Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1391/20.2T9BRG.G1
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
LEGITIMIDADE PARA CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
CRIME DE BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- O bem jurídico protegido com a incriminação do branqueamento é a administração da justiça.
II- Estando apenas em causa um crime de branqueamento, o recorrente enquanto ofendido dos crimes antecedentes pode ser lesado no crime de branqueamento, por eventualmente ter sofrido prejuízos com os factos denunciados.
III- Contudo, não tem a qualidade de «ofendido», para efeitos de admissão e constituição como assistente, nos termos do art. 68°, n° 1, alínea a), do CPP, já que não é o titular do interesse que constitui o objecto imediato da infracção, o qual, como vimos é o Estado, na realização ou administração da justiça.
IV- O assistente não podendo ser admitido a intervir nessa qualidade quanto ao crime de branqueamento, também carecia de legitimidade para requerer a instrução a qual, tendo sido por ele requerida sempre seria nula, nos termos do artigo 119º, alínea b) do CPP, nulidade essa traduzida na falta de promoção do processo pelo Ministério Público o qual, em despacho anterior havia ordenado o arquivamento dos autos.
V- Como quer que seja, embora por despacho tabelar que não foi objecto de recurso, tenha sido reconhecido ao requerente/ recorrente a qualidade de assistente, não havendo caso julgado formal sobre a sua legitimidade, podendo a questão ser conhecida até à decisão final, porque dela carece para intervir nos autos como assistente, o recurso por ele interposto é de rejeitar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 420º, n.º1 e 414º, n.º2, ambos do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

Nos autos supra identificados, após notificação do despacho proferido pelo Ministério Público de arquivamento do inquérito, AA, veio requerer a abertura de instrução “e, em consequência, proferido despacho de pronúncia dos Denunciados pelo crime de Branqueamento de Capitais (…)”.
Por despacho de 24-10-2022, proferido pela M.ª juiz de instrução do Juízo de Instrução Criminal ... foi indeferido aquele requerimento de abertura de instrução, “ao abrigo do disposto no art. 287, n. 3, do CPPenal”.

Inconformado com esta decisão, da mesma recorreu o assistente AA, apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem

1. Como decorre da narração dos factos constantes das páginas 6 a 17 (itens 1 a 48), supra, o assistente invoca de forma sequencial e abundante os factos praticados pelos arguidos que integram o tipo legal de crime de branqueamento, p. e p. no art.º 368º - A do C. Penal, as circunstâncias de tempo e de lugar, os seus autores e a motivação da sua prática.
2. Estes factos estão inventariados nos artigos 22º, 36º, 37º, 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 57º, 58º, 59º, 60º, 62º, 63º, 79º, 80º, 84º, 85º, 86º, 89º, 90º, 92º, 93º, 96º, 100º, 106º, 109º, 110º, 111º, 112º, 113º, 114º, 115º, 133º, 143º, 146º, 147º, 148º, 149º, 152º, 153º, 154º, 157º, 158º do RAI.
3. Estes factos revestem a natureza de uma acusação, possibilitam a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e elaboração da decisão instrutória.
4. Deles resulta o conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias integradoras daquele tipo legal de crime, a livre determinação dos arguidos e as suas vontades de praticar os factos que praticaram com plena consciência do seu desvalor.
5. Os premeditados actos ilícitos culposos societários constituíram actos preparatórios necessários e indispensáveis para os arguidos atingirem os fins a que se propuseram: aquisição de PAC’s (Postos de Abastecimento de Combustíveis) com o dinheiro recebido como contrapartida dos CCE (Contratos de Compra e Venda Exclusiva), dinheiro que fizeram seu e que pertencia à herança e às sociedades que dela faziam parte integrante.
6. Se não se tivesse movido com a intenção de se apropriar das contrapartidas financeiras pagas pela B... e de se apropriar de oportunidades de negócios que constituíram as aquisições dos PAC’s à B..., os arguidos teriam cumprido o dever fundamental que sobre ele impendiam de informar e comunicar aos irmãos as negociações então em curso e teria convocado as assembleias gerais (art.º 5º dos pactos sociais) das sociedades familiares e da holding familiar para lhe darem autorização para negociar e depois para “fechar” os CCE e teriam feito intervir todos os herdeiros tal como sucedeu em 3 de Março de 2003, com a celebração do CCE com a mesma B..., relativo ao PAC de ... (fls 731 a 764) e em 31.12.2004 no CCE com a R... (fls. 1031 a 1042).
7. Os contratos de fls. 731 a 764 e 1031 a 1042, comprovam o dolo intensíssimo dos arguidos.
8. A leitura atenta dos artigos do RAI destacados nas conclusões 1 e 2, supra, permitem concluir que o mesmo obedece aos requisitos exigidos no art.º 287º, n.º 2 do CPP.
9. Os factos imputados aos arguidos são mais do que suficientes para uma vez provados conduzirem à aplicação duma pena.
10.O assistente teve o cuidado e o árduo trabalho de fundamentar a maioria desses factos nos documentos junto ao processo, indicando a numeração das folhas onde podiam ser consultados e examinados.
11.Como se procura demonstrar nas páginas 18 e seguintes das presentes alegações, o RAI contém ainda as razões de direito de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do M. P., bem como a indicação dos actos de instrução que o assistente pretende que o Sr. Juiz leve a cabo, em especial as buscas propostas pelo Departamento de Investigação Criminal da Polícia Judiciária, dos meios de prova que não foram considerados no despacho de arquivamento, dos factos que, através de um e outros, se espera provar, tendo no final sido requerida diversa prova.
12.Deste modo, o RAI contém as razões de facto e de direito suficientes para indiciar a prática do tipo legal de crime imputado aos arguidos e fosse admitida a abertura da instrução.
13.Mas ainda que o RAI padecesse das irregularidades apresentadas no despacho recorrido, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sem conceder, sempre a Meritíssima Sr.ª Juiz podia e devia convidar o assistente a corrigi-lo ou a completá-lo.
14.Esta solução decorre expressa e inequivocamente do n.º IV do sumário e dos dizeres do douto Acórdão da Relação do Porto, de 5.5.1993, de que a decisão recorrida utiliza para indeferir o RAI.
15.Tanto mais que a própria decisão recorrida considera que “o RAI apresentado não satisfaz, integralmente, o cumprimento dos requisitos formais …”. Consequentemente, reconhece que em parte os cumpre.
16. Acresce    que      os        factos  concretos        imputados       aos      arguidos são extraordinariamente graves, consubstanciam a apropriação de uma quantia da ordem dos vinte milhões de euros, utilizados pelos arguidos em benefício próprio, em desfavor da herança e das sociedades familiares, melhor identificadas nos presentes autos, factos amplamente sustentados em abundante prova documental e nos meios de prova requeridos pelo Departamento de Investigação Criminal da Polícia Judiciária, no final do relatório intercalar de fls. 1523, 1524 e 1526.
17.O despacho recorrido é totalmente insensível à gravidade dos factos imputados aos arguidos e dá mais importância e total prevalência às alegadas razões de forma em detrimento dos factos concretos da vida real, o que é inaceitável e inadmissível em face das finalidades do processo penal.
18.Tal como o despacho de arquivamento o despacho recorrido traduz uma actuação destituída de qualquer preocupação com a realização da justiça e a descoberta da verdade material.
19. O despacho recorrido viola frontalmente o n.º 3 do art.º 287º do CPP, segundo o qual:
“3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”
20.“Na realidade, como pondera Souto de Moura, Jornadas de Direito Processual Penal, 120-121, se o assistente requer a abertura da instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível, ficando o juiz sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados. (…)
Cremos que nestes casos o juiz deverá proceder do seguinte modo: Quanto ao assistente notificá-lo-á para que complete o requerimento com os elementos que omitiu e que não devia ter omitido (art.º 287º, n.º 3)” – Cfr. Manuel Lopes Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal”, Anotado 1998, Almedina página 541
21. “A insuficiência dos factos, suas consequências e seus autores não integra o conceito de inadmissibilidade legal, a que se refere o n.º 2 do art.º 287º do CPP e por isso a sua apreciação está vedada ao juiz para justificar a recusa da instrução. (Ac. RL de 12 de Julho de 1995; CJ, XX, Tomo 4, 410)” – Cfr. Manuel Lopes Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal”, Anotado 1998, Almedina página 543.
22. Se as irregularidades referidas no despacho recorrido relativamente ao RAI não permitissem a sua correcção através de um despacho de convite ao aperfeiçoamento, a norma do n.º 2 do artigo 287º do CPP violaria o artigo 20º da Constituição da República (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva).

