Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
125/13.2TCGMR.G1
Relator: PAULO DUARTE BARRETO
Descritores: CONTRATO DE FACTORING
RESOLUÇÃO
IMPOSTO DE SELO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Porque o recorrente (devedor) não interveio no contrato de factoring, porque reconheceu a cessão de créditos, mas sobretudo porque à data da resolução do factoring estava já consumada a cessão de créditos, com a consequente modificação subjectiva da relação jurídica, a resolução do factoring não tem qualquer efeito na sua dívida ao aqui recorrido (factor).
II - O benefício do factoring com recurso é que o factor não corre o risco de incumprimento por parte do devedor, na medida em que o aderente presta garantias da solvência do devedor.
III - Pretendendo-se através do imposto de selo tributar a utilização do crédito, não tem o devedor, em factoring, que pagar tal imposto porque não utilizou qualquer crédito. O contrato de factoring é um meio de financiamento do aderente, que recebe determinado valor pela cessão dos seus créditos.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2.ª) do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório
Na presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, que Banco…, S.A. move ao Município de…, pede o Autor que, pela sua procedência, se condene o Réu a pagar-lhe o montante de capital de € 423.958,48, acrescido de juros de mora, no valor de € 90.469,62 e de imposto de selo no montante de € 3.618,78, assim como os juros vincendos, até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, e em síntese, alega que, em 10 de Outubro de 2008, celebrou com a sociedade I…, Lda. um contrato de factoring, no âmbito do qual esta, na qualidade de aderente, se comprometeu a ceder àquele a totalidade ou parte dos créditos de curto prazo sobre os seus devedores, obrigando-se o Banco a aceitar as cessões, desde que cumpridos os pressupostos previstos no acordo celebrado.
No âmbito desse acordo, o banco Autor adiantou ao aderente as quantias de € 270.575,72 e € 153.382,76, respeitantes às facturas com os n.ºs 58 e 69, com vencimento, respectivamente, em 12-09-2010 e 15-10-2010, emitidas pelo aderente ao Município de…, em função de serviços prestados à dita autarquia.
Sucedeu que o aderente não liquidou os valores acima referidos ao Autor, vindo a ser judicialmente declarado insolvente, pelo que o Autor interpelou o Réu para proceder a tal pagamento.
O Réu, porém, apesar de reconhecer a obrigação de pagar a dívida, não o fez, justificando-se o recurso a esta acção para que seja reconhecido o seu direito de receber as ditas quantias pecuniárias, acrescidas dos juros vencidos – ascendendo estes já à quantia de € 90.469,62 – e vincendos, bem como o imposto de selo no valor de € 3.618,78.
O Réu, na contestação, bateu-se pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
Assim, começou por invocar desconhecer se o Autor adiantou, de facto, ao aderente o valor de € 423.958,51 a que este alude na petição inicial e referiu que não lhe pode ser imputada, à luz do direito aplicável, a responsabilidade pelo não pagamento dos valores peticionados na acção.
Na verdade, segundo o Réu, nos termos do contrato de factoring subjacente aos autos, o aderente assumiu integralmente o risco de não pagamento, total ou parcial, dos créditos cedidos, pelo que seria sobre ele e não sobre outra entidade – designadamente, o contestante – que recairia em exclusivo a obrigação de pagamento dos créditos peticionados pelo Autor.
Acresce que este último, perante a falta de pagamento dos valores respeitantes a juros do contrato de factoring celebrado, declarou resolver esse contrato. Essa resolução tem, nos termos da lei, efeitos retroactivos, pelo, quanto ao Réu, tudo se passa como se o contrato nunca tivesse chegado a ser celebrado, pois que nenhuma prestação foi por si efectuada, não recaindo sobre si qualquer obrigação de pagamento no quadro de um contrato que deixou de existir.
Por outro lado, nos termos do contrato de factoring celebrado, foi acordada a possibilidade de o Autor fazer retroceder à I… dos créditos cedidos, longo que os mesmos não se encontrassem pagos. Desconhece-se, porém, se o Autor o fez.
