Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1821/15.5T8BRG.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: BALDIOS
ADMINISTRAÇÃO
COMUNIDADES LOCAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
No âmbito da Lei 68/93 de 4 de Setembro, na sua redacção vigente em 2010, as "comunidades locais", a que se reporta o artigo 84.º n.º 4 b) da Constituição da República, não tinham como limite mínimo territorial a freguesia, podendo, por isso, a sua área corresponder a uma parte de uma freguesia.
A Lei 68/93, na sua redacção vigente em 2010, não estabelecia a possibilidade do mesmo baldio ser administrado por dois diferentes Conselhos Directivos, contra a vontade daquele que se constituiu em primeiro lugar, nem a de se operar unilateralmente a secessão de um baldio que integra um território maior composto por mais baldios.
Se, em 2010, os compartes de uma localidade quisessem autonomizar a gestão do baldio desse lugar, estando eles já integrados num Conselho Directivo de baldios, só podiam atingir esse objectivo através de deliberação nesse sentido obtida nos órgãos competentes dos compartes. Tinham que agir dentro da comunidade local a que voluntariamente aderiram e aceitar democraticamente o resultado do que aí se decidisse.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I
O Conselho Directivo de Baldios de X instaurou a presente acção declarativa, que corre termos no Juízo Central Cível de Braga, contra o Conselho Directivo de Baldios de Y e o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas IP, formulando os pedidos de condenação dos réus a:

"1. Reconhecerem o A: como único e exclusivo administrador da unidade de baldio de X.
2. Serem condenados a devolver ao A. a quantia de 49 195,88 € respeitantes respectivamente 4 195,88 € do corte prematuro operado pelo Fornecedora de Energia A e 45 000,00 € do corte de madeira ardida em FP.
3. Ser o R. Baldio de Y condenado a devolver ao A. a quantia de 19 000,00 € recebido da rede eléctrica A de indemnização por ocupação de espaço aéreo pela instalação da linha de alta tensão LN60KV (rede eléctrica A 07-2784).
4. Ser o R. Baldio de Y condenado a devolver ao A. todas as quantias que se apure tenha recebido da empresa Empresa Águas H pela ocupação de espaço subterrâneo para passagem da conduta das Águas do Ave."
Alegou, em síntese, que em Fevereiro de 2007 o baldio de X encontrava-se sob administração do réu Conselho Directivo de Baldio de Y, que administrava todos os baldios da freguesia de Y. Mas, por divergências na forma de gestão e aplicação dos fundos, "entendendo os compartes de X estarem a ser prejudicados, tendo em conta a riqueza que o seu baldio produz, optaram por autonomizar a administração da sua unidade de baldio do restante da freguesia, tendo na data supra referida, procedido à eleição de órgãos de gestão próprios". Desde então que o réu Conselho Directivo de Baldio de Y "não respeita as deliberações dos compartes de X, antes se tendo apropriado indevidamente de um conjunto de verbas e direitos que pertencem em exclusivo à unidade de baldio".
O réu Baldio de Y contestou afirmando, em suma, que foi "constituído por Assembleia de Compartes realizada em 1 de Setembro de 2007, com o objectivo de administrar e gerir os terrenos baldios existentes dentro da área geográfica da freguesia de Y, aí se englobando os baldios dos lugares de Y, X e …, tudo da freguesia de Y." E "não pode sem mais proceder-se ao abandono da estrutura que geria a totalidade dos baldios da freguesia de Y e criar-se uma outra estrutura paralela e com competências sobrepostas."
O réu Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas IP contestou dizendo, em resumo, que "os pedidos efectuados contra o R. Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P., naturalmente, com o devido respeito, estão destinados ao insucesso."
Foi proferida sentença em que se decidiu:

"Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção improcedente por não provada e, em consequência, absolver os Réus dos pedidos formulados pelo Autor."
Inconformado com esta decisão, o autor dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

a) Pretende o recorrente a revogação da douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, em virtude de a considerar contrária à lei.
b) Nesta acção o recorrente, constituído por deliberação da Assembleia de Compartes da povoação de X em 19 de Fevereiro de 2010 que instituiu os seus órgãos gestores, em face do não respeito pelo Conselho Directivo de Baldios de Y pelo seu baldio e dos proventos aí originados, requereu contra este e contra ICNF, IP o reconhecimento de que o recorrente é o único e exclusivo administrador da unidade de baldio de X e consequentemente que lhe devolvam determinadas quantias aí oriundas e melhor especificadas na PI.
c) A unidade de baldio de X, encontrava-se até Fevereiro de 2010 a ser gerida pelo Conselho Directivo de Baldios de Y, integrando este os baldios destas duas e outras povoações.
d) Com as deliberações da sua Assembleia de Compartes, a aldeia de X, decidiu instituir órgãos de gestão próprios do seu baldio.
e) Na douta decisão sob recurso, considerou-se que, em face da Lei de Baldios vigente, lei 72/2014 e numa interpretação imaginativa do seu artigo 1.º que dentro de uma freguesia apenas pode existir uma unidade de baldio e portanto todas as povoações que lhe pertençam ficaram impedidas de deliberar autonomamente a instituição de órgãos de gestão próprios.
f) Assim considerou que, o Conselho Directivo de Baldios de Y, que segundo se afirma administraria todos os baldios da freguesia de Y, não admite a autonomização da gestão dos diversos baldios que a integram. Ou seja, não se admitiria pois, a formação de novas unidades de gestão, ainda que sem assumir que se tratam de baldios diferentes.
g) Por outro lado, considerou ainda que, no âmbito da Lei anterior, 68/93, tal já era admissível e portanto esta alegada inovação, foi a que resultou da lei revista em 2014.
h) Em face do exposto, faz a decisão recorrida improceder a acção, por considerara que não pode ser atribuído a X o poder de se autoconfinar e auto administrar, com recurso aos usos e costumes e a sua constituição não é pois, em face da Lei 72/2014, admissível. Não se especificando que tipo de ilegalidade estará em presença, isto é, se uma nulidade ou anulabilidade.
i) O que se pretende com este recurso é pois a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo, por manifesta ilegalidade.
j) A começar pela violação das regras de aplicação da lei no tempo, verificando-se manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão.
k) Isto porque, se como se diz, em face da L. 68/93, a autonomização das várias unidades de baldio dentro da mesma freguesia era possível e só deixou de o ser em face da Lei 72/2014, então, a unidade de baldio aqui recorrente, instituída em 10 de Fevereiro de 2010, portanto há 7 anos atrás e muito antes da entrada em vigor da lei 72/2014, não pode a sua validade jurídica ser posta em causa por lei posterior. Porque já existia ao tempo.
l) Há pois neste aspecto uma contradição insanável.
m) Mas há outra contradição ainda mais estranha. É que, a ser verdade que a nova lei remetesse para o conceito de freguesia administrativa o que se entendia até então por unidade baldia, X e Y, não formam uma freguesia. Com a reforma administrativa das freguesias de 2013, estas duas aldeias, pertencem à freguesias de …, no município de Vieira do Minho. Ora nesta freguesia de …, existem aos dias de hoje em pleno funcionamento, para além destes dois baldios, o baldio ZZ, KK e o baldio WW.
n) Impõe-se pois resposta diversa aos pontos 1 dos factos provados e deverá ser levado aos factos não provados.
o) Isto caso o centro da decisão tomada fosse correcto. Que o não é, salvo o devido respeito mas, face a tão clamoroso erro, não se pode dizer de outra forma.