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado. Para o efeito apresentou as seguintes conclusões que igualmente se transcrevem:

A) Os factos que no entender do assistente constam do RAI não passam de uma amálgama, sem grande nexo, tal como as alegações que nos ocupam evidenciam, nos seus pontos 1 a 43.
B) Trata-se de uma descrição fragmentária, de leitura agreste, sem um fio condutor que permita perceber a racionalidade que lhes está subjacente, donde a custo se vão extraindo algumas conclusões.
C) Mesmo dando de barato que estamos perante uma acusação alternativa, parece evidente a falta dos chamados elementos subjectivos do tipo, designadamente o dolo e o conhecimento das proibições.
D) Foi, por conseguinte, correcta a rejeição do RAI.
E) Não reconhecendo essas deficiências do, entende o recorrente que ainda assim deveria haver um convite ao seu aperfeiçoamento;
F) Acontece que tal decisão não se encontra prevista na lei processual penal, nem se harmoniza com os princípios constitucionais do processo penal português;
G) No Rai, o assistente deve deduzir a chamada “acusação alternativa”, que fixa o objecto do processo, com a mesma exigência de rigor que é aplicável ao despacho de acusação formulado pelo Ministério Público;
H) Essa exigência de rigor estende-se à narração dos factos, não apenas em sentido naturalístico, mas também quanto aos factos relativos ao sentido de desvalor da actuação imputada aos arguidos;
I) Não constando tal narração do RAI apresentado, a sua rejeição por inadmissibilidade legal da instrução não merece censura;
J) Acresce que o RAI enferma de múltiplas insuficiências, para além da apontada pela M.ª JIC, que sempre conduziriam à rejeição.
K) Assim, do RAI resulta que se entende indiciar-se um crime de branqueamento de capitais, o qual teria por fundamento um ou vários crimes de burla qualificada, um ou vários crimes de falsificação de documento e um ou vários crimes de fraude fiscal, mas não se individualizou cada um desses crimes, nem se percebe se se pretende que os arguidos sejam, a final, pronunciados por esses crimes, se por alguns ou se apenas pelo crime de branqueamento.
L) Tão pouco se referem quais os arguidos que se pretende ver responsabilizados por que concretos crimes, bem como o grau de participação de cada um e se todos os arguidos comungam no mesmo dolo.
M) Isto tem a ver com o facto de o RAI entender a instrução como um prolongamento do inquérito, desta vez com um juiz a comandar a investigação, como acontecia no CPP de 1929.
N) Trata-se de uma visão desfocada do actual instituto da instrução e das suas finalidades.
O) Se pretendia que a investigação prosseguisse, devia o assistente ter avançado com um pedido de intervenção hierárquica, ao abrigo do art. 278.º do CPP.
Termos em que deverá o recurso em apreço ser considerado improcedente.
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no qual conclui pela improcedência do recurso por ilegitimidade do recorrente.
Transcreve-se parcialmente aquele parecer:
“Cumpre manifestar a nossa opinião, por forma concisa e precisa.
E desde já colocamos uma questão que podemos chamar de prévia.
Versa ela sobre a legitimidade do recorrente para apresentar o RAI quando nele expressa e declaradamente se atribui aos arguidos a autoria de um crime de branqueamento de capitais. Na verdade, é inequívoco que o assistente possui tal estatuto por virtude do despacho judicial de 24/10/2022.
Todavia, e desde já o afirmamos, o assistente não tinha legitimidade para requerer a instrução relativamente ao citado crime.
Urge convocar e perseguir o saber constante do acórdão de 24/09/2014, do TRL, proc. 142/12.0TELSB.L1-3 e que conheceu de questão igual à que agora nos preocupa E nele se escreveu, em sumário: “1 - O estatuto de assistente é dinâmico e reversível, pelo que o Despacho que admite a sua intervenção apenas faz caso julgado rebus sic standibus. 2 - Assim, uma vez que o crime de branqueamento de capitais não consta do elenco de crimes previstos no Art.º 68.º do CPPenal (e na alínea e), do seu n.º 1), o/a assistente passa a carecer de legitimidade para continuar a intervir nos autos como assistente, por, face ao despacho de arquivamento dos autos e ao novo impulso provindo da assistente, já não estar em causa qualquer dos crimes pelos quais o assistente foi admitido a intervir nos autos, nessa qualidade”.
E nele ainda se acrescentou: “Mediatamente há outros bens jurídicos tutelados, desde logo os mesmos bens protegidos pelas incriminações designadas na norma incriminadora do branqueamento, que constituem co-fundamento da punição, mas o cerne da tutela do branqueamento é a realização da justiça. O bem jurídico protegido é, assim, a pretensão estadual de confiscar os bens de origem ilícita, um interesse supra-individual, de realização da justiça, que é posto em perigo pelas condutas de branqueamento de capitais, na medida em que estas dissimulam a origem ilícita de um bem – de cuja prova depende a possibilidade de o confiscar e, como tal, de fazer valer o princípio segundo o qual “o crime não deve compensar” – Jorge Alexandre Fernandes Godinho, ob. cit., pág. 253.(…) Considere-se, ainda, que o elenco dos crimes previstos na mencionada alínea e) do Art.º 68.º do CPPenal, é de carácter taxativo (na letra lei, podendo ser esta previsão decorrer deste mesmo preceito ou de legislação avulsa, como acontece no âmbito da acção popular na legitimidade concedida aos respectivos titulares), pois o contrário poderia vir a equivaler a um desvio da prossecução dos valores ou dos interesses (de cidadania) para outros âmbitos mais privados ou políticos, ou, em última análise, a violação do monopólio constitucional da acção penal pelo Ministério Público.
E nele se remata: “Por esta via, não estando agora em causa qualquer dos crimes pelos quais o assistente foi admitido a intervir nos autos, nessa qualidade, não se poderá deixar de concluir que o mesmo passa a carecer de legitimidade para continuar a intervir nos autos como assistente, uma vez que o crime de branqueamento de capitais não consta do elenco de crimes previstos no Art.º 68.º do CPPenal (e na alínea e), do seu n.º 1).
Assim, antes de mais, importa, face ao despacho de arquivamento dos autos e ao novo impulso provindo da assistente (que neste caso, delimita a tipologia do crime imputado aos "arguidos V. denunciados), levando em conta a factualidade descrita no requerimento de abertura de instrução ora apresentado, o mesmo recorrente não tinha legitimidade como assistente para vir requerer a aludida abertura de instrução.
Nos termos do n.º 3 do Art.º 287.º do CPPenal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal”.

