendo frequentemente associadas outras pretensões, em acumulação real ou aparente (…) Também se inserem no mesmo segmento normativo as decisões que, independentemente da natureza e do objeto da ação, imponham ao destinatário visado uma obrigação (em geral de natureza pecuniária), o mesmo sucedendo com os despachos judiciais e as decisões arbitrais, conforme estabelece o art. 705° (…). A doutrina e a jurisprudência maioritárias vêm assumindo a exequibilidade das sentenças constitutivas de que resulte implicitamente a imposição de uma obrigação de entrega de coisa certa (…). Assim o defendiam Alberto dos Reis (CPC anot., vol. I, p. 152 e Processo de Execução, vol. I, p. 128) e Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, pp. 112 e 13 e Ação Executiva, p. 16), seguindo a linha de que a sentença podia constituir titulo suficiente para iniciar o correspondente processo executivo, desde que contivesse implícita aquela obrigação, nomeadamente na ação para exercício do direito de preterência ou na ação de divisão de coisa comum. No mesmo sentido Lopes Cardoso, defendendo que bastava que ficasse declarada ou constituída a obrigação para ser viável a instauração de processo de execução (Manual da Ação Executiva, p. 43). Também Teixeira de Sousa defende a exequibilidade das sentenças constitutivas que “contenham de forma implícita um dever de cumprimento”, o que, em seu entender, se verifica quando o pedido de condenação, “se tivesse sido cumulado com o pedido de mera apreciação ou  constitutivo”, formasse com este uma “cumulação aparente”, por se referir à mesma realidade económica (Ação Executiva Singular, op. 75). Outrossim Abrantes Geraldes, “Títulos executivos”, Themis nº, pp. 56-60. O mesmo caminho vem trilhando a jurisprudėncia: cf. STJ 18-3-97, CJ, t I, p. 160, segundo o qual "a sentença proferida em ação de preferência, apesar de constitutiva, constitui titulo executivo para obter a entrega de coisa certa"; no mesmo sentido STJ 8-1-15, I17-B/1999, STJ 27-5-99 99B269, RG 11-2-21, 26/18 e RP 13-5-99, CJ, t. I11, p. 187. Foi nesta base que, em STJ 13-5-21, 2215/16, se decidiu atribuir força executiva a sentença proferida em ação de impugnação pauliana e em RP T0-3-22, 2637/04, a sentença homologatória d partilha em processo de inventario».
 Nesta linha de entendimento, decidiu-se no Ac. do STJ de 18/11/2004[35], “I - A sentença constitui título executivo na medida em que contenha formalmente uma condenação, impondo expressa ou tacitamente determinada responsabilidade, independentemente de o seu conteúdo essencial ser declarativo ou constitutivo. É, assim, condenatória na acepção da alínea a) do artigo 46º do Código de Processo Civil, por outras palavras, toda a sentença que, reconhecendo ou prevenindo o inadimplemento de uma obrigação, cuja existência certifica ou declara, determina o cumprimento desta mediante uma ordem de prestação (Leistungsbefehl)”.
Também no Ac. desta RG, proferido em 28/05/2020[36] se sustenta que “I- À excepção das sentenças proferidas em acções de simples apreciação, nas quais o tribunal se limita a apreciar e declarar a existência ou a inexistência de um direito ou de um facto jurídico, são títulos executivos tanto as sentenças proferidas numa acção declarativa de condenação como as proferidas em acções declarativas constitutivas, desde que, quanto a estas, a sentença proferida contenha, explícita ou implicitamente, uma componente condenatória”, explicando-se: “Crê-se ser agora entendimento pacífico o de que, à excepção das sentenças proferidas em acções de simples apreciação, nas quais o tribunal se limita a apreciar e declarar a existência ou a inexistência de um direito ou de um facto jurídico, são títulos executivos tanto as sentenças proferidas numa acção declarativa de condenação como as proferidas em acções declarativas constitutivas, desde que, quanto a estas, a sentença proferida contenha, explícita ou implicitamente, uma componente condenatória - cfr., por todos, o Acórdão do S.T.J. de 25/05/1999 (…). Com efeito, tendo as acções constitutivas por objecto a autorização de uma mudança na ordem jurídica existente, constituindo, modificando ou extinguindo uma relação jurídica, em princípio, o efeito útil da sentença produz-se automaticamente. Todavia, como observa MARCO CARVALHO GONÇALVES, «estas sentenças podem encerrar igualmente uma componente condenatória, pelo que esse concreto segmento da sentença é susceptível de execução», como sucede «com a obrigação de entrega de uma coisa por força da anulação ou resolução de um contrato…» (…) Seguindo na mesma linha do entendimento que já havia fixado no então Assento n.º 4/95, de 28/03/1995 (in D.R. n.º 114, I Série – A, de 17/05/1995) o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2018, proferido com a data de 12/12/2017 (in D.R. n.º 35, I Série, de 19/02/2018), consagrou o entendimento de que «O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º1, alínea, c), do Código de Processo Civil de 1961 (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º329-A/95, de 12 de Dezembro), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado» (…)”.
