Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
231/13.3TAGMR.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: PROCESSO PENAL TRIBUTÁRIO
DELEGAÇÃO COMPETÊNCIAS
NULIDADE FALTA DE INQUÉRITO
FUNDAMENTAÇÃO NA SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) No processo penal tributário admite-se que, ao abrigo da delegação de competência legalmente presumida nos art.s 40º, n.º 2, e 41º do RGIT, o processo seja instaurado pelos órgãos da administração tributária ou da administração da segurança social, impondo, no entanto, o art. 40º, n.º 3, que, nesse caso, tal instauração seja de imediato comunicada ao Ministério Público, por forma a garantir e assegurar que a titularidade da ação penal e a direção do inquérito pertencem, desde o início do processo, ao órgão constitucionalmente incumbido das mesmas.

II) Porém, essa comunicação ao Ministério Público da instauração do processo não exige a indicação também da identidade do gerente (de direito) da pessoa coletiva que é o contribuinte faltoso, porquanto a não comunicação desse elemento não significa que o processo não esteja sob a direção e a titularidade do órgão constitucionalmente incumbido do exercício da ação penal, termos em que jamais pode consubstanciar a nulidade de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no art. 119º, al. b), do CPP.

III) A competência dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes dos respetivos serviços para a prática de atos de inquérito nos termos dos arts. 40º e 41º do RGIT não exige que haja uma subdelegação de poderes neles por parte do diretor ou presidente do órgão da administração tributária ou da administração da segurança social, em quem legalmente se presume delegada a prática de atos que o Ministério Público pode atribuir aos órgãos de polícia criminal.

IV) A nulidade de “falta de inquérito, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade”, prevista no art. 119º, al. d), do CPP, ocorre quando se verifique ausência absoluta ou total de inquérito ou falta absoluta de atos de inquérito.
V) Para além das evidentes situações de omissão formal, há falta total de inquérito quando, no caso de processo comum, materialmente, nenhum ato de investigação se pratica depois de adquirida a notícia do crime, não sendo esse o caso dos autos, em que houve interrogatório dos arguidos, inquirição de testemunhas e junção de documentos.

VI) A propósito da fundamentação da sentença exigida pelo n.º 2 do art. 374º do CPP, na vertente do exame crítico das provas, através do qual o julgador enuncia as razões de ciência dos vários meios de prova, explicita a razão da opção por uma e não por outra das versões em confronto e indica os motivos da credibilidade que atribuiu a depoimentos, a documentos e a exames, entende-se que apenas a sua falta absoluta é que conduz à nulidade da decisão nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 379º do mesmo diploma. A fundamentação insuficiente, deficiente ou não convincente não constitui nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 231/13.3TAGMR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Guimarães - J1 (anterior Secção Criminal da Instância Local - J1), foi proferida sentença, datada e depositada a 03-03-2017, com o seguinte dispositivo (transcrição[1]):
«IV – Dispositivo:
Pelo exposto, decide-se:
a) Parte criminal,
- Julgar, procedente a acusação, por provada e em consequência:

1. Condenar a arguida “S. - I. V., Lda.” pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos art.os 105º, nº 1 e 4 e 107º do R.G.I.T. e 30º do C.P., na pena 370 (trezentos e setenta) dias de multa à taxa diária de 05 (cinco) euros.
2. Condenar a arguida V. F. pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos arts. 105º, nº 1 e 4 e 107º do R.G.I.T. e 30º do C.P., na pena 230 (duzentos e trinta) dias de multa à taxa diária de 07 (sete) euros.
3. Condenar o arguido D. F. pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos arts. 105º, nº 1 e 4 e 107º do R.G.I.T. e 30º do C.P., na pena 230 (duzentos e trinta) dias de multa à taxa diária de 07 (sete) euros.
4. Condenar os arguidos no pagamento da taxa de justiça que fixo em 4,5 UCs, e demais encargos do processo.
*
b) Parte cível:
- Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Instituto da Segurança Social, I.P., procedente, e, em consequência, condenar os demandados V. F. e D. F., a pagar-lhe a quantia de €82.761,53 (oitenta e dois mil, setecentos e sessenta e um euros e cinquenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde o décimo quinto dia do mês seguinte àquele a que as contribuições mensais discriminadas nos factos provados dizem respeito, até efetivo e integral pagamento, mas a descontar as quantias de €870.23, €446,57 e €14.509,21 já pagas.
- Custas pelos demandados.»
2. Dessa decisão recorreu a arguida V. F., concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
«CONCLUSÕES

Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos que condenou a recorrente pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social na pena de 230 dias de multa à taxa diária de 7 euros e no pedido de indemnização civil na quantia de 82.761,53 € acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde o 15º dia do mês seguinte àquele a que as contribuições mensais discriminadas nos factos provados dizem respeito, até efetivo e integral pagamento, mas a descontar as quantias de 870,23 €, 446,57 € e 14.509, 21 € já pagas.
São 3 as questões que a recorrente pretende levantar no presente recurso, sendo que a primeira tem que ver com a questão prévia suscitada e, designadamente, com a comunicação dos factos ao Ministério Público e a legitimidade dos funcionários do ISS, IP para levarem a efeito os atos de inquérito; a segunda com a falta de fundamentação da sentença quanto ao pagamento aos trabalhadores e a terceira com a condenação no pedido de indemnização civil, uma vez que se entende que tendo sido a condenação em quantia ilíquida, a liquidação haveria de ser relegada para execução de sentença.
A competência para a prática de atos de inquérito, nos termos do disposto nos artºs 40º nº2 e 41º nº1 al. c) do RGIT, é presumidamente delegada no Presidente do Conselho Diretivo do IGFSS, IP e não do ISS, IP, o que se conclui pela leitura do DL 167-C/13 de 31 de Dezembro, do DL. 83/12 de 30 de Março e do DL 215/07 de 29 de Maio que regulam o Ministério da Tutela, o IGFSS, IP e o ISS, IP.
Ainda que os funcionários do ISS, IP se considerassem competentes para a prática de atos de inquérito, no presente processo foi incumprido o artº 35º nº1 e 40º nº3 do RGIT uma vez que a instauração de inquérito pelos órgãos da administração tributária, relativamente à recorrente não foi comunicada ao Ministério Público, através da sua identificação, o que era obrigatório nos termos legais.
Não sendo feita a comunicação do início do inquérito, dos factos que lhe subjazem e da identificação das pessoas visadas pelo mesmo, o inquérito não é realizado sob a dependência e direção do Ministério Público, mas sim diretamente do órgão de polícia criminal, atribuindo-lhe poderes de investigação autónoma que apenas incumbem ao Ministério Público e ao Juiz de Instrução quanto à decisão de aplicação de medidas de coação – cfr. neste sentido Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, in Regime Geral das Infrações Tributárias, anotado, 3ª edição, 2008, pág. 369.
Não tendo o ISS, IP comunicado que o inquérito se dirigia contra a recorrente, cometeu-se a nulidade de falta de promoção do Ministério Público prevista no artº 119º al. b) do Código de Processo Penal, uma vez que quem deu o impulso processual para a realização do inquérito foi o ISS, IP e não o MP.
A comunicação do início do inquérito não se confunde com a comunicação da constituição como arguido, sendo ambas obrigatórias. O ISS, IP é obrigado legalmente a comunicar o início do inquérito e contra quem este é movido – artº 35º nº1 do RGIT – e é obrigado legalmente, em momento naturalmente posterior, a comunicar a constituição de arguido para efeito de validação – artº 58º nº3 do Código de Processo Penal.
O ISS, IP bem sabia quem era a gerente da empresa em causa, sendo certo que entre a data em que foi proferido o despacho de subdelegação de competências, sobre a informação da técnica C. N. e a data em que foi emitido o ofício de notificação da arguida para prestar declarações nessa qualidade e ser constituída como tal -, nenhuma diligência de prova se fez.
Nenhum indício foi recolhido que levasse a que, ao contrário do que foi comunicado ao Ministério Público, o inquérito fosse também dirigido contra a recorrente.
10ª O poder de promoção processual do Ministério Público não se esgota na dedução de acusação, é a esta entidade que incumbe o impulso processual dos inquéritos criminais, competência que não pode levar a cabo se não lhe for comunicado o agente que é visado no inquérito.
11ª Na verdade, a interpretação que se extraia do disposto no artº 48º e 119º al. b) do Código de Processo Penal no sentido de que apenas existe falta de promoção do MP no caso de não ser deduzida acusação pelo mesmo, é inconstitucional por violação do disposto no artº 219º do Código de Processo Penal.
12ª Desconhecendo o Ministério Público quem se está a investigar por falta de comunicação da Segurança Social, inexiste um inquérito dirigido pelo MP relativamente a tal arguido e, por isso, também se poderá dizer com propriedade que foi cometida a nulidade insanável de falta de inquérito.
13ª Na verdade, a interpretação que se extraia do disposto nos artºs 35º nº1 e 40º nº3 do RGIT e dos artºs 55º nº1, 56º, 262º nº2 e 263º do Código de Processo Penal, no sentido de ser dispensável a comunicação por parte da Segurança Social, com competência delegada presumida pelo MP, dos cidadãos contra quem o inquérito é dirigido, ainda que de conhecimento superveniente à primitiva comunicação, deve ser julgada inconstitucional por violação do disposto no artº 219º nº1 da Constituição.
14ª O Presidente do CD do IGFSS, IP funciona como órgão de polícia criminal por delegação de competência presumida, aplicando-se-lhe, tout court, o disposto no artº 270º do Código de Processo Penal, pelo que para que os titulares de outros órgãos, os funcionários e agentes da segurança social pratiquem atos de inquérito, tal competência tem que ser subdelegada nos mesmos.
15ª Subdelegação essa que, ao contrário, da delegação de poderes no Presidente do CD IGFSS, IP não é presumida ou tácita, devendo, por isso, ser expressa, sendo certo que, desse ato de subdelegação devem constar expressamente quais as competências ou poderes subdelegados.
16ª Nem se diga que através das normas vindas de transcrever se pretendeu delegar os poderes para os atos de inquérito quer no Presidente do Conselho Diretivo, quer nos funcionários a quem tais funções estejam cometidas.
17ª Isto por duas ordens de razões: em primeiro lugar porque se assim fosse os poderes que eram delegados nos funcionários eram os mesmos do Presidente, o que não faria sentido; em segundo lugar porque a delegação de competências no Presidente é presumida, nos termos da lei, nada se dizendo quanto a uma putativa delegação de poderes nos funcionários, pelo que teria sempre que ser o Presidente a delegá-la, daí que se aluda na norma em causa a funcionários “a quem tais funções sejam especialmente cometidas”, ou seja, a quem tais funções estejam delegadas.
18ª Sendo a competência para os atos de inquérito do Presidente do CD do IGFSS, IP, não podia obviamente o ISS, IP praticar quaisquer atos de inquérito, mas ainda que assim não se entendesse foram incumpridos os formalismos relativos à delegação e subdelegação de poderes.
19ª O despacho de fls. 4 não está assinado, desconhecendo-se em absoluto quem delegou os poderes no prolator do despacho ou quais os poderes que lhe foram delegados, por que instrumento jurídico ou sequer quais as diligências de investigação que são delegadas.
20ª Aliás, o despacho de fls. 4 (cujo original se encontra a fls. 100) é anterior em mais de 6 meses à comunicação ao Ministério Público do início do inquérito, o que bem demonstra que o ISS, IP não se coibiu de praticar atos de inquérito antes de comunicar o seu início.
21ª A arguida, tal como qualquer outra pessoa, através da leitura de tal despacho - fls. 10 -, fica sem saber em quem, afinal, foram delegados poderes pelo Ministério Público.
22ª Os artºs 40º e 41º do RGIT não conferem quaisquer “poderes” a qualquer pessoa dentro do ISS, IP, mas apenas ao Presidente do Conselho Diretivo, mas ainda que assim se pretendesse, o despacho do MP é posterior ao despacho de subdelegação de poderes, pelo quem delegou os poderes, nenhuns poderes tinha para subdelegar.
23ª Não consta dos autos qualquer despacho de subdelegação de poderes do Presidente do Conselho Diretivo em qualquer agente da segurança social para a prática de atos de inquérito, nem tal subdelegação é referida em qualquer desses atos sucessivamente praticados.
24ª Aliás, nenhum despacho foi proferido pelo MP ordenando o início do inquérito, sequer.
25ª Os atos de delegação e subdelegação de poderes têm que ser expressos, por um lado, e, por outro, os atos subdelegados devem mencionar expressamente o ato de subdelegação, sendo que tal exigência legal justifica-se, para além do mais, porque o administrado/contribuinte/arguido deve poder conhecer tal ato por forma a que o possa impugnar e invocar eventuais vícios derivados no ato de delegação ou subdelegação que no ato em causa se projetem.
26ª Temos, portanto, que os agentes da segurança social que intervieram no inquérito atuaram enquanto órgãos de polícia criminal, quando não estavam legitimados para o efeito, por um lado, e, mesmo que assim não fosse de entender, nenhum dos atos processuais por si realizados menciona a subdelegação de poderes, por outro lado.
27ª Por isso, não atuaram sob orientação ou dependência funcional do Ministério Público (que do inquérito se alheou), em contravenção ao disposto no artº 55º e 56º do Código de Processo Penal, mas antes do seu superior hierárquico que para tal não lhes havia conferido poderes.
28ª E ainda que se entendesse que a instrutora estava legitimada para praticar atos de inquérito, outros atos de inquérito foram praticados por outros agentes da Segurança Social que para tal não estavam legitimados.
29ª Os atos de inquérito nos presentes autos tendo sido realizados por quem não tinha competência para o efeito nem a invocou, estão feridos de inexistência jurídica.
30ª No entanto, ainda que assim não se entenda sempre os atos de inquérito praticados por agentes da segurança social devem ser considerados nulos por falta de promoção processual do Ministério Público, nos termos do disposto no artº 119º al. b) do Código de Processo Penal.
31ª A interpretação que se extraia do disposto nos artºs 40º nº2 e 41º nº1 al. c) e nº2 do RGIT no sentido de que os funcionários da segurança social podem praticar atos de inquérito, sem que exista subdelegação expressa de poderes da entidade na qual foram delegados tais poderes através de despacho do Ministério Público nesse sentido ou que podem praticar atos de inquérito sem invocar a qualidade de subdelegados, deve ser julgada inconstitucional, por violação do disposto nos artºs artºs 32º nº1, 219º nº1 e 2 e 266º nº1 e 2 e 267º nº1 da Constituição.
32ª Lida a fundamentação da sentença recorrida não consegue concluir quantos funcionários a empresa em causa teve nos períodos tributários constantes da acusação, ou sequer se tal empresa pagou os salários na sua totalidade, o que determinaria a retenção dos valores à Segurança Social.
33ª De facto, o pagamento das quotizações é uma obrigação que se cumpre mensalmente, se o salário for pago mensalmente.
34ª O pagamento das remunerações é que determina o desconto e o momento em que a entidade empregadora deve pagar as contribuições, quando pagar a retribuição, deve reter os valores correspondentes às quotizações.
35ª Assim, se a entidade patronal pagar o salário e retiver a quotização comete o crime do artº 107º do RGIT; já não assim quando a entidade patronal não paga o salário, uma vez que nada retém, pelo que se pagar o salário e descontar responde criminalmente, se não pagar o salário, não retiver e, por consequência, não pagar a quotização, comete a contraordenação prevista no artº 42º nº3 do Código Contributivo.
36ª Conclui-se, assim, que era essencial que se desse como provado qual o número de trabalhadores que a empresa possuía nos períodos tributários em causa e que pagou a todos esses trabalhadores os salários referentes a cada um desses períodos tributários.
37ª A conclusão de que a empresa entregou regularmente à Segurança Social as folhas de remunerações contendo os salários que pagou aos trabalhadores ao seu serviço e aos sócios-gerentes” não tem qualquer suporte na fundamentação da sentença, designadamente nos meios de prova aí apontados.
38ª Incumbia ao Tribunal explicar qual a razão de ter dado como provado que a empresa pagou os salários devidos e que meios de prova teve em conta na formação da sua convicção.
39ª Assim, entende a arguida que a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, conjugado com os arts. 379.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma, violando os arts. 32.º, n.º 1 e 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
40ª A sentença condena a recorrente a pagar quantia ilíquida, pelo que quando muito a recorrente teria que ser condenada no que se liquidasse em execução de sentença.
41ª De facto, ou o Tribunal fazia a operação aritmética 82,761,53 € descontando as quantias de €870.23, €446,57 e €14.509,21 já pagas e terminava com uma condenação em quantia líquida ou, não o fazendo, teria que condenar no que se liquidasse em execução de sentença.
42ª Esta ordem de razões levaria a que os demandados não fossem condenados em custas ou, pelo menos que fossem apenas condenados na proporção do decaimento.
43ª A sentença recorrida violou ou fez errada aplicação das normas referidas na motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidas, não podendo, pois, manter-se.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por acórdão que absolva a recorrente do crime e do pedido de indemnização civil deduzido, por só assim se fazer
JUSTIÇA!»
3. A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu à motivação do recurso, no sentido da sua improcedência, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