Talqualmente se descreveu neste acórdão, assim ocorre no caso que se aprecia.
 Então, faltando ao assistente legitimidade para apresentar um RAI com a imputação aos arguidos do citado crime de branqueamento de capitais, crime que não consta previsto no citado art.º 68, n.º1, al. e) do CPPenal, por razão esta razão diversa da constante da decisão recorrida, o mesmo não poderá ser objecto da instrução. Há, pois, uma inadmissibilidade desta.
(…) CONCLUSÃO: o assistente, ao requerer a abertura da instrução na sequência do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público relativamente a um crime de burla crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º1 e 218.º, n.º2, al. a) do CP e a uns crimes de falsificação de documento, quando nesse requerimento unicamente imputa aos arguidos a autoria de um crime de branqueamento de capitais na previsão do art.º368-A, do CPenal, procede, assim, sem legitimidade para tal pois que não é titular dos interesses que a norma penal visa proteger com a incriminação e o predito crime não se acha elencado na al. e) do n.º1 do art.º 68 do CPPenal. A ilegitimidade do recorrente conduzirá, então, à improcedência do seu recurso».

Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2 do Código de Processo Penal (CPP) o recorrente apresentou extensa resposta ao parecer que finalizou com as seguintes conclusões que se transcrevem:

1. Não há identidade objectiva entre a realidade material subjacente ao presente caso e aquela que subjaz ao douto acórdão de 29.04.2014 da Relação de Lisboa, em que se baseia o parecer do MP para despropositadamente sustentar a ilegitimidade da constituição de assistente do ofendido.
2. Nos presentes autos está também em causa o tipo legal de crime de branqueamento de vantagens patrimoniais, económicas e financeiras, precedido ou realizado por meio do tipo legal de crime de burla qualificada ou abuso de confiança agravada e de várias falsificações das assinaturas de pessoa certa e determinada, apostas falsamente em três cheques do valor global de quase dois milhões de euros, falsificações que só podem ter sido feitas pelos arguidos como resulta fortemente indiciado;
3. Os factos constantes da queixa são exactamente iguais aos factos constantes do RAI, aperfeiçoados ou sistematizados nas alegações de recurso contra o despacho de arquivamento;
4. Não houve qualquer alteração de factos do inquérito para o RAI e muito menos qualquer alteração substancial do que quer que fosse;
5. O tipo legal de crime de branqueamento de vantagens patrimoniais foi suscitado em 6 de Janeiro de 2022, ou seja, a seis meses e seis dias antes da prolação do despacho de arquivamento;
6. Seja como for, a qualificação dos factos, a subsunção jurídico normativa compete ao MP tal como compete ao julgador;
7. Ainda que assim não fosse, no âmbito da legalidade e objectividade estrita, do princípio da legalidade e do seu corolário lógico que é o princípio da oficiosidade, o MP tem poderes-deveres alargados, estendendo-os a factos apurados ainda que não denunciados;
8. Foi, pois, plenamente legitima a admissão do ofendido a intervir como assistente, como continua a ser totalmente legitima a sua intervenção no RAI e nos termos subsequentes do presente processo uma vez que é absolutamente certo e seguro que não houve qualquer alteração do objecto dos factos integradores do inquérito no RAI e nas alegações de recurso;
9. No caso objecto do dito acórdão da Relação de Lisboa, o queixoso carecia de legitimidade para ter requerido a abertura da instrução, pelo que nada nos pode surpreender os dizeres de tal douto e esclarecido acórdão.
10. O queixoso não era o titular de qualquer um dos interesses protegidos pelos tipos legais de crime que imputava aos denunciados, um deles uma figura de proa do regime político angolano e presidente duma petrolífera. Consequentemente, não podia constituir-se assistente à luz das alíneas a), b), c) e d), do n.º 1 do art.º 68º do CPP.,
11. Por isso, pretendeu constituir-se assistente à luz do art.º 68º, n.º 1, al. e) do CPP, numa situação análoga à “acção popular” do Direito Administrativo;
12. Acresce que, ao invés do que sucede no presente caso, no caso relatado no dito acórdão da Relação de Lisboa, a questão da imputação do crime de branqueamento de capitais (e não de vantagem patrimoniais e económicas) só foi suscitada no RAI;
13. Pelo que houve efectivamente uma alteração do objecto dos factos substantivos e apreciados no inquérito;
14. O bem jurídico titulado pelo crime de branqueamento (de vantagens patrimoniais e económicas) é a realização da justiça. Mediatamente há outros bens jurídicos tutelados, desde logo os mesmos bens protegidos pelas incriminações designadas na norma incriminadora do branqueamento, que constituem o co-fundamento da punição” – Germano Marques da Silva.
15. O bem jurídico tutelado no crime precedente ou subjacente de burla qualificada e de abuso de confiança agravada é o património e no de falsificação de cheques é o da tutela da confiança e também o da segurança da vida em sociedade;
16. Face aos factos objecto da queixa e do RAI a constituição do assistente foi plenamente legitima, prevista na lei;
17. Face aos factos objecto do falado acórdão da Relação de Lisboa em que se apoia o parecer do MP, a constituição de assistente era por banda do tal cidadão opositor ao regime político então em vigor em Angola, “ab initio” inadmissível à luz de qualquer uma das previsões das alíneas a) a e) do n.º 1 do art.º 68º do CPP;
18. Pelo que o douto acórdão da Relação de Lisboa trazido á liça pelo MP antes confirma que a admissibilidade da constituição de assistente do ofendido decidida pela Exm.ª Sr.ª Juiz de Instrução, foi plenamente legal e inatacável, pelo que a pretendida “decisão sumária” de o afastar do presente processo como assistente não faz qualquer sentido jurídico e sobretudo moral;
19. Ainda que assim não fosse, a decisão de admissão de assistente transitou em julgado e foi já aceite pelo MP atento o facto de a não ter impugnado na sede própria – a resposta às alegações na 1ª instância.