Acresce, ainda, que o Autor preencheu uma livrança emitida pelos avalistas da sociedade aderente, tendo ele, por isso, um meio expedito para ver ressarcidos os seus créditos sobre a I…. Assim, o seu comportamento ao resolver o contrato de factoring, ao preencher as livranças entregues pelos avalistas e, simultaneamente, ao instaurar esta acção, configura um claro abuso de direito.
Finalmente, alega que nunca o contestante poderia ser responsabilizado pelo pagamento do imposto de selo peticionado pelo Autor, por se tratar de imposto referente a contrato no qual não interveio.
Conclui, assim, pela improcedência da acção
Proferida a sentença, foi a acção julgada procedente e, consequentemente, condenado o Réu a pagar ao Autor o montante de capital de € 423.958,48, acrescido de juros de mora, no valor de € 90.469,62 e imposto de selo no montante de € 3.618,78, assim como os juros vincendos, até efectivo e integral pagamento.
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.Não se conformando com tal decisão, dela recorreu o Réu, tendo formulado as seguintes conclusões:
“ I. Encontra-se documentado nos autos o envio de cartas à I… e aos avalistas, juntas a fls. 42 a 44;
II. Das quais resulta que o contrato de factoring celebrado não só foi resolvido, como foi preenchida a livrança entregue pelos avalistas;
III. Facto que, por não ter sido impugnado pelo Réu, se considera assente por acordo;
IV. O tribunal não se pronunciou sobre esse facto, nem o incluiu na matéria de facto provada, o que se impõe, dado tratar-se de facto essencial à justa composição do litígio;
V. Atenta a modalidade de factoring contratualizada – factoring com recurso -, factoring que entretanto foi resolvido pelo Autor, não pode considerar-se ser o Autor o titular do direito de crédito em questão;
VI. O Réu não pode ser considerado um res inter alios acta em relação ao contrato em causa nos presentes autos;
VII. A partir do momento em que a cessão de créditos é notificada ao devedor, este deixa de ser um terceiro alheio à relação contratual subjacente àquele contrato;
VIII. No caso de contratos de factoring com recurso, quando o devedor não paga, o factor deverá exigir o pagamento directamente à sociedade facturizada;
IX. O próprio Autor parece reconhecer isso já que apenas veio exigir do aqui Réu depois de a sociedade facturizada não ter pago os montantes em dívida;
X. Tendo sido acordada entre as partes a retransmissão dos créditos em caso de incumprimento da obrigação de pagamento, os créditos consideram-se retransmitidos para a sociedade facturizada;
XI. Passando novamente a titularidade do direito de crédito sobre o aqui Recorrente para a aderente;
XII. O contrato de factoring foi resolvido pelo Autor;
XIII. Tudo se passando em relação ao Recorrente como se o contrato nunca tivesse sido celebrado;
XIV. Não se encontrando, assim, o Recorrente obrigado a efectuar qualquer pagamento no âmbito de um contrato que deixou de existir na ordem jurídica;
XV. Ainda que a resolução não abranja as cessões de crédito operadas, a sociedade facturizada mantém-se adstrita ao cumprimento do dever pós-contratual de reembolso dos valores adiantados;
XVI. Obtendo o Autor a satisfação dos créditos cedidos e não pagos por intermédio do reembolso destas quantias;
XVII. O comportamento do Autor ao resolver o contrato, preencher as livranças entregues pelos avalistas e instaurar a acção em causa nos presentes autos representa um claro abuso de direito;
XVIII. Abuso este que resulta não da quantidade de direitos de que o Autor é titular, mas da forma como os exerce;
XIX. O Recorrente não beneficiou de qualquer operação realizada com intermediação de instituições de crédito, pelo que não é sujeito passivo do imposto do selo em causa nos presentes autos;
XX. O pagamento do imposto do selo incumbe apenas e só à facturizada, não podendo o Recorrente ser condenado no seu pagamento”.
Em contra alegações, a Autora pugna pela manutenção do decidido, sem, contudo, oferecer conclusões.
