Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
474/22.9T8MDL.G1
Relator: MARIA GORETE MORAIS
Descritores: ARRESTO
REQUISITOS
RECEIO DE PERDA DA GARANTIA PATRIMONIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Para que seja legítimo o recurso ao arresto, que é um meio conservatório da garantia patrimonial, é necessário a concorrência de duas circunstâncias: a aparência da existência de um direito de crédito e o perigo da insatisfação desse direito.
II- O justo receio de perda da garantia patrimonial verifica-se sempre que o devedor tenha o propósito de adotar ou adote uma conduta, indiciada por factos concretos, relativamente ao seu património suscetível de fazer temer pela sua solvabilidade para satisfazer o direito do credor.
III - Para os efeitos do artigo 392º, nº 1, do Código de Processo Civil, não basta qualquer receio: é necessário que seja objetivo e justo, o que significa que a requerente há de alegar por forma clara factos positivos que, apreciados no seu verdadeiro valor, façam admitir como razoável a ameaça real de dissipação do seu património, não bastando invocar o simples receio.
Decisão Texto Integral:
I- RELATÓRIO

M..., Lda. instaurou contra P... – Produção e Comercialização de Azeite, Lda. o presente procedimento cautelar, pedindo que seja decretado o arresto do prédio urbano composto por um edifício de dois pisos, destinado a armazém e atividade industrial, sito na Estrada ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana no artigo ...29 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...22, da freguesia ..., bem como de todo o recheio composto por máquinas, maquinismos e outros que sejam encontrados no seu interior.
Para substanciar tal pretensão alega, em síntese, que no âmbito das relações comerciais que estabeleceu com a requerida resultou um crédito sobre esta no montante global de €168.000,00 (cento e sessenta e oito mil euros).
Acrescenta ainda que é voz corrente, na freguesia ... (...) e nos meios ligados à produção e comercialização de azeite, que a requerida pretende desfazer-se daquele seu imóvel e por todos os meios quer conseguir furtar-se das suas obrigações e não satisfazer o crédito da requerente.
Foi proferido despacho a determinar a citação da requerida, a qual deduziu oposição, negando a existência do crédito de que a requerente se arroga ser titular.
Conclusos os autos veio a ser proferida a seguinte decisão: «Não julgo necessário a produção de qualquer prova conforme artigo 367 nº 1 do CPC.
Cumpre apreciar e decidir, a cobro do que dispõe o Art.º 234º, n.º 4, alínea b) e Art.º 234º-A, n.º 1, ambos, do Código de Processo Civil.
Os procedimentos cautelares são um instrumento processual para protecção de direitos subjectivos ou outros interesses juridicamente relevantes, representando uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado de um processo principal e assentam numa análise sumária - summaria cognitio - da situação de facto que permita afirmar a provável existência de um direito - fumus boni juris - e o receio justificado de que o mesmo seja seriamente afectado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar - periculum in mora.
Calamandrei, in Introduzzione allo studio sistemático dei provvedimenti cautelari, pág. 20, escrevia que “as providências cautelares representam uma conciliação entre as duas exigências que estão frequentemente em conflito: a da celeridade e a da ponderação.
Entre o fazer depressa e o fazer bem, mas tardiamente, as providências cautelares visam, antes de tudo, a fazer depressa, permitindo que o problema do bem e do mal, isto é, da justiça intrínseca da decisão, seja resolvido ulteriormente […]”
Assim, os procedimentos cautelares não se perfilam como instrumento apto à resolução ou composição em definitivo de interesses, antes se destinando a antecipar determinados efeitos das decisões judiciais, a prevenir prejuízos ou a manter determinado status quo, enquanto tardar a decisão definitiva do conflito.
Não efectivam, assim, direitos, mas apenas os asseguram, realizando, por conseguinte, uma função instrumental face à tutela declarativa.