p) Não há qualquer correspondência legal, nem na lei actual, nem em qualquer lei anterior, nem na nova lei de baldios que já foi aprovada a 23 de Junho do corrente ano, que equipare a dominialidade baldia com a freguesia enquanto unidade territorial da administração pública. Confundir-se os conceitos de comunidade local com unidade territorial de uma freguesia, viola o art. 1.º da L. de baldios em vigor. E viola todo o passado histórico da luta dos povos pelos seus baldios pondo a questão de forma que se julgava a esta data ultrapassada. Enfermando pois a douta sentença de vícios gravíssimos de aplicação da lei, mas demonstra um desconhecimento do que é o baldio enquanto realidade jurídica própria, mais antiga do que a nacionalidade e neste aspecto particular.
q) Dando-se por reproduzida a resenha histórica sobre a natureza jurídica dos baldios atrás escrita demonstrativa dos tumultos que apresentou ao longo dos tempos, a mesmo ficou definitivamente resolvida com o DL 203-C/75 de 15 de Abril que aprovou medidas económicas de emergência, no Anexo 3 "Programa da Reforma Agrária" considerou que sobre os baldios "ConsAG-se o princípio da restituição dos baldios aos seus legítimos utentes, que passarão a administrá-los através das respectivas associações, exclusivamente ou em colaboração com o Estado". Nessa sequência foi publicado o DL 39/76 de 19 de Janeiro procede à entrega dos terrenos baldios às comunidades que deles foram desapossadas pelo Estado", assim como foi publicado o DL 40/76 que declara "anuláveis a todo o tempo os actos ou negócios jurídicos que tenham como objecto a apropriação de terrenos baldios por particulares".
r) Não obstante ser este hoje o único entendimento legalmente admissível, no passado os baldios cruzaram-se juridicamente com as autarquias e este entendimento passado é aquele que ainda hoje faz incorrer em erro certas interpretações legais que na realidade não têm qualquer acolhimento legal, como acontece na douta sentença recorrida.
s) Mas na verdade a posse comum sobre montes sem outro aproveitamento, verificou-se e verifica-se quase sempre ao nível da aldeia rural. De cada uma aldeia rural individualizada. A posse exercida de cada aldeia sobre determinada parcela de monte diferencia-se da aldeia vizinha, seja ela da mesma freguesia ou não. De tal modo que casos há em que os limites do baldio, não coincidem com os limites sequer da freguesia administrativa (caso do Baldio BB em Vila Pouca de Aguiar).
t) O Baldio surge pela "necessidade que os povoadores livres de uma aldeia rural, vivendo da exploração familiar e da pequena propriedade, tinham de dispor de vastos espaços incultos, onde pudessem encontrar as actividades complementares da actividade agrícola" (Parecer do Conselho Superior do Ministério Público n.º 166/82).
u) Os baldios foram cedidos aos povoadores dos logradouros para "os haverem por seus e por seus os coutarem e defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as suas casas e lavouras" (in Ordenações Manuelinas, L. IV, T. LXVII, 8 e Ordenações Filipinas, L. IV, T. XLIII, 9).
v) "Os baldios não se confundem com os bens próprios da Freguesia ou do concelho, tendo antes o carácter de bens em comunidade ou de propriedade comunal" (in sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Montalegre, Proc. 28/2001)
w) Não se confunde pois a realidade territorial de um baldio, com a realidade administrativa de uma freguesia.
x) Limitar-se pois a liberdade de os compartes de um baldio deliberarem validamente sobre a sua forma de gestão, se autónoma, se agregada a outra unidade de baldio, ofende o direito fundamental à gestão daquilo que lhes pertence (nesse sentido Jaime Gralheiro, in comentário à nova Lei dos Baldios, Almedina Coimbra). É esta a interpretação doutrinária dominante no art. 82.º n.º 4 al b) da CRP que também na douta sentença ficou violado.
y) Este art. 82 n.º 4 al b) da Constituição, garante o sector comunitário, que se distingue entre os três sectores de actividade, público, privado e cooperativo e social. Aqui se integra a existência, validade, legitimidade, legitimação e exigibilidade pelas comunidades locais dos baldios, que torna incompatível qualquer forma, directa ou indirecta, de obstar à sua existência.
z) E essa posse é uma posse restrita aqueles que dela podem usufruir, que são os compartes. Daquela unidade de baldio. Não de outra qualquer, independentemente se se tratar ou não da mesma freguesia.
