Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1149/21.1T8CHV.G1
Relator: MARIA GORETE MORAIS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CULPA
CONTRIBUIÇÃO PARA A PRODUÇÃO DOS DANOS
REPARTIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Confirmando-se que determinada expressão incluída na materialidade provada tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve a mesma considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
II - Em princípio, procede com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, cause danos a terceiros.
III - No entanto, nos acidentes de viação, mais do que a violação frontal de uma regra de direito estradal, importa essencialmente determinar o processo causal da verificação do acidente, ou seja, a conduta concreta de cada um dos intervenientes e a influência dela na sua produção.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

E. T. - Transportes Unipessoal, Lda., pessoa colectiva nº ........., com sede na Rua do ..., nº .., freguesia de ..., concelho de Chaves, e E. S., contribuinte fiscal nº ………, residente na Rua do ..., nº …, freguesia de ..., concelho de Chaves, interpuseram ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Companhia de Seguros X, S.A., com sede no Largo …, nº …, em … Lisboa, pessoa coletiva nº ………, pedindo a condenação da Ré a proceder ao pagamento da quantia global de € 12.425,31, a título de danos patrimoniais e morais.
Para o pretendido efeito, e em síntese, alegam os AA. que, em 14/08/2020, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes a viatura com a matrícula TB, propriedade da sociedade comercial 1ª A., conduzida pelo seu gerente, o 2º A., e a viatura de matrícula TE, conduzida por M. B., propriedade de F. F. Decapagem Metalização e Envernizamento, Lda., e segurada na Ré.
Mais alegam que o acidente se ficou a dever a culpa única e exclusiva da condutora do TE que se encontrava a sair de um estacionamento, invadindo a faixa de rodagem onde seguia o 2º A., não tendo este conseguido evitar o embate.
Acrescentam que como consequência directa e necessária do acidente de viação descrito, a viatura ficou danificada tendo sido reparada pela 1ª A., tendo igualmente o 2º A. sofrido lesões e danos não patrimoniais cujo pagamento reclamam da Ré.
A Ré apresentou contestação impugnando a forma como ocorreu o acidente de viação e bem assim a atribuição da culpa à condutora do veículo TE sua segurada, considerando que, não obstante esta estar a sair do estacionamento, o 2º A. poderia muito bem ter travado e evitado o embate, só não o tendo feito por seguir com uma taxa de álcool no sangue de 2,25 gr/l.
Considerando a simplicidade da causa e o reduzido valor da ação, ao abrigo do disposto no artigo 597º alínea g) do CPC, foi proferido despacho a designar data para a realização da audiência de julgamento.
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Realizou-se audiência final com observância das formalidades legais, vindo a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente por provada e, em consequência, condenou a Ré Companhia de Seguros X, S.A. a pagar à Autora E. T. - Transportes Unipessoal, Lda., a quantia de € 4.108,87 (quatro mil, cento e oito euros e oitenta e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais, a que acrescerão juros de mora calculados à taxa legal de 4%, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
No mais, absolveu a Ré dos pedidos formulados pela Autora E. T. -Transportes Unipessoal, Lda. e pelo A. E. S..
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Não se conformando com o assim decidido, veio a Ré interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1ª- O presente recurso de apelação é interposto da sentença proferida, pois que, salvo o devido respeito, ao decidir como o fez, a sentença recorrida não procedeu a uma correta interpretação e aplicação dos preceitos e valores legais pertinentes aos factos provados.
Assim,
2ª- O presente recurso reporta-se à questão da atribuição da responsabilidade na produção do acidente em 50% para cada um dos condutores, o que discordamos, pois salvo o devido respeito, entendemos que o acidente se deveu a culpa exclusiva do autor.
3ª- Acresce que, salvo o devido respeito e melhor opinião, os pontos 12 e 13 dos factos provados, devem ser eliminados, pois que não se traduzem em factos, mas meras conclusões e conceitos de direito, vagos e abstratos, sem suporte factual.