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II – Fundamentação
A) Fundamentação de Facto
Ficou assente que:
1.- A 10 de Outubro de 2008, a Autora celebrou com a sociedade comercial I…, Lda. um Contrato de Cessão Continuada de Créditos com Recurso, vulgarmente conhecido como contrato de factoring, o qual se regia pelas respectivas condições gerais e particulares, acordadas entre os outorgantes; tudo nos termos do documento de fls. 9 a 23, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
2.- De acordo com o contrato celebrado, a I…, enquanto aderente, obrigava-se a ceder-lhe a totalidade, ou parte, dos créditos de curto prazo, sobre os seus devedores, obrigando-se o Autor a aceitar as referidas cessões, desde que cumpridos os pressupostos previstos na cláusula 3.ª do contrato celebrado.
3.- No âmbito do contrato referido em 1 a aderente cedeu ao Autor o crédito que detinha sobre o Réu, respeitante a serviços por ela prestados à autarquia, créditos esses a que respeitavam as facturas com os n.ºs 58 e 69, com vencimento, respectivamente, em 12-09-2010 e 15-10-2010.
4.- A aderente I… veio a ser declarada insolvente no processo n.º 2371/11.0TBBRG, do 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga.
5.- O Réu, oportunamente, informou a aderente I… de que tinha conhecimento da celebração do contrato a que se alude em 1 e que se reconhecia devedor do valor titulado pela factura n.º 58, obrigando-se a pagar o valor da mesma; fê-lo, por via da carta que constitui o documento de fls. 48, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
6.- O Réu informou o Autor, também, de que tinha conhecimento da celebração do mesmo contrato e que se reconhecia devedor do valor titulado pela factura n.º 69, obrigando-se a pagar o valor da mesma, na sua data de vencimento, renunciando a invocar quaisquer direitos sobre a empresa aderente que pudessem levar a que tais créditos não fossem, total ou parcialmente devidos; fê-lo por via da carta que constitui o documento de fls. 49, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
7.- Em face do acima exposto, e atento o não pagamento pela I… das referidas facturas, o Autor intercedeu junto da autarquia de… para que esta liquidasse os valores em causa, atendendo ao acordo referido em 1, a qual, apesar do reconhecimento da dívida, não efectuou tal pagamento.
8.- Foram enviadas cartas registadas com a/r, datadas de 5 de Julho de 2012 e de 14 de Janeiro de 2013, interpelando a autarquia para proceder à liquidação dos valores respeitantes às facturas supra referidas; isto, nos termos dos documentos de fls. 50 e 51 e 53, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
9.- A autarquia respondeu, por carta datada de 21 de Fevereiro de 2013, informando o banco Autor que estava previsto o pagamento das facturas com o recurso a um financiamento público “Programa de Apoio à Economia Local – PAEL”, mantendo a intenção de cumprir com as obrigações assumidas; isto, nos termos do documento de fls. 55, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
10.- O banco autor enviou à sociedade I… a carta registada de aviso de recepção cuja cópia constitui o documento de fls. 42, o qual se dá aqui por reproduzido, carta essa datada de 28-11-2011, na qual comunicou ao destinatário que “estando vencidas e não pagas valores de juros do contrato” referido em 1, consideravam-no “resolvido” e “vencida e imediatamente exigível toda a dívida”.
11.- No âmbito do acordo descrito em 1 o banco Autor adiantou à aderente I… as quantias de € 205.925,20 e de € 130.293,75, por conta, respectivamente, das facturas n.ºs 58 e 69, mencionadas em 3.
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B) Fundamentação de direito
O objecto de recurso afere-se do conteúdo das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente.
Isso significa que a sua apreciação deve centrar-se nas questões de facto e ou de direito nele sintetizadas e que são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto (deve ser acrescentado à matéria de facto provada um ponto relativo ao preenchimento por parte do Banco das livranças entregues pelos avalistas, com vencimento a 12 de Dezembro de 2011 e pelo valor de € 379.597,37).