Termina no sentido de que “deve considerar-se infundado quer de facto quer de direito o parecer do Ministério Público, devendo o recurso ser julgado procedente”.
Colhidos os vistos legais, procedeu-se à realização da conferência
*
II- Fundamentação

1. Conforme é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98).

Neste recurso são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· saber se o recorrente podia constituir-se assistente e requerer a abertura de instrução;
· saber se o requerimento de abertura de instrução satisfaz ou não os requisitos legais e;
· em caso negativo, saber se aquela omissão é causa de rejeição de tal requerimento ou se deveria formular-se um convite ao assistente no sentido de sanar a omissão verificada;
*
2. Sequência processual relevante

a) Em 10 de Março de 2020 AA veio participar criminalmente contra BB e CC por considerar que “Verificam-se indícios de que os arguidos cometeram, em co-autoria, e sob a forma consumada e dolosa, pelo menos, o tipo legal de burla qualificada” (cfr. fls. 3 a 109).
Na síntese constante dos artigos 1º e 2º daquela denúncia:
“Os factos imputados ao participados na presente queixa consubstanciam a prática de vários tipos legais de crime, em especial o de burla qualificada, previsto e punido nos artºs 217.º, n.º1 e 218.º, n.º2, al. c), por referência ao art.º 202, al. b), todos do Código Penal, praticados entre 15 de Março de 2010 e data que o participante não consegue determinar mas que se situou durante do ano de 2019.   
Constituem uma teia complexa e sofisticada, feita de interdependências num sistema de vasos comunicantes, através do qual o 1º participado se apropriou de €19.673.513,00, quantia que pertencia à herança aberta por falecimento de seu pai e às sociedades por este fundadas, da qual beneficiou ainda o 2º participado, sócio e advogado do primeiro”.
No decurso do inquérito procedeu-se à constituição de arguidos de BB, CC, BB e das sociedades G... Lda e ... (...)-Áreas de Serviço Lda.
b) Em 6 de Dezembro de 2021 (e não  6 de Janeiro de 2022 como por lapso se refere na resposta ao parecer do Ministério Público junto desta Relação) AA apresentou um requerimento no qual depois de referir que “Afigura-se-nos que está em causa a prática pelos participados de um tipo legal de crime de branqueamento, p. e p. no art.º368-A do Código Penal (…) conclui que “(…) o prazo de prescrição para o tipo legal objecto do presente inquérito é de 15 anos e não 10 anos como erradamente se referiu no requerimento anteriormente apresentado (cfr. fls. 1403-1404= fls1439-1442 = fls. 1454-1455 = fls. 1730- 1731,
c) Por despacho de 12-7-2022, o Ministério Público determinou “o arquivamento do dos autos, nos termos do artigo 277.º, n.ºs 1 e 2 CPP, por não se terem recolhido indícios sobre a prática de ilícitos de natureza criminal pelos arguidos” ( fls. 1940-1956)
d) Em 20 de Setembro de 2022, AA veio “ao abrigo do artigo 68.º, n.º3, al.b) e do art. 287.º, nº1 do C.P.Penal, requerer a sua constituição como assistente, por para tanto estar em tempo e ter legitimidade”(cfr. fls. 2201).
e) Na mesma data, em 20 de Setembro de 2022, AA veio requerer a abertura de instrução “(…) uma vez que existe prova e indícios evidentes da prática de factos susceptíveis de integrar o tipo legal de crime de branqueamento por parte dos arguidos, p. e p. no art.º 368º-A do Código Penal” (cfr. fls. 2210-2278 cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido.
f) Em 24-10- 2022 foi proferido o seguinte despacho: “Admite-se a requerida constituição como assistente, porquanto tem legitimidade (art. 68.º, n.º1 do Código de processo Penal), está em tempo (art. 68.º, n.ºs 2 e 3ª) do mesmo diploma legal), efectuou o pagamento da taxa de justiça devida , e encontra-se devidamente representado por advogado. Notifique” (cfr. fls. 2468).

g) Na mesma data, em 24-10-2022, foi proferido o seguinte despacho (despacho recorrido):