4ª- O que consta nos pontos 12 e 13 dos factos provados, concretamente que a condutora do TE “não respeitou o sentido de marcha”, “invadindo sem os cuidados obrigatórios”, “sem respeitar as prioridades” e “sem qualquer direito de prioridade”, bem como no ponto 13 “Actuou com imperícia, desatenção e imprudência”, são meras conclusões e/ou conceitos vagos e abstractos, que não factos.
5ª- Pois são conclusões no que que a culpa da produção do acidente diz respeito, e não a factos concretos, e como tal devem ser expurgados dos factos provados, pelo que, salvo o devido respeito, os pontos 12 e 13 dos factos provados devem ser eliminados.
6ª- Aliás, salvo o devido respeito, até nos parece contraditório que se atribua a responsabilidade do acidente em 50% à condutora do veículo seguro, face aos factos provados e à douta fundamentação da matéria de facto.
7ª- Porém, não obstante os factos provados supra elencados, designadamente sob os pontos 1, 2, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 14, 15 e 16, e as considerações e fundamentação de tais factos provados, a Mª Juiz considerou que a condutora do TE era responsável em 50% na produção do acidente.
Ora,
8ª- Como resulta dos factos provados , o veículo TE estava parado – ponto 10 dos factos provados, e até há algum tempo – conforme fundamentação, e tendo o autor percorrido apenas cerca de 80 metros – ponto 15 dos factos provados, parece-nos lógica a conclusão de que o acidente só ocorreu devido à taxa de álcool no sangue de 2,25 g/l com que o autor conduzia, que não conseguiu travar ou desviar-se para a esquerda, tendo tempo e espaço para controlar o seu veículo e assim evitar o embate – ponto 16 dos factos provados .
9ª- Mais podemos acrescentar que conduzindo o autor com 2,25 g/l de TAS, embateu no veículo seguro da Ré que se encontrava parado, como podia embater numa pessoa, pois que tinha a visão completamente turva com o álcool.
10ª- O facto de a condutora do TE estar parada na faixa de rodagem não constitui qualquer contraordenação e muito menos foi causa do acidente.
11ª- A causa do acidente foi a TAS com que o condutor e Autor conduzia, que era 4,5 vezes superior ao máximo legalmente permitido e constituindo um crime, e por isso foi condenado, como consta da sentença junta aos autos.
12ª- A condutora do TE não violou o disposto no art. 12º, nº do CE, pois como resulta do ponto 10 dos factos provados, encontrava-se parado na via.
13ª- E também não violou o disposto art. 35º, pois que a manobra de marcha atrás foi efectuada muito antes do acidente ter ocorrido, e não causou perigo ou embaraço para o trânsito, pois o autor tinha tempo e espaço para se desviar – ponto 16 dos factos provados.
14ª- De igual modo salvo o devido respeito, também a condutora do veículo seguro não violou o disposto no art. 48º, nº 1 do CE, pois que como resulta do ponto 10 dos factos provados não estava “a impedir ou a dificultar a passagem de outros veículos”.
15ª- Assim, a condutora do TE não praticou qualquer contraordenação, e muito menos causal do acidente, sendo que, ao contrário, o autor praticou uma contraordenação e até um crime de condução em estado de embriaguez, que foram causais do acidente.
16ª- Pois que:
- O autor conduzia com uma TAS de 2,25 g/l – ponto 11 dos factos provados.
- Seguia numa reta, sendo o limite de velocidade de 50 Km/hora – pontos 14 e 8 dos factos provados.
- O autor desde que arrancou até ao embate percorreu apenas cerca de 80 metros – ponto 15 dos factos provados.
- Não travou ou se desviou para a esquerda, quando podia e devia fazê-lo, tendo tempo e espaço para tal - ponto 16 dos factos provados.
- Não o fez devido à taxa de alcoolémia com que conduzia – ponto 16 dos factos provados.
17ª- Assim, cometeu e foi condenado pela prática do crime previsto no art. 292º, nº 1 do Código Penal por condução em estado de embriaguez, conforme sentença junta aos autos.