Ensina José Alberto dos Reis, in C.P.C. anotado, Volume I, 3ª Edição, pág. 623, que “a providência cautelar surge como antecipação e preparação duma providência ulterior; prepara o terreno e abre o caminho para uma providência final”.
“A providência”, continua, “não é um fim, mas um meio; não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substancial, mas tomar medidas que assegurem a eficácia de uma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material”.
No que concerne à escolha da providência adequada à tutela do direito concreto, decorre do disposto no Art.º 381º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que havendo uma providência especificada para o caso concreto, não se lance mão de uma não especificada.
No caso vertente, através da presente providência visa a requerente o arresto de um direito de crédito de que é titular a requerida, de molde a garantir a cobrança do crédito que detém sobre esta.
Consubstanciando o arresto um meio de conservação da garantia patrimonial dos credores, traduzindo-se numa apreensão judicial de bens destinados a assegurar o cumprimento da obrigação, enquanto medida de carácter preventivo tendente a evitar a insatisfação do direito de um credor, por se recear, fundadamente, a perda de garantia patrimonial do seu crédito, importa concluir pelo acerto da providência proposta.
Da interpretação conjugada dos arts. 406º, nº 1 e 407º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, decorre que o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, deduzindo os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devam ser apreendidos, assim como todos os elementos necessários à realização da diligência.
Assim, o decretar do arresto depende da verificação cumulativa de dois requisitos: por um lado, a verosimilhança – por oposição a certeza – do crédito do requerente, por outro, o justo receio de perda da garantia patrimonial, impendendo sobre o requerente o ónus de alegar e provar – ainda que de forma perfunctória - não só os factos que tornam provável a existência do seu crédito, como também aqueles que revelem o receio justificado de ver frustrado o pagamento do mesmo.
Ora, revertendo ao caso dos autos, estribados no breve excurso pelo regime legal aplicável que acima se ensaiou e ante a matéria alegada – a admitir a demonstração indiciária e integral da mesma – é de concluir que deve a presente providência ser de indeferir in limine.
Isto porque, se relativamente ao direito da requerente – por virtude da apreciação sumária que ora se impõe – se pode conceder que, provavelmente, o crédito exista, já não assim no que se atém o perigo de insatisfação do crédito ou justificado receio de perda da sua garantia.
Se não, vejamos.
Ensina Antunes Varela que “para que se prove o justo receio (como quem diz o receio justificado e não apenas receio) da perda da garantia patrimonial, não basta a alegação de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjectivo. É preciso que haja razões objectivas, convincentes, capazes de explicar a pretensão drástica do requerente, que vai subtrair os bens ao poder de livre disposição do seu titular” – in Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª Ed., Almedina, pág. 465, nota 1. Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 2ª Edição, pág. 186, postula que o justo receio da perda de garantia patrimonial “pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito”
Ora, no caso sub judice, a Requerente alega apenas que só conhece aquele imóvel como património à Requerida e que é voz corrente, na freguesia ... (...) e nos meios ligados à produção e comercialização de azeite que a requerida pretende desfazer-se daquele seu imóvel e por todos os meios que conseguir furtar-se das suas obrigações e nada devolver à requerente.
Acontece, porém, que não decorrem dos autos factos concretos, para além da suposta intenção da alienação do imóvel, que a própria requerente pretendeu adquirir num negócio no valor de cerca de 820.000,00 € (oitocentos e vinte mil euros), que levem a temer pela delapidação do património da requerida ou pela intenção de não cumprir a obrigação para com a requerente, a existir, nomeadamente a Requerente não alega outras dívidas por pagar, não especifica mais nenhuma para além da dos autos que será manifestamente inferior ao valor de referido negócio de cessão de quotas.
A este respeito, pode ver-se ainda o Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de maio de 2008 (in www.dgsi.pt) de acordo com o qual "o justo receio de perda da garantia patrimonial verifica-se sempre que o devedor tenha o propósito de adoptar ou adopte uma conduta, indiciada por factos concretos, relativamente ao seu património susceptível de fazer temer pela sua solvabilidade para satisfazer o direito do credor".