Relativamente às sentenças condenatórias, o art. 704º/1 do C.P.Civil de 2013 prescreve que “A sentença só constitui título executivo depois do trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo”.
Neste preceito estabelece-se a regra de que só é exequível a sentença condenatória transitada em julgado, regra que conhece uma única excepção: a sentença condenatória pendente de recurso com efeito meramente devolutivo. E daqui decorre que, perante uma sentença condenatória, antes de apresentar o requerimento executivo, o respectivo exequente tem de aguardar pelo termo do prazo para a interposição do recurso ou, não se verificando o trânsito findo esse prazo por ter sido interposto recurso, deve aguardar pelo despacho sobre o requerimento de interposição do recurso, uma vez que é neste despacho que é fixado o respectivo efeito do recurso[37] («devolutivo», caso em que a sentença pode ser executada, ou «suspensivo», caso em que a sentença não pode ser executada).

No caso em apreço, embora tenha uma natureza constitutiva (no segmento em que declara resolvido o contrato de compra e venda de veículo automóvel que havia sido celebrado entre a Embargada/Exequente e a Embargante/Executada), a sentença dada à execução tem, também e inequivocamente, uma natureza condenatória nos segmentos em que determinou a «condenação da Embargante/Executada a restituir à Embargada/Exequente, o valor pago pela compra do veículo, no montante de €26.750,00, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos» e a condenação «solidária, da Embargante/Executada e da chamada a pagarem à Embargada/Exequente a quantia de €1.000,00, devida a título de indemnização por danos não patrimoniais». Portanto, estes segmentos decisórios impõem duas obrigações (dois deveres de cumprimento) à Embargante que devem ser cumpridas perante a Embargada através de uma prestação de restituição e de pagamento.  
E, uma vez que transitou em julgado, conclui-se, sem margem para dúvidas, que a sentença dada à execução constitui título executivo, ao abrigo do disposto nos arts. 703º/1a) e 704º do C.P.Civil de 2013.
No caso em apreço, a Embargante/Recorrente deduziu, aparentemente, três fundamentos dos embargos - «inexequibilidade do título, inexigibilidade da obrigação, e insuficiência do título» -, mas se baseiam-se exactamente nas mesmas razões de facto e de direito: «a decisão/sentença dada à execução pressupunha uma prestação simultânea, a entrega do veículo pela exequente à executada com o pagamento por esta àquela da quantia em que foi condenada; desde Outubro de 2021, a executada sempre solicitou a definição de uma data para entrega do veiculo, o que até hoje não ocorreu mantendo-se o mesmo na posse da exequente; a executada interpelou por escrito no dia 16 de Dezembro a exequente e fixou um prazo de dois dias para entrega do veiculo contra o pagamento que de imediato efectuaria, mas esta não compareceu nas instalações, não deu qualquer justificação, e instaurou a presente execução; inexiste incumprimento da executada, sendo o incumprimento da exequente».
Na sentença ora recorrida, o Tribunal a quo considerou que:
“(…) constata-se que no título dado à execução (sentença) não se evidencia, de todo, que a obrigação de entrega do veículo tenha sido condicionada ao pagamento de qualquer valor para fazer face à deterioração ou ao uso do bem.
Antes pelo contrário, no acórdão proferido pelo STJ, mais concretamente na pg. 25, consideramos ter ficado inteiramente estabelecido que no caso concreto corria por conta do vendedor (embargante) o risco inerente à deterioração ou ao uso do bem até à sua restituição.
De todo o modo, provou-se que o estofo do veículo está “coçado” pelo uso. Situação que a nosso ver resulta claramente do uso/desgaste normal do bem.
Em termos gerais, quando a lei alude a “deteriorações” (do latim, deter= pior), refere-se, em primeira mão, àquelas que são provocadas por comportamento negligente, culposo, no fundo aquele que é desconforme com o padrão do bom pai de família. O que, desde logo, faz ressalvar aquelas que são decorrentes da simples usura do tempo ou vetustez.