18ª- Além de que, efetivamente, também praticou a infração prevista do art. 24º do C.E, pois sendo uma reta tendo arrancado 80 metros antes e sendo uma zona industrial onde o limite de velocidade era de 50 Km/hora, não obstante isso não conseguiu imobilizar o veículo ou desviar-se do veículo TE quando o podia e devia fazer, não parando no espaço livre e disponível à sua frente.
19ª- Além de ter violado de forma gravíssima o princípio geral de cuidado e prudência na condução, sendo o crime e a transgressão causais do acidente.
20ª- Salvo o devido respeito é aqui deveras importante, sublinhar a taxa de álcool que o Autor e condutor do veículo era portador na altura do acidente.
21ª- Embora se possa dizer que agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois, a circunstância em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular, varia de pessoa para pessoa, parece que, esta tese não poderá aqui integrar-se, quando o grau de alcoolemia assume um valor elevado e até criminalmente punível.
22ª- Pois, a entender-se, assim, estar-se-á, nada mais, nada menos, que a beneficiar os infratores e levá-los sem qualquer sombra de dúvida a relaxar a sua condução, não evitar o álcool.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO

1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte, e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código Processo Civil (1).
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e, consequentemente, na decisão da matéria de facto;
. da culpa na produção do ajuizado acidente e sua repartição entre os intervenientes nesse evento súbito.
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2. Recurso da matéria de facto
2.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 14 de Agosto de 2020, pelas 17 horas e 50 minutos, na Zona Industrial de …., na Rua ..., na freguesia de ..., concelho de Chaves, ocorreu um acidente de viação.
2. Ali foram intervenientes um veículo ligeiro de mercadorias, marca Mercedes, modelo Sprinter Furgão 519C, com a matrícula TB e um veículo ligeiro de passageiros, marca Mercedes, Modelo A, com a matrícula TE.
3. A viatura com a matrícula TB era conduzida por E. S., 2º A., sendo proprietária a ..., Sociedade Financeira de Crédito SA, por reserva de propriedade, mas cedido através de contrato de financiamento a favor da 1ª A. E. T. –Transportes Unipessoal, Lda. à data do acidente.
4. O veículo com a matrícula TE era conduzido pela senhora M. B., e era propriedade de F. F. Decapagem Metalização e Envernizamento.
5. A referida sociedade “F. F.”, enquanto proprietária do veículo transferiu a sua responsabilidade para a Ré, Companhia de Seguros X, S.A. através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ......41, em vigor à data do acidente.
6. O estado do tempo era bom.
7. O piso da rua encontrava-se em bom estado.
8. No local a velocidade máxima permitida era de 50 Km/h.
9. O A. E. S. circulava, com o seu veículo de matrícula TB, na Rua ..., no sentido ascendente quando se deparou com o veículo de matrícula TE a sair de marcha atrás de um estacionamento e a invadir parcialmente a sua faixa de rodagem, tendo então a viatura TB embatido na viatura TE e com o impacto foi ainda a viatura conduzida pelo 2º A. embater no veículo de matrícula BM, que se encontrava estacionado.
10. Ao sair do estacionamento, a condutora do TE deixou descair o veículo considerando que o estacionamento possui uma pequena rampa ascendente face à via pública e quando já estava parcialmente a ocupar a mesma, parou para colocar o cinto e atender o telemóvel que se encontrava a tocar no interior da sua mala colocada no banco frontal do passageiro.
11. O Autor E. T. conduzia no momento do acidente com uma taxa de alcoolémia no sangue de 2,25 g/l.
12. A condutora M. B. do referido veículo com a matrícula TE, não respeitou o sentido de marcha do veículo que circulava na via pública, invadindo sem os cuidados obrigatórios e sem respeitar as prioridades dos que circulavam na via pública, uma vez que a mesma vinha de um estacionamento privado, sem qualquer direito de prioridade.
13. Actuou a condutora do veículo com a matrícula TE, com imperícia, desatenção, imprudência relativa à situação do seu veículo e da abordagem à via pública no local.
14. O A. seguia numa reta, numa zona industrial aquando do acidente e dentro de uma localidade pelo que sempre se impunha diminuir a velocidade, obrigando a uma atenção redobrada.