Em conclusão, a requerente não alega – e tinham de o fazer para sobre eles recair a prova sumária a produzir - factos que demonstrem a probabilidade de a requerida vir a fazer desaparecer o seu património, assim se frustrando qualquer possibilidade de satisfação do seu crédito.
Perante a factualidade descrita, conclui-se que não estão reunidos, no caso dos autos, os dois requisitos cumulativos de cuja verificação a lei faz depender o decretamento do arresto, por não se mostrar presente o justo receio de perda da garantia patrimonial e indefere-se liminarmente a requerida providência cautelar de arresto intentada por M..., LDA contra P... – Produção e Comercialização de Azeite, Lda.».
Não se conformando com o assim decidido, veio a requerente interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1) A ora recorrente intentou providência cautelar de arresto em 8 de outubro de 2022.
2) O Mmº Juiz de Primeira Instância recebeu a mesma e decidiu, em contrário ao disposto no número 1 do artigo 393º, ouvir a parte contrária por despacho datado de 10 de outubro de 2022.
3) Em 22 de novembro de 2022 a requerida deduziu oposição e juntou documentos.
4) Em 26 de dezembro de 2022 a requerente foi notificada para, querendo, exercer o contraditório aos documentos juntos pela requerida.
5) O que fez em 2 de janeiro de 2023.
6) Tendo o Mmº Juiz proferido a sentença, ora posta em crise, em 11 de janeiro de 2023 indeferindo liminarmente a requerida providência cautelar de arresto.
7) O que não poderia ter sido decidido porquanto a mesma havia sido recebida, sido estabilizada a instância (artigo 260º do CPC) e tramitada muito além da simples apreciação inicial (artigos 590º e 226º do CPC).
8) Devendo, por isso, ser revogada a decisão aqui posta em crise prosseguindo os autos.
9) Pois não existe razão alguma para indeferimento liminar que, conforme acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27.05.2021 no processo já referido supra, de acordo com Salvador da Costa, em consonância com a generalidade da doutrina, e, ainda, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (obras destes autores citadas no Acórdão) as hipóteses de indeferimento liminar circunscrevem-se a quatro hipóteses:
10) Manifesta inexistência do direito, manifesta impossibilidade de a situação receada causar lesão do direito, manifesta inadequação da providencia pretendida para afastar a ameaça, não podendo ter aplicação a 1ª parte do artigo 376-3, ou a ocorrência de falta de pressuposto insuscetível de sanação.
11) Não se verificando nenhuma destas hipóteses no caso presente.
12) Além de que se trata de uma providência de arresto, nominada, que tem regulamentação muito específica nos artigos 391º e seguintes do CPC.
13) Prescrevendo o artigo 393º nº 1 que examinadas as provas produzidas (o que significa, antes de mais, que há que haver produção de prova) o arresto é decretado sem audiência da parte contrária…
14) No caso presente o Mmº Juiz nem procedeu sequer à produção da prova. Não ouviu a prova testemunhal requerida.
15) Não podia, por isso, concluir que não foram alegados factos que demonstrem a probabilidade de a requerida vier a fazer desaparecer o seu património --- qual tal foi alegado.
16) Impunha-se uma decisão diferente da que foi tomada e que conhecesse, pela positiva, da providência de arresto requerida.
17) Ao decidir de forma contrária violou a sentença proferida o disposto nos artigos 590º nº 1, 226º nº 4, 260º e 393º nº 1 do Código de Processo Civil.
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A requerida apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. implicações da não observância do disposto no art. 393º, nº1 para o desfecho da lide;
. saber se, no caso, se justifica o indeferimento da providência cautelar de arresto por falta de alegação de factos concretos que permitam afirmar o periculum in mora.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A materialidade a atender para apreciação do objeto do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório.