Nesta medida, à embargada não cumpre reparar esta deterioração inerente a uma prudente utilização em conformidade com o fim a que se destina o veículo.
Ademais, a embargante ao ter recusado, sem motivo justificado, a prestação que a embargada ofereceu em 13/12/2021, incorre em mora (art. 813º, do CC).
Em suma, posto que a sentença dada à execução transitou em julgado e é liquida, constitui título executivo (art. 703º, nº 1, al. a) do CPC)”.
Em sede de recurso, a Embargante/Recorrente volta a defender a inexequibilidade do título e inexigibilidade da obrigação, mas com base na mesma fundamentação, defendendo, essencialmente, que: «a decisão que se executa pressupunha uma prestação simultânea da parte da Exequente - a entrega do veiculo à ora Executada - e com o cabal e pontual cumprimento desta entrega, o pagamento pela embargante da quantia em que foi condenada; a embargada deu entrada à presente execução pese no dia 16 de Dezembro de 2021, pelas 16 horas tenha recebido e assinado uma carta registada com aviso de recepçao enviada pela ora Embargante, na qual interpelou expressamente a Embargada para no prazo máximo de dois dias após a recepção da mesma proceder, mediante agendamento, à entrega da viatura mais informando que, no acto, efetuaria o pagamento da quantia devida; não tendo entregue a viatura e sendo as prestações simultâneas, não poderia a exequente exigir o pagamento, ademais porque estava em cumprimento do prazo que lhe foi concedido; existe uma efectiva situação de cumprimento de obrigação simultânea da prestação pecuniária que lhe foi reconhecida, contra a entrega do bem, e tanto bastará para reconhecer que estamos perante uma obrigação condicional e dependente de prestação a efectuar pela Exequente, donde a aplicação da excepção de não cumprimento e do regime previsto nos art.º 715º do Código de Processo Civil; não havendo a necessária actuação colaborante por parte da Exequente, tendo-se já aprestado a devedora a cumprir, remetendo para o efeito, uma carta com a/r, endereçada para a morada por estes disponibilizada nos autos, temos que a mora ou atraso no cumprimento da obrigação de entrega não é da Executada, mas da Exequente» - cfr. conclusões 14ª a 28ª.
Cumpre dizer, desde já, que não assiste razão à Embargante/Recorrente. Concretizando.
Em primeiro lugar, quer em sede de embargos, que em sede de recurso, a Embargante/Recorrente olvida, por completo (mas de forma que lhe é conveniente), que o ponto c) do decisório impõe-lhe (condena-a) o pagamento à Embargada da quantia de € 1.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais. Configura, portanto, uma condenação na prestação de uma obrigação pecuniária, que não tem qualquer conexão com as obrigações de restituição (a cumprir em simultâneo) que resultam do regime dos efeitos da resolução do contrato [a quem dizem respeito os pontos a) e b) do decisório], decorrente do regime consagrado nos arts. 432º e 433º que remetem para os arts. 289º e 290º, todos do C.Civil (saliente-se que na sentença recorrida também não foi ponderada a natureza distinta desta obrigação).
Como a pretensão de embargos e a própria pretensão recursiva alicerçam, os invocados vícios da inexequibilidade e inexigibilidade, apenas e tão só na alegação de que as obrigações de restituição, resultantes da resolução do contrato, têm que ser cumpridas em simultâneo e a Embargada incumpriu a sua obrigação de restituição do veículo, conclui-se que a Embargante/Recorrente não deduziu qualquer fundamento concreto quanto ao segmento condenatório da sentença dada à execução em que se impôs aquela obrigação de indemnização: com efeito, não integrando uma obrigação de restituição decorrente da resolução do contrato, os invocados vícios de inexequibilidade e inexigibilidade, nos termos em que foram efectivamente alegados, não afectam nem abrangem esta obrigação de indemnização, mais acrescendo que não foi invocado qualquer outro vício (fundamento de embargos) quanto a este segmento condenatório da sentença em causa.
Por conseguinte, no que concerne à condenação da Embargante/Recorrente na obrigação de indemnização que integra o ponto c) do decisório, a sentença dada à execução constitui título executivo, não padecendo dos invocados vícios (fundamentos de embargos) de inexequibilidade e inexigibilidade e, por via disso, os embargos de executado, e o presente recurso, sempre teriam que improceder, por absoluta falta de fundamento, quanto a esta condenação.