- Matéria de direito [(i) atenta a modalidade de factoring contratualizada – factoring com recurso -, factoring que entretanto foi resolvido pelo Autor, não pode considerar-se ser o Autor o titular do direito de crédito em questão; (ii) a partir do momento em que a cessão de créditos é notificada ao devedor, este deixa de ser um terceiro alheio à relação contratual subjacente àquele contrato; (iii) no caso de contratos de factoring com recurso, quando o devedor não paga, o factor deverá exigir o pagamento directamente à sociedade facturizada; (iv) tendo sido acordada entre as partes a retransmissão dos créditos em caso de incumprimento da obrigação de pagamento, os créditos consideram-se retransmitidos para a sociedade facturizada; (v) o contrato de factoring foi resolvido pelo Autor, tudo se passando em relação ao Recorrente como se o contrato nunca tivesse sido celebrado; (vi) ainda que a resolução não abranja as cessões de crédito operadas, a sociedade facturizada mantém-se adstrita ao cumprimento do dever pós-contratual de reembolso dos valores adiantados; (vii) o comportamento do Autor ao resolver o contrato, preencher as livranças entregues pelos avalistas e instaurar a acção em causa nos presentes autos representa um claro abuso de direito;(viii) o Recorrente não beneficiou de qualquer operação realizada com intermediação de instituições de crédito, pelo que não é sujeito passivo do imposto do selo em causa nos presentes autos)].
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Impugnação da matéria de facto
O recorrente sustenta que deve ser acrescentado à matéria de facto provada um ponto relativo ao preenchimento por parte do Banco das livranças entregues pelos avalistas, com vencimento a 12 de Dezembro de 2011 e pelo valor de € 379.597,37.
Para tanto invoca as cartas juntas a fls. 42 a 44 dos autos.
Refira-se que este facto – preenchimento das livranças subscritas pelos avalistas – é aceite pelo aqui recorrido.
É certo que o tribunal a quo não o elencou nos factos, mas a verdade é que não deixou de o ponderar em sede de direito, no segmento em que afasta o instituto do abuso de direito.
Não obstante, porque o facto está provado e é importante para as questões de direitos em apreciação – sobretudo as suscitadas pelo recorrente – defiro a respectiva inclusão na factualidade apurada, pelo que se adita um novo facto provado, com o n.º 12 e a seguinte redacção: O Autor preencheu as livranças entregues pelos avalistas, com vencimento a 12 de Dezembro de 2011 e pelo valor de € 379.597,37.
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Matéria de direito
Precisando o conceito de contrato de factoring:
“ I - O factoring apresenta-se como uma operação mediante a qual o factor adquire, a título oneroso, de uma pessoa física ou jurídica, denominada aderente, instrumentos de conteúdo creditício, prestando, nalguns casos, serviços adicionais, em troca de uma retribuição, assumindo o factor o risco de cobrança dos créditos cedidos, relativamente aos devedores.
II - Os traços definidores do contrato de factoring são os seguintes: a) o contrato nasce com a aquisição, pelo factor, dentro de um prazo determinado, de créditos existentes na esfera jurídica do aderente ou de prestação de serviços; b) mediante a aquisição de créditos não cobrados, o factor assume-se como uma entidade que adianta meios financeiros ao cliente; c) com a aquisição de instrumentos creditícios em dívida e de cobrança não certa, o factor assume os riscos económicos e de actividade adstritos aos devedores dos créditos cedidos.
III - Do ponto de vista jurídico, o contrato de factoring prefigura-se com as seguintes características estruturantes: a) configura-se como um contrato bilateral, que se celebra entre o(s) aderente(s) e o factor; b) um contrato consensual, que só surge por vontade declarada das partes contratantes; c) um contrato tipificado em legislação adrede (DL n.º 171/95, de 18-07); d) um contrato nominado, pela denominação que lhes está consagrada na doutrina e na lei; e) um contrato comutativo, dado que as partes assumem, na respectiva esfera jurídica, os efeitos advenientes do acordo contratual assumido; f) um contrato que depende da autonomia da vontade contratual das partes, por poder ser moldado e recortado, nos específicos contornos, alcance, objectivos e finalidades que as partes conferem ao negócio; g) um contrato oneroso, porquanto o factor realiza uma prestação em troca duma retribuição.
IV - O objecto do contrato consiste, do ponto de vista do aderente/cliente, na intenção de obter financiamento, o que importará a cessão dos créditos que detenha sobre clientes seus, e, do ponto de vista da entidade que presta o serviço de factoring, no propósito de obter uma comissão pelo financiamento ao cliente.