« 1. Ao Ministério Público foi comunicada, de imediato, a instauração do inquérito que deu origem aos presentes autos, como determina o artigo 40° do RGIT.
2. Essa comunicação ao Ministério Público foi objeto de despacho, delegando a competência no ISS, IP, para a realização do inquérito.
3. Pelo que foi cumprido todo o formalismo legal imposto pelo RGIT, tendo o ISS, IP. realizado todas as comunicações legalmente impostas, não se verificando qualquer nulidade.
4. Também não se verifica qualquer ilegitimidade na delegação de competências, nos funcionários do I.S.S., IP. para a tramitação do inquérito, ainda que tal delegação seja genérica.
5. O R.G.I.T., conferiu legitimidade aos agentes e funcionários do ISS, IP (não apenas ao seu Presidente) para procederem à prática dos atos de inquérito, sem necessidade qualquer despacho de subdelegação.
6. Pelo que, também neste ponto não se verifica qualquer nulidade.
7. A douta sentença encontra-se bem fundamentada e motivada, tendo esclarecido da razão pela qual considerou que a arguida pagou os salários na totalidade, bem assim como indicado quais os meios de prova que considerou para esse efeito.
8. A sentença recorrida não está ferida da apontada nulidade de falta de fundamentação, não resultando da mesma qualquer violação dos artigos 374°, n.° 2 e 379°, n.° 1, alínea a) do Código de Processo Penal.»
4. Nesta instância, por ter sido requerida a realização de audiência nos termos do n.º 5 do art. 411º do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto consignou ter tomado conhecimento do recurso, nos termos do art. 416º, n.º 2, do mesmo diploma, sem, laboriosamente, deixar de elencar as questões suscitadas no mesmo.
5. Efetuado o exame preliminar, foi designada data para audiência e completados os vistos.
Teve, então, lugar a audiência, nos termos do art. 423º do Código de Processo Penal, tendo o Exmo. defensor da recorrente alegado em sentido coincidente com o teor das conclusões e o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pugnado pela improcedência do recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando que, em conformidade com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação pelo recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso[2], as questões submetidas a apreciação no presente recurso são as seguintes:
- Nulidade insanável, prevista no art. 119º, al. b), do Código de Processo Penal, por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, devida à falta de comunicação a este, pelo ISS, IP, de que o inquérito se dirigia também contra a recorrente, e as duas eventuais inconstitucionalidades suscitadas a esse respeito (conclusões 4ª a 13ª).
- Inexistência jurídica dos atos de inquérito, por terem sido realizados por quem não tinha competência para o efeito, nem a invocou, devido à falta de delegação válida de poderes, ou, subsidiariamente, nulidade insanável dos mesmos atos, prevista no art. 119º, al. b), do Código de Processo Penal, por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, e ainda a eventual inconstitucionalidade suscitada a esse respeito (conclusões 14ª a 31ª).
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação (conclusões 32ª a 39ª).
- A falta de liquidação da quantia indemnizatória relativa à condenação no pedido cível (conclusões 40ª a 42ª).

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

Para o conhecimento do objeto do recurso importa ter presente a fundamentação de facto constante da decisão recorrida, que é do seguinte teor (transcrição):

«II – Fundamentação:
2.1. Os factos
Com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A arguida “S. - I. V., Lda.”, sociedade comercial por quotas, inscrita na Segurança Social, exercia a atividade de indústria de vestuário, representações de artigos de vestuário e importações e exportações conexas-, foi-lhe atribuído pela administração fiscal o número de identificação fiscal … e pela administração da segurança social o nº ….
2. Por força do início da atividade, declarado à administração fiscal e à administração da segurança social, ficou a empresa vinculada ao cumprimento das obrigações que na qualidade de contribuinte, de entidade empregadora e pagadora de remunerações lhe cabiam.
3. Tomando todas as decisões relativas à sua vida e giro, determinando, nomeadamente, quais os pagamentos a efetuar e quais os trabalhos a realizar, da admissão do pessoal e dos montantes por este auferidos, estiveram à frente dos destinos da arguida, S., Lda., como gerentes de direito e de facto, os arguidos D. F. e V. F..
4. Desde o início da sua atividade, a empresa laborou com um número variável de trabalhadores ao seu serviço, num contrato em que estes se obrigavam a prestar, mediante retribuição, a sua atividade à empresa, sob a autoridade e direção desta.
5. Nos meses que constam do quadro que segue, nomeadamente os que constam do artigo 97º nº4 do Código de Processo Penal, a empresa entregou regularmente à Segurança Social as folhas de remunerações contendo os salários que pagou aos trabalhadores ao seu serviço e aos sócios-gerentes; não pagou, contudo, em tais períodos, as contribuições devidas à Segurança Social, que descontou nos referidos salários que pagou, também discriminados no quadro referido, no montante global €82.761,53.

(Quadro referido em 5. supra relativo a salários.)

6. As quantias reportadas a cada um dos meses supra referidos deveriam ter sido entregues à Segurança Social até noventa dias posteriores ao dia 15 do mês seguinte àquele a que dissessem respeito.
7. Sabiam os arguidos carecer de autorização da Segurança Social para levar a cabo as condutas que se descreveram.
8. Os arguidos também não pagaram no prazo de 30 dias, após notificação para o efeito.
9. Porém, por decisão dos arguidos tais quantias foram integradas no património da empresa, arguida S., Lda., fazendo-as suas, delas dispondo e gastando-as em proveito da referida empresa.
10. Os arguidos tomaram tal decisão embora soubessem que aqueles montantes eram pertença da Segurança Social e que a esta estavam obrigados a entregá-las, através do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, até às datas supra referidas; fizeram-no, atuando sempre em nome, por conta e no interesse da empresa que geriam.
11. Sabiam os arguidos carecer de autorização da Segurança Social para levar a cabo as condutas que se descreveram.
12. Agiram os arguidos D. e V. em comunhão de esforços, dando curso conjunto a plano comum.
13. Agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, indiferentes às lesões que causavam no património da Segurança Social.
14. Sabiam proibidas as suas condutas.
15. A arguida V. F. foi designada gerente (de direito) em 23.07.2007, e o arguido D. F. cessou funções como gerente (de direito) em 02.05.2007.
16. A sociedade arguida pós a gerência de V. F., fez investimentos em maquinaria.
17. A partir do ano de 2007, com a crise que se instalou no país, e no sector empresarial, provocando a insolvência de diversos agentes económicos, a sociedade arguida começou a ter dificuldades no recebimento de receitas, bem como atrasos nas cobranças, e falta de encomendas.
18. As receitas recebidas com atraso acabavam por ser integradas nos fluxos da empresa para que continuasse a laborar, nomeadamente para pagar salários e a fornecedores.
19. As quais eram apenas suficientes para fazer face ao pagamento de todas as despesas de gestão corrente.
20. Em 11.20.2012, foi alterada a firma da sociedade, passando de “M. – I. V., Lda.” para “S. – I. V., Lda.”.
21. A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença declarada insolvente por sentença proferida a 14.01.2013, transitada em julgado em 19.02.2013, encontrando-se em liquidação, no processo nº 28/13.0TBPFR.
22. Foram celebrados dois planos prestacionais em reversão pela arguida V. F., quanto aos períodos aludidos 5), sendo que o primeiro abrange, além de outros anteriores, os períodos 8/2008 e 9/2008; e sendo o valor em divida, respetivamente de 23.540,23 e 90.878,19, a pagar em 60 prestações mensais. E já foram pagos no âmbito dos mesmos as seguintes quantias: 08/2008 – quotizações, contribuições e juros: 870.23; e 09/2008: quotizações, contribuições e juros: €446,57. E no segundo a quantia de €14.509,21 referente aos demais períodos referidos em 5).
23. O arguido D. F., é empregado têxtil e recebe o salário mínimo.
24. Vive com a esposa que trabalha como empresária têxtil e aufere o salário mínimo nacional.
25. Tem um filho menor a cargo.
26. Vive em casa própria, pagando ao banco cerca de €500,00 de prestação pelo crédito.
27. Vivem, ainda, com a ajuda da família
28. Frequentou a escola até ao 9.º ano.
29. A arguida V. F. frequentou a escola até ao 12º ano.
30. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
***
Factos não provados, com relevo para a decisão:

1. O arguido D. F. afastou-se definitivamente da tomada de decisões financeiras da sociedade em Julho de 2007.
2. Passando a exercer funções apenas como trabalhador.
3. Só dava ordens ao pessoal do seu departamento de produção.
4. A arguida V. F. assumiu a gerência na convicção de que iria implementar medidas de gestão e de controlo financeiro que permitissem evitar incumprimentos, designadamente atrasos no pagamento de impostos e de contribuições.
5. Não existiam na tesouraria fundos que permitissem deduzir aos salários que foram disponibilizados aos trabalhadores as contribuições/quotizações que deveriam ser entregues à Segurança Social.
6. Contribuições/quotizações essas que não foram retidas aos trabalhadores.
***
2.2. Motivação

