Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
429/19.0T8VNF.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: DISPENSA DE SIGILO
INTERESSES PROTEGIDOS
INTERESSE PREVALECENTE
LEGITIMIDADE DA ESCUSA
INVOCAÇÃO DO SEGREDO BANCÁRIO CONTRA O TITULAR DA CONTA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: DISPENSA DE SIGILO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Quando para a descoberta do núcleo essencial da verdade material se mostrar necessário quebrar o segredo bancário, os interesses por este protegidos devem, em princípio, ceder perante os subjacentes à realização da justiça.
II- Mas os Bancos estão obrigados a fornecer ao titular da conta todas as informações que este solicitar relativamente ela. E, uma vez requerida uma qualquer informação por parte do titular, se esta não lhe for dada, há então por parte do Banco uma recusa ilegítima.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I
Na ação declarativa, que corre termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, em que é autora X Imobiliária S.A. e réus F. A. e P. J., aquela veio na sua petição inicial:

"a) Requer que o Banco ..., S.A. (…) seja notificado para vir aos autos informar quem são os titulares das contas com os NIB/IBANs ......... e ........., para prova, nomeadamente, dos factos alegados nas alíneas (i) e (iii), respetivamente, do artigo 47.º da presente petição inicial, o que se faz ao abrigo do disposto no artigo 417.º do CPC;
b) Requer que o Banco ..., S.A. - Sucursal em Portugal (…) seja notificado para vir aos autos informar quem são os titulares da conta com o NIB/IBAN ........., para prova, nomeadamente, dos factos alegados na alínea (ii) do artigo 47.º da presente petição inicial, o que se faz ao abrigo do disposto no artigo 417.º do CPC;
c) Requer que o ..., S.A. (…) seja notificado para vir aos autos informar quem são os titulares da conta com o NIB/IBAN ........., para prova, nomeadamente, dos factos alegados na alínea (iv) do artigo 47.º da presente petição inicial, o que se faz ao abrigo do disposto no artigo 417.º do CPC;
(…)
d) Requer que o Banco ..., S.A. (…) seja notificado para vir juntar aos autos toda a documentação relativa à abertura da conta n.º ........., para prova, nomeadamente, dos factos alegados no artigo 57.º da presente petição inicial, o que se faz ao abrigo do disposto nos artigos 432.º, 429.º e 417.º do CPC."
No despacho saneador a Meritíssima Juiz ordenou que se "oficie às entidades bancárias nos termos requeridos a fls 24 dos autos."
Estes quatro bancos responderam não poder prestar as informações solicitadas por as mesmas se encontrarem a coberto de sigilo bancário.

Então a Meritíssima Juiz desencadeou o "incidente de quebra de sigilo" dizendo, nomeadamente, que:
"Assim, mostrando-se as informações solicitadas imprescindíveis para decidir do objeto dos autos, nomeadamente, para apurar das duas questões constantes dos temas de prova, a saber, por um lado, se a conduta dos RR de efetuar movimentos de rendimentos da sociedade A foi realizada à revelia dos sócios e sem relação com a atividade da sociedade, e por outro, se em virtude de tal conduta a A teve de suportar um prejuízo no montante de 735.483,48, entendemos ser de fazer prevaler a prestação das informações bancárias aos autos em prejuízo do sigilo bancário.
(…)
Remeta os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação do pedido da quebra de sigilo bancário por prestação de informações bancárias requeridas a fls 24 dos autos sobre a identificação dos titulares de contas bancárias."
Está, assim, suscitado, nos termos dos artigos 417.º n.º 4 do Código de Processo Civil e 135.º n.º 3 do Código de Processo Penal, o incidente de dispensa do dever de sigilo.
II
1.º
O n.º 1 do artigo 417.º do Código de Processo Civil estabelece o princípio de que "todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados."
Porém, na alínea c) do seu n.º 3 admite-se que a recusa em colaborar é "legítima se a obediência importar a violação do sigilo profissional (…), sem prejuízo do disposto no nº 4." E neste n.º 4 diz-se que "deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado."
O n.º 4 deste artigo 417.º remete-nos, assim, para o artigo 135.º do Código de Processo Penal.
A Meritíssima Juiz considerou, implicitamente, pois não o disse de forma expressa, legítima a recusa das instituições bancárias em, sem mais, fornecerem a informação solicitada.