15. Antes do embate a viatura da 1ª A. e conduzida pelo 2º A. percorreu apenas cerca de 80 metros.
16. Devido à taxa de álcool com que seguia, o A. E. S. não conseguiu travar ou desviar-se para a esquerda, tendo tempo e espaço para controlar o seu veículo e assim evitar o embate.
17. O A. E. S., nasceu a - de Novembro de 1975 e tinha assim a idade de 45 anos no dia do acidente.
18. Em consequência do embate descrito em 9 a viatura da 1ª A. E. T. – Transportes, Unipessoal, Lda. com a matrícula TB ficou danificada, tendo esta procedido à sua reparação.
19. Por tal reparação a 1ª A. pagou o valor de €10.107,81, sendo €8.217,73 a título de capital e €1.890.00 a título de IVA.
20. A 1ª A. E. T. –Transportes Unipessoal, Lda., pessoa coletiva nº ........., encontra-se coletada pelas atividades CAE 49420 – Atividades de Mudanças por via rodoviária e CAE 43120 – reparação dos locais de construção e o seu enquadramento em sede de IVA é o regime trimestral, o que permite a dedução do IVA suportado, relativamente a aquisições e prestações de serviços relacionados com a sua atividade nos veículos adstritos ao exercício das mesmas.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença

O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:

a) No local do embate a visibilidade para a via pública é limitada pelos muros de vedação.
b) O 2º A. circulava a mais de 70 Km /hora.
c) O A. E. S. sofreu de algumas escoriações múltiplas na região frontal e lateral, à direita e esquerda.
d) Hematoma no ombro esquerdo, com cervicalgia e dislipdemia.
e) Foi medicado com paracetamol e hirudoid.
f) Por altura do acidente, o A. auferia o vencimento no valor do ordenado mínimo nacional.
g) O A. E. S. é pai de um filho menor, que é estudante, e consequentemente cuidava das tarefas domésticas e financeiras da sua casa, partilhadas com a sua esposa, o que deixou de fazer durante o referido período de 15 dias.
h) As lesões sofridas pelo A. E. S. provocaram-lhe dores físicas intensas tanto no momento do acidente, como no decurso do demorado tratamento.
i) E as de que ficou a padecer definitivamente, continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo e mal-estar, que a vão acompanhar durante toda a sua vida e que se exacerbam com as mudanças de tempo.
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2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto

Nas conclusões recursivas veio a apelante, para além do mais, requerer que os pontos 12 e 13 dos factos provados sejam eliminados, pois contêm meras conclusões e conceitos de direito, vagos e abstratos.

Os referidos pontos têm a seguinte redação:
. “A condutora M. B. do referido veículo com a matrícula TE, não respeitou o sentido de marcha do veículo que circulava na via pública, invadindo sem os cuidados obrigatórios e sem respeitar as prioridades dos que circulavam na via pública, uma vez que a mesma vinha de um estacionamento privado, sem qualquer direito de prioridade” (ponto nº 12);
. “Actuou a condutora do veículo com a matrícula TE, com imperícia, desatenção, imprudência relativa à situação do seu veículo e da abordagem à via pública no local” (ponto nº 13).
Questão que se coloca é a de saber se os transcritos pontos contêm em si mesmo conceitos de direito e meras conclusões que, qua tale, não devem constar do elenco dos factos provados.
Como é sabido, a este propósito dispõe o nº 4 do art. 607º que, na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No regime pretérito, o nº 4 do art. 646º do Cód. Processo Civil, previa, ainda, que “têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual Código de Processo Civil, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documentos ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência (2).
Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
Dito isto, torna-se evidente que os pontos nºs 12 e 13 contêm, na sua essência, referências a conceitos jurídicos empregues, nomeadamente, nos arts. 3º, 12º e 35º do Cód. da Estrada, e bem assim meras conclusões, sendo que, neste conspecto, o substrato factual relevante para apreciação do eventual comportamento inadimplente das regras estradais por banda da condutora do veículo com a matrícula TE é o que resulta do ponto nº 10 da materialidade provada.