A convicção do tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida em audiência, apreciada criticamente, segundo as regras da experiência comum. Em particular, assentou:
- nos documentos juntos aos autos, designadamente nas certidões de registo comercial de fls. 59-71 e ss., mapas de apuramento da divida de fls. 57, extrato de remunerações de fls. 91-97, recibos de vencimento de fls. 157-170, contratos de trabalho de fls.171-173, 149-150, declarações de rendimento de fls. 151, 152, 174 a 177 e 181 a 184 e demais informações do ISS.
- nas declarações do arguido D. F., o qual admitiu, em suma, que efetivamente foi gerente da sociedade cerca de 3 ou 4 meses e após cedeu a quota e a gerência à sua esposa. Passou a ser apenas diretor de produção, tratando das encomendas.
A esposa é que passou a gerir a sociedade, nomeadamente impostos, descontos e salários.
A esposa ia-lhe falando da divida ao ISS.
Acha que os valores são os que constam da acusação.
Depois a sociedade insolveu e deixou de lá trabalhar.
A sociedade vivia com dificuldades, porque os clientes pagavam tarde, tinham que pagar a luz e o gás, e salários.
Também tinham poucas encomendas.
Depois a sua esposa decidiu vender a empresa ao A..
- nas declarações da arguida, a qual admitiu, em suma, que houve redução e anulação de encomendas e por isso não pôde pagar ao ISS. Tinha que pagar salários, luz e gaz.
O marido foi gerente durante cinco meses, e depois passou-lhe a gerência, porque antes era empregada da empresa C. A..
Ela conhecia a parte comercial e ele a produção.
O marido só trabalhava na parte da produção.
Era ela quem geria a empresa, fazia os pagamentos, tratava dos impostos, quotizações.
Em 12/2011, cedeu a sua quota ao A. e renunciou à gerência.
São esses os períodos em divida, e acha que também os valores.
Pediu a reversão da divida mas não a pode pagar.
Foram-lhe penhorados valores das contas bancárias e o reembolso do IRS todos os anos.
Era ela quem decidia não pagar ao ISS.
Tentaram fazer acordos de pagamento com o ISS.
*
- nos depoimentos das testemunhas:
- M. M., técnica superior do I.S.S., a qual prestou um depoimento verosímil por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, que soube esclarecer os períodos e valores não entregues ao ISS.
Foram celebrados nove acordos prestacionais mas todos incumpridos, quer pela sociedade quer pela arguida V., revertida.
Houve três pagamentos coercivos, resultantes de penhoras nas contas bancárias da arguida V. nos valores de €118,64, 3.174,17 e 914,70, mas já descontados no valor global, imputados a contribuições do ano de 2007, e 01/2008.
A sociedade arguida nada pagou na insolvência.
- P. M., ex-funcionária da sociedade arguida, a qual prestou um depoimento verosímil, por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, foi despedida por ambos os arguidos, com a explicação de que tinham menos trabalho.
Pediam-lhe para fazer horas extras que não eram pagas.
Foi o arguido que a admitiu na empresa, por isso era seu patrão.
A arguida estava mais no escritório.
Fls. 149 e 150: Foi ela quem assinou o contrato de trabalho, mas já não se lembra quem assinou pela sociedade.
Era o arguido quem lhe pagava o vencimento em dinheiro e depois através de transferência bancária.
- A. R., ex-funcionário da sociedade arguida, a qual prestou um depoimento verosímil, por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, que quem lhe dava ordens era o arguido, bem como era com quem falava se precisasse de faltar.
Fls. 171 a 173: confirma a celebração do contrato.
A arguida estava mais na parte comercial.
Eram os dois arguidos seus patrões.
O arguido estava mais no escritório, mas às vezes ia à fábrica.
Os arguidos quando tomaram conta da empresa compararam novas máquinas e melhoraram a fábrica.
- M. A. R., ex-funcionária da sociedade arguida, a qual prestou um depoimento verosímil, por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, que foi despedida pela arguida em 2012, mas estava lá também o arguido.
Foi contratada por ambos os arguidos.
Quando necessitava de faltar falava com o arguido.
Recebia por transferência bancária, e quem lhe dava os recibos era o arguido ou a encarregada.
- M. L., contabilista da sociedade arguida, a qual prestou um depoimento coerente, por si e quando conjugado com a demais prova, relatou, em suma, que a situação da empresa era difícil porque fez investimento significativos em máquinas e um grande cliente cancelou as encomendas.
*
Com efeito, verifica-se da conjugação da prova produzida, que os arguidos, em nome da sociedade, preteriram a entrega das quotizações e contribuições à Segurança Social, nos períodos e valores referidos nos factos provados, por aquela estar a passar por dificuldades económicas e financeiras, devidas ao facto de ter poucas encomendas, não receber atempadamente dos clientes, decidindo-se pelo privilegiamento do pagamento de salários e a fornecedores em detrimento do I.S.S., com vista a manter a atividade. É o que decorre das declarações da arguida, conjugadas com a demais prova, a qual admitiu quase toda a factualidade (com exceção dos valores concretos por não se recordar).
Já no que respeita à factualidade referente ao arguido ser também gerente de facto, não nos ficou a dúvida. É que ele antes da arguida foi gerente de direito da sociedade arguida, depois, manteve-se a par de tudo, tal como ele referiu, foi acompanhando a divida ao ISS, ao que acresce que também as testemunhas ex-funcionárias da empresa, souberam esclarecer o tribunal no sentido de que ele também era patrão, quer porque admitiu ao serviço alguns trabalhadores, dava ordens, pagava salários, entregava recibos de vencimento, autorizava faltas, etc., ou seja, tudo atos que só um gerente exerce e não um diretor de produção. Deste modo, e conjugada tal prova, há que concluir que, na verdade, nunca deixou de exercer a gerência agora de facto acompanhando a esposa, esta de facto e direito.
Já no que respeita aos períodos e valores em causa, valorou-se o depoimento da primeira testemunha, a qual de forma sincera e verosímil, soube esclarecer o tribunal sobre a entrega das declarações, os períodos correspondentes e os valores em dívida, e que os pagamentos efetuados foram imputados em períodos anteriores aos que estão em apreço nestes autos.
Neste jaez, a tese da acusação mostrou, assim, ampla sustentação probatória, merecendo resposta positiva.
No que respeita à factualidade referente às dificuldades financeiras da arguida sociedade, o tribunal valorou as declarações dos arguidos, conjugadas com os depoimentos das testemunhas, que também souberam esclarecer que foram feitos por aqueles investimentos de vulto, e depois tiveram dificuldades em receber de clientes, bem como menos encomendas, tudo por causa da crise, o que vai de acordo com a posterior declaração de insolvência.
No que concerne à factualidade referente ao pedido cível, mereceu resposta positiva por tudo o já explanado e, ainda, porque da conjugação da prova documental que consta dos autos, nomeadamente de fls. 740 e seguintes, apurou-se que existem dois planos prestacionais subscritos em reversão pela arguida V. F., que abrangem, também, os períodos em causa, sendo que dos valores pagos (fls. 911), foram imputados ao período 08/2008 – quotizações, contribuições e juros: €870.23; e ao período 09/2008: quotizações, contribuições e juros: €446,57; e ainda €14.509,21 aos demais períodos referidos nos factos provados (conforme fls. 913 e seguintes).
Já quanto às alegadas penhoras de saldos bancários, verifica-se quer pelos aludidos documentos 954 a 956 e de acordo com o depoimento da primeira testemunha que não se destinaram aos períodos em apreço nos autos, não se tendo apurado que tivesse havido outro tipo de pagamento voluntário ou coercivo referente aos períodos em causa.
Quanto aos factos não provados, nenhuma prova segura e satisfatória foi produzida sobre os mesmos em sede de audiência de julgamento, quer por se provar a tese contrária, quer por ausência de prova testemunhal, quer documental, ou outra sobre os mesmos.
No que diz respeito à ausência de antecedentes criminais dos arguidos, o tribunal teve também em consideração os crc(s) juntos ao processo e quanto às condições económicas valorou as declarações dos arguidos e os documentos juntos aos autos.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - Da nulidade insanável por falta de promoção do processo pelo Ministério Público
Nas conclusões 4ª a 13ª, a recorrente invoca a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. b), do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos citados sem qualquer menção de origem, traduzida na falta de promoção do processo pelo Ministério Público, devida à falta de comunicação a este, pelo Instituto da Segurança Social, I.P. (ISS), de que o inquérito se dirigia também contra si.
3.1.1 - Previamente, na conclusão 3ª, refere a recorrente que a competência para a prática de atos de inquérito, nos termos do disposto nos art.s 40º, n.º 2, e 41º, n.º 1, al. c), do Regime Geral das Infrações Tributárias (abreviadamente designado por RGIT), é delegada no presidente do conselho diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (IGFSS, I.P.) e não do Instituto da Segurança Social, I.P. (ISS, I.P.), como, em seu entender, se concluirá da leitura do DL n.º 167-C/13 de 31 de dezembro, do DL n.º 83/12 de 30 de março e do DL n.º 215/07, de 29 de maio, pese embora não concretize os preceitos destes diplomas em que estriba essa conclusão.
No entanto, a recorrente não retira, pelo menos de forma inequívoca, qualquer consequência processual dessa alegação, não pretendendo questionar a alegada falta de competência dos funcionários do ISS, I.P. para a prática dos atos de inquérito que foram realizados. Antes dá a entender que a invocação da referida nulidade de falta de promoção do processo pelo Ministério Público é feita independentemente dessa (in)competência, conforme resulta do segmento inicial da conclusão 4ª.
No entanto, sempre se dirá que não lhe assiste razão, porquanto, nos termos da al. w) do n.º 2 do art. 3º do DL n.º 83/2012, de 30 de março, que aprovou a Lei Orgânica do ISS, I.P., é atribuição deste Instituto “assegurar nos termos da lei, as ações necessárias à eventual aplicação dos regimes sancionatórios referentes a infrações criminais praticadas por beneficiários e contribuintes no âmbito do sistema de segurança social”, atuação essa em que, claramente, se deve inserir a prática de atos de inquérito que, nos termos dos art.s 40º, n.º 2, e 41º, n.º 1, al. c), está presumidamente delegada pelo Ministério Público no presidente da pessoa coletiva de direito público a quem sejam cometidas as atribuições nas áreas dos contribuintes e dos beneficiários.
3.1.2 - Posto isto, analisemos a invocada nulidade.
Argumenta a recorrente que, relativamente a si e através da sua identificação, não foi comunicada ao Ministério Público, pelo órgão da administração tributária, a instauração do inquérito, o que era obrigatório nos termos do art. 35º, n.º 1, do RGIT. Assim, foi o ISS, I.P. quem deu o impulso processual para a realização do inquérito, não tendo este sido realizado sob a dependência e direção do Ministério Público, mas sim diretamente do órgão de polícia criminal, atribuindo-se-lhe poderes de investigação autónoma que apenas incumbem àquele, termos em que ocorreu a invocada nulidade.
De acordo com o princípio da legalidade que vigora no regime geral das nulidades em processo penal, só são nulos os atos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine com essa consequência (art. 118º, n.º 1), sendo que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular (n.º 2 do mesmo artigo).
Entre as nulidades, a lei distingue as que são insanáveis e as que são dependentes de arguição. Segundo o art. 119º, as primeiras, “que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento”, são apenas as taxativamente previstas nas diversas alíneas desse preceito, "além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais”.
Nos termos da al. b) do citado artigo, expressamente invocada pela corrente, constitui nulidade insanável a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art. 48º.
A função relativa ao exercício da ação penal encontra-se atribuída ao Ministério Público pelo disposto no art. 219º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Em conformidade com essa atribuição, decorre daquele art. 48º que a legitimidade para promover o processo penal cabe ao Ministério Público, com as restrições dos artigos 49º a 52º, sendo, pois, a natureza do ilícito que delimita a promoção da ação penal.
Assim, é ao Ministério Público que cabe a promoção do processo, enquanto titular da ação penal, promovendo-a oficiosamente nos crimes públicos, mediante apresentação de queixa nos crimes semipúblicos (art. 49º) e dependente de queixa, constituição de assistente e dedução de acusação particular nos crimes particulares (art. 50º).
O art. 53º, n.º 2, dispõe que compete em especial ao Ministério Público: a) receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes; b) deduzir acusação e sustentá-la efetivamente na instrução e no julgamento; c) promover a execução das penas e das medidas de segurança.
De entre as várias dimensões da promoção do processo pelo Ministério Público, no presente recurso a que é posta em causa é a relativa à abertura do inquérito.
O processo inicia-se com a fase do inquérito, que compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262º, n.º 1), tendo sempre lugar que haja notícia de um crime, ressalvadas as exceções previstas na lei (n.º 2).
Assim, adquirida a notícia de um crime, e legitimado pela queixa nos crimes semipúblicos e particulares, o Ministério Público tem o poder-dever de promover o processo, determinando e dirigindo o inquérito.
Este ato é da sua exclusiva competência, pelo que se o processo for promovido por entidade diversa do Ministério Público é o mesmo nulo, nos termos da al. b) do art. 119º.
Sucede que, no processo penal tributário, em cujo âmbito se move o presente recurso, o descrito modelo apresenta algumas especificidades, desde logo decorrentes da delegação de competência, legalmente presumida (pelos art.s 40º, n.º 2, e 41º do RGIT), nos órgãos da administração tributária e nos da administração da segurança social, para a prática dos atos que, nos demais processos, o Ministério Público, ao qual compete o exercício da ação penal, pode atribuir aos órgãos de polícia criminal.
Essa delegação de competência não retira, obviamente, ao Ministério Público a direção do inquérito que for noticiado por crime tributário ou contra a segurança social, sendo quanto a isso inequívoco o n.º 1 do art. 40º do RGIT ao dispor que "Adquirida a notícia de um crime tributário procede-se a inquérito, sob a direção do Ministério Público, com as finalidades e nos termos do disposto no Código de Processo Penal", prevendo ainda o art. 41º do mesmo diploma a possibilidade de, a todo o tempo, o processo poder ser avocado pelo Ministério Público.
Nos termos do art. 35º, n.º 1, do RGIT, "A notícia de crime tributário adquire-se por conhecimento próprio do Ministério Público ou dos órgãos da administração tributária com competência delegada para os atos de inquérito, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou dos agentes tributários e mediante denúncia," esclarecendo o n.º 5 que "A denúncia contém, na medida do possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do n.º 1 do artigo 243.º do Código de Processo Penal."
Por seu lado, o n.º 2 desse art. 35º dispõe que "A notícia do crime é sempre transmitida ao órgão da administração tributária com competência delegada para o inquérito."
Refira-se que o disposto nesses números é correspondentemente aplicável aos órgãos e agentes da administração da segurança social, por força da remissão constante do n.º 7 do mesmo artigo.
No entanto, uma vez que se admite que, ao abrigo da referida competência presuntivamente delegada, o processo seja instaurado também pelos órgãos da administração tributária ou da administração da segurança social, o art. 40º, n.º 3, do RGIT impõe que, nesse caso, tal instauração seja de imediato comunicada ao Ministério Público, por forma a garantir e assegurar que a titularidade da ação penal e a direção do inquérito pertencem, desde o início do processo, ao órgão constitucionalmente incumbido das mesmas, para que possa, se assim o entender, determinar a realização de outras diligências de investigação, complementares ou não das levadas a cabo pelos órgãos da administração tribuária ou da administração da segurança social ou até avocar o processo.
Ora, como se colhe dos autos, a instauração do inquérito relativo ao presente processo teve lugar pelo órgão da administração da segurança social, que, como se impunha, de imediato a comunicou ao Ministério Público, através do ofício de 30-01-2013, junto a fls. 3, com o teor que se transcreve:
«Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 35º n.º 1, 40º n.º 3 e 41º n.º 1 alínea c) do Regime Geral das Infrações Tributárias, para os efeitos preconizados nos art.s 40º n.ºs 1 e 2 e 42º do mesmo diploma, informa-se V. Ex.a que foi instaurado o processo de inquérito n.º 2012001330, pela presumível prática do(s) crimes(s) ABUSO CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL, previsto(s) e punido(s) pelo(s) art. 107 do R.G.I.T., em que é indiciada S. - I. V., LDA.
Para os devidos efeitos e, para cumprimento do disposto no art. 248 n.º 1 do Código de Processo Penal, junto se anexa cópia da participação/notícia do crime/relatório preliminar.»
Face a esse ofício, o Magistrado do Ministério Público proferiu o despacho de fls. 10, com o seguinte teor:
«Delego na DF do ISS a competência para proceder a inquérito.
Prazo: 120 dias.»
Atenta essa comunicação, afigura-se-nos que o órgão da administração da segurança social deu integral satisfação à referida exigência decorrente do art. 40º, n.º 3, do RGIT, nada mais estando obrigado a comunicar.
Insurge-se a recorrente, e aqui reside o seu inconformismo relativamente à questão em apreço, contra o facto de tal comunicação não conter a sua identificação, enquanto pessoa visada no inquérito, bem sabendo já o ISS, I.P. que ela era gerente da empresa em causa, termos em que o Ministério Público desconhecia quem se estava a investigar.
Não lhe assiste, porém, razão, por duas ordens de razões:
Em primeiro lugar, porque, atenta a natureza do crime indiciado (abuso de confiança contra a segurança social), relevante era a identificação do sujeito passivo, in casu, a pessoa coletiva que, na qualidade de contribuinte, não entregou à segurança social o valor das quotizações retidas nos salários dos trabalhadores e da gerente, sendo que a responsabilidade criminal do respetivo representante decorre do disposto no art. 6º, n.º 1, do RGIT, que exige uma atuação em nome e no interesse do representado (n.º 1, al. b)).
Aquilo a que o órgão da administração da segurança social está obrigado é a comunicar ao Ministério Público a instauração do inquérito, tendo por objeto a eventual prática do crime indiciado, sendo que, nesse momento e antes de proceder a diligências de investigação, apenas poderá ter conhecimento da identificação do sujeito passivo da obrigação (contribuinte) e não das pessoas que atuaram em sua representação, podendo esta ser até meramente voluntária, como prevê o art. 6º, n.º 1, do RGIT.
Como bem refere o Mmº. Juiz na sentença recorrida, quando apreciou, a título de questão prévia, a mesma nulidade já então invocada pela arguida, estando em causa uma sociedade que alegadamente não entregou as quotizações retidas, desde logo, é ela a suspeita inicial, faltando correr o devido inquérito com vista ao apuramento da eventual responsabilidade dos gerentes de direito e de facto.
Acresce que o conhecimento, por parte do órgão da administração da segurança social, da qualidade de gerente (de direito) da arguida relativamente à pessoa coletiva sujeito passivo da obrigação, não impunha que também indicasse a identificação da mesma aquando da comunicação da instauração do inquérito ao Ministério Público nos termos do art. 40º, n.º 3, do RGIT. Desde logo porque a arguida poderia não exercer a gerência de facto ou não ter a participação necessária nos factos para que o inquérito devesse correr também contra ela, circunstâncias estas que apenas poderiam ser averiguadas no decurso da investigação, não decorrendo necessariamente da gerência de direito.
No caso concreto, no âmbito dessas averiguações, o órgão da administração da segurança social encarregue da investigação, logo que considerou existirem fundadas suspeitas da prática do crime pela ora recorrente, constituiu-a arguida, facto que comunicou ao Ministério Público, por ofício de 18-03-2013 (junto a fls. 15), para apreciação e validação dessa diligência nos termos do art. 58º, n.º 3, o que foi feito pelo despacho de 22-03-2013 (junto a fls. 28).
Em conformidade com o exposto, é indiscutível que o processo foi realizado sob a dependência e direção do Ministério Público, e que, consequentemente, houve promoção do mesmo por parte dessa autoridade judiciária, o que afasta a existência da nulidade invocada pela recorrente.
Em suma, podemos concluir que a comunicação ao Ministério Público da instauração do processo pelo órgão da administração tributária ou da administração da segurança social, prevista no art. 40º, n.º 3, do RGIT, não exige a indicação também da identidade do gerente (de direito) da pessoa coletiva que é o contribuinte faltoso, porquanto a não comunicação desse elemento não significa que o processo não esteja sob a direção e a titularidade do órgão constitucionalmente incumbido do exercício da ação penal, termos em que jamais pode consubstanciar a nulidade de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no art. 119º, al. b), do Código de Processo Penal.
3.1.3 - No entanto, mesmo que por via desse entendimento não se chegasse à conclusão da não verificação da nulidade em apreço, a falta de razão da recorrente seria ainda evidente por outro motivo, que lhe retira completamente a base de sustentação.
Com efeito, como expressamente é referido no ofício de fls. 3, a aludida comunicação, efetuada pelo órgão da administração da segurança social ao Ministério Público, foi acompanhada de cópia do relatório preliminar elaborado pela instrutora nomeada (cf. fls. 5 a 9).
Compulsando o teor desse relatório preliminar constata-se que, através dele, a instrutora comunicou ao seu superior hierárquico os factos que expôs no ponto III, por serem constitutivos da presumível prática de crime contra a segurança social, nos termos do disposto nos art. 35º, n.ºs 1, 2 e 7, e 41º, n.º 1, al. c), do RGIT, e para efeitos de instauração do competente processo de inquérito, nos termos do art. 40º do mesmo diploma. E, no ponto II, precisamente com a denominação "Elementos de identificação dos agentes", identificou, para além da sociedade "S. - I. V., Lda.", também a ora recorrente, V. F., por, consultada a certidão da Conservatória do Registo Comercial, se ter verificado que a mesma foi designada gerente e por, consultada a base de dados da Segurança Social, se ter concluído que, no período em dívida, esteve enquadrada no regime dos membros dos órgãos estatutários da empresa e auferiu remuneração nessa qualidade.
Pelo exposto, sempre se imporia a conclusão de que, aquando da comunicação ao Ministério Público da instauração do inquérito nos termos do art. 40º, n.º 3, do RGIT, foi indicada a identificação da recorrente, como agente da infração, por tal elemento constar do relatório preliminar cuja cópia foi enviada, contrariamente ao que a mesma sustenta.
Não se verifica, pois, a nulidade insanável de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, improcedendo este segmento do recurso.
3.1.4 - Na conclusão 12ª, ao alegar que «Desconhecendo o Ministério Público quem se está a investigar por falta de comunicação da Segurança Social, inexiste um inquérito dirigido pelo MP relativamente a tal arguido e, por isso, também se poderá dizer com propriedade que foi cometida a nulidade insanável de falta de inquérito», a recorrente dá a entender que também pretende invocar a nulidade prevista no art. 119º, al. d), embora em parte alguma da motivação aluda a este preceito, o qual sanciona como nulidade insanável “a falta de inquérito ou de instrução, nos caso em que a lei determinar a sua obrigatoriedade”.
Para a eventualidade de ser essa a intenção da recorrente, cumpre referir que a nulidade de “falta de inquérito” ocorre quando se verifique ausência absoluta ou total de inquérito ou falta absoluta de atos de inquérito[3].
Para além das evidentes situações de omissão formal, há falta total de inquérito quando, no caso de processo comum, materialmente, nenhum ato de investigação se pratica depois de adquirida a notícia do crime.
Não é, manifestamente esse o caso vertente, em que houve lugar a inquérito, com a prática de múltiplos atos de investigação, designadamente interrogatório de arguidos, inquirição de testemunhas e junção de documentos, conforme se colhe dos autos.
De todo o modo, a situação alegada pela recorrente, traduzida em o Ministério Público desconhecer que ela também estava a ser investigada, por falta de comunicação desse elemento por parte do ISS, I.P., nunca seria suscetível de revelar a falta de inquérito em relação a si, porquanto foi alvo de constituição como arguida, validada pelo Ministério Público, e interrogada nessa qualidade.
Não houve, pois, omissão total de atos de inquérito, o que afasta a existência da pretensa nulidade por falta do mesmo.
3.1.5 - Ainda a propósito da questão relativa às aludidas nulidades, suscita a recorrente duas inconstitucionalidades, ambas por violação do disposto no art. 219º, n.º 1, da Constituição, o qual, como já referimos, atribui ao Ministério Público a função relativa ao exercício da ação penal.
A primeira, atinente à interpretação que se faça dos art.s 48º e 119º, al. b), do Código de Processo Penal, no sentido de que apenas existe falta de promoção do processo pelo Ministério Público no caso de não ser deduzida acusação pelo mesmo (conclusão 11ª).
A segunda, relativa à interpretação que se extraia dos art.s 35º, n.º 1, e 40º, n.º 3, do RGIT e dos art.s 55º, n.º 1, 56º, 262º, n.º 2, e 263º do Código de Processo Penal, no sentido de ser dispensável a comunicação por parte da segurança social, com competência delegada presumida pelo Ministério Público, dos cidadãos contra quem o inquérito é dirigido, ainda que de conhecimento superveniente à primitiva comunicação (conclusão 13ª).
Como resulta do supra exposto, contrariamente ao que parece pressupor a recorrente, nenhuma dessas interpretações dos correspondentes preceitos legais foi acolhida ou aplicada na sentença recorrida nem, tampouco, na apreciação, no presente recurso, da questão da invocada nulidade por falta de promoção do processo pelo Ministério Público.
Com efeito, entendeu-se que, in casu, a comunicação ao Ministério Público da instauração do inquérito, efetuada por parte do órgão da administração da segurança social, satisfazia as exigências legais, contendo a identificação das pessoas contra quem o mesmo era dirigido, de acordo com o conhecimento existente à data dessa comunicação, para além de que, conforme demonstrámos, foi efetivamente comunicada também a identificação da recorrente.
Como tal, in casu, é descabida a invocação das referidas inconstitucionalidades.