«Teor da ref. ...57:
Veio o assistente requerer a abertura de instrução na sequência de proferição de despacho de arquivamento constante da ref. ...91.
Estabelece o art.287 (…)
O RAI apresentado pelo assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se- lhe- vide a este propósito ACRL DE 12-05-1998, in BMJ 447, págs. 555.
Se assim é, podemos , então, concluir que , por força da conjugação do art. 287, n. 2 , com o art. 309, n. 1 , ambos do CPPenal, a instrução requerida pelo assistente , em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo M.P.(aquele que aqui importa ter em conta), não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho , sendo certo que tal exigência , formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido – cfr. art. 287, n. 2, « in fine » « a contrario » , do CPPenal.
Pelas razões acima aludidas, no requerimento para abertura de instrução o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do M. P., considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida. O juiz, por seu turno, irá apurar se esses factos se indiciam ou não, proferindo ou não, em consonância, despacho de pronúncia – cfr. neste sentido AcRP de 05-05-1993, in CJXVIII, 3º , pág. 243.
Isto significa, portanto, que o requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objeto do processo a partir da sua representação; ele constitui, pois , substancialmente , uma acusação alternativa ao despacho de abstenção do MP, suscetível de delimitar o objeto do processo e a atividade cognitiva do Tribunal.
Só assim se respeitará a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que «(…) o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (…) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objeto da acusação do M. P.» - Germano Marques da Silva, in Do Processo Penal Preliminar, pág. 264.
Por outro lado, o TC já se pronunciou sobre a questão da constitucionalidade da norma do art. 283, n. 3 , als. b ) e c ) , do CPPenal, quando interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do RAI apresentado pelo assistente os elementos mencionados nas alíneas.
O assistente tem, em geral, no processo penal português, a posição de colaborador do M. P. – cfr. art. 69, do CPPenal- , a quem compete exercer a ação penal – cfr. art. 219, n. 1 da CRep.
Trata-se de uma solução que , por um lado, potencia a eficácia da investigação , já que admite a participar no processo um sujeito envolvido no conflito social inerente à prática do crime ( e , nesta medida , contribui para a boa aplicação do direito ) , e, por outro lado, é uma solução que cria condições de pacificação social , dado reconhecer o estatuto do sujeito processual à vitima do crime , que tem , assim, a possibilidade de intervir , através de atuação própria, na realização da justiça penal.
«Quid iuris» quanto ao caso concreto ?
O assistente, como já referido, tem a faculdade de requerer a abertura de instrução. Tal faculdade, no caso concreto, foi exercida na sequencia da prolação de despacho de arquivamente do inquérito pelo M. P. Esse requerimento, consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que, por via dele, é pretendida a sujeição da arguida a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objeto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso, em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
O douto RAI em apreço indica as disposições legais aplicáveis, mas no que à narração dos factos respeita, o mesmo limita-se a elencar conclusões factuais à mistura com ilações conclusivas, e descritivas dos depoimentos testemunhais produzidos em sede de inquérito, sem, contudo, descrever, de modo concreto e preciso, os factos que fundamentam à aplicação aos arguidos de uma pena.
Lendo-se o RAI apresentado pelo assistente, verifica-se que o mesmo, salvo o devido respeito, pouco ou nada diz quanto aos factos em apreço nos autos, limitando-se, no essencial, a avançar as razões da sua discordância (legitimas, certamente) com o despacho final de arquivamento proferido pelo M. P.
Repare-se, ainda , que o assistente não faz uma referência sequencial à forma como se terão desenvolvido os factos que culminaram na integração típica apontada , designadamente os que permitam esclarecer a imputação subjetiva respetiva , antes , porém , parecendo impor ao Juiz de Instrução , dada a forma como alegou , assim como a forma como escalpeliza a sua requerida produção de prova , a busca nos elementos constantes dos autos dos factos que poderão consubstanciar a prática do(s) imputado(s) crime(s) .
O RAI apresentado pelo Assistente deveria, desde logo, descrever os factos concretos que pretende imputar aos arguidos.
Perante o arquivamento determinado pelo Ministério Público e de acordo com o artigo 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente deveria constituir uma «acusação alternativa», descrevendo os factos que fundamentam a eventual aplicação ao(s) arguido(s), definindo e delimitando assim o objeto do processo.
E por outro lado, o RAI é omisso quanto ao elemento subjetivo dos crimes imputados aos arguidos.
Ora, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 - Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27 fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
Em conclusão do sobredito, a jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 1/2015 é aplicável à questão sub judice, o que significa que, por força dela, não pode efetuado o aditamento à matéria de facto a provar, integrando na mesma o facto, «Os arguidos agiram de forma voluntária, livre e consciente, e sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal».
Constatamos, assim, que, ao contrário daquilo a que estava obrigado, o assistente não fez no RAI a necessária inventariação factual equivalente a uma acusação pública.
De sublinhar, ainda que não é ao Juiz de Instrução que incumbe selecionar na alegação que constitui a denúncia aqueles factos que, concretamente, a terem-se por suficientemente indiciados, poderiam permitir a imputação aos arguidos, na fase de instrução, de um qualquer ilícito penal.
Relembra-se o que já foi dito sobre a exigência que, «in casu», devia conter o RAI do assistente, não só para que os arguidos possam, eventualmente, serem pronunciados pelos factos nele descritos, mas também para que fiquem, definitivamente, assegurados os seus direitos de defesa e lhe seja possível carrear para o processo os elementos de prova que entender úteis – cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 9 º edição, pág. 541 -.
Assim se respeitarão então, os princípios basilares que subjazem ao processo penal: estrutura acusatória e delimitação ou vinculação temática do tribunal, em ordem a assegurar as garantias de defesa do arguido contra qualquer arbitrário alargamento do objeto do processo e a possibilitar-lhe a preparação da defesa, no respeito do principio do contraditório.
Dada a posição do RAI apresentado pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Dai que o art. 287, n. 2, do CPPenal, remeta para o art. 283, n. 3, als. b ) e c ), do mesmo diploma legal, ao prescrever os elementos que devem constar do RAI.
Assim, o assistente tem de fazer constar do RAI todos os elementos referidos no n. 3, do art. 283, do CPPenal.
E não o fez «in casu».
Atenta a estrutura acusatória do processo penal, o Requerimento de Abertura de Instrução não pode limitar-se à simples impugnação do despacho de arquivamento (tal como se limitou o assistente a fazer) para o que o meio adequado é a reclamação hierárquica.
Tal exigência, decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.
Em suma, a inexistência de uma « acusação alternativa » e , por via dela, do elemento do tipo subjetivo dos ilícitos imputados, impede a definição da conduta do quem quer que seja, como conduta típica, ilícita e culposa, portanto, como crime. Não havendo crime, o RAI está, necessariamente, votado ao insucesso.
Conforme se referiu, o RAI apresentado não satisfaz, integralmente, o cumprimento dos requisitos formais.
Acresce que, nestes casos, é insustentável a prolação de um despacho de aperfeiçoamento, sob pena de haver lugar a uma prorrogação do prazo legal para requerer a abertura da instrução inadmissível em processo penal fora do caso previsto no art. 107.º, nº 6, do Código de Processo Penal.
Isso mesmo resulta inequivocamente do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no Diário da República n.º 212, I Série A, de 4 de Novembro de 2005 que, fixando jurisprudência nesta matéria , determinou que « Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido » e para cujos fundamentos se remete .
Donde que a conclusão indubitável de que se o RAI formulado pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento formulado pelo M. P., não obedecer aos requisitos contemplados no art. 283, n. 3, do CPPenal « ex vi » do art. 287, n. 2, do mesmo diploma legal – que a lei exige para a acusação pública, tal requerimento não pode deixar de considerar-se nulo , nos termos e para os efeitos do disposto no art. 309, do CPPenal.
Nesta conformidade, e ao abrigo do disposto no art. 287, n. 3, do CPPenal, indefere-se o RAI.
Custas a cargo do assistente – cfr. art. 515, n. 1, al. a), do C. P. Penal -, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC´S – cfr. art. 8, n. 2, do RCP-.
Notifique.
(…)»
*
3. Legitimidade do recorrente

§1. O Código de Processo Penal (CPP) não define directa e expressamente um conceito de assistente, limitando-se a indicar quem se pode constituir como tal e a estruturar a correspondente posição processual e suas atribuições.