Na sua petição inicial, a autora começa por resumir a questão que traz a juízo alegando que:
"2.º A Autora pretende que os Réus, na qualidade de membros (entretanto destituídos) do seu conselho de administração, sejam condenados a responder pelos danos que lhe causaram em virtude dos atos por si praticados culposamente com preterição dos deveres a que se encontravam legal e estatutariamente adstritos.
3.º Na verdade, conforme abaixo se terá oportunidade de expor detalhadamente, os Réus, ao se terem apropriado, em benefício próprio ou de terceiros e contra os interesses da Autora, de quantias resultantes da exploração do único ativo detido pela Autora, e, portanto, só a esta devidos,
4.º Violaram, de forma grosseira, os deveres legais e contratuais que sobre si impendiam enquanto administradores, nomeadamente o dever de lealdade,
5.º E atuaram de forma contrária aos interesses da Autora, dos respetivos acionistas e seus credores,
6.º Sendo, portanto, responsáveis pelos danos e prejuízos causados à Autora, cujo montante já apurado ascende a mais de EUR 700.000,00 (setecentos mil euros)."

E nos artigos 47.º e 57.º da petição inicial alega que:
"47.º Acrescente-se, ainda, que, por ordem dos Réus, foram efetuadas as seguintes transferências, a partir da conta bancária da Autora, para contas cujos NIBs são totalmente desconhecidos dos atuais membros do conselho de administração da Autora:
(i) Transferências para o NIB ........., no montante global de EUR 30.000,00 (trinta mil euros), discriminado da seguinte forma:
a. EUR 10.000,00, transferência datada de 16/06/2012 – cf. extrato bancário n.º 6/2012 constante do Documento n.º 9;
b. EUR 10.000,00, transferência datada de 11/07/2012 – cf. extrato bancário n.º 7/2012 constante do Documento n.º 9;
c. EUR 10.000,00, transferência datada de 13/09/2012 – cf. extrato bancário n.º 9/2012 constante do Documento n.º 9;
(ii) Transferências para o NIB ........., no montante global de EUR 15.000,00 (quinze mil euros), discriminado da seguinte forma:
a. EUR 10.000,00, transferência datada de 14/12/2011 – cf. extrato bancário n.º 7/2011 constante do Documento n.º 9;
b. EUR 5.000,00, transferência datada de 19/02/2013 – cf. extrato bancário n.º 2/2013 constante do Documento n.º 9;
(iii) Transferência no montante de EUR 6.712,42, datada de 23/12/2011, para o NIB ......... - cfr. extrato bancário n.º 7/2011 constante do Documento n.º 9;
(iv) Transferências para o NIB ........., no montante global de EUR 14.000,00 (quatorze mil Euros), discriminado da seguinte forma:
a. EUR 4.000,00, transferência datada de 23/12/2011 - cfr. extrato bancário n.º 7/2011 constante do Documento n.º 9;
b. EUR 10.000,00, transferência datada de 09/02/2012 - cfr. extrato bancário n.º 2/2012 constante do Documento n.º 9;
(v) Transferência no montante de EUR 2.000,00, datada de 28/11/2013, para o NIB ………– cfr. extrato bancário n.º 11/2013 constante do Documento n.º 9;
Tudo no montante global de EUR 67.712,42 (sessenta e sete mil setecentos e doze Euros e quarenta e dois cêntimos).
57.º [Os réus] Optaram, algures em março de 2018, motu proprio e mais uma vez ser darem conhecimento aos demais acionistas, por criar uma nova conta bancária em nome da Autora, aberta junto da Banco ..., S.A., a conta n.º ......... – cfr. Documento n.º 31 que adiante se junta e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido."
Na situação em análise pretende-se, em primeiro lugar, saber quem são os titulares de quatro contas bancárias para onde alegadamente os réus fizeram transferências a partir de uma conta bancária da autora.
Facilmente se percebe que a descoberta da verdade quanto à titularidade dessas quatro contas dificilmente se alcança sem que os respetivos bancos forneçam essa informação.
E tal informação é particularmente relevante para a justa decisão da questão que se encontra confiada ao tribunal, porquanto a presente ação se funda na alegação de que "os Réus, na qualidade de membros (entretanto destituídos) do seu conselho de administração (…) se (…) [apropriaram], em benefício próprio ou de terceiros e contra os interesses da Autora, de quantias resultantes da exploração do único ativo detido pela Autora" e que "violaram, de forma grosseira, os deveres legais e contratuais que sobre si impendiam enquanto administradores (…) e atuaram de forma contrária aos interesses da Autora, dos respetivos acionistas e seus credores, sendo, portanto, responsáveis pelos danos e prejuízos causados à Autora(…)". E uma parte desses "danos e prejuízos", no valor de € 67 712,42, resultam de transferências que foram realizadas para a tais quatro contas.