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IV- FUNDAMENTOS DE DIREITO

IV.1. Das implicações da não observância do disposto no art. 393º, nº1 para o desfecho da lide

Conforme resulta dos autos o juiz a quo, malgrado a expressa previsão normativa do nº 1 do art. 393º, nº 1, determinou a citação da parte contrária (a qual, como se referiu, deduziu oposição), tendo de seguida proferido o ato decisório sob censura que intitulou de “indeferimento liminar”.
A apelante rebela-se, desde logo, contra esse procedimento por considerar que a circunstância de ter sido determinada a citação da requerida obstaculizaria a prolação de um despacho de indeferimento liminar, devendo, por isso, ter lugar a produção da prova que indicou.
Ora, independentemente do (des)acerto do despacho que ordenou a citação da requerida, tal não significa (nem pode significar) que o juiz tivesse necessariamente que proceder à inquirição das testemunhas arroladas pelas partes.
É certo que, nos termos da lei adjetiva (o já citado nº 1 do art. 393º), o juiz perante a petição apresentada pela requerente ou indeferia liminarmente esse articulado ou então determinaria a produção das provas e examinadas estas decretaria, ou não, a requerida providência de arresto, sendo que apenas na afirmativa e após a sua concretização/realização poderia ser cumprida a contraditoriedade (cfr. nº 6 do art. 366).
Como se viu, não foi esse, todavia, o iter trilhado pelo decisor de 1ª instância que, indevidamente, determinou a citação da requerida.
No entanto, repise-se, esse facto não implicaria necessariamente que tivesse de proceder à audição da prova pessoal indicada pelas partes, maxime se após uma análise mais “fina” da petição chegar à conclusão que nessa peça processual não foram alegados quaisquer factos que permitam afirmar a ocorrência dos pressupostos normativos de que depende o decretamento da requerida providência. É que, por mor do princípio da limitação dos atos contemplado no art. 130º, lhe é vedada a prática de atos inúteis, razão pela qual não deve determinar o prosseguimento dos autos (com os inerentes custos e perda de tempo quer para o tribunal, quer para as partes) quando, afinal, a pretensão de tutela jurisdicional aduzida na petição inicial está votada ao insucesso.
Claro está que, nessas circunstâncias o julgador não pode apelidar de indeferimento “liminar” a decisão que venha a proferir no sentido de julgar improcedente o pedido que lhe foi direcionado pela requerente. Summo rigore o despacho de indeferimento liminar, pela sua própria natureza - e tal como a sua designação inculca -, não é precedido (como foi, ainda que indevidamente, o caso) por qualquer outro despacho. Não faria sentido e constituiria uma verdadeira contradição nos termos a prolação de despacho liminar depois de outro despacho; já não estaríamos, obviamente, perante um despacho “liminar”.
Contudo, não está o juiz de 1ª instância impedido de, como se sublinhou, prolatar um despacho de indeferimento, diríamos, subsequente, caso considere não estarem minimamente densificados faticamente os requisitos para ser decretado o arresto, situação em que a diligência de produção de prova seria um ato espúrio e inútil.
Aqui chegados, na improcedência das conclusões 7ª a 11ª, impõe-se avançar para a análise da segunda das questões que é trazida à apreciação deste tribunal ad quem.
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IV.2. Da (in)existência de fundamento para o indeferimento “liminar” da presente providência cautelar de arresto

Já se deu nota que o decisor de 1ª instância indeferiu “liminarmente” a petição inicial com que a requerente deu início ao presente procedimento cautelar, decisão essa que se filiou, fundamentalmente, na circunstância de esta, nessa peça processual, não ter alegado factualidade que permita suportar conclusão no sentido de, in casu, se revelar justificado o receio de perda da garantia patrimonial do crédito que (alegadamente) detém sobre a requerida.
Que dizer?
