Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1510/18.9T8VRL-A.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
ADVOCACIA
SEGURO OBRIGATÓRIO
NÃO COMUNICAÇÃO/PARTICIPAÇÃO DO EVENTO
NÃO OPONIBILIDADE DA EXCEPÇÃO AO LESADO BENEFICIÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Os contratos de seguro previstos no artigo 104º do Estatuto da Ordem dos Advogados revestem natureza de seguro obrigatório.

II- Estando em causa um contrato de seguro obrigatório, não é oponível ao autor, enquanto lesado (beneficiário), alheio à relação contratual titulada pela apólice, a excepção peremptória de direito material fundada na falta de oportuna comunicação/participação dos factos potencialmente geradores de uma reclamação por responsabilidade civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. M. M. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra M. J., F. M., X Insurance Company SE, Sucursal em Espanha, e Y Insurance Company (Europe), Lda., pedindo que a acção seja «julgada provada e procedente e, por via dela:

a) - serem todos os Réus solidariamente condenados a pagar ao Autor os prejuízos patrimoniais pelo mesmo sofridos em consequência da descrita conduta dos 1.ª e 2.º Réus, os quais, na data de 23-07-2018, ascendem ao valor de €249.553,64 (€229.901,76 capital + €19.651,88 juros, calculados desde 03-06-2016 até 23-07-2018);
b) - serem, ainda, todos os Réus condenados nos juros vincendos, calculados à taxa legal em vigor, sobre a importância em dívida, desde a data de 23-07-2018 até efetivo e integral pagamento».

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que os Réus M. J. e F. M. foram por si sucessivamente mandatados como advogados no processo 44/10.4TTVRL, do Juízo de Trabalho de Vila Real – Juiz 1, de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, que intentou contra a sua empregadora W – Companhia de Seguros, SA, sendo que a 1ª Ré patrocinou-o desde 03.02.2010 até à cessação do respectivo mandato em 30.06.2011, enquanto o 2º Réu assumiu o patrocínio, através de substabelecimento sem reserva, a partir de 30.06.2011.

O Autor imputa aos 1ª e 2º Réus, advogados, responsabilidade pelos seguintes factos:

a) Não ter a 1ª Ré peticionado as retribuições vincendas, desde a data da contestação até à data do trânsito em julgado da sentença, no valor de € 229.901,76, aquando da apresentação da contestação/reconvenção por si subscrita em representação do Autor no dia 26.05.2010;
b) O 2º Réu, após ter assumido o patrocínio naquela acção judicial no dia 30.06.2011, não ter requerido a ampliação do pedido relativamente às retribuições vincendas, desde a data da contestação até à data do trânsito em julgado da sentença, no valor de € 229.901,76, só tendo abordado esta questão em sede de recurso de revista, no ano de 2015.
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As Rés seguradoras foram demandadas em virtude de contratos de seguro celebrados com a Ordem dos Advogados.

Concretamente, no que releva para o presente recurso, alegou que entre a Ordem dos Advogados e a 3ª Ré X Insurance Company SE, Sucursal en España, foi celebrado um contrato de seguro, de responsabilidade civil profissional, para o ano de 2018, a que foi atribuída a apólice nº ES00013615EOA18A, relativa à actividade profissional dos advogados, sendo segurados todos os advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam a actividade em prática individual ou societária, por dolo, erro, omissão ou negligência profissional, sendo o limite de indemnização por sinistro de € 150.000,00.

Mais alegou que a 3ª Ré «é a responsável na data actual, altura da demanda do 2º Réu – “C. M.” – sendo, por isso, a responsável pela cobertura dos danos causados resultantes da actividade do mesmo».
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Todos os Réus contestaram, sendo que, com relevo para o objecto do recurso, a 3ª Ré invocou a exclusão do descrito sinistro do âmbito do contrato de seguro. Sustentou que «a falta de comunicação dos factos alegados na p.i. e potencialmente geradores de responsabilidade civil dos RR. e/ou da intenção do A. os responsabilizar pelos factos alegados na p. i. constitui causa de exclusão da cobertura “Responsabilidade Civil Profissional” dos contratos de seguro celebrados com a 3.ª Ré».