Em segundo lugar, a factualidade provada (e mesmo apesar da alteração da decisão de facto) comprova que foi a Embargante/Recorrente (e não a Embargada) quem recusou, injustificadamente, o cumprimento simultâneo das obrigações de restituição (do veículo e do preço), e quem, por essa razão, se encontra em mora (como bem se entendeu na sentença recorrida).
Ao contrário do que a Embargante/Recorrente faz crer em sede de alegações e de conclusões, na sentença dada à execução não consta expressamente um segmento condenatório da Embargada na obrigação de restituir àquela o veículo.
Porém, como do segmento constitutivo dessa sentença consta expressamente a declaração de resolução do contrato de compra e venda de veículo automóvel que havia sido celebrado entre a Embargada/Exequente e a Embargante/Executada [cfr. ponto a) do decisório], e como resulta do disposto nos arts. 432º, 433º, e 289º do C.Civil que a resolução do contrato é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, então temos que entender que, por força daquela declaração de resolução do contrato, no caso concreto da sentença dada à execução, resulta implicitamente a imposição de uma obrigação de entrega de coisa certa, no caso, a restituição do veículo (já que a restituição do preço foi expressamente declarada na decisão).      
Por força do disposto no art. 290º do C.Civil, as obrigações recíprocas de restituição “devem ser cumpridas simultaneamente, sendo extensivas ao caso, na parte aplicável, as normas relativas à excepção de não cumprimento do contrato”.
Relativamente às obrigações condicionais ou cuja exigibilidade dependa do oferecimento da contraprestação, os termos iniciais da acção executiva dependem necessariamente do circunstancialismo que resulta do próprio título executivo e/ou da concreta situação de situação de facto que se verificar[38] mas, como resulta do disposto no nº1 do art. 715º do C.P.Civil de 2013, incumbe ao credor (exequente) alegar os factos e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que se verificou a condição ou que efetuou ou ofereceu a prestação.
E como mais decorre dos nºs. 2 a 4 do aludido art. 715º, a actividade probatória complementar ao título executivo apresentado varia em função dos meios de prova de que o credor (exequente) disponha, sendo que compete ao juiz apreciar se as provas oferecidas convencem da verificação da condição ou da exigibilidade da obrigação.
Certo é que, como referem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo[39], “A oposição à alegação de que a condição se verificou ou que o oferecimento da prestação teve lugar, terá de ser rebatida pelo executado em sede de oposição à execução (rectius, embargos de executado). Ou seja, o executado terá de reunir a defesa, quer quanto a questão da alegada verificação da condição, quer quanto invocado oferecimento da prestação pelo credor, quer ainda quanto aos demais fundamentos que possa apresentar relativamente à obrigação exequenda - pense-se nos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda. Aliás, como se infere claramente do n.º5, a contestação do executado, neste domínio, apenas pode ter lugar em sede de oposição à execução, isto é, em embargos de executado. Reflexo, pois, da preocupação do legislador em concentrar a defesa do executado num só momento, com todo o ganho de economia processual que essa opção propícia (vide artigo 130.º)”.
Como decorre dos autos de execução, a Exequente/Embargada instaurou o requerimento executivo sob a forma de processo sumário («Exec Sentença próprios autos (Ag. Exec) s/ Desp Liminar»), e não sob a forma de processo ordinário, apesar do disposto na alínea a) do nº3 do art. 550º do C.P.Civil de 2013. Porém, como esta questão não foi suscitada nem objecto de apreciação nem na execução nem nos embargos de executado, não cabe a este Tribunal ad quem tomar posição sobre a mesma.
Analisando o teor do requerimento executivo, verifica-se que a Exequente/Embargada, para além do mais, alegou concretamente factos com vista a demonstrar que ofereceu à Executada/Embargante a prestação a que estava obrigada (restituição/entrega do veículo) e que esta a impediu, injustificadamente, de realizar tal prestação:
“(…) 3º Na sequência de tal decisão, a Autora, ora exequente, agendou, com a Ré, ora executada, a entrega do veículo automóvel, da marca ..., modelo ..., 1.6 diesel, 120cv, com a matrícula ..-QP-.., nas instalações desta, para o dia 13 de Dezembro de 2021, pelas 17:00, por contrapartida do pagamento da indemnização que lhe foi arbitrada, que calculou no montante de 31.270,61€, da seguinte forma: 26.750,00€ a título de capital, 1.000,00€ a título de danos não patrimoniais, 3.476,77€ pelos juros do capital e 43,84€ pelos juros dos danos não patrimoniais.
4ª A Ré, ora executada, concordou com o valor da indemnização calculado pela exequente, tendo-se assim, comprometido a pagar a quantia de 31.270,61€ no dia e hora da entrega do referido veículo, mais concretamente, no dia 13 de Dezembro de 2021, pelas 17:00.