Como assim, determina-se a eliminação dos pontos nºs 12 e 13 do elenco dos factos provados.
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3. FUNDAMENTOS DE FACTO

Face à decisão que antecede, passa a ser a seguinte a factualidade relevante provada:

1. No dia 14 de Agosto de 2020, pelas 17 horas e 50 minutos, na Zona Industrial de …, na Rua ..., na freguesia de ..., concelho de Chaves, ocorreu um acidente de viação.
2. Ali foram intervenientes um veículo ligeiro de mercadorias, marca Mercedes, modelo Sprinter Furgão 519C, com a matrícula TB e um veículo ligeiro de passageiros, marca Mercedes, Modelo A, com a matrícula TE.
3. A viatura com a matrícula TB era conduzida por E. S., 2º A., sendo proprietária a ..., Sociedade Financeira de Crédito SA, por reserva de propriedade, mas cedido através de contrato de financiamento a favor da 1ª A. E. T. –Transportes Unipessoal, Lda. à data do acidente.
4. O veículo com a matrícula TE era conduzido pela senhora M. B., e era propriedade de F. F. Decapagem Metalização e Envernizamento.
5. A referida sociedade “F. F.”, enquanto proprietária do veículo transferiu a sua responsabilidade para a Ré, Companhia de Seguros X, S.A. através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ......41, em vigor à data do acidente.
6. O estado do tempo era bom.
7. O piso da rua encontrava-se em bom estado.
8. No local a velocidade máxima permitida era de 50 Km/h.
9. O A. E. S. circulava, com o seu veículo de matrícula TB, na Rua ..., no sentido ascendente quando se deparou com o veículo de matrícula TE a sair de marcha atrás de um estacionamento e a invadir parcialmente a sua faixa de rodagem, tendo então a viatura TB embatido na viatura TE e com o impacto foi ainda a viatura conduzida pelo 2º A. embater no veículo de matrícula BM, que se encontrava estacionado.
10. Ao sair do estacionamento, a condutora do TE deixou descair o veículo considerando que o estacionamento possui uma pequena rampa ascendente face à via pública e quando já estava parcialmente a ocupar a mesma, parou para colocar o cinto e atender o telemóvel que se encontrava a tocar no interior da sua mala colocada no banco frontal do passageiro.
11. O Autor E. T. conduzia no momento do acidente com uma taxa de alcoolémia no sangue de 2,25 g/l.
12. (eliminado)
13. (eliminado)
14. O A. seguia numa reta, numa zona industrial aquando do acidente e dentro de uma localidade pelo que sempre se impunha diminuir a velocidade, obrigando a uma atenção redobrada.
15. Antes do embate a viatura da 1ª A. e conduzida pelo 2º A. percorreu apenas cerca de 80 metros.
16. Devido à taxa de álcool com que seguia, o A. E. S. não conseguiu travar ou desviar-se para a esquerda, tendo tempo e espaço para controlar o seu veículo e assim evitar o embate.
17. O A. E. S., nasceu a - de Novembro de 1975 e tinha assim a idade de 45 anos no dia do acidente.
18. Em consequência do embate descrito em 9 a viatura da 1ª A. E. T. – Transportes, Unipessoal, Lda. com a matrícula TB ficou danificada, tendo esta procedido à sua reparação.
19. Por tal reparação a 1ª A. pagou o valor de €10.107,81, sendo €8.217,73 a título de capital e €1.890.00 a título de IVA.
20. A 1ª A. E. T. –Transportes Unipessoal, Lda., pessoa coletiva n.º ........., encontra-se coletada pelas atividades CAE 49420 – Atividades de Mudanças por via rodoviária e CAE 43120 – reparação dos locais de construção e o seu enquadramento em sede de IVA é o regime trimestral, o que permite a dedução do IVA suportado, relativamente a aquisições e prestações de serviços relacionados com a sua atividade nos veículos adstritos ao exercício das mesmas.