O artigo 78.º do RGICSF (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras(1)) dispõe que:
"1. Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2. Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3. O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços."

Ora, "os valores protegidos pelo sigilo bancário são, por um lado, o regular funcionamento da atividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança e segurança nas relações entre os bancos e seus clientes e o direito à reserva da vida privada desses clientes." (2)
Porém, o segredo bancário não constitui "um valor absoluto, nem sequer estando directamente englobado no que é nuclear à reserva da intimidade da vida privada e familiar, o mesmo terá de ceder, sempre que isso seja necessário para acautelar outros valores de hierarquia mais elevada, de harmonia com o indicado princípio da prevalência do interesse preponderante." (3)
Para além disso, não pode deixar de se ter presente que "o artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legí­timos (n.º 1), impondo ainda que, para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegure aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva (…). A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso à tutela juris­dicional efetiva implica a ga­rantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sen­tido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao pro­cesso, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão funda­mentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a deci­são haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumarie­dade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas." (4)
Neste contexto, "verificando-se um conflito entre dever de sigilo que impende sobre as instituições de crédito e financeiras e o de cooperação para a realização da justiça, que visa satisfazer interesses bem mais relevantes, mesmo no âmbito do processo civil, deverá o mesmo ser dirimido no sentido da quebra ou levantamento de tal segredo.
Essa solução está conforme a uma certa hierarquização dos direitos garantidos constitucionalmente e em consonância com as normas atinentes à colisão de direitos, insertas no artº 335.º do Código Civil, aplicáveis, porque, «in casu», a quebra do sigilo afecta interesses privados e visa a realização da justiça num caso em que também se discutem interesses dessa ordem, se bem que, aqui, a ênfase tenha de ser posta no interesse público dos tribunais disporem de todos os elementos para decidirem de acordo com a verdade das coisas; ou seja, de um lado temos particulares que gozam do direito à reserva da vida privada e dos dados pessoais [arts. 26.º, 1 e 2, 35.º, 4 e 7, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 80.º Cód. Civil], e, do outro, também particulares a quem tem de ser garantido o «acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», impondo-se assegurar-lhes que a causa em que são partes «seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo», de modo a que se apure a «verdade» e se consiga a «justa composição do litígio» (artºs 20.º, 1 e 4, da CRP, 2.º, 265.º, 3, 266.º e 519.º do [anterior] Código de Processo Civil)." (5)
Aqui chegados, considerando o "princípio da prevalência do interesse preponderante" estabelecido no artigo 135.º n.º 3 do Código de Processo Penal, dúvidas não restam quanto à necessidade de, para se salvaguardar o direito à prova da verdade de factos essenciais e se poder alcançar uma efetiva realização da justiça, se quebrar o sigilo bancário quanto à titularidades das quatro contas em causa; duas no Banco ... S.A., uma no Banco ... S.A. e a última no ... S.A..
2.º
Neste incidente pretende-se ainda que o Banco ... S.A. junte ao processo "toda a documentação relativa à abertura da conta n.º .........".
Esta conta, como se alega no artigo 57.º da petição inicial, é uma "conta bancária em nome da Autora".
Ora, o n.º 1 do artigo 79.º do RGICSF estipula que "os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição."
Como é sabido, o beneficiário do sigilo bancário é o cliente e não a instituição financeira. Nessa medida, "o segredo bancário (entendido em termos atuais), consagrado no nosso ordenamento jurídico como segredo profissional é uma questão que não se põe, isto é, não pode pôr-se, entre as partes de um contrato de depósito bancário, ou seja, entre o Banco depositário e o cliente depositante. Na verdade, entre estes não pode haver segredo" (6). Deve, assim, ter-se por pacífico que "o direito à informação (…) resulta diretamente da lei e do contrato bancário celebrado com vista à abertura da conta" (7).
Sendo assim, conclui-se, que, estando em causa uma conta de que a autora é titular, ela tem acesso a todas as informações da mesma, não havendo, quanto a si qualquer sigilo bancário. Inexistindo tal sigilo, obviamente que não se coloca a questão de o levantar, o que significa que a recusa do banco em facultar a informação pretendida é ilegítima, faltando assim um dos pressupostos deste incidente e, por isso, e só por isso, ele está, neste segmento, votado ao insucesso; o mesmo é dizer que, no que toca a esta conta, o Banco ... S.A. tem a obrigação de fornecer à autora as informações que esta lhe solicitar, designadamente "toda a documentação relativa à abertura da conta".
Para este efeito é absolutamente irrelevante a circunstância de a conta ter sido aberta quando eram administradores da sociedade autora pessoas singulares diferentes daquelas que presentemente ocupam tais funções, visto que a pessoa coletiva titular de tal conta é a mesmíssima; os seus administradores não são, nem nunca foram, titulares da conta.
E não esqueçamos que foi a própria autora (não os réus) quem solicitou a junção aos autos da informação em causa.