5º Sucede que, quando a Autora, ora exequente, chegou às instalações da Ré, ora executada, no dia e hora acordados (13 de Dezembro de 2021 pelas 17:00), esta após observar o referido veículo, alegou que não o receberia sem o pagamento da quantia de cerca 600,00€ para reparar o suposto desgaste que o estofo do banco do condutor apresentava e 180,00€ para substituir dois pneus do veículo, que supostamente estariam inaptos para circular.
(…)
8º Ora, tal condição para pagamento da indemnização devida à A., ora exequente, não está prevista na sentença proferida por este Tribunal e confirmada por Ac. do STJ, não sendo mais do que um outro obstáculo criado pela Ré, ora executada, para impedir aquela de entregar o veículo, e receber o respetivo pagamento a que tem direito (…)”.
Ora, considerando a factualidade provada, conclui-se que a Exequente/Embargada logrou demonstrar, tal como lhe incumbia, aqueles factos alegados:
- A embargada, agendou, com a embargante, a entrega do referido veículo, nas instalações desta, para o dia 13 de Dezembro de 2021, pelas 17:00, por contrapartida do pagamento da indemnização que lhe foi arbitrada, que calculou no montante de 31.270,61€, da seguinte forma: 26.750,00€ a título de capital, 1.000,00€ a título de danos não patrimoniais, 3.476,77€ pelos juros do capital e 43,84€ pelos juros dos danos não patrimoniais;
- A embargante concordou com o valor da indemnização calculado pela embargada, tendo-se assim, comprometido a pagar a quantia de 31.270,61€, no dia e hora da entrega do referido veículo, mais concretamente, no dia 13 de Dezembro de 2021, pelas 17:00, através de transferência bancária para a conta titulada pela embargada na Banco 1...;
- Quando a embargada, chegou às instalações da embargante, no dia e hora acordados (13 de Dezembro de 2021 pelas 17:00), esta após observar o referido veículo, alegou que não o receberia sem o pagamento da quantia de 600,00€ para reparar o desgaste que o estofo do banco do condutor apresentava e 180,00€ para substituir dois pneus do veículo;
- E, face à não-aceitação de pagar tal montante de 780,00€, a Embargada recusou-se a entregar o veículo e a Embargada a pagar a indemnização que lhe era devida (cfr. factos provados nºs. 3 a 5 e 11).
Este manancial factual comprova, inequivocamente, que as partes acordaram dia e hora para a prestação simultânea das respectivas obrigações de restituição decorrentes da declaração de resolução do contrato (entrega do veículo e entrega do valor do preço, acrescido do valor dos juros de mora, que igualmente acordaram) e que, no dia acordado, a Embargante/Recorrente exigiu, para receber o veículo, que a Embagada lhe pagasse a quantia de 600,00€ para reparar o desgaste que o estofo do banco do condutor apresentava e 180,00€ para substituir dois pneus do veículo.
Estas condições impostas pela Embargante/Recorrente para receber o veículo não tem fundamento nem no título executivo nem na lei: com efeito, por um lado, a sentença dada à execução não impôs à Embargada qualquer obrigação de pagamento relativamente à desvalorização pelo uso do veículo e/ou à sua deterioração (como bem se refere na sentença recorrida), frisando-se que, na respectiva acção declarativa, a Embargante/Recorrente não deduziu (como devia ter deduzido) qualquer pedido reconvencional nesse sentido; por outro lado, no acórdão do STJ que confirmou a sentença dada à execução, sem prejuízo de a qualificar como uma questão nova, acabou mesmo por apreciar e entender que “4.6 Nas circunstâncias do caso, deve , pois, ser adotada a solução que determina para o vendedor o risco inerente à deterioração ou ao uso do bem até à sua restituição, pois de outro modo poderia dar-se o efeito paradoxal de quanto mais longa fosse a demora na atuação da R. ou na estabilização da decisão que reconheceu o direito de resolução, menor seria o quantitativo a pagar à A., com tendência para a sua completa anulação”, pelo que o risco inerente à deterioração e/ou ao uso do veículo corria (e corre) por conta da Embargante/Recorrente, a vendedora (como igualmente bem se refere na sentença recorrida); e, por fim, do regime do art. 290º do C.Civil determina, apenas e tão só,  a restituição de tudo o que tiver sido prestado, não determinado qualquer redução da prestação em caso de desvalorização do bem decorrente do seu uso ou da sua deterioração. Em resumo, com a imposição de tais condições a Embargante/Recorrente mais não fez do que «tentar obter» um direito sobre a Embargada que não lhe foi reconhecido por decisão judicial (nem pela sentença dada à execução nem por qualquer outra). 