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4. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como se viu, a sentença recorrida julgou a ação parcialmente procedente, aí se afirmando que em relação ao ajuizado acidente de trânsito ambos os condutores nele intervenientes agiram com culpa, o que motivou o decisor de 1ª instância a considerar existirem culpas concorrentes, graduando a responsabilidade de cada um deles em 50%.
A apelante rebela-se contra o referido segmento decisório, advogando que a culpa na eclosão do acidente se ficou antes a dever exclusivamente ao comportamento do 2º autor que conduzia o veículo com a matrícula TB, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 2,25 g/l, sendo que o mesmo, por causa disso, malgrado tivesse tempo e espaço para controlar o seu veículo, não conseguiu, contudo, travar ou desviar-se para a esquerda e assim evitar embater no veículo com a matrícula TE, cujo proprietário havia transferido para a ré a responsabilidade civil por danos causados pela circulação do mesmo.
O problema que, assim, se equaciona é o de saber a quem imputar, e em que medida, a responsabilidade na produção do sinistro.
Como, a este propósito, vem sendo sublinhado na jurisprudência (3), nos acidentes de viação, mais do que a violação frontal de uma regra estradal, importa essencialmente determinar o processo causal da verificação do acidente, ou seja, a conduta concreta de cada um dos intervenientes e a influência dela na sua produção.
Na verdade, não se pode olvidar que um dos pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos é o nexo causal entre o facto (ilícito) e a produção do resultado danoso, sendo certo que entre nós, conforme vem constituindo entendimento claramente majoritário, vigora a teoria de causalidade adequada (que a dogmática moderna tende a substituir pela designação de teoria ou doutrina da adequação) na sua formulação negativa, cuja ideia fulcral é a de que se considera causa de um dano o facto que se revele, em concreto, condição necessária desse dano, mas também que constitua, em abstrato, segundo o curso normal das coisas, causa adequada da sua produção. Portanto, segundo o pensamento fundamental da enunciada teoria, entre todas as condições naturalísticas que eventualmente concorreram para a produção de um dano, será apenas causa juridicamente relevante aquela que como condição imputável a determinada pessoa se interpôs decisivamente no processo que conduziu ao resultado danoso.
Na determinação dessa causalidade, o tribunal a quo considerou que ambos os condutores dos veículos envolvidos no acidente em análise nos autos foram responsáveis pelo mesmo, em igual proporção, afirmando, fundamentalmente, que a contribuição da condutora da viatura TE nesse evento súbito se ficou a dever ao facto de a mesma “sair de marcha atrás de um estacionamento privado, invadiu parcialmente a faixa de rodagem do 2º A. e ali permaneceu a colocar o cinto e a procurar o telemóvel para o atender em virtude de o mesmo estar a tocar no interior da sua mala colocada no banco frontal do passageiro”, tendo, nessa ocasião, ocorrido o embate. Por seu turno, no referido ato decisório, considerou-se que a contribuição do 2ª Autor para o acidente em análise resultou do facto de este conduzir com uma taxa de alcoolémia no sangue de 2,25 g/l e que, por esse motivo, não conseguiu travar ou desviar-se para esquerda, sendo que tinha tempo e espaço para tal e assim evitar o embate.
Na presença do descrito quadro fáctico e apelando ao comando normativo vertido no art. 570º do Cód. Civil, o decisor de 1ª instância entendeu justificar-se a repartição de culpas na proporção, como se referiu, de 50% para cada um dos mencionados condutores.
Questão que nesta oportunidade se coloca e que importa decidir é a de saber se se mostra ajustada a forma como o tribunal de 1ª instância decidiu proceder à repartição de culpas entre os intervenientes no sinistro.