Assim, segundo o disposto no artigo 68º, podem constituir-se assistentes: as pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito (corpo do nº 1 do artigo 68º); os ofendidos, maiores de 16 anos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (alínea a) do nº 1 do artigo 68º); as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento (alínea b) do nº 1 do artigo 68º); os representantes do ofendido falecido, não renunciante, incapaz ou menor de 16 anos (alíneas c) e d) do nº 1 do artigo 68º) e qualquer pessoa em determinados crimes expressamente indicados, como é o caso dos crimes contra a paz e a humanidade, de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção (alínea e) do n.º 1 do artigo 68º).
Uma vez que o crime de branqueamento imputado aos arguidos no requerimento de abertura de instrução não integra o catálogo da al. e) do artigo 68.º nº 1, nem é um crime de natureza semi-pública ou particular, a legitimidade para a constituição como assistente só pode ser apreciada, de acordo com a previsão legal contida no artigo 68.º nº 1 al. a) do CPP.
§2. Nos termos da alínea a) do n.º1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal “Podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos".
O texto legal em vigor é idêntico ao artigo 4.º do DL. n.º 35 007 que por seu turno reproduzia o artigo 11º do Código de Processo Penal de 1929, que acolhia os ensinamentos de Beleza dos Santos (“Partes particularmente ofendidas em processo criminal”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 57º, pág. 3).
E a mesma noção transparece claramente no artigo 113º do Código Penal, ao definir os titulares do direito de queixa, quando no seu n.º1 estatui: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.”
Consagra-se deste modo, o conceito estrito, imediato ou típico de assistente.
Não é ofendido, para este efeito, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime.
O objecto jurídico mediato do crime é sempre de natureza pública.
O imediato, pode ter por titular um particular.
Mas, nem todos os crimes têm ofendido particular; só o têm aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou um direito de que é titular um particular.

Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, ofendido/assistente é “a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violada ou posto em perigo” (Direito Processual Penal, 1, Coimbra, 1974, pág. 505).
Já em 1955 Cavaleiro Ferreira sublinhava que “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato da infracção (…) Nem todos os crimes têm, por isso, ‘ofendido’ particular. Só o têm aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular” (Curso de Processo Penal, Lisboa, 1955, vol. I, págs. 129-130).
Também o Prof. Germano Marques da Silva salienta que “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime: ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto da tutela imediata pela incriminação do comportamento que o afecta. O interesse jurídico mediato é sempre o interesse público, o imediato é que pode ter por titular um particular. Nem todos os crimes têm ofendido particular. Só o têm aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular (Curso de Processo Penal, vol. I, 4ª ed., Lisboa S/Paulo, 2000, pág. 264, cfr. também, pág. 335).