Deste modo, tendo a Embargada (devedora) oferecido à Embargante/Recorrente (credora) a prestação a que estava judicial (e legalmente) obrigada (entrega/restituição do veículo) mas tendo esta recusado receber o veículo porque exigiu que aquela cumprisse condições (pagamentos) que não têm fundamento na sentença dada à execução (e nem na lei), verifica-se que a Embargante/Recorrente não aceitou, sem motivo justificado, a prestação que lhe é oferecida nos termos legais e, por via disso, incorreu em mora creditoris (cfr. art. 813º do C.Civil) a partir da data de 13/12/2021.
Acresce que, tendo recusado injustificadamente o recebimento do veículo no preciso momento em que havia acordado com a Embargada a prestação simultânea das obrigações de restituição, e não tendo procedido à restituição (pagamento) do valor do preço e dos juros de mora (valores que também foram acordados), mais se verifica que a Embargante/Recorrente igualmente incorreu em mora debitoris (também a partir da data de 13/12/2021) quanto ao cumprimento da prestação estava judicial (e legalmente) obrigada (restituição do valor pago pela compra, e juros de mora).
Neste “quadro”, encontrando-se em mora creditoris quanto à aceitação do cumprimento da obrigação de restituição do veículo que lhe foi oferecido pela Embargada e em mora debitoris quanto ao cumprimento da sua obrigação de restituição do preço, conclui-se quer que a Embargada demonstrou ter oferecido a prestação (tal como exige o disposto no art. 715º/1 do C.P.Civil de 2013), quer que a Embargante/Recorrente impediu culposamente o cumprimento simultâneo obrigações recíprocas de restituição (previsto no art. 290º do C.Civil). Daqui resulta que deixou de lhe assistir qualquer direito a invocar a «simultaneidade de cumprimento das prestações», carecendo manifestamente de fundamento legal a sua alegação (quer em sede de embargos, quer em sede de recurso) de que «existe uma efectiva situação de cumprimento de obrigação simultânea da prestação pecuniária que lhe foi reconhecida, contra a entrega do bem». E obviamente que muito menos lhe assiste qualquer direito de invocar, e opor à Embargada, a excepção do não cumprimento do contrato consagrada no art. 428º do C.Civil (ao contrário do que defende em sede de recurso).
Nestas circunstâncias, mais se conclui que, para além de constituir título executivo, perante o supra identificado incumprimento moratório (quer como credor, quer como devedor) do Embargante/Recorrente, à data da interposição do requerimento executivo (21/12/2021, como resulta dos autos de execução), a sentença dada à execução era exequível (também) quanto ao segmento condenatório que integra o ponto d) do decisório, consistente no direito da Embargada a ser restituída por aquela do valor do preço de compra (e juros de mora), sendo que a correspectiva obrigação da Embargante/Recorrente (restituir o valor do preço de compra) igualmente se mostrava exigível e, por via disso, não se verificam os vícios/fundamentos invocados na petição de embargos de executado
Frise-se que esta conclusão não é susceptível de ser afectada e/ou modificada pela «manobra» que a Embargante/Recorrente «ensaiou» através da carta de 14/12/2021 (cfr. facto provado nº7), que apelida de «sua diligência para cumprir a respectiva obrigação».
Com efeito, embora esteja provado que «através de carta registada com aviso de recepção, datada de 14/12/2021 e recepcionada pela embargada em 16/12/2021, a embargante interpelou-a para no prazo máximo de dois dias após a recepção da mesma proceder, mediante agendamento prévio, à entrega da viatura e que “(…) a viatura deveria ser entregue – limpa, sem danos na carroçaria, chapa, pintura, vidros, grupo ótico, jantes, frisos, borrachas das portas e interior (designadamente ao nível de estofos) e que não resultem de uma utilização e desgaste normal, bem como com pneus com piso que respeite o mínimo legal de desgaste. (…)”» (cfr. facto provado nº7), certo é que esta carta não pode produzir quaisquer efeitos como efectiva «interpelação para cumprimento» já que, por um lado, como supra se explicou, a Embargante/Recorrente encontrava-se em incumprimento moratório (quer creditoris, quer debitoris) precisamente desde o dia anterior (13/12/2021), situação que aquela «esquece», e que, por outro lado, tal carta comprova, manifestamente, que a Embargante/Recorrente continuava a impor à Embargada condições para receber o veículo, condições essas carecidas de fundamento (em face do título executivo e/ou da lei), o que, por si só, significa que continuava a recusar, sem justificação, a mera e simples entrega do veículo por parte da Embargante, e a insistir na «obtenção» de um  que não lhe foi reconhecido.