Perante a materialidade que logrou demonstração, afigura-se-nos que a condutora do TE infringiu as regras de trânsito plasmadas nos arts. 12º, nº 1 (4), 35º, nº 1 (5) e 48º (6), do Cód. da Estrada, posto que um condutor que pretenda entrar numa via, saindo de um parque de estacionamento, deve usar de todas as cautelas e cuidados necessários, tomando em atenção o trânsito em circulação, sendo-lhe exigível que equacione bem todo o tempo necessário para a conclusão da manobra empreendida, sem ter de vir a interferir com a velocidade e a direção do outro ou outros que circulam pela via prioritária, ou seja, deve efetuar a manobra o mais rápido possível com vista a não impedir a passagem a todos os veículos que circulam na via prioritária, onde pretende ingressar. Ora, não foi esse, no entanto, o comportamento adotado pela referida condutora que ao sair de marcha atrás de um estacionamento privado, invadiu parcialmente a faixa de rodagem por onde circulava o 2º autor e aí permaneceu (indevidamente) a colocar o cinto e a procurar o telemóvel para o atender em virtude de o mesmo estar a tocar no interior da sua mala colocada no banco frontal do passageiro.
Por seu turno, o condutor do TB incumpriu as determinações legalmente prescritas nos arts. 24º, nº 1 e 81º, nºs 1 e 2, do Cód. da Estrada (para além de ter incorrido na prática do tipo legal incriminador previsto no art. 292º, do Cód. Penal, sendo que, como emerge dos autos, foi condenado pela prática desse crime por sentença já transitada em julgado), porquanto conduzia com uma taxa de alcoolémia no sangue de 2,25 g/l e que, por esse motivo, não conseguiu travar ou desviar-se para esquerda, sendo que tinha tempo e espaço para tal e assim evitar o embate.
Afirmada, deste modo, a inobservância pelos condutores intervenientes no ajuizado acidente de viação das mencionadas regras estradais, daí resulta presumir-se a culpa de ambos, já que, conforme, praticamente una voce, vem sendo decidido na jurisprudência pátria (7), em princípio, procede com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, cause danos a terceiros.
No caso vertente, nem o 2º autor nem a ré lograram produzir prova tendente a afastar as referidas presunções relativas de culpa.
Assim sendo, importa, então, agora entrar na apreciação da essencial questão que se coloca no âmbito do presente recurso e que se prende com a determinação da contribuição de cada um dos condutores intervenientes no ajuizado acidente de viação na produção do mesmo.
Neste conspecto, a divergência recursiva da apelante em relação à decisão recorrida traduz-se na circunstância de, na sua perspetiva, esse sinistro ter sido causado única e exclusivamente pelo condutor do veículo com a matrícula TB.
Que dizer?
Já anteriormente se deu nota que nos acidentes de viação, mais do que a violação frontal de uma regra estradal, importa essencialmente determinar o processo causal da verificação do acidente, ou seja, a conduta concreta de cada um dos intervenientes e a influência dela na sua produção.
É certo ter resultado provado (cfr. pontos 11 e 16) que o Autor E. T. conduzia no momento do acidente com uma taxa de alcoolémia no sangue de 2,25 g/l. e que não conseguiu travar ou desviar-se para a esquerda, tendo tempo e espaço para controlar o seu veículo e assim evitar o embate.
No entanto, não é menos verdade que a condutora do veículo segurado na ré, com a sua conduta, também contribuiu para que o acidente acontecesse, porquanto, depois de sair do estacionamento, de marcha atrás, passou a ocupar a faixa de rodagem por onde seguia o 2º autor, onde, indevidamente, parou para colocar o cinto e atender o telemóvel que se encontrava a tocar no interior da sua mala colocada no banco frontal do passageiro, criando, deste modo, um obstáculo inesperado para os condutores dos veículos que circulavam nesse mesmo sentido de marcha.
Ainda assim, afigura-se-nos que, neste segmento, a decisão recorrida é merecedora de censura, posto que as afirmações de facto provadas apontam decisivamente no sentido de que a atuação do 2º autor se revelou, in concreto, mais efetiva na produção do ajuizado acidente de trânsito, assumindo o seu comportamento, no respetivo processo causal, foros de maior gravidade quando cotejado com o da condutora do veículo segurado na ré.