Alega que os factos imputados aos Réus advogados ocorreram nos anos de 2010 e 2011, o 2º Réu, enquanto segurado da 3ª Ré, não pode ter deixado de ter conhecimento dos factos que lhe são imputados e/ou da intenção do Autor lhe imputar responsabilidade pelos mesmos, antes da data da propositura da presente acção judicial, mormente antes do dia 01.01.2018, mas não lhe comunicou os factos ou circunstâncias alegados na p.i. e a possibilidade de tais factos poderem dar origem a uma “reclamação”, razão pela qual a 3ª Ré só teve conhecimento dos factos alegados na p. i. em 07.08.2018, na sequência da sua citação para a presente acção judicial.
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1.2. Realizada a audiência prévia, proferiu-se despacho-saneador, identificou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
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1.3. Inconformada, a Ré X Insurance Company SE, Sucursal en España, interpôs recurso de apelação do despacho-saneador e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:

«I. A responsabilidade pelos factos alegados na petição inicial encontra-se excluída das garantias acordadas através do contrato de seguro celebrado com a Apelada [terá querido dizer “Apelante”1].
II. Do contrato de seguro celebrado com a Apelada resulta que «Ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações:
a) Por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data do início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação; (…)».
III. «O tomador do seguro ou o segurado deverão, como condição precedente às obrigações do segurador sob esta apólice, comunicar ao segurador tão cedo quanto seja possível: (…) c) Qualquer circunstância ou incidente concreto conhecida(o) pelo segurado e que razoavelmente possa esperar-se que venha a resultar em eventual responsabilidade abrangida pela apólice, ou determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice.».
IV. Da aplicação do direito aos factos dos Autos, independentemente de corresponderem, ou não, à verdade, resulta evidente que, no limite, no ano de 2016, os Réus advogados e segurados da Apelada não podiam desconhecer a existência dos factos suscetíveis de implicar a respectiva responsabilidade civil decorrente do exercício das suas atividades como advogados.
V. Os contratos de seguro celebrados com a Apelante foram celebrados pelo prazo de 12 meses, com data de início às 0:00 horas do dia 1 de janeiro de 2018 e termo às 0:00 horas do dia 1 de janeiro de 2019.
VI. Como tal, a responsabilidade pelos factos alegados na petição inicial encontra-se excluída das garantias acordadas através dos contratos de seguros celebrados com a Apelada.
VII. Ao decidir como decidiu o tribunal “a quo” violou, por isso, o disposto nos artigos 405.º, n.º 1, do Código Civil, artigos 3.º, 8.º, n.º 1, da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” dos contratos de seguro dos autos e ponto 10 das “Condições Particulares do Seguro de Responsabilidade Civil” desses mesmos contratos.
VIII. Mesmo que se equacione a natureza obrigatória dos contratos de seguro dos Autos e se considere inoponível ao lesado a exceção da falta de participação do sinistro à Seguradora, ora Apelante, tal exceção sempre será oponível aos Segurados da Apelante, 1.º e 2.º Réus nos presentes Autos.
IX. A Apelante sempre teria a possibilidade de repercutir sobre os Réus advogados o sacrifício patrimonial decorrente do incumprimento do dever de participação do sinistro.
X. Evidentes razões de economia processual justificam o conhecimento da exceção perentória decorrente do pré-conhecimento dos factos e consequente exclusão das garantias acordadas através dos contratos de seguro celebrados com a Apelante nos presentes autos, tendo em vista a eventual condenação dos Réus advogados ou o reconhecimento de eventual direito de regresso que possa vir a assistir à aqui Apelante.
XI. Impor que a Apelante tenha que aguardar o desfecho do presente litígio para, em nova ação judicial a intentar, peticionar o reconhecimento de eventual direito de regresso que lhe venha a assistir viola princípios basilares do processo civil, como o da economia processual.
XII. Nesta parte, ao decidir como decidiu, o douto Tribunal Recorrido violou o disposto nos artigos 6.º, 547.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 595.º do Código de Processo Civil».
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Tanto o Autor como o Réu F. M. apresentaram contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
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1.4. Por requerimento de 23.07.2019, com a referência nº 33062227, veio o Recorrido F. M., 2º Réu na acção, requerer que a Ré X Insurance Company SE, Sucursal en España, aqui Recorrente, «seja condenada como litigante de má-fé, em multa, bem como indemnização a favor do aqui réu no montante de 10% do valor da acção», alegando, na parte relevante, o seguinte:
«4.º
Resulta da mesma forma cristalino que a Ré X, aqui Apelante, prestou também falsas declarações, alegando factos que sabia, e não podia deixar de saber, serem falsos, que também são essenciais, pois, com base nessa alegada falta do 2.º Réu dar conhecimento à Ré seguradora, arguiu a excepção da exclusão da cobertura para pedir a sua absolvição do processo
5.º
De facto, também a ré X foi agora obrigada a juntar documentos aos autos, documentos de cuja análise resulta demonstrada a falsidade dos factos alegados na contestação que apresentou, vide doc. que se anexa, doc. 1.
6.º
E alegou a apelante X nesse requerimento de junção, tentando concertar a situação de falsas declarações, que:

“Face à documentação ora junta, verificou a ora Requerente que o alegado nos pontos 45.º e 47.º da sua contestação não corresponde com exatidão aos factos ocorridos, pelo que ao abrigo do princípio da cooperação e da lealdade processual, vem requerer a V. Exa. que se digne relevar tal lapso, na medida em que, e ao contrário do que foi escrito, os RR. deram conhecimento à ora Requerente dos factos ou circunstâncias alegados na p. i. em 07.06.2018.”
7.º
A apelante Ré X sabia da falsidade das alegações que fazia na contestação que apresentou, e no entanto procurou obter vantagens processuais dessas falsidades, como sejam a verifica das alegadas excepções, cujo fim último era eximir-se a qualquer responsabilidade.

Mais, continuando com o seu aproveitamento,
8.º
Apesar de saber da falsidade desse factos, não se coibiu sequer de recorrer da decisão do Tribunal “ a quo” que sobre eles incidiu.
9.º
Pois a Ré/apelante X alegou, nomeadamente a fls. 6 das suas alegações:
“▪ Sendo certo que a ora Ré só teve conhecimento dos factos alegados na p. i. em 07.08.2018, na sequência da sua citação para a presente ação judicial.
▪ A falta de comunicação dos factos alegados na p. i. e potencialmente geradores de responsabilidade civil dos RR. e/ou da intenção do A. os responsabilizar pelos factos alegados na p. i. constitui causa de exclusão da cobertura “Responsabilidade Civil Profissional” dos contratos de seguro celebrados com a 4.ª Ré, acima melhor identificados.
▪ A exclusão ora invocada constitui facto impeditivo do efeito jurídico pretendido pelo A. face à 4.ª Ré.”
10.º
Veio agora, por requerimento de 15/07/2019 apresentado no processo principal, alegar, dado ter sido obrigada a juntar tais documentos, que se tratou de um “lapso”, que peticiona que seja relevado,
11.º
Quando, o que se trata, é de ter negado uma realidade que era do seu conhecimento, e com base nessa negação alegou uma causa para ser absolvida do processo, e quando lhe foi negada razão, continuou, interpondo e mantendo um recurso para discussão dessa causa!
12.º
E nem sequer se dignou vir informar o Tribunal de Recurso, que está a apreciar essa questão, da alteração da sua posição sobre os factos, exceção invocada e causa do recurso, mormente desistindo do mesmo!
13.º
E constata-se que:
a) Depois da contestação do aqui apelado; depois da resposta à exceção do aqui apelado; vem agora, decorridos meses, alegar um lapso!
b) Que apenas foi descoberto porque obrigada a juntar tais documentos.
c) E continua sem extrair as devidas consequências e efeitos, como se nada tivesse acontecido com essas falsas declarações, que, aliás, influem na decisão da causa!».
*
A Recorrente apresentou resposta a este requerimento, dizendo:

«1. A Apelante interpôs o presente recurso da Decisão do Tribunal “a quo” que julgou improcedente a exceção invocada em sede de contestação decorrente do préconhecimento do(s) sinistro(s) dos autos, conf. alegação de recurso e Conclusões IV a VI e X.
2. Fundamentando a verificação da referida exclusão, essencialmente, nos seguintes factos e fundamentos:

▪ Nos termos acordados através dos Contratos de Seguro celebrados com a 4.ª Ré “O tomador do seguro ou o segurado deverão, como condição precedente às obrigações do segurador sob esta apólice, comunicar ao segurador tão cedo quanto seja possível:
(…)
c) Qualquer circunstância ou incidente concreto conhecida(o) pelo segurado e que razoavelmente possa esperar-se que venha a resultar em eventual responsabilidade abrangida pela apólice, ou determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice.”.
▪ Acresce que, “Ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações:
a) Por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data do início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação; (…)”.
3. No caso dos autos, os factos imputados aos 1.º e 2.º RR. ocorreram nos anos de 2010 e 2011, conf. artigos 21.º, 50.º e 65.º da p. i..
4. E, o segurado da 4.ª Ré, a corresponder à verdade o alegado pelo A. na p. i., o que não se aceita mas que por dever de patrocínio se equaciona, não pode ter deixado de ter conhecimento dos factos que lhe são imputados e/ou da intenção do A. lhe imputar responsabilidade pelos mesmos, antes da data da propositura da presente ação judicial, mormente antes do dia 01.01.2018.
5. Mantendo-se, assim, o fundamento do presente recurso, bem assim como da exclusão decorrente do conhecimento prévio a 01.01.2018 dos factos alegados na p. i..
6. Cumpre, contudo, referir que aquando da elaboração da sua contestação e alegação de recurso a apelante referiu “(…) a ora Ré só teve conhecimento dos factos alegados na p.i. em 07.08.2018, na sequência da sua citação para a presente ação judicial.” (art. 47.º da sua contestação).
7. Quando, na realidade, o 2.º Réu e ora Apelado Dr. F. M. comunicou à corretora da ordem dos advogados – K – Corretora de Seguros, S. A. – da intenção de o A. intentar ação judicial contra o mesmo no dia 06.06.2018, conf. doc. 2 junto com o requerimento com a referência 33062227.
8. Tendo sido, no dia seguinte (07.06.2018), remetida a referida comunicação pela citada K à empresa que gere os sinistros como os dos autos – a K Consulting, S. A., que de imediato contatou o Apelado Dr. F. M., conf. doc. 3 junto com o requerimento com a referência 33062227.
9. Paralelamente, também a Apelante rececionou a comunicação do A. no dia 18.06.2018, conf. doc. 1 junto com o requerimento com a referência 33062227.
10. Pelo que, assim que constatou o erro em causa, ao indicar a data de 07.08.2018 e não a de 07.06.2018 (2 meses antes) disso informou o Tribunal “a quo”, requerendo a respetiva correção, conf. Requerimento Probatório junto com o requerimento com a referência 33062227.
11. Correção essa que também requer a esse douto Tribunal da Relação de Guimarães.
Face ao exposto,
12. A Apelante em momento algum prestou falsas declarações a fim de arguir a exceção de exclusão em causa, que deriva do pré-conhecimento dos factos alegados na p. i. (nos anos de 2010 e 2011) e não quanto à data da participação dos autos, tão-pouco litigou de má-fé, pelo que se impugna expressamente o alegado nos artigos 4.º a 8.º, 11.º, do requerimento com a Ref. 33062227».
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.5. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso. Por outro lado, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, não podendo o tribunal ad quem analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes ao tribunal a quo.

Neste enquadramento, a questão fundamental proposta para resolução consiste em saber se deve ser revogada a decisão que julgou improcedente a excepção peremptória de exclusão da cobertura “Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro celebrado com a 3ª Ré. No essencial, trata-se de apurar se é oponível ao Autor a cláusula de exclusão da cobertura constante das condições particulares do contrato de seguro.

Por outro lado, atento o requerido pelo 2º Réu na pendência do recurso, importa apurar se a Recorrente deve ser considerada como litigante de má-fé e condenada em multa e em indemnização a favor do recorrido 2º Réu.
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2 – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

Os factos relevantes para a apreciação das apontadas questões são os descritos no relatório que antecede, bem como os que a seguir se indicam por se encontrarem documentalmente demonstrados:

2.1.1. Entre a 3ª Ré, X Insurance Company SE, Sucursal em España, e a Ordem dos Advogados foi celebrado um contrato de seguro de grupo, temporário, anual, do ramo de responsabilidade civil, titulado pela Apólice nº …, conforme doc. nº 3 junto com a contestação daquela Ré.
2.1.2. Através do referido contrato de seguro a 3ª Ré segura a «Responsabilidade Civil Profissional decorrente do exercício da advocacia, com um limite de 150.000,00 € por sinistro (…)», entre outros riscos.
2.1.3. Nos termos do ponto 2 do “artigo preliminar” da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do aludido contrato de seguro, «Esta apólice tem por objeto dar satisfação às reclamações de terceiros, com base em dolo, erro, omissão ou negligência, cometidos antes da data de efeito da presente apólice ou durante o período de seguro. A retroatividade dos efeitos desta apólice é a expressamente definida nas Condições Particulares».
2.1.4. Segundo o artigo 2º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do aludido contrato de seguro, «Mediante o pagamento do prémio, e sujeitos aos termos e condições da apólice, a presente apólice tem por objetivo garantir ao segurado a cobertura da sua responsabilidade económica emergente de qualquer reclamação de Responsabilidade Civil de acordo com a legislação vigente, que seja formulada contra o segurado, durante o período de seguro, pelos prejuízos patrimoniais causados a terceiros (…).» [doc. nº 3 (pág. 9) junto com a contestação da 3ª Ré].
2.1.5. O dito contrato de seguro foi celebrado pelo prazo de 12 meses, com data de início às 0:00 horas do dia 1 de Janeiro de 2018 e termo às 0:00 horas do dia 1 de Janeiro de 2019 - ponto 10 das “Condições Particulares do Seguro de Responsabilidade Civil” constantes do doc. nº 3 (pág. 5) junto com a contestação da 3ª Ré.
2.1.6. Através do contrato de seguro contratado junto da 3ª Ré foi, ainda, acordada a franquia de € 5.000,00 por sinistro, conforme ponto 9 das “Condições Particulares do Seguro de Responsabilidade Civil” constantes do doc. nº 3 junto (pág. 5) com a contestação da 3ª Ré.
2.1.7. O 2º Réu contratou junto da 3ª Ré apólice de reforço, com o capital de € 100.000,00 e eliminação da franquia acordada através do contrato de seguro titulado pela apólice nº …, com início no dia 01.01.2018.
2.1.8. O contrato de seguro celebrado com a 3ª Ré, acima referido, prevê no ponto 7, sob a epígrafe “âmbito temporal”, das respectivas condições particulares o seguinte:

«O Segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional coberta pela presente apólice, e mesmo ainda, que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice e sem qualquer limitação temporal da retroactividade» [ponto 7 do doc. 3 (pág. 4) junto pela 3ª Ré com a sua contestação].

2.1.9. Consta do ponto 7 das “condições particulares” do contrato de seguro que: «Para os fins supra indicados, entende-se por reclamação a primeira das seguintes comunicações:

a) Notificação oficial por parte do sinistrado, do tomador do seguro ou do segurado, ao segurador, da intenção de reclamar ou de interposição de qualquer ação perante os tribunais;
b) Notificação oficial do tomador do seguro ou do segurado, ao segurador, de uma reclamação administrativa ou investigação oficial, com origem ou fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, que haja produzido um dano indemnizável à luz da apólice;
c) Por outra via, entende-se por reclamação, qualquer facto ou circunstância concreta, conhecida prima facie pelo tomador do seguro ou segurado, da qual resulte notificação oficial ao segurador, que possa razoavelmente determinar ulterior formulação de um pedido de ressarcimento ou accionar as coberturas da apólice» [doc. nº 3 (págs. 4 e 5) junto pela 3ª Ré com a contestação].
2.1.10. Segundo o ponto 12 do artigo 1º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro, constitui “Reclamação” «Qualquer procedimento judicial ou administrativo iniciado contra qualquer segurado, ou contra o segurador, quer por exercício de ação direta, quer por exercício de direito de regresso, como suposto responsável de um dano abrangido pelas coberturas da apólice;
Toda a comunicação de qualquer facto ou circunstância concreta conhecida por primeira vez pelo segurado e notificada oficiosamente por este ao segurador, de que possa:
i) Derivar eventual responsabilidade abrangida pela apólice;
ii) Determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento, ou
iii) Fazer funcionar as coberturas da apólice» [doc. nº 3 (pág. 9) junto com a contestação da 3ª Ré].
2.1.11. Segundo o artigo 4º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro, «É expressamente aceite pelo tomador do seguro e pelos segurados que a presente apólice será competente exclusivamente para as reclamações que sejam apresentadas pela primeira vez no âmbito da presente apólice:
a) Contra o Segurado e notificadas ao segurador; ou
b) Contra o segurador em exercício de ação direta;
c) Durante o período de seguro, ou durante o período de descoberto, resultantes de dolo, erro, omissão ou negligência profissional cometidos pelo segurado após a data retroativa» [doc. nº 3 (pág. 10) junto com a contestação da 3ª Ré].
2.1.12. Segundo o artigo 8º, nº 1, da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro, «O tomador do seguro ou o segurado deverão, como condição precedente às obrigações do segurador sob esta apólice, comunicar ao segurador tão cedo quanto seja possível:
a) Qualquer reclamação contra qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;
b) Qualquer intenção de exigir responsabilidade a qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;
c) Qualquer circunstância ou incidente concreto conhecida(o) pelo segurado e que razoavelmente possa esperar-se que venha a resultar em eventual responsabilidade abrangida pela apólice, ou determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice» [doc. nº 3 (págs. 13 e 14) junto pela 3ª Ré com a sua contestação].
2.1.13. Segundo o artigo 3º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro, «Ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações:
a) Por qualquer facto ou circunstância já anteriormente conhecido(a) do segurado, à data de início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação;(…)» [doc. nº 3 (pág. 10) junto com a contestação da 3ª Ré].
2.1.14. Nos termos do artigo 10º (com a epígrafe de “convenção de gestão de sinistros), nºs 1 e 2, da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro, «Fica acordado entre as partes que será utilizada a seguinte convenção no que respeita à gestão de sinistros e reclamações:
1. O segurado, nos termos definidos no ponto 1. do artigo 8.º desta Condição Especial, deverá comunicar ao corretor ou ao segurador, com a maior brevidade possível, o conhecimento de qualquer reclamação efetuada contra ele ou de qualquer outro facto ou incidente que possa vir a dar lugar a uma reclamação.
2. A comunicação referida em 1, dirigida ao corretor ou ao segurador ou seus representantes, deverá circular entre os eventuais intervenientes de modo tal que o conhecimento da reclamação possa chegar ao segurador no prazo improrrogável de oito dias» [doc. 3 (pág. 16) junto com a contestação da 3ª Ré].
2.1.15. Em 06.02.2019 foi proferido despacho-saneador pelo Tribunal a quo, onde se fez constar a seguinte decisão objecto do presente recurso:

«No que diz respeito à exceção de exclusão da cobertura do contrato de seguro, invocada pela ré X Insurance, diremos o seguinte:

Tem sido entendido, e assim também o entendemos, que o contrato de seguro de responsabilidade civil profissional dos Advogados é um contrato de seguro obrigatório.
Sucede que, num contrato de seguro obrigatório, não são oponíveis ao lesado beneficiário, enquanto terceiro que nele não é parte, as exceções que ali são previstas e que se referem ao incumprimento ou omissão por parte do segurado ou do tomador do seguro dos deveres que para ele decorrem de tal contrato ou da lei, sem prejuízo do direito de regresso da seguradora, nos termos do art.º 101.º n.º 4 da Lei do Contrato de Seguro.
Foi assim decidido, entre outros, no Acórdão proferido no Processo nº 9108/16.0T8PRT-A.P1, de 09-11-2017, do Tribunal da Relação do Porto.
Ou seja, sendo o contrato de seguro em causa, um contrato de seguro obrigatório, não pode a ré X Insurance opor ao autor, que aqui figura como lesado, a exceção que invocou para alegar a exclusão da cobertura, pelo que improcede a exceção invocada, independentemente do apuramento da veracidade ou não do alegado.
Improcede, assim, a exceção de exclusão de cobertura da apólice.».