3.2 - Da inexistência jurídica dos atos de inquérito ou, subsidiariamente, da nulidade insanável dos mesmos por falta de promoção do processo pelo Ministério Público
Nas conclusões 14ª a 31ª, invoca a recorrente que não houve subdelegação, por parte do presidente do conselho diretivo do IGFSS, I. P., dos seus poderes para que titulares de outros órgãos, funcionários e agentes da segurança social praticassem os atos de inquérito dos autos, pelo que, tendo estes sido realizados por quem não tinha competência para o efeito, nem a invocou, tal acarreta a respetiva inexistência ou, subsidiariamente, nulidade insanável por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no art. 119º, al. b).
3.2.1 - O já referido art. 40º do RGIT dispõe o seguinte (com segmento por nós sublinhado):
"1 - Adquirida a notícia de um crime tributário procede-se a inquérito, sob a direção do Ministério Público, com as finalidades e nos termos do disposto no Código de Processo Penal.
2 - Aos órgãos da administração tributária e aos da segurança social cabem, durante o inquérito, os poderes e funções que o Código de Processo Penal atribui aos órgãos e às autoridades de polícia criminal, presumindo-se-lhes delegada a prática de atos que o Ministério Público pode atribuir àquelas entidades, independentemente do valor da vantagem patrimonial ilegítima.
3 - A instauração de inquérito pelos órgãos da administração tributária e da administração da segurança social ao abrigo da competência delegada deve ser de imediato comunicada ao Ministério Público."
Por seu turno, o art. 41º do mesmo diploma preceitua que (igualmente com sublinhados nossos):
"1 - Sem prejuízo de a todo o tempo o processo poder ser avocado pelo Ministério Público, a competência para os atos de inquérito a que se refere o n.º 2 do artigo 40.º presume-se delegada:
(…)
c) Relativamente aos crimes contra a segurança social, nos presidentes das pessoas coletivas de direito público a quem estejam cometidas as atribuições nas áreas dos contribuintes e dos beneficiários.
2 - Os atos de inquérito para cuja prática a competência é delegada nos termos do número anterior podem ser praticados pelos titulares dos órgãos e pelos funcionários e agentes dos respetivos serviços a quem tais funções sejam especialmente cometidas.
3 - Os titulares dos cargos referidos no n.º 1 exercem no inquérito as competências de autoridade de polícia criminal.
(…)."
Do teor destes preceitos legais decorre que o legislador atribuiu aos órgãos da administração tributária e da administração da segurança social os poderes e as funções que o Código de Processo Penal atribui aos órgãos de polícia criminal, através de uma delegação presumida da competência para a prática de atos que o Ministério Público pode atribuir àqueles órgãos, exigindo apenas a comunicação imediata da instauração do inquérito.
Ora, nos termos do art. 270º, n.º 1, o Ministério Público pode conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências de investigação relativas ao inquérito, com exceção, para além dos atos que são da competência exclusiva do juiz de instrução (arts. 268° e 269º), dos atos previstos no n.º 2 daquele artigo.
Porém, não é necessário que o Ministério Público, em concreto, dê qualquer diretiva ou ordene qualquer diligência de investigação quanto à prática desses atos por parte dos órgãos de polícia criminal.
Por seu lado, a referida delegação presumida consiste apenas na autorização para o exercício de um poder, podendo o processo ser avocado a todo o momento ou ser ordenada a realização de diligências, complementares ou não das já efetuadas.
De todo o modo, a maior autonomia da investigação por parte da administração fiscal e da segurança social compreende-se e justifica-se pela especial natureza técnica das matérias em causa, sem que tal se traduza numa administrativização da fase de inquérito, cuja direção continua a pertencer ao órgão a quem constitucionalmente está atribuída, o qual não deixa de promover o processo.
Não obstante a referida delegação presumida, no caso concreto, ao receber a comunicação da instauração do inquérito, o Ministério Público proferiu de imediato despacho a delegar na DF do ISS, I.P. a competência para proceder ao mesmo (fls. 10).
Por conseguinte, para além de resultar do citado art. 41º, n.º 1, al. c), do RGIT a entidade em quem são legalmente delegados os poderes do Ministério Público, houve lugar, ainda que sem ser necessário, a despacho contendo uma delegação expressa.
Não tem, pois, razão a recorrente ao alegar, na conclusão 21ª, que se desconhece em quem foram delegados tais poderes.
Quanto à prática de atos de inquérito por parte dos titulares dos órgãos e pelos funcionários e agentes dos serviços aduaneiros, tributários ou da segurança social, é o próprio RGIT, no n.º 2 do seu art. 41º, a prevê-la expressamente, pelo que está a mesma legitimada por força desse preceito legal, sem qualquer necessidade de uma subdelegação e muito menos concretização dos poderes que são subdelegados.
Contrariamente ao que entende a recorrente, o segmento final desse preceito, ao referir "… a quem tais funções sejam especialmente cometidas", não tem a ver nem exige uma subdelegação de competências nesses titulares de órgãos, funcionários ou agentes por parte do diretor ou presidente do órgão da administração tributária ou da administração da segurança social, antes pretendendo significar os funcionários e agentes a quem regularmente compete e está atribuída a prática dos atos de inquérito, de acordo com a organização interna do respetivo serviço.
Ou seja, tal como acertadamente concluiu o Mm.º Juiz na sentença recorrida, ao apreciar a questão prévia da (i)legitimidade dos funcionários do ISS, IP para a tramitação do inquérito, o RGIT conferiu legitimidade a tais agentes e funcionários para procederem à prática dos atos de inquérito, sem necessidade qualquer despacho de subdelegação.
Em suma, é de concluir que a competência dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes dos respetivos serviços para a prática de atos de inquérito nos termos dos arts. 40º e 41º do RGIT não exige que haja uma subdelegação de poderes por parte do diretor ou presidente do órgão da administração tributária ou da administração da segurança social, em quem legalmente se presume delegada a prática de atos que o Ministério Público pode atribuir aos órgãos de polícia criminal.
3.2.2 - De todo o modo, ainda que assim não fosse, também nesta questão é, mais uma vez, manifesta a falta de razão da recorrente, porquanto, conforme resulta do teor da cópia junta a fls. 4, em 24 de julho de 2012 foi proferido despacho a nomear a instrutora do processo e a delegar nela a competência para a realização das diligências de investigação.
É certo que, como a recorrente salienta, tal despacho não se mostra assinado, o que se confirma pela análise do respetivo original, junto a fls. 100. Porém, tal circunstância não implica qualquer invalidade processual, uma vez que, a instrutora nomeada elaborou o relatório preliminar, que submeteu a apreciação superior, sendo que, nessa sequência e em face dos elementos aí descritos, foi determinada a instauração do processo de inquérito, que prosseguiu os seus ulteriores termos, sempre sob a direção do Ministério Público, culminando com a apreciação do parecer final fundamentado emitido pelo órgão competente da administração da segurança social (Departamento de Fiscalização do ISS, I.P.), e com a dedução de acusação, assim promovendo o processo nos termos do art. 48º.
Refere ainda a recorrente que o referido despacho é anterior em mais de seis meses à comunicação ao Ministério Público do início do inquérito, o que demonstra que o ISS, I.P. não se coibiu de praticar atos de inquérito antes de comunicar a instauração do mesmo.
Mais uma vez não tem razão, porquanto os atos que foram praticados consubstanciam-se apenas na elaboração do já mencionado relatório preliminar, pela instrutora nomeada através do referido despacho, no qual a mesma faz uma "exposição dos factos constitutivos da presumível prática do crime contra a segurança social" e indica os "elementos de identificação dos agentes", com vista a, uma vez obtida a concordância superior, ser determinada a instauração do processo, com a imediata comunicação da mesma ao Ministério Público, como efetivamente foi feito.
Ou seja, o referido relatório preliminar destinou-se apenas a transmitir a notícia do crime ao órgão da administração da segurança social com competência para o inquérito, conforme impõe o art. 35º, n.º 2 e 4, do RGIT, para que o mesmo, se assim o entendesse, determinasse a sua instauração, como veio a fazer, através de despacho, no qual, aliás, voltou a nomear a mesma instrutora para o processo.
Apesar de já haver uma nomeação anterior, a instrutora não praticou qualquer ato de investigação até ao momento em que a entidade competente determinou a instauração do inquérito e a comunicou ao Ministério Público.
Também quanto à questão, retomada na conclusão 18ª, de a competência para os atos de inquérito pertencer ao presidente do conselho diretivo do IGFSS, I.P. e não do ISS, I.P., não assiste qualquer razão à recorrente, pelas razões já explicitadas no ponto 3.1.1, para onde remetemos.
Pelo exposto, com fundamento numa pretensa ilegitimidade dos agentes da segurança social que praticaram os atos de inquérito, que não se verifica, inexiste qualquer invalidade, seja ela traduzida em inexistência jurídica desses atos ou em nulidade dos mesmos por falta de promoção do Ministério Público, pelo que improcede a questão em apreço.
3.2.3 - Também a respeito desta questão, invoca a recorrente a inconstitucionalidade, por violação do disposto nos art.s 32º, n.º 1, 219º, n.ºs 1 e 2, 266º, n.º 1, e 267º, n.º 1, todos da Constituição, da interpretação que se extraia dos arts. 40º, n.º 2, e 41º n.ºs 1, al. c), e 2, do RGIT, no sentido de que os funcionários da segurança social podem praticar atos de inquérito sem que exista subdelegação expressa de poderes da entidade na qual foram delegados tais poderes através de despacho do Ministério Público nesse sentido ou que podem praticar atos de inquérito sem invocar a qualidade de subdelegados.
Porém, pelas razões que supra apontámos, a desnecessidade dessa subdelegação expressa de modo algum retira os poderes de direção do inquérito ao órgão a quem constitucionalmente a mesma está atribuída - o Ministério Público (art. 219º da Constituição), que a todo o tempo pode avocar o processo e ordenar a realização de diligências, nem, consequentemente, se alcança que tal afete os direitos de defesa do arguido, com consagração constitucional no art. 32º, n.º 1, sendo que não surge minimamente caracterizada pela recorrente a alegada violação dos art.s 266º, n.ºs 1 e 2, e 267º, n.º 1, da mesma Lei Fundamental, que se reportam aos princípios fundamentais e à estrutura da administração pública.
Não se reconhece, pois, a invocada inconstitucionalidade.