V - Para o factor, do contrato advêm as seguintes obrigações: a) adquirir os créditos (ou a prestação de serviços) nas condições contratualmente acordadas; b) pagar ao aderente os créditos cedidos, de acordo com o plano de aquisição aprovado; c) outorgar a antecipação de fundos ao aderente, pela forma convencionada; d) proceder à cobrança dos créditos em cujos direitos se haja sub-rogado, de acordo e pela forma como o cedente havia estabelecido com o devedor.
VI - Para o aderente, resultam do contrato as seguintes obrigações, em raiz dos princípios da confiança, da correcção contratual e da informação inerente: a) informar o factor do comportamento dos devedores cedidos e contribuir para a cobrança dos créditos cedidos; b) remeter ao factor aquilo que tenham pago directamente os devedores cedidos, a fim de cumprir o compromisso de reembolso pactuado; c) ceder ao factor os documentos e instrumentos de conteúdo creditício objecto da aquisição.
VII - O devedor cedido não participa no acordo de vontades, apesar de, como decorre das regras próprias da cessão de créditos (art. 583.º do CC), o acordo só produzir efeitos em relação a ele desde que lhe seja notificado, ainda que extrajudicialmente, ou desde que aceite (de forma tácita ou expressa) a cessão de créditos operada.
VIII - A cessão de créditos está na livre disponibilidade das partes vinculadas por uma obrigação de natureza pecuniária e sem prévia dependência do consentimento do devedor, desde que entre este e o cedente não exista convenção que estipule limitação ou proibição de cessão de créditos” – acórdão do STJ de 15.01.2013, processo n.º 345/03.8TBCBC.G1.S1, dgsi.pt.
Ora, face ao exposto e à factualidade apurada, os argumentos do recorrente são absolutamente infundados.
Vejamos.
Ficou assente que, no âmbito do contrato de factoring, a aderente I… cedeu ao Autor o crédito que detinha sobre o Réu, respeitante a serviços por ela prestados à autarquia, créditos esses a que respeitavam as facturas com os n.ºs 58 e 69, com vencimento, respectivamente, em 12-09-2010 e 15-10-2010.
Mais ficou provado que o recorrente informou a aderente I… de que tinha conhecimento da celebração desse contrato de factoring e que se reconhecia devedor do valor titulado pela factura n.º 58, obrigando-se a pagar o valor da mesma. O recorrente informou o Autor, também, de que tinha conhecimento da celebração do mesmo contrato e que se reconhecia devedor do valor titulado pela factura n.º 69, obrigando-se a pagar o valor da mesma, na sua data de vencimento, renunciando a invocar quaisquer direitos sobre a empresa aderente que pudessem levar a que tais créditos não fossem, total ou parcialmente devidos.
E, resulta ainda da factualidade apurada, que atento o não pagamento pela I… das referidas facturas, o Autor intercedeu junto do aqui recorrente para que liquidasse os valores em causa, atendendo ao factoring, 1, o qual, apesar do reconhecimento da dívida, não efectuou tal pagamento. Refira-se que o recorrente informou o banco Autor que estava previsto o pagamento das facturas com o recurso a um financiamento público “Programa de Apoio à Economia Local – PAEL”, mantendo a intenção de cumprir com as obrigações assumidas.
Resta dizer que, no âmbito do contrato de factoring, o banco Autor adiantou à aderente I… as quantias de € 205.925,20 e de € 130.293,75, por conta, respectivamente, das facturas n.ºs 58 e 69.
Não se entende, pois, apesar de sempre ter reconhecido a dívida, como pode agora o recorrente sustentar que nada deve ao autor.
Entrando em cada um dos fundamentos da apelação, sustenta o recorrente que, atenta a modalidade de factoring contratualizada – com recurso -, factoring que entretanto foi resolvido pelo Autor, não pode considerar-se ser o Autor o titular do direito de crédito em questão.
Ficou assente que o banco autor enviou à sociedade I… a carta registada de aviso de recepção cuja cópia constitui o documento de fls. 42, datada de 28-11-2011, na qual comunicou ao destinatário que “estando vencidas e não pagas valores de juros do contrato” referido em 1, consideravam-no “resolvido” e “vencida e imediatamente exigível toda a dívida”.