III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se parcialmente procedente o presente incidente, pelo que:

a) concede-se ao Banco ... S.A., Banco ... S.A. e ... S.A. dispensa do dever de sigilo profissional relativamente à informação da titularidade das quatro contas bancárias identificadas pela autora;
b) indefere-se o incidente quanto ao pedido de o Banco ... S.A. "juntar aos autos toda a documentação relativa à abertura da conta n.º .........".

Sem custas.

António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte
Fernando Freitas



1. Decreto-Lei 298/92 de 31 de dezembro.
2. Ac. Rel. Lisboa de 9-2-2017 no Proc. 19498/16.9T8LSB-A.L1-2, www.dgsi.pt.
3. Ac. Rel. Coimbra de 6-4-2010 no Proc. 120-C/2000.C1, www.dgsi.pt.
4. Ac. Tribunal Constitucional 141/2019, www.tribunalconstitucional.pt.
5. Citado Ac. Rel. Coimbra de 6-4-2010.
6. Ac. Rel. Lisboa de 14-11-2000, Proc. 6753/00, www.colectaneadejurisprudencia .com.
7. Ac. STJ de 7-10-2010 no Proc. 26/08.6TBVCD.P1.S1, www.gde.mj.pt. Neste sentido veja-se Ac. STJ de 1-10-2010, CJ STJ 2010-III-111, Ac. Rel. Lisboa de 14-11-2000 no Proc. 6753/00 e de 28-2-2002 no Proc. 12273/01, estes dois em www.colectaneade jurisprudencia.com, e ainda Ac. Rel. Coimbra de 25-1-2011 no Proc. 206/09.7TBAVZ-A.C1, em www.gde.mj.pt.