3.3 - Da nulidade da sentença por falta de fundamentação
Invoca a recorrente, nas conclusões 32ª a 39º, que a sentença recorrida padece do vício de nulidade por falta de fundamentação, nos termos do art. 374º, n.º 2, conjugado com o art. 379º, n.º 1, al. a), violando, assim, os art.s 32º, n.º 1, e 205º, n.º 1, da Constituição, aduzindo, para tanto, que o facto dado como provado de que «a empresa entregou regularmente à Segurança Social as folhas de remunerações contendo os salários que pagou aos trabalhadores ao seu serviço e aos sócios-gerentes» não tem qualquer suporte na fundamentação da sentença, designadamente nos meios de prova aí apontados, e ainda que, lida essa fundamentação, não se consegue concluir quantos funcionários teve a sociedade nos períodos tributários em questão, nem sequer se pagou os salários na sua totalidade, o que é determinante da retenção dos valores a entregar à Segurança Social.
3.3.1 - Nos termos do n.º 1 do art. 205º da Constituição, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Concretizando essa estatuição, o Código de Processo Penal, no n.º 5 do art. 97º, impõe que os atos decisórios dos juízes sejam sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Especificamente quanto à sentença, o art. 374º estabelece os respetivos requisitos, entre os quais a fundamentação, capítulo que se segue ao relatório, a qual, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito e no que agora interessa, consiste na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Este exame crítico «consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção. O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte”.[4]
Para além de indicar os meios de prova utilizados, torna-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjetivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.
Mais concretamente, através do exame crítico das provas, o julgador enuncia as razões de ciência dos vários meios de prova, explicita a razão da opção por uma e não por outra das versões em confronto e indica os motivos da credibilidade que atribuiu a depoimentos, a documentos e a exames.
Por sua vez, os arts. 379º e 380º estabelecem as consequências da inobservância dos requisitos previstos no art. 374º: a nulidade ou a mera irregularidade da sentença, consoante os casos. De acordo com a al. a) do n.º 1 daquele primeiro preceito, é nula a sentença que não contiver, entre outras, as menções referidas no nº 2 do art. 374º, acrescentando o seu n.º 2 que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso.
A propósito da exigência de fundamentação em análise, a doutrina vem entendendo que só a sua falta absoluta é que conduz à nulidade da decisão. A fundamentação insuficiente, deficiente ou não convincente não constitui nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso[5].
Também a jurisprudência se orienta no mesmo sentido, defendendo que só a falta absoluta de fundamentação, «por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira» determina a nulidade do despacho/sentença. A «insuficiência ou a mediocridade da motivação [que] é espécie diferente [da falta absoluta de motivação] afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade»[6].
3.3.2 - No caso vertente, da motivação da decisão de facto, supra transcrita, resulta clara a explicitação do processo de formação da convicção do Mmº. Juiz quanto ao facto em apreço (a sociedade ter entregue regularmente à segurança social as folhas de remunerações contendo os salários que pagou aos trabalhadores ao seu serviço e aos sócios-gerentes).
Com efeito, aí se refere expressamente terem sido valoradas as declarações da própria arguida, que admitiu quase toda a factualidade (com exceção apenas para os valores concretos que não foram entregues à segurança social, por não se recordar deles), nomeadamente que não pôde pagar ao Instituto da Segurança Social, pois privilegiou o pagamento dos salários (significando, pois que estes foram pagos), mais se tendo atendido aos extratos de remunerações de fls. 91 a 97, aos recibos de vencimento de fls. 157 a 170 e ainda ao depoimento da testemunha M. M., técnica superior daquele Instituto, que, de forma sincera e verosímil, soube esclarecer o tribunal sobre a entrega das declarações, os períodos correspondentes e os valores em divida.
Apesar de sintética, a fundamentação do segmento factual em apreço, para além de conter a enunciação dos vários meios de prova e da sua razão de ciência (declarações da própria arguida, depoimento da técnica do ISS, I.P. e recibos de vencimento), permite também compreender perfeitamente por que razão a convicção decisória do tribunal se formou em determinado sentindo.
Tal fundamentação, para além de, obviamente, não ser inexistente, o que demonstra a total falta de sustentação da alegação da recorrente, é até suficiente e cabal, pelo que não padece sequer de qualquer deficiência.
Quanto ao número de trabalhares que a sociedade teve nos períodos tributários em apreço, concorda-se inteiramente com a observação feita pela Exma. Procuradora Adjunta na sua resposta, no sentido da irrelevância de tal facto. Com efeito, essencial é o apuramento, em cada período temporal relevante, dos montantes relativos a quotizações retidas pela entidade patronal nos salários dos seus trabalhadores e da sua sócia gerente e que não entregou ao ISS, I.P.. Ora, tais factos constam do ponto 5 da matéria provada.
Não se verifica, pois, a nulidade da sentença por falta de fundamentação, invocada pela recorrente, improcedendo este segmento do recurso.