Esta distinção entre lesado e ofendido é, de resto, claramente perfilhada pelo artigo 74.º, n.º 1 do Código de Processo Penal ao definir lesado como “a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente” (enfatizando este ponto cfr. Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal, Porto, 1987, págs. 117-118)
§3. Vimos que nem todos os crimes têm «ofendido» particular. Só o têm aquele cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular.
Saber quais os interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação nem sempre se antolha tarefa fácil. “Por vezes - escrevia Cavaleiro Ferreira - torna-se difícil descobrir qual o ofendido em determinadas espécies; a dificuldade, porém, não respeito à definição, em si, de ofendido, mas à individuação do objecto jurídico do crime” (Curso de Processo Penal, vol. I, cit., pág. 130).
É pela norma incriminadora que se vê qual o interesse que a lei quis proteger ao tipificar determinado comportamento humano como criminosos.
Um primeiro indício resultará da própria sistematização da parte especial do Código penal que está organizada de acordo com um critério que tem a ver com os interesses especialmente protegidos.
Depois de definido o interesse há que determinar o titular desse interesse. Se for um particular individualmente considerado só ele poderá intervir como assistente no processo. Se for o Estado enquanto colectividade, não há titular de interesse a quem a lei especialmente quis proteger, pelo que não é admissível a constituição de assistente (cfr. Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, Código de Processo Penal Anotado, 1ºvol, Lisboa, 1996, pág. 317, aqui seguido de perto).
No caso vertente é inequívoco que o recorrente assume a qualidade de ofendido relativamente aos crimes de burla qualificada e/ou abuso de confiança e de falsificação (cfr. Acórdão do STJ, nº 1/2003, de 16.01, in DR, IS-A, 27-02-2003) que denunciou e que foram objecto do despacho de arquivamento.
Mas, por via do requerimento de abertura de instrução que apresentou e que foi objecto do despacho recorrido, o recorrente não pretende ver os arguidos pronunciados pela prática dos referidos crimes de burla qualificada e/ou abuso de confiança e de falsificação.
O recorrente apenas pretende ver os arguidos pronunciados pela prática de um crime de branqueamento.
§4. Em termos gerais, poderá definir-se o crime de branqueamento como «o processo através do qual os bens de origem delituosa se integram no sistema económico legal, com a aparência de terem sido obtidos de forma lícita» (Juana Del Carpio Delgado, El Delito de Blanqueo de Capitales, citada por Jorge Manuel Dias Duarte, in Branqueamento de Capitais, o Regime do D.L. 15/93 de 22.01., p. 34), ou, ainda, como «o procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações» (Lourenço Martins, Branqueamento de Capitais: Contra-Medidas a Nível Internacional e Nacional, RPCC, Ano IX, Fasc. 3º, p. 450).
Na ordem jurídica portuguesa, o branqueamento tem tipificação expressa no artigo 368.º- A do Código Penal e constitui-se como um tipo de crime derivado ou de segundo grau, uma vez que pressupõe a prévia concretização de um facto típico ilícito (Eduardo Paz Ferreira, “O Branqueamento de Capitais”, in Estudos de Direito Bancário, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra, 1999, pág. 306).
Mas o branqueamento não é o mero aproveitamento do crime base, rectius do facto ilícito típico anterior, e por ele consumido, constituindo antes “uma infracção autónoma, violadora de um bem jurídico diverso da infracção subjacente”(Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Lisboa, 2009, pág. 268), um crime “autónomo e dotado de intencionalidade própria”, “distinta da dos ilícitos antecedentes”(André Lamas Leite, O crime de branqueamento na recção da lei n.º 83/2007, de 18/8: a importância de ver para além das aparências, in Cândido da Agra e Fernando Torrão (coord.), Criminalidade Organizada e Económica, Universidade Lusíada Editora, Porto, 2018, págs. 68 e 74, respectivamente).
Como se salientou no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11-06-2014 proc. 14/07.0TRLSB.S1, rel. Cons.º Raul Borges "[o] crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente", que "[desde] que se tenha verificado a prática do crime base e sejam praticados atos subsumíveis ao tipo de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respetivo agente será penalmente perseguido mesmo nos casos em que por exemplo, o autor do crime base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal por tal crime se encontre prescrito" e que «[pode] haver "crime de branqueamento", mesmo que os fatos subjacentes não sejam criminalmente puníveis».
Embora não desconhecendo toda a polémica doutrinal sobre o assunto (cfr. desenvolvidamente, Jorge Alexandre Fernandes Godinho Do crime de Branqueamento» de Capitais: Introdução e Tipicidade, Coimbra, 2001, págs. 121-159,  Ana Margarida Marques Mateus de Carvalho, Branqueamento de capitais, dissertação de mestrado, Lisboa, Março de 2016, disponível em https://repositorio.ucp.pt/, e as teses de doutoramento de Miguel José Mussequejua “O crime de branqueamento de capitais, um contributo para sua análise”, Escola de Direito da Universidade do Minho, Março de 2021, in http://repositorium.sdum.uminho.pt/, págs. 210-218, de Julio César Martínez, El delito de blanqueo de capitales, Universidad Complutense de Madrid, 2017, Facultad de Derecho, em https://eprints.ucm.es/, págs. 144-182 e Flavio Maretti Siqueira, El Delito de blanqueo de capitales – una aproximación critica…,Universidade de Granada, 2014, disponível em http://www.pensamientopenal.com.ar/, págs. 79 a 231,   afigura-se-nos que o bem jurídico protegido com a incriminação do branqueamento é a administração da justiça.
É desde logo o que resulta da sua inserção sistemática no Código Penal.
Com efeito, o artigo 368.º-A integra-se no Capítulo III- Dos Crimes contra a realização da justiça- do Título V da Parte especial do Código Penal-Dos crimes contra o Estado
Como bem referem Paulo Sousa Mendes, Sónia Reis e António Miranda, “A Dissimulação dos pagamentos na corrupção será punível também como branqueamento de capitais?”, in  Revista da Ordem dos Advogados, ano 68, II/III, 2008, pág. pág. 779, “A inclusão do artigo 368.º -A do Código Penal no âmbito dos crimes contra a realização da justiça, a par de crimes como o falso testemunho, a denúncia caluniosa ou a prevaricação, mostra bem que a perseguição do branqueamento visa melhorar genericamente a operatividade do sistema de justiça na luta contra o crime e a criminalidade organizada que o promove”.
Foi essa também claramente a opção do legislador como ressalta da “Exposição dos Motivos” da Proposta de Lei n.º 73/IX in DR II –A , de 5 de Julho de 2003 que esteve na base da Lei n.º 11/2004, de 27 de Novembro, quando afirma que “ a inserção sistemática escolhida fica a dever-se ao facto de o branqueamento ser, em primeira linha, um crime contra a administração da justiça, na medida em que a actividade do branqueador dificulta a actuação da investigação criminal relativamente a facto ilícito subjacente”.
Com efeito, no artigo 368.º- A do Código Penal são punidos pelo crime de branqueamento os agentes que, através de uma qualquer operação de conversão, transferência ou outras, procurem dissimular a origem ou natureza ilícitas dos bens a branquear e/ou procurem evitar que o autor ou participante dos crimes subjacentes seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal.
Como já em 1992 bem acentuava o Prof. Faria Costa (“O branqueamento de capitais: algumas reflexões à luz do direito penal e da política criminal, Boletim da Faculdade de Direito LXVIII, 1992, págs. 59-86  reproduzido em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinais, vol. II- Problemas Especiais, Coimbra, 1999, págs. 301-320) o fim visado com a prática do crime de branqueamento é sempre a dissimulação da origem ilícita dos bens a branquear, ou evitar que os autores ou participantes dos crimes-base sejam criminalmente perseguidos e submetidos a uma sanção penal.
O Prof. André Lamas Leite,  O crime de branqueamento na recção da lei n.º 83/2007, de 18/8: a importância de ver para além das aparências, cit., pág. 72-73,  esclarece também que “[o] que empecilha o funcionamento da administração da justiça é exactamente o conjunto de esquemas mais ou menos complexos em que o autor do ilícito antecedente ou um terceiro o que convoca , na primeira hipótese , o problema do chamado auto-branqueamento), visa ‘apagar o rasto’ das vantagens ilícitas, usando jurisdições de sigilo, transferências entre contas bancárias, transmissões amiúde simuladas de bens, compra e venda de instrumentos financeiros de todo o tipo”.
Refira-se, por último, que este entendimento segundo o qual o bem jurídico protegido pelo crime de branqueamento nas suas diversas alíneas é o da administração da justiça recolhe entre nós a concordância da doutrina e jurisprudência largamente maioritárias (cf.na doutrina Jorge Alexandre Fernandes Godinho Do crime de Branqueamento» de Capitais: Introdução e Tipicidade, Coimbra, 2001, págs. 140-148, Pedro Caeiro, A Decisão-Quadro do Conselho de 26 de Junho de 2001 e a relação entre a punição de branqueamento e o facto precedente: necessidade e oportunidade de uma reforma legislativa in Costa Andrade e outros, “Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra 2003, págs. 1086-1087 e 1096, Paulo Sousa Mendes, Sónia Reis e António Miranda, A Dissimulação dos pagamentos na corrupção será punível também como branqueamento de capitais?, cit, pág. 779, Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, cit, págs. 255, 256 e 268, Germano Marques da Silva, “Notas sobre branqueamento de capitais em especial das vantagens provenientes da fraude fiscal” in Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos /Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, 2007, pág. 459, Patrícia Teixeira Lopes, O Regime Jurídico do Branqueamento de capitais- contributo para alteração do direito positivo português, Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 13, 2008, pág. 175, Pedro Caeiro, “Contra uma política criminal ‘à flor da pele’: a autonomia do branqueamento punível em face do branqueamento proibido”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, vol. I, Coimbra, 2017, págs. 287 e 301, André Lamas Leite, O crime de branqueamento na recção da lei n.º 83/2007, de 18/8: a importância de ver para além das aparências, in Cândido da Agra e Fernando Torrão (coord.), Criminalidade Organizada e Económica, Universidade Lusíada Editora, Porto, 2018, págs. 70-74, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 5ª ed. atualizada, Lisboa, 2022. págs. 1255 e 1261 e Anabela Miranda Rodrigues, “O crime de branqueamento sob o signo da expansão (as modalidades de ação típica resultantes da Lei n.º 58/2020, de 31/8”, in Prof. Doutor Augusto Silva Dias In Memoriam, vol. I, Lisboa, 2022, págs.529-530; e na jurisprudência v.g. os Acs do STJ de 27-4-2022, proc.º n.º 248/11.2TAGLG.S1, rel. Cons.ª Conceição Gomes, de 11-6-2014, proc.º n.º 14/07.0TRLSB.S1, rel. Cons.º Raul Borges, de 8-1-2014, proc.º n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, rel. Cons.º Armindo Monteiro, da Relação de Guimarães de 27-5-2019, proc.º n.º 85/08.1TAMCD.G2, rel. Isabel Cerqueira, da Relação do Porto de 16-3-2022, proc.º n.º109/19.7TELSB-G.P1, rel. Paulo Costa, de 7-2-2007, proc.º n.º 0616509, rel. Maria do Carmo Silva Dias, da Relação de Lisboa de 14-12-2021, proc.º n.º 324/14.0TELSB-DM.L1-5, rel. Fernando Ventura, de 30-10-2019, proc.º n.º 405/14.0TELSB.L1-3, rel. Cristina Almeida e Sousa, de 16-10-2019, proc.º n.º 4910/08.9TDLSB.L1-3-1ªPARTE, rel. Margarida Ramos de Almeida, de 6-6-2017, proc.º n.º 208/13.9TELSB.G.L1-5, rel. Ricardo Cardoso, de 24-9-2014, proc.º n.º 142/12.0TELSB.L1-3, rel. Nuno Coelho e de 18-7-2013, proc.º n.º 07/18/2013, rel. Rui Gonçalves, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
É este também o entendimento dominante ao nível da doutrina alemã, ... e italiana.
§5. No crime de branqueamento o interesse directa e imediatamente protegido é um interesse público, o interesse do Estado na realização ou administração da justiça, como função do Estado.