2.1.16. Na motivação das suas alegações, a Recorrente alegou o seguinte:

«▪ No caso dos autos, os factos imputados aos 1.º e 2.º RR. ocorreram nos anos de 2010 e 2011, conf. artigos 21.º, 50.º e 65.º da p. i..
E, o segurado da 4.ª Ré, a corresponder à verdade o alegado pelo A. na p. i., o que não se aceita mas que por dever de patrocínio se equaciona, não pode ter deixado de ter conhecimento dos factos que lhe são imputados e/ou da intenção do A. lhe imputar responsabilidade pelos mesmos, antes da data da propositura da presente ação judicial, mormente antes do dia 01.01.2018. (…)
▪ Sendo certo que a ora Ré só teve conhecimento dos factos alegados na p.i. em 07.08.2018, na sequência da sua citação para a presente ação judicial.
▪ A falta de comunicação dos factos alegados na p.i. e potencialmente geradores de responsabilidade civil dos RR. e/ou da intenção do A. os responsabilizar pelos factos alegados na p.i. constitui causa de exclusão da cobertura “Responsabilidade Civil Profissional” dos contratos de seguro celebrados com a 4.ª Ré, acima melhor identificados.
▪ A exclusão ora invocada constitui facto impeditivo do efeito jurídico pretendido pelo A. face à 4.ª Ré».
2.1.17. Por sua vez, nas conclusões das suas alegações, a Recorrente fez constar:
«IV. Da aplicação do direito aos factos dos Autos, independentemente de corresponderem, ou não, à verdade, resulta evidente que, no limite, no ano de 2016, os Réus advogados e segurados da Apelada não podiam desconhecer a existência dos factos suscetíveis de implicar a respectiva responsabilidade civil decorrente do exercício das suas atividades como advogados.
V. Os contratos de seguro celebrados com a Apelante foram celebrados pelo prazo de 12 meses, com data de início às 0:00 horas do dia 1 de janeiro de 2018 e termo às 0:00 horas do dia 1 de janeiro de 2019.
VI. Como tal, a responsabilidade pelos factos alegados na petição inicial encontra-se excluída das garantias acordadas através dos contratos de seguros celebrados com a Apelada».
2.1.18. A 3ª Ré, aqui Recorrente, por requerimento que apresentou na primeira instância, sob a referência 33003166, em 15.07.2019, declarou:

«2. Face à documentação ora junta, verificou a ora Requerente que o alegado nos pontos 45.º e 47.º da sua contestação não corresponde com exatidão aos factos ocorridos, pelo que ao abrigo do princípio da cooperação e da lealdade processual, vem requerer a V. Exa. que se digne relevar tal lapso, na medida em que, e ao contrário do que foi escrito, os RR. deram conhecimento à ora Requerente dos factos ou circunstâncias alegados na p.i. em 07.06.2018».
***
2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Na decisão recorrida entendeu-se que o contrato de seguro celebrado entre a Ordem dos Advogados e a ora Recorrente (3ª Ré) é um seguro obrigatório e que, por isso, a exclusão da cobertura da apólice é inoponível ao Autor.
A Recorrente impugna aquela decisão por entender que a responsabilidade pelos factos alegados na petição inicial encontra-se excluída das garantias acordadas, em face do artigo 3º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro por si celebrado, razão por que pugna pela sua absolvição do pedido, mediante a procedência de excepção peremptória de direito material.

O cerne do presente recurso assenta na questão de saber qual a natureza do contrato de seguro invocado pelo Autor para demandar a 3ª Ré.
Para a qualificação do contrato e subsequente a resolução da questão em apreciação, importa recorrer às pertinentes normas do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 09 de Setembro, e do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril.

Vejamos.

Entre a 3ª Ré e a Ordem dos Advogados foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil (segundo a noção do art. 137º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (2)), nos termos da apólice …, junta como documento nº 3 da contestação daquela Ré. Trata-se de um seguro de responsabilidade civil profissional em que são segurados, entre outros, os advogados inscritos na Ordem dos Advogados e garante a cobertura dos riscos inerentes ao exercício da advocacia e a consequente indemnização pelos danos causados por dolo, erro, omissão ou negligência profissional de advogado, com um limite de € 150.000,00 por sinistro e uma franquia de € 5.000,00.

Estamos perante um seguro de grupo. Segundo o artigo 76º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, «o contrato de seguro de grupo cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar». É uma modalidade de contrato de seguro que pressupõe a existência de três sujeitos de direito distintos: o segurador, o tomador do seguro e os segurados, entendidos estes últimos como «as pessoas ligadas ao tomador de seguro por um vínculo que não seja o de segurar».

No caso, o