aa) No nosso país, para além dos territórios derivados dos antigos Coutos, não é conhecida mais nenhuma aglomeração de povoações que, tenham entre si laços que possam ser consideradas em conjunto um só baldio.
bb) De acordo com tudo o que consta dos autos, as gentes de X têm tradições, formas de aproveitamento do seu baldio, com reflexos históricos que se diferenciam claramente de todas as demais aldeias da mesma freguesia. A começar pelo aproveitamento dos logradouros.
cc) Aliás, como decorre dos pontos 2 a 8, bem se vê que as relações entre as gentes de Y e de X foram tudo menos pacíficas ou unidas.
dd) Em face do exposto, deverá merecer resposta de não provado o ponto nove dos factos provados.
ee) E comparte é todo aquele que de acordo com toda a história do lugar, tem direito a usar e fruir as riquezas do monte. Nesta inovação legal malograda de 2014, acrescentou-se apenas que terá que está aí recenseado, requisito este que, com a nova revisão já aprovada vai, como lhe compete, cair.
ff) Por tudo o exposto o conceito que interessa para este efeito é o de unidade de baldio. Aquele trato de terreno que se encontre "afecto ás necessidades primárias dos habitantes de uma circunscrição administrativa, ou parte dela e cuja propriedade pertence à "comunidade" formada pelos utentes de tais terrenos (Acórdão STJ no Proc 310/09.1TBVLN).
gg) Lavra ainda a douta sentença noutro erro crucial, quando apela à exposição de motivos da Lei 72/2014 para com os mesmos, justificar a interpretação que veio a ser dada ao artigo 1.º da referida lei. Ora o conceito ínsito no artigo 1.º da L. actual de baldios, não se reporta à freguesia mas à unidade de baldio. E os considerandos, por confronto com os trabalhos preparatórios da lei, em nenhum momento se fez ou tentou fazer qualquer equiparação da anunciada. Serviram sim para estudar formas novas de cooperação entre baldios de forma a dar-lhe escala, como sejam os Grupos de Baldios. Nada tem pois que ver com a equiparação da unidade de baldio à unidade territorial composta por uma freguesia. Interpretada deste modo, violou o tribunal a quo o art. 1.º da L. 72/2014.
hh) Por fim, recordando que a deliberação da Assembleia de Compartes de X ocorreu em Fevereiro de 2010, não tendo havido na altura qualquer reacção. A providência e suspensão de deliberações sociais prevista no art. 396 do CPC ou a intentar no prazo de 10 dias ou a acção requerendo a nulidade ou anulação a intentar no prazo de 30 dias, constituem as providências específicas para o ataque às deliberações da Assembleia de Compartes de X ao dispor de quem com elas se sentisse prejudicado (nesse sentido vd. Ac. TRC …). Volvidos 7 anos sobre a mesma, sem que ninguém e nomeadamente o recorrido as tenha posta em causa, não é possível ao Tribunal por essas deliberações em causa, como no caso de pôs, assim se violando igualmente o disposto nos art. 396 do CPC.
O réu Baldio de Y contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.
O relator, nos termos do disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil, proferiu o seguinte despacho:
"Admitindo que no âmbito da Lei 68/93 de 4 de Setembro, na sua redacção vigente em 2010, as "comunidades locais", a que se reporta o artigo 84.º n.º 4 b) da Constituição da República, não tinham como limite mínimo territorial a freguesia, podendo, por isso, a sua área corresponder a uma parte de uma freguesia, coloca-se então a questão de saber se os compartes de uma localidade quisessem autonomizar a gestão do baldio desse lugar, estando eles já integrados num Conselho Directivo de baldios, só podiam atingir esse objectivo através de deliberação obtida nos órgãos competentes dos compartes."
As partes pronunciaram-se nos termos das folhas 166 a 168 e 175 a 179.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil(1), delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) se impõe "resposta diversa aos pontos 1 dos factos provados e deverá ser levado aos factos não provados" e se "deverá merecer resposta de não provado o ponto nove dos factos provados" (2);
b) é possível que o autor seja reconhecido "como único e exclusivo administrador da unidade de baldio de X" (3).