Como é consabido, entre os meios vocacionados à conservação da garantia patrimonial do credor, conta-se o arresto que, nos termos do nº 2 do art. 391º, consiste numa apreensão judicial de bens com valor suficiente para assegurar o cumprimento da obrigação e pode ser requerido pelo credor que tenha justo receio da perda dessa garantia (art. 619º, nº 1 do Cód. Civil).
A razão de ser deste instituto reside, assim, no facto do património do devedor constituir a garantia geral (ou comum) dos seus credores (cfr. art. 601º do Cód. Civil) e foi atendendo a esse património que estes com ele contrataram, sendo por isso justo permitir o arresto logo que os bens que formam o conteúdo dessa garantia comecem a desaparecer.
Conforme emerge dos citados normativos e bem assim do nº 1 do art. 392º, constituem requisitos desse procedimento cautelar nominado, para além da existência (ou probabilidade de existência ou aparência) do direito de crédito da titularidade do requerente - fumus boni juris -, o fundado receio de perda de garantia patrimonial do mesmo.
A respeito deste segundo requisito a doutrina e a jurisprudência[2] têm convergido no sentido de que para que se demonstre o justo receio (como quem diz o receio justificado e não apenas o receio) de perda da garantia patrimonial, não basta a alegação de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjetivo. É preciso que haja razões objetivas, convincentes, capazes de explicar a pretensão drástica do requerente, que vai subtrair os bens ao poder de livre disposição do seu titular.

O “justificado receio” identifica-se com o chamado periculum in mora inerente a todo o procedimento cautelar - evitar a lesão grave e dificilmente reparável (art. 362º) proveniente da demora na tutela da situação jurídica.
É aqui que entra a noção de justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito no período que antecede a formação do título executivo: tal receio deve-se ao perigo de que, por motivo do tempo necessário para a obtenção do título executivo, em particular da sentença condenatória, a penhora chegue demasiado tarde, quando tiverem desaparecido todos os bens penhoráveis; é por isso e porque de outro modo não ficaria eficazmente tutelado que se concede ao credor a possibilidade de “antecipar a penhora” para conseguir assim a indisponibilidade de certos bens patrimoniais, afetando-os à satisfação do seu crédito.
O receio justificativo do arresto deve fundar-se, por conseguinte, em factos objetivos e concretos e ser avaliado de um ponto de vista objetivo e em relação ao valor, quer do crédito, quer dos bens exequíveis (património) do devedor, quer do comportamento deste relativamente ao respeito pelos compromissos assumidos, tudo segundo critérios racionais de um credor medianamente cauteloso e prudente, por forma a criar neste o temor de ver insatisfeito o seu crédito, se o tribunal não intervier imediatamente e com urgência, prevenindo não só a morosidade inerente à máquina judiciária e o possível comportamento lesivo do devedor.
Numa tentativa de concretizar melhor a ideia daquilo em que deve traduzir-se o conceito de “justificado receio de perda da garantia patrimonial”, não resistimos a citar LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE[3] quando escrevem que “esse receio pode (…) tratar-se do receio de insolvência do devedor (a provar através do apuramento geral dos seus bens e das suas dívidas), ou do da ocultação, por parte deste, dos seus bens (se, por exemplo, ele tiver começado a diligenciar nesse sentido, ou usar fazê-lo para escapar ao pagamento das suas dívidas), ou os transfira para o estrangeiro (está, por exemplo, ameaçando fazê-lo, ou já transferiu alguns) ou de qualquer outra atuação do devedor que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito”.
Deste modo, o critério último de avaliação deste requisito deve basear-se em factos ou circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, como fator potenciador da eficácia da ação declarativa ou executiva, podendo considerar-se como factos índice as circunstâncias que possam conduzir ao reconhecimento da situação de insolvência, como sejam, a falta de cumprimento de obrigações que, pelo seu montante ou circunstâncias do incumprimento, revelem a impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das obrigações, o abandono da empresa ou do estabelecimento, a dissipação ou o extravio de bens[4], a constituição fictícia de créditos ou a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de incumprir.