Concluímos do que fica exposto, porque também a conduta do Autor E. S. contribuiu para a produção dos danos reclamados na presente demanda, a indemnização a que a autora (8) tem direito terá de ser reduzida (em consonância com o que se dispõe no citado art. 570º, nº 1, do Cód. Civil) na medida dessa contribuição, devendo ser-lhe atribuída uma quota parte de responsabilidade maior na produção do acidente perante a conduta da condutora do TE, já que, como se assinalou supra, a intensidade da culpa, ou seja, a gravidade do juízo de censura ético-jurídico, é superior quando se aprecia as duas condutas. E, na nossa ótica, essa medida deverá estimar-se em 75%, percentagem que nos parece mais ajustada dadas as circunstâncias que envolveram o acidente, a participação de cada um dos condutores e as consequências que do mesmo resultaram.
Deste modo, por mor do contrato de seguro que celebrou com a proprietária do mesmo (cfr., v.g, arts. 4º, 11º e 64º do DL nº 291/2007, de 21.08), fica a ré constituída na obrigação de reparar os prejuízos que advieram para a autora em resultado de tal evento súbito (que ascendem ao valor global de €8.217,73), sendo que em resultado da considerada repartição de culpas, o respetivo quantum indemnizatur se cifra no montante de €2.054,25.
Por conseguinte, procedem, ainda que parcialmente, as conclusões 2ª, 6ª a 22ª.
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III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, em consequência do que:
(i) se altera a decisão recorrida, condenando-se a Ré no pagamento à Autora “E. T. – Transportes Unipessoal, Lda.” da quantia de €2.054,25 (dois mil e cinquenta e quatro euros e vinte e cinco cêntimos) a título de indemnização pelos danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efetivo pagamento;
ii) se confirma no mais a sentença sob censura.
Custas por autores e ré, em ambas as instâncias, na proporção do respetivo decaimento.
Guimarães, 3.11.2022

Relator: Maria Gorete Morais
1º Adjunto Des. José Amaral
2ª Adjunta Desª. Maria João Matos



1. Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
2. Sobre a questão, LEBRE DE FREITAS et alli, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 2001, pág. 606 e ANTUNES VARELA et alli, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 648.
3. Cfr., por todos, acórdão do STJ de 18.06.2009 (processo nº 176/09.1YFLSB) e acórdão da Relação do Porto de 14.07.2008 (processo nº 0834104), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
4. No qual se dispõe que “Os condutores não podem iniciar ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência a sua intenção e sem adotarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente”.
5. Onde se preceitua que “O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito”.
6. Nos termos do qual “Considera-se paragem a imobilização de um veículo pelo tempo estritamente necessário para a entrada ou saída de passageiros ou para breves operações de carga ou descarga, desde que o condutor esteja pronto a retomar a marcha e o faça sempre que estiver a impedir ou a dificultar a passagem de outros veículos”.
7. Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 1.02.2000 (CJ, Acórdãos do STJ, ano VIII, tomo 1ª, pág. 52) e de 19.10.2009 (processo n.º 04B2638), este último acessível em www.dgsi.pt, onde se enfatiza que, sob pena de tornar-se excessivamente gravoso ou incomportável, o ónus probatório instituído no art. 487.º Cód. Civil deverá ser “mitigado pela intervenção da denominada prova prima facie ou de primeira aparência, baseada em presunções simples, naturais, judiciais, de facto ou de experiência - praesumptio facti ou hominis, que os arts. 349º e 351º Cód. Civil consentem, precisamente enquanto deduções ou ilações autorizadas pelas regras de experiência - id quod plerumque accidit (o que acontece as mais das vezes) (…) Como assim, e dum modo geral, a ocorrência de situação que em termos objectivos constitua contravenção de norma(s) do Código da Estrada importa presunção simples ou natural de negligência, que cabe ao infrator contrariar, recaindo sobre ele o ónus da contraprova, isto é, de opor facto justificativo ou factos suscetíveis de gerar dúvida insanável no espírito de quem julga…”.
8. Como resulta do dispositivo da sentença recorrida, apenas foi atribuída indemnização à autora “E. T. – Transportes Unipessoal, Ldª”, tendo a ré sido absolvida do pedido indemnizatório aduzido pelo autor E. S., segmento decisório este que, não tendo sido alvo de impugnação em sede recursória, transitou em julgado.