Logo, ao contrário do alegado em sede de embargos e também sustentado nas conclusões de recurso, a aludida carta datada de 14/12/2021 não configura qualquer interpelação para cumprimento válida, eficaz e legal, e muito menos eliminou, afastou ou cessou a situação de incumprimento moratório em que a Embargante/Recorrente se encontrava em momento anterior à da aludida carta.
E assinale-se que, tendo impedido culposamente o cumprimento simultâneo obrigações recíprocas de restituição, não lhe assiste o direito de, unilateralmente, exigir e estabelecer novo prazo para a realização de tal prestação simultânea, para mais quando a Embargada, através da carta datada de 21/12/2021, lhe voltou a comunicar que o agendamento de nova data para o efeito teria que ser «sem imposição de condições» (cfr. facto provado nº8), o que se revela absolutamente conforme quer com o título executivo quer com a lei, sendo certo que a Embargante/Recorrente nada alegou nem nada provou no sentido de, momento posterior, ter desistido de tais exigências/condições.
Logo, manteve-se a situação de incumprimento moratório da Embargante/Recorrente, e, por consequência, mostra-se totalmente irrelevante, em termos jurídicos, que após a carta/missiva de 14/12/2021, a Embargada não tenha comparecido nas instalações daquela (cfr. facto provado nº12, aditado na sequência da alteração da matéria de facto), uma vez que este facto não é susceptível de configurar qualquer situação de mora da Embargada (ao contrário do que se defende, mas erradamente, em sede de recurso).
Por último, cumpre tecer a seguinte nota: não ponderando agora que nem a sentença dada à execução nem a lei atribuem qualquer direito à Embargante/Recorrente para exigir da Embargada o pagamento de valor inerente à deterioração ou ao uso do veículo, certo é que, como mais uma vez bem se refere na sentença recorrida, a factualidade provada («o estofo do veículo está “coçado” pelo uso» - cfr. facto provado nº9) e a factualidade não provada [«a viatura tinha danos no estofo do condutor com buraco e rasgão» - cfr. facto não provado a)], o veículo apenas apresenta um estado conforme ao uso/desgaste da sua normal utilização, pelo que nunca poderia assistir àquela o direito de responsabilizar a Embargante pelo estado do mesmo. Como se decidiu no Ac. desta RG de 13/10/2022[40],“I - Resolvido o contrato de compra e venda de veículo automóvel pelo outorgante comprador, e sendo dissolvido o vínculo contratual, com efeitos retroactivos, devem as partes restituir tudo o que receberam, ex tunc, devendo o comprador restituir o veículo automóvel e o vendedor a quantia recebida como preço. II - Estando de boa fé, a parte obrigada à devolução não responde pela perda ou deterioração da coisa, salvo se tiver procedido com culpa (art. 1269º “ex vi” dos arts. 289º e 433º do CC), não devendo do mesmo modo ser responsabilizada pela simples desvalorização da coisa pelo decurso do tempo ou pela sua utilização prudente e regular. III - Em regra, só haverá lugar ao ressarcimento do valor da utilização do veículo automóvel e/ou da sua desvalorização conquanto o vendedor faça prova de um uso irregular do bem e se for restituído com danos”.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que o título dado à execução (sentença) não é  inexequível e de que a obrigação exequenda não é inexigível, pelo que os embargos de executado carecem de fundamento legal e, por via disso, o recurso terá que improceder quanto a esta questão.
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4.3. Do Mérito do Recurso
Perante as respostas alcançadas na resolução das questões supra apreciadas, e sendo certo que, apesar da procedência parcial da impugnação da matéria de facto, a respectiva alteração da decisão de facto não tem qualquer influência na decisão quanto ao mérito da causa, então deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Embargante/Recorrente, devendo ser mantida a decisão recorrida quanto à decisão de direito (embora passe a integrar as alterações da matéria de facto supra determinadas).
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4.4. Da Responsabilidade quanto a Custas
Improcedendo o recurso, uma vez que ficou vencida, deverá a Embargante/Recorrente suportar as custas do recurso - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
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5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Embargante/Recorrente T... - AUTOMÓVEIS, LDA e, em consequência, confirmar e manter a sentença recorrida quanto à decisão de direito (sem prejuízo de passar a integrar as alterações determinadas quanto à matéria de facto).