Feitos estes considerandos, revertendo ao caso sub judicio, verifica-se que na espécie não está em causa que a requerente tenha alegado factos (cfr., v.g., arts. 8º a 12º da petição) tendentes a permitir afirmar a existência (ou probabilidade de existência ou aparência) do seu crédito sobre a requerida.
É relativamente ao segundo requisito - perigo de insatisfação do direito de crédito – que ao contrário do decidido, a apelante pretende ter articulado factos suficientes ao seu preenchimento.
Vejamos, antes do mais, em que termos a requerente assumidamente procurou densificar faticamente o periculum.
Analisando a petição inicial verifica-se que, quanto ao mesmo, a requerente alegou:
. “A requerida, além de outras quantias que deve relativas ao fornecimento de azeite que a requerente lhe fez e que se elevam a cerca de €18.000,00, não devolveu à requerente aquela quantia de 150.000,00 que tem na sua posse desde o dia .../.../2022” (art. 12º);
. “Atento o facto de que a requerida nada mais tem de seu – que a requerente conheça e isso mesmo tendo sido dito à requerente pela requerida quando surgiu a hipótese de negócio e ser o mesmo concretizado pela cessão de quotas da requerida – que o edifício onde se encontra instalado o lagar de produção de azeite e que a mesma se encontra a tentar vender a terceiros” (art. 15º);
. “Tem a requerente justo receio que a requerida proceda à venda daquele imóvel, outros venham a ser declarados proprietários do mesmo e a requerida não possua meios de pagar à requerente o que já lhe é devido” (art. 16º);
. “E, conforme supra se disse, não são conhecidos à requerida outros bens ou rendimentos além das suas instalações que agora se mostrarão mais apetecíveis uma vez pagas as hipotecas que sobre as mesmas existiam com o dinheiro da requerente” (art.17º);
. “E consta, e é voz corrente, na freguesia ... (...) e nos meios ligados à produção e comercialização de azeite que a requerida pretende desfazer-se daquele seu imóvel e por todos os meios que conseguir furtar-se das suas obrigações e nada devolver à requerente” (art. 18º).
Ou seja, deste acervo factual apenas se retira a referência ao montante do (alegado) crédito que a requerente detém sobre a requerida e bem assim referências a elementos componentes do património da requerida. No mais, nessa peça processual, a requerente limita-se, praticamente, a reproduzir conceitos legais e tecer um conjunto de considerações de âmbito genérico, simples conjeturas e conclusões, sem concretizar o alegado justo receio de perda de garantia patrimonial.
Ora, como anteriormente se sublinhou, não basta o receio (subjetivo) por parte da requerente/apelante da perda da garantia patrimonial do seu crédito. Esse receio tem de ser justificado para que, desse modo, fundamente o arresto dos bens do devedor, em ordem a acautelar o efeito útil da ação.
Tornar-se-ia mister alegar (para subsequentemente demonstrar, ainda que sumariamente) factos positivos e concretos que revelem, da parte da requerida, a disposição de desviar, alienar ou ocultar os seus bens subtraindo-os à ação da apelante, coisa que esta, manifestamente, não fez.
Com efeito, como se deixou evidenciado, nenhuns factos concretos foram articulados pela requerente/apelante dos quais se possa concluir que são legítimas as suas suspeitas de vir a perder a garantia patrimonial, isto é, os factos (rectius, afirmações de facto) alegadas não permitem suportar um juízo positivo no sentido de que a requerida se encontre numa situação de incumprimento generalizado de eventuais dívidas, a constituição fictícia de créditos ou a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de incumprir, ou seja, e numa palavra, qualquer atuação sua que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição da requerente, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito.
Solução que, a nosso ver, se não altera ainda que se siga o entendimento propugnado pela apelante - e, portanto, contrário ao adotado pelo tribunal recorrido - de que a alegada intenção de venda do único bem na titularidade da requerida faça perigar o alegado direito de crédito da requerente.