3.4 - Da falta de liquidação da quantia indemnizatória relativa à condenação no pedido cível
Por último, nas conclusões 40ª a 42ª, a recorrente defende que, no âmbito do pedido de indemnização civil, foi condenada no pagamento de quantia ilíquida, pelo que deveria ter sido condenada no que se liquidasse em execução de sentença, o que levaria a que os demandados não fossem condenados em custas ou, pelo menos, apenas na proporção do decaimento.
Porém, é manifesto o erro em que lavra, ao sustentar que a sua condenação foi em quantia ilíquida.
Estipula o n.º 2 do art. artigo 609.º do Código de Processo Civil que “Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.”
A aplicação desta norma, pretendida pela recorrente, depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores dos prejuízos. O preceito tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, a quantidade de condenação[7].
Significa isto que, para o que aqui importa, no caso de o autor ter deduzido um pedido específico (isto é, um pedido de conteúdo concreto), só se não lograr fixar com precisão a extensão dos prejuízos, é que o poderá fazer em liquidação em execução de sentença, situação em que se justifica uma condenação nesses termos.
Não é o que se verifica no caso dos autos, em que o demandante civil formulou um pedido específico e não genérico, no valor de € (82.761,53) e logrou provar ser esse o montante do dano, ao qual, todavia, há que deduzir os valores parcelares de € 870,23, € 446,57 e € 14.509,21, entretanto pagos pela demandada, no âmbito do acordo prestacional celebrado com a segurança social em fase de reversão.
Embora se pudesse já ter procedido a esse cálculo aritmético, subtraindo aqueles valores ao montante global do dano, não é pelo facto de se ter condenado no pagamento da «quantia de € 82.761,53 (oitenta e dois mil, setecentos e sessenta e um euros e cinquenta e três cêntimos) (…), mas a descontar as quantias de € 870,23, € 446,57 e € 14.509,21, já pagas», como consta do dispositivo da sentença, que tal condenação se torna ilíquida, uma vez que o respetivo valor está perfeitamente definido, não carecendo de qualquer determinação, mas apenas de um mero cálculo aritmético, cujos dados são conhecidos.
Independentemente das implicações do pagamento de tais quantias a nível do cálculo dos juros devidos, até porque elas próprias incluem juros, o apuramento da quantia em dívida pelos demandados não carece de qualquer liquidação em execução de sentença, mas apenas de simples cálculos, a fazer de acordo com os elementos derivados dos referidos planos prestacionais e das imputações neles feitas (fls. 890 a 956).
No entanto, já assiste razão à recorrente na parte relativa à condenação em custas, embora por fundamentos não inteiramente coincidentes com os invocados.
Apesar de ter julgado o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante ISS, I.P. parcialmente procedente, e, em consequência, condenado os demandados a pagarem-lhe a quantia de € 82.761,53 (coincidente com o montante peticionado), mas a descontar as quantias de € 870,23, € 446,57 e € 14.509,21, já pagas, o Mmº. Juiz fixou as custas na parte civil na sua totalidade pelos demandados.
Na fundamentação factual da sentença recorrida nada se diz quanto à data em que tais pagamentos foram efetuados, limitando-se, quanto a esse facto, a remeter para os documentos juntos a fls. 911 e ss., emitidos pela Secção de Processo Executivo de Braga do IGFSS, I.P., e que contém a situação dos planos prestacionais, por reversão, celebrados pela recorrente, bem como os detalhes dos documentos de cobrança.
Sucede que, da análise desses documentos, aptos a fazer a respetiva prova, resulta que os pagamentos em questão foram efetuados entre março de 2010 e fevereiro de 2011, ou seja, em momento anterior à dedução do pedido de indemnização civil, que teve lugar em 25-07-2014 (cf. fls. 350).
Como tal, nessa parte, correspondente às parcelas dos pagamentos entretanto efetuados que respeitam ao capital, não podem os demandados ser responsáveis por custas, devendo, pois, tal condenação ser na proporção do decaimento, como defende a recorrente.
Neste segmento procede, pois, o recurso.