O recorrente não é parte do contrato de factoring, unicamente celebrado entre Factor e Aderente. É, como vimos, um meio de financiamento para o Aderente, não sendo por acaso que o Factor é um banco. Através deste contrato, os créditos transferem-se para o Factor, sem que o devedor participe no acordo de vontades.
Não obstante, e já no âmbito do regime geral da cessão de créditos, este acordo só produz efeitos em relação ao devedor a partir da sua notificação ou aceitação da cessão de créditos. No caso em apreço, é inquestionável que o devedor, aqui recorrente, reconheceu a cessão de créditos.
Este reconhecimento, por dele resultar a produção de efeitos relativamente ao recorrente, ganhou relevância jurídica própria, que já persiste para além do contrato de factoring. Consumada a cessão de créditos, o devedor tem que pagar ao cessionário. A cessão de créditos ganhou vida própria porque dela resultou uma modificação subjectiva da relação jurídica. Por isso, a posterior resolução do contrato de factoring só produz efeitos entre Factor e Aderente e as suas consequências só se sentirão ao nível das relações entre ambos.
Assim, porque o recorrente não interveio do contrato de factoring, porque reconheceu a cessão de créditos, mas sobretudo porque à data da resolução do factoring estava já consumada a cessão de créditos, com a consequente modificação subjectiva da relação jurídica, a resolução do factoring não tem qualquer efeito na sua dívida ao aqui recorrido.
Outro fundamento da apelação: no caso de contratos de factoring com recurso, quando o devedor não paga, o factor deverá exigir o pagamento directamente à sociedade factorizada.
O factoring com recurso tem fundamento legal no n.º 1, do art.º 587.º, do Código Civil: o cedente só garante a solvência do devedor se a tanto expressamente se tiver obrigado.
Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed. revista e actualizada, pag. 602 – ensinam: “ Desde que não haja limites convencionados, deve entender-se que o cedente garante não só a solvabilidade actual do devedor, mas também a futura, até ao cumprimento da obrigação; A garantia da insolvência do devedor, que não se confunde com a fiança, envolve, em princípio, a obrigação de reparar os danos que o cessionário sofra com a eventual insolvência do devedor”.
O benefício do factoring com recurso é que o Factor não corre o risco de incumprimento por parte do devedor, na medida em que o Aderente presta garantias da solvência do devedor.
Resulta ainda das condições gerais do contrato de factoring em apreciação:
“ 7 - RISCO DOS CRÉDITOS
1. O ADERENTE assume integralmente o risco do não pagamento, total ou parcial, dos créditos cedidos.
2. Em consequência do previsto no número anterior, o ADERENTE será responsável pelo pagamento ao BANCO de todos os valores que o BANCO lhe adiante por conta dos créditos cedidos.
1. O BANCO poderá exigir ao ADERENTE os valores adiantados por conta dos créditos cedidos e não pagos logo após as respectivas datas de vencimento, a menos que nas Condições Particulares seja fixado prazo diverso ("dias após vencimento").
4. O BANCO poderá também exigir ao ADERENTE os valores adiantados por conta dos créditos cedidos e não pagos
a) se o ADERENTE nas suas relações com os DEVEDORES praticar condições contratuais, quanto ao prazo de pagamento dos créditos, diversas das que tenha submetido ao BANCO com as propostas de cessão;
b) em caso de as CONDIÇÕES PARTICULARES referirem o Prazo de Pagamento, verificar-se que entre este e o prazo efectivamente concedido pelo ADERENTE ao DEVEDOR existe uma divergência superior à tolerância estabelecida nas CONDIÇÕES PARTICULARES.
5. Sem prejuízo do previsto no número anterior, o BANCO poderá unilateralmente retroceder ao ADERENTE os créditos que este lhe tenha cedido sempre que, nas datas referidas no número anterior, os mesmos não se mostrem pagos”.
Do exposto resulta que o factoring pro solvendo não tem o efeito pretendido pelo recorrente, ou seja, quando o devedor não paga o factor deveria exigir o pagamento directamente à sociedade factorizada. É óbvio que não basta a mora do devedor. Enquanto o cessionário entender que não está em causa a solvabilidade do devedor, não tem que exigir o pagamento do cedente. Como resulta do clausulado, o Autor poderá exigir o pagamento do cedente, o que significa que está na sua vontade, só o fará quando e se quiser.