II
1.º
O autor entende que se não podem manter nos factos provados os factos 1 e 9, onde consta:
"1. A freguesia de Y, concelho de Vieira do Minho, é constituída pelos lugares de …, Y e X.
9. No dia 19 de Fevereiro de 2010, um conjunto de moradores do lugar de X reuniram-se em assembleia e deliberaram constituir um Conselho Directivo autónomo de X tendo nesse ato eleito os seus corpos sociais (cfr. Ata n.º 1, junta a fls 135)."
Em relação ao faco 1, diz o autor que ele não reflecte o que resultou da "reforma administrativa das freguesias de 2013" (4).
Nesta parte, os anos relevantes são os de 2007 e de 2010, pois foi nesses anos que se constituíram o Conselho Directivo do Baldio de Y e o Conselho Directivo do Baldio de X. Deve, assim, o facto 1 reflectir a realidade dessa altura, a qual está alegada no artigo 2.º da petição inicial, nos artigos 4.º e 5.º da contestação do réu Baldio de Y e no artigo 10.º da resposta do autor às contestações.
Deste modo, o facto 1 passa a ter a seguinte redacção:

"1. Entre, pelo menos, 2007 e 2010, a freguesia de Y, concelho de Vieira do Minho, era constituída pelos lugares de …, Y e X."
Quanto ao facto 9, o autor considera que deve ser retirado dos factos provados pelos motivos expostos nas conclusões bb) e do cc).
Neste ponto não se percebe a crítica do autor, pois o que se encontra no facto 9 resulta do alegado nos artigos 2.º a 4.º da petição inicial. Não há, então, fundamento para o eliminar dos factos provados.

2.º
Estão provados os seguintes factos:

1. Entre, pelo menos, 2007 e 2010, a freguesia de Y, concelho de Vieira do Minho, era constituída pelos lugares de …, Y e X.
2. Em Assembleia de Compartes realizada em 1 de Setembro de 2007, foi constituído o Conselho Directivo do Baldio de Y com o objectivo de administrar e gerir os terrenos baldios existentes dentro da área geográfica da freguesia de Y (cfr. Actas n.ºs 1, 2 e 3 da "Assembleia de Compartes dos Baldios da Freguesia de Y" juntas como docs. n.ºs 1, 2 e 3 a fls 40 a 45),
3. Aí se englobando os baldios dos lugares de Y, X e …, tudo da freguesia de Y.
4. Na Assembleia de Compartes dos Baldios de Y de 3 de Julho de 2010 faziam parte da Ordem de Trabalhos os seguintes itens:
- Ponto dois: "decisão da proposta de divisão de baldios da Freguesia de Y, apresentada pelo Senhor M. P." e Ponto três: "apresentação de limitação e divisão geográfica da unidade de baldio apresentada pelo Conselho Directivo dos Baldios de X" (Acta n.º 13 junta como doc. n.º 5, a fls 49).
5. Discutidos e postos a votação, foram tais pontos rejeitados por unanimidade (Acta n.º 13 junta como doc. n.º 5, a fls 49).
6. Na Assembleia de Compartes dos Baldios de Y de 14 de Março de 2008 fazia parte da Ordem de Trabalhos o seguinte item:
- Ponto três: "Divisão física entre Y e AG".
7. Nessa Assembleia ficou estabelecido definir-se a respectiva linha divisória desde o "marco existente no ponto mais alto do monte da R. (em linha recta) até ao Penedo de …", sendo que "os baldios a Este dessa linha são pertença da freguesia de Y" (Ata n.º 4 da "Assembleia de Compartes dos Baldios da Freguesia de Y", de 14 de Março de 2008, junta como doc. n.º 4, a fls 46).
8. Anteriormente à Assembleia de Compartes realizada em 1 de Setembro de 2007, que deliberou a constituição do Conselho Directivo dos Baldios de Y, os terrenos baldios da freguesia de Y eram administrados pela respectiva Junta de Freguesia, na sua totalidade.
9. No dia 19 de Fevereiro de 2010, um conjunto de moradores do lugar de X reuniram-se em assembleia e deliberaram constituir um Conselho Directivo autónomo de X tendo nesse acto eleito os seus corpos sociais (cfr. Ata n.º 1, junta a fls 135).