O branqueamento, apesar de poder prejudicar pessoas singulares e colectivas diferentes do Estado, foi incriminado para defender especialmente um interesse do Estado, o de que a administração da justiça não seja prejudicada.
Admite-se que a prática deste crime pode pôr em causa, indirecta e mediatamente, outros bens jurídicos, desde logo os interesses económicos e a segurança geral da comunidade, a que fez referência a já referida Exposição de Motivos da Proposta de Lei 73/IX, os bens jurídicos dos crimes antecedentes, além da ordem económica e financeira, tributária, a manutenção da credibilidade, transparência e confiança nas instituições, designadamente comerciais e financeiras (cfr. v.g. Ac. do STJ de 8-1-2014, proc.º n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, rel. Cons.º Armindo Monteiro e Ac. da Rel. de Lisboa de 24-9-2014, proc.º n.º 142/12.0TELSB.L1-3, rel. Nuno Coelho).
Importa sublinhar que porque as condutas do branqueamento ofendem um bem jurídico diverso do atingido pelo facto precedente (cfr. Ac. do STJ de 20-6-2002 e Pedro Caeiro, A Decisão-Quadro do Conselho de 26 de Junho de 2001 e a relação entre a punição de branqueamento e o facto precedente: necessidade e oportunidade de uma reforma legislativa in Costa Andrade e outros, “Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra 2003, pág. 1108), o bem jurídico protegido pela incriminação do crime precedente apenas releva de forma mediata e indirecta na incriminação do branqueamento.
Por isso, perante o que acima se expôs, facilmente se conclui que o recorrente carece de legitimidade para se constituir como assistente, relativamente aos factos constantes do seu requerimento de abertura de instrução.
Com efeito, estando apenas em causa um crime de branqueamento, o recorrente enquanto ofendido dos crimes antecedentes pode ser lesado no crime de branqueamento, por eventualmente ter sofrido prejuízos com os factos denunciados.
Contudo, não tem a qualidade de «ofendido», para efeitos de admissão e constituição como assistente, nos termos do art. 68°, n° 1, alínea a), do CPP, já que não é o titular do interesse que constitui o objecto imediato da infracção, o qual, como vimos é o Estado, na realização ou administração da justiça.
Uma última nota para sublinhar que a revisão constitucional de 1997, operada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, introduziu o n.º 7 ao artigo 32º da Constituição da República assim redigido: “O ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei.”
A este propósito, salienta-se na Constituição Anotada dos Professores Jorge Miranda e Rui Medeiros: “A norma constitucional não especifica o conteúdo do direito de intervenção do ofendido, remetendo para a legislação ordinária a sua densificação. O que a lei não pode é retirar ao ofendido, directa ou indirectamente, o direito de participar no processo que tenha por objecto a ofensa de que foi vítima” (Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, 2005, tomo I, pág. 361).
Mas, como se conclui no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 76/2002, de 26-2-2002:
“A revisão constitucional fez-se no contexto da vigência do artigo 68º, n.º1, alínea a) do Código de processo Penal e nada indica que tenha querido outra coisa senão dar dignidade constitucional ao que aí se estabeleceu. A constituição de assistente em crimes que não visem directamente proteger interesses privados, mas sim interesses colectivos, em que a lesão desses interesses não é um elemento constitutivo do tipo de crime - por outras palavras, em crimes em que nem sempre há ofendido - não é certamente uma exigência constitucional” (Proc.º n.º 647/98-3ª, rel. Sousa Brito, in
www.tribunalconstitucional.pt).
Por isso que a interpretação perfilhada dos artigos 368.º-A do Código Penal e 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal não enferme de qualquer inconstitucionalidade.
§6. Constata-se, assim, que o assistente não podendo ser admitido a intervir nessa qualidade quanto ao crime de branqueamento, também carecia de legitimidade para requerer a instrução a qual, tendo sido por ele requerida sempre seria nula, nos termos do artigo 119º, alínea b) do CPP, nulidade essa traduzida na falta de promoção do processo pelo Ministério Público o qual, em despacho anterior havia ordenado o arquivamento dos autos (cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 31-05-2000, proc.º 1063/00, rel. Germano da Fonseca, e Ac. da Rel. de Lisboa de 16-3-1999, proc.º 0012175, rel. Pulido Garcia, ambos in www. dgsi.pt).

Como quer que seja, embora por despacho tabelar que não foi objecto de recurso, tenha sido reconhecido a AA a qualidade de assistente, não havendo caso julgado formal sobre a sua legitimidade, podendo a questão ser conhecida até à decisão final (cfr., Ac. da Rel. de Lisboa de 4-12-2001, proc.º n.º 0085315, rel. Margarida Blasco e de 25-06-1991, proc. n.º 4925, rel. Amado Gomes, in www. dgsi.pt), porque dela carece para intervir nos autos como assistente, o recurso por ele interposto é de rejeitar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 420º, n.º1 e 414º, n.º2, ambos do Código de Processo Penal (expressamente neste sentido e para casos idênticos, cfr. o Ac. Rel. de Coimbra de 6-12-2000, proc.º n.º 2695/2000, rel. Rosa Ribeiro Coelho os Acs da Rel de Lisboa de 08-03-2000, proc.º n.º 6663, rel. Santos Monteiro, de 30-06-1999, proc.º n.º 20203, rel. Miranda Jones, e o Ac. desta Rel. de Guimarães de 18-6-2006, proc.º n.º 1991/06-1, rel. Cruz Bucho, todos in www. dgsi.pt).
Fica naturalmente prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas neste recurso.
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III- Dispositivo

Em face do exposto, acorda-se em rejeitar o recurso por falta de legitimidade do recorrente.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3UC a que acresce o pagamento de igual importância, nos termos do artigo 420º, n.º3 do Código de Processo Penal.
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Guimarães, 2 de Maio de 2023