E esta consideração serve também para afastar a alegação do recorrente de que, em caso de incumprimento da obrigação de pagamento, os créditos consideram-se retransmitidos para a sociedade factorizada. Não é isso que resulta do contrato e da lei. O Factor tem a garantia do Aderente, pode exigir-lhe o pagamento, mas o devedor é o recorrente.
Vejamos agora a questão do abuso de direito. Diz o recorrente que o comportamento do Autor ao resolver o contrato, preencher as livranças entregues pelos avalistas e instaurar a acção em causa nos presentes autos representa um claro abuso de direito.
A respeito do abuso de direito diz Batista Machado, RLJ, Ano 119, pg. 232, "dentro da comunidade das pessoas responsáveis (ou imputáveis), a toda a conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente uma responsabilidade - no sentido de um responder pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite...; Desta auto vinculação inerente à nossa conduta comunicativa, derivam ao mesmo tempo regras de condutas básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que, sem a sua observância, nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis...; Do exposto podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrém".
Para fazer face a situações injustas, o legislador consagra o abuso de direito, de que uma das manifestações mais evidentes é a proibição de "venire contra factum proprium", a que o Prof. Antunes Varela entende estar ligado ao dito conceito através da fórmula "manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé" do artº 334º do Cód. Civil.
Não é necessário que o agente tenha consciência de o seu procedimento ser abusivo: basta que o seja na realidade. Exige-se, no entanto, um abuso manifesto, isto é, que o sujeito ultrapasse de forma evidente ou inequívoca os limites referidos no artº 334º do Cód. Civil.
Há abuso de direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado - Vaz Serra, RLJ, Ano 111º, pg. 296.
Ora, face a esta doutrina, não se vê onde está o abuso de direito do recorrido. O que fez foi fazer uso dos seus direitos contratuais: através da presente lide veio exigir o pagamento do devedor; ao preencher as livranças accionou as garantias que contratualmente tinha; e resolveu o contrato de factoring porque entendeu haver fundamento para tanto.
Acresce que, desta conduta do recorrido, não é possível extrair qualquer contradição ou “venire contra factum proprium”. Propôs uma acção judicial contra o devedor, accionou as garantias contratuais para acautelar futura execução e resolveu o contrato de factoring, como se refere na sentença recorrida, “ com o intuito de, no âmbito das relações contratualmente estabelecidas com a aderente, se ver pago da dívida desta sociedade para com o mesmo (fazendo-o, designadamente, como decorrência do não pagamento “dos juros” devidos e a coberto do disposto na cláusula 17.º, n.º 1, al. f) do contrato de factoring celebrado); ou seja, pretendeu ver restabelecida a situação anteriormente vigente à celebração do contrato no plano das relações entre si como factor ou cessionário e a aderente”.
Uma última nota para a questão do imposto de selo.
Aqui, julga-se ter razão o recorrente.
Efectivamente, pretendendo-se através do imposto de selo tributar a utilização do crédito, resulta dos autos que o recorrente não beneficiou de qualquer crédito. Aliás, como supra referimos, o contrato de factoring foi um meio de financiamento do Aderente, que recebeu determinado valor pela cessão dos seus créditos.
O recorrente, porque não utilizou qualquer crédito, não tem que pagar imposto de selo.
E, assim, ao contrário do que sugere a decisão recorrida, o item 17. 3. 1. da Tabela Geral do Imposto de Selo não é aplicável ao recorrido, quer porque não deve juros de créditos que tenha utilizado, quer porque não realizou qualquer operação de crédito com instituição bancária (17.3).
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III – Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação, por em igual medida provada, mantendo-se a decisão recorrida com excepção da condenação no pagamento do imposto de selo, ou seja, vai o Réu condenado a pagar ao Autor o montante de capital de € 423.958,48, acrescido de juros de mora, no valor de € 90.469,62, e vincendos, até efectivo e integral pagamento, e absolvido de pagar o imposto de selo no montante de € 3.618,78.
Custas na proporção do decaimento.
Guimarães, 29 de Setembro de 2014
Paulo Barreto
Filipe Caroço
António Santos