3.º
O réu Baldios de Y opõe-se às pretensões do autor, desde logo por que considera que não é admissível a constituição do Conselho Directivo do Baldio de X com o objectivo de administrar os terrenos baldios da localidade de X, pois "não pode sem mais proceder-se ao abandono da estrutura que geria a totalidade dos baldios da freguesia de Y e criar-se uma outra estrutura paralela e com competências sobrepostas." (5)
Já o autor defende que é possível a autonomização da gestão do baldio de X através da criação do Conselho Directivo do Baldio de X.
A esta questão o tribunal a quo respondeu negativamente dizendo que:
"Ajustar o regime legal dos baldios às novas formas de exploração que actualmente incidem sobre aquele tipo de bens comunitários, mesmo à luz da Lei 68/93, antes da redacção que lhe foi dada pela Lei 72/2014, obsta a que se admita a sua constituição a pequenas colectividades, como são os lugares, sem correspondência com a organização administrativa territorial nacional.
A menor divisão administrativa territorial corresponde às freguesias, a tal devendo, no mínimo, corresponder o Conselho Directivo do baldio.
Este é o único sentido que se retira do regime competencial e procedimental relativo ao recenseamento de compartes previsto nos artigos 15.º, n.º 1, alínea c), 21.º, alínea b) e 33.º, todos da Lei 68/93, na sua versão originária.
Revertendo ao caso sub júdice, encontrando-se já constituído o Conselho Directivo do Baldio de Y, que administra todos os baldios da freguesia de Y, a que pertence o lugar de X, não é legalmente admissível a constituição de um Conselho Directivo autónomo por parte de um núcleo mais restrito de elementos do lugar de X, por não ser atribuível àquela colectividade o poder de se autoconfinar e auto-administrar, com recurso aos usos e costumes.
Do exposto resulta que a pretensão do Autor de ser reconhecido como único e exclusivo administrador da unidade de baldio de X, não pode proceder."
Portanto, se bem se interpreta o decidido, a área de um Conselho Directivo de um baldio não pode ser inferior à de uma freguesia, por esta ser "a menor divisão administrativa territorial". E como X não constitui uma freguesia, está, por esse motivo, impedida de ter um Conselho Directivo que administre os terrenos baldios dessa localidade.
O autor opõe-se a esta visão das coisas, pois "em face da L. 68/93, a autonomização das várias unidades de baldio dentro da mesma freguesia era possível" (6).
Vejamos.
Antes de mais importa sublinhar que os factos 2 e 9, relativos à constituição dos Conselhos Directivos, ocorreram em 2007 e 2010, pelo que, para se decidir se há lugar ao reconhecimento do autor "como único e exclusivo administrador da unidade de baldio de X" (7), temos que recorrer unicamente à lei vigente em 2010, que era, aliás, a mesma que vigorava em 2007, ou seja à Lei 68/93 de 4 de Setembro (8).
O artigo 82.º n.º 4 b) da Constituição da República estabelece que "os meios de produção comunitários, [são] possuídos e geridos por comunidades locais"; trata-se de "bens comunitários (…) pertencentes às comunidades" (9).

O artigo 1.º da Lei 68/93 dispõe que:
1 - São baldios os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais.
2 - Para os efeitos da presente lei, comunidade local é o universo dos compartes.
3 - São compartes os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio.
Assim, as "comunidades locais" a que se refere a Constituição da República são constituídas pelo "universo dos compartes", sendo estes "os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio."
Portanto, o "universo dos compartes", leia-se as "comunidades locais", tanto podem ser:
- os moradores de uma freguesia;
- os moradores de mais do que uma freguesia;
- os moradores de uma parte de uma freguesia.
Significa isso que para a Lei 68/93 as "comunidades locais" não têm como limite mínimo territorial "a menor divisão administrativa territorial", ou seja a freguesia. No âmbito daquela lei a correspondência entre a comunidade local e a freguesia é somente uma das hipóteses; mas não é a única, nem esta constitui qualquer limite mínimo quanto à área daquela (10).
Assim, não se pode acompanhar a fundamentação do tribunal a quo que conduziu à improcedência da acção.

4.º
Inexistindo este obstáculo, pode então o autor ser reconhecido "como único e exclusivo administrador da unidade de baldio de X"?
Sabemos que em Setembro de 2007 realizou-se uma Assembleia de Compartes onde se constituiu "o Conselho Directivo do Baldio de Y com o objectivo de administrar e gerir os terrenos baldios existentes dentro da área geográfica da freguesia de Y", "aí se englobando os baldios dos lugares de Y, X e …" (11).
Portanto, a comunidade local que nessa data abrangia os baldios dos lugares de Y, X e … manifestou a sua vontade, não só de criar um Conselho Directivo, como também de que este incluísse os baldios dos lugares de Y, X e ….
Quer isso dizer, desde logo, que "a liberdade de os compartes de um baldio deliberarem validamente sobre a sua forma de gestão" (12) foi exercida em 2007, não havendo notícia de qualquer facto que, nessa ocasião, a tenha limitado ou condicionado, o que é sinónimo de que essa liberdade não foi ofendida.
Daqui resulta também que os baldios do lugar de X já fazem parte de um Conselho Directivo. E salvo melhor juízo, não se descortina na lei a possibilidade de o mesmo baldio ser administrado por dois diferentes Conselhos Directivos contra a vontade daquele que se constituiu em primeiro lugar. E a lei não consagra igualmente a faculdade de se operar unilateralmente a secessão de um baldio que faça parte de um território maior composto por mais baldios e administrado por um Conselho Directivo.
Assim, considerando, designadamente, o disposto nos artigos 5.º n.º 1, 11.º n.os 1 e 2 e 15.º n.º 1 d) e q) da Lei 68/93, se os compartes da localidade de X querem autonomizar a gestão dos baldios desse lugar, uma vez que, por vontade sua, desde 2007, integram o réu Baldios de Y, terá que ser nos órgãos competentes dos compartes deste que, através de deliberação, têm que obter essa autonomia. Terão que agir dentro da comunidade local a que voluntariamente aderiram e aceitar democraticamente o resultado do que aí se decidir.
Neste contexto, é evidente a improcedência do primeiro pedido, o de reconhecimento do autor "como único e exclusivo administrador da unidade de baldio de X", o que, por si só, conduz à improcedência dos restantes.

5.º
Finalmente, relativamente ao que se diz na conclusão hh), há que dar nota de que se trata de uma questão nova, pois não foi anteriormente colocada.
Como é sabido, os recursos "destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida" (13) e "não a conhecer de questões novas, salvo se estas forem de conhecimento oficioso e não estiverem já resolvidas por decisão transitada em julgado" (14). Com efeito, "as questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos." (15) Os recursos constituem, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões não apreciadas e discutidas no tribunal a quo (16), sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso (17).
Consequentemente, não pode este tribunal conhecer da questão que o autor lhe coloca, só agora em sede de recurso, relativa a não ter "havido na altura qualquer reacção", nomeadamente a instauração de "providência e suspensão de deliberações sociais prevista no art. 396.º do CPC (…) ou a acção requerendo a nulidade ou anulação (…) para o ataque às deliberações da Assembleia de Compartes de X".

III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, pelo que mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo autor.
23 de Novembro de 2017


(António Beça Pereira)
(Maria Amália Santos)
(Ana Cristina Duarte)


1. São deste código todas as disposições adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
2. Cfr. conclusões n) e dd).
3. Cfr. primeiro dos pedidos.
4. Cfr. conclusão m).
5. Cfr. artigo 6.º da sua contestação.
6. Cfr. conclusão k).
7. Que é o primeiro dos pedidos e de cuja procedência dependem todos os outros.
8. Na sua redacção original, pois as alterações introduzidas pela Lei 89/97 de 30 de Julho não interferem na matéria aqui em causa.
9. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, 2006, pág. 51.
10. Já no artigo 1.º do Decreto-lei 39/76 de 19 de Janeiro se dispunha que "dizem-se baldios os terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas." (sublinhado nosso)
11. Cfr. factos 2 e 3 dos factos provados.
12. Cfr. conclusão x).
13. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 23.
14. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 566.
15. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª Edição, pág. 98.
16. Neste sentido pode ainda ver-se Ac. STJ de 17-12-1991 no Proc. 080356, Ac. STJ de 28-4-2010 no Proc. 2619/05.4TTLSB, Ac. STJ de 3-02-2011 no Proc. 29/04.0TBBRSD, Ac. STJ de 12-5-2011 no Proc. 886/2001.C2.S1, Ac. STJ de 24-4-2012 no Proc. 424/05.7TYVNG.P1.S, Ac. STJ de 5-5-2016 no Proc. 1571/05.0TJPRT-C.P1.S1, Ac. STJ de 3-11-2016 no Proc. 73/14.9T8BRG.G1.S1 e Ac. Rel. de Coimbra de 29-5-2012 no Proc. 37/11.4TBMDR.C1, todos em www.gde.mj.pt, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 153 a 158. Cfr. artigo 627.º n.º 1 do Código de Processo Civil.
17. E aqui sublinha-se que o artigo 627.º do novo Código de Processo Civil é igual ao 676.º do anterior Código de Processo Civil, pelo que o que se dizia em relação a este é válido quanto àquele.