É que, neste conspecto, se limita a afirmar, de modo marcadamente genérico e conjetural, que constituirá “voz corrente” que a requerida se apresta para vender o bem imóvel de que é proprietária, não articulando quaisquer factos concretos de onde se possa razoavelmente extrair a existência desse propósito, mormente através da identificação de efetivos ou potenciais interessados nessa aquisição ou de que já estejam em curso reais negociações para a realização desse ato alienatório, a existência de anúncios publicitando essa intenção de venda, a eventual contratação de mediador imobiliário para o efeito, etc.
Consequentemente, as alegadas proposições factuais só por si e desacompanhadas de outro circunstancialismo fáctico não são, na nossa perspetiva, minimamente suficientes para que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito, nomeadamente suspeitando da atuação da requerida quanto à dissipação do seu património. Acresce que, ainda que outro património a requerida não possua para além do indicado pela requerente/apelante, não sabemos qual o seu valor real - e que, portanto, poderá ser suficiente para satisfazer o eventual crédito que a esta venha a ser reconhecido.
Em suma: a versão fáctica da requerente vertida na petição inicial traduziu-se, pois, na alegação de que a requerida é devedora da aludida importância de €168.000,00, a qual não foi ainda liquidada, sendo certo que nada se mostra alegado quanto às eventuais interpelações que possam ter sido direcionadas pela requerente à requerida com esse desiderato.
Por outro lado, a requerente não alegou que a requerida tenha outras dívidas vencidas e que se tenha registado qualquer relevante variação negativa do seu (dela, requerida) património ou que esta tenha encetado, de modo efetivo (e não meramente conjetural), diligências que façam razoavelmente supor que irá praticar atos de ocultação ou dissipação do mesmo.
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Diante do exposto, nenhuma censura nos merece o ato decisório recorrido, improcedendo, desta forma, todas as demais conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respetivo recurso, sendo certo que face à clara omissão de alegação de factos concretos tendentes a densificar o periculum in mora sequer se poderia equacionar a possibilidade de um convite ao aperfeiçoamento (que, na sua economia, se destina a aperfeiçoar algo já existente, e não a suprir a sua ausência).
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V- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmar o despacho recorrido.
Custas pela recorrente (artigo 527º, nº 1).
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Guimarães, 11.5.2023



[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cfr., por todos, na doutrina, ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. IV, 2ª edição revista e atualizada, Almedina, págs. 186 e seguintes, CARVALHO GONÇALVES, Providências Cautelares, Almedina 2015, págs. 229 e seguintes, LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, págs. 143 e seguintes e SILVA CAMPOS, O arresto como meio de garantia patrimonial – uma perspetiva substantiva e processual, Revista de Direito das Sociedades VIII (2016), 3, págs. 743 e seguintes (acessível em
http://www.revistadedireitodassociedades.pt); na jurisprudência, acórdãos da Relação do Porto de 13.11.2012 (processo nº 3798/12.0YYPRT-A.P1) de 11.10.2010 (processo nº 3283/09.7TBVCD-A.P1) de 16.06.2009 (processo 3994/08.4TBVLG-C.P1) e de 31.03.2009 (processo nº 17/08.7TBARC-B.P1), acórdãos da Relação de Lisboa de 16.07.2009 (processo nº 559/08.4TTALM.L1-4) e de 19.08.2009 (processo nº. 4362/09.6TBOER.L1-7), acórdãos da Relação de Coimbra de 30.06.2009 (processo nº 152/09.4TBSCD-A.C1) e de 15.05.2007 (processo nº 120/07.0TBPBL.C1) e acórdão da Relação de Évora de 23.04.2009 (processo nº 1318/08.0TBABF-A.E1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[3] Ob. citada, pág. 144.
[4]Sendo que, como é evidente, não é necessário que os atos lesivos se tenham já desencadeado, mas, ao menos, que se evidenciem manobras ou ameaças de preparação desses atos.