III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao recurso, interposto pela arguida V. F., e, em consequência:
A) - Revogar a sentença recorrida, na parte em que fixou as custas relativas ao pedido de indemnização civil exclusivamente a cargo dos demandados, substituindo-a pela condenação da demandante e dos demandados, na proporção do respetivo decaimento, nos termos supra expostos.
B) - Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.

Sem tributação em custas, atenta a parcial procedência do recurso (art. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
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*
(Texto elaborado pelo relator e revisto por todos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

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Guimarães, 06 de novembro de 2017


(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(Fernando Monterroso)


[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
[2] - Como é o caso, nomeadamente, das situações previstas nos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), todos do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995.
[3] - Cf. o acórdão do TRP de 15-06-2011 (processo n.º 1645/08.6PIPRT.P1), disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] - Cf. o acórdão do STJ de 25-01-2006 (processo n.º 05P3460), disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] - Vd. Alberto do Reis, Código de Processo Civil, anotado, vol. 5, pág. 140; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III (1972), pág. 246; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, pág. 669 e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 221.
[6] - Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 26-03-2014 (processo n.º 15/10.0JAGRD.E2.S1), disponível em http://www.dgsi.pt., e de 30-04- 2014, (processo n.º 330.08.3PATNV.C2.S1), disponível na Coletânea de Jurisprudência online, com a referência 8895/2014.
[7] - Vd. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volumes I, pág. 614 e ss., e V, pág. 71, Vaz Serra, RLJ, ano 114º, pág. 309, Rodrigues Bastos, Notas ao C.P.C, vol. III, pág. 233).