Custas do recurso pela Embargante/Recorrente.
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Guimarães, 30 de Março de 2023.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2ºAdjunto - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.


[1]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[2]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[3]Cfr. Abrantes Geraldes, in obra referida, p. 196 e 197.
[4]Juiz Conselheiro Lopes do Rego, proc. nº233/09.4TBVNC.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[5]Juíza Conselheira Ana Luísa Geraldes, proc. nº824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[6]No mesmo sentido, entre outros, Acs. STJ de 31/05/2016, Juiz Conselheiro Garcia Calejo, proc. nº1572/12.2TBABT.E1.S1, de 19/02/2015, Juiz Conselheiro Tomé Gomes, proc. nº299/05.6TBMGD.P2.S1, e de 28/04/2016, Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, proc. nº1006/12.2TBPRD.P1.S1, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj.
[7]Juiz Conselheiro Pinto de Almeida, proc. nº29/12.6TBFAF.G1.S1, citado no Ac. STJ 03/03/2016, Juíza Conselheira Ana Luísa Geraldes, proc. nº861/13.3TTVIS.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[8]In obra referida, p. 200.
[9]Juiz Conselheiro Bernardo Domingos, proc. nº756/14.3TBPTM.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[10]Ver também o mais recente Ac. STJ 02/02/2022, Juiz Conselheiro Fernando Augusto Samões, proc. nº1786/17.9T8PVZ.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[11]In obra citada, p. 331, 332 e 338.
[12]Ac. STJ de 22/10/2015, Juiz Conselheiro Tomé Gomes, proc. nº212/06.3TBSBG.C2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[13]Juíza Conselheira Rosa Tching, proc. nº588/12.3TBPVL.G2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[14]Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384.
[15]Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ªEdição, Revista e Actualizada, p. 435 a 436.
[16]P.J.Pimenta, in Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325.
[17]Neste sentido, o Ac. RG de 13/07/2021, Juíza Desembargadora Raquel Baptista Tavares, proc. nº3625/20.4T8VCT.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[18]In Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, p. 609.
[19]Juíza Conselheira Fernanda Isabel Pereira, proc. nº809/10.7TBLMG.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[20]Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, proc. nº1568/09.1TBGDM.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[21]António Abrantes Geraldes, in obra referida, p. 351.
[22]Juíza Desembargadora Raquel Baptista Tavares, proc. nº671/20.1T8BGC.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[23]Cfr. Ac. do STJ de 23/09/2009, Juiz Conselheiro Bravo Serra, proc. nº238/06.7TTBGR.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[24]Juiz Desembargador Filipe Caroço, proc. nº338/17.8YRPRT, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[25]Este mesmo entendimento foi sufragado pelo Ac. da RG de 30/09/2021, Juiz Desembargador Paulo Reis, proc. nº899/19.7T8VCT.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[26]O já referido Ac. do STJ de 28/09/2017, Juíza Conselheira Fernanda Isabel Pereira, proc. nº809/10.7TBLMG.C1.S1.
[27]Cfr. Ac. do STJ de 28/09/2017, Juíza Conselheira Fernanda Isabel Pereira, proc. nº659/12.6TVLSB.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[28]Juiz Desembargador Paulo Reis, proc. nº899/19.7T8VCT.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[29]In Acção Executiva Singular, 1998, p. 63.
[30]In Curso de Processo Executivo, 1998, p. 57.
[31]In Lições de Direito Processo Civil, Acção Executiva, 1972/73, p. 8.
[32]Ac. da RC de 23/04/91, in CJ, 1991, II, p. 95.
[33]Juiz Conselheiro Salvador da Costa, proc. nº04B954, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[34]In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ªedição, p. 16, 17 e 18.
[35]Juiz Conselheiro Lucas Coelho, proc. nº04B3043, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[36]Juiz Desembargador Fernando Fernandes Freitas, proc. nº1913/19.1T8VNF-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[37]Neste sentido, entre outros, Ac. da RL de 23/10/2019, Juíza Desembargadora Filomena Manso, proc. nº20069/17.8T8LSB-A.L1-4, e Ac. da RL de 01/10/2020, Juíza Desembargadora Maria do Céu Silva, proc. nº5993/19.1T8LSB-A.L1-8, ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jtrl.
[38]Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in obra referida, p. 45.
[39]In A Acção executiva Anotada e Comentada, 3ªedição, p. 519.
[40]Juiz Desembargador Alcides Rodrigues, proc. nº423/21.1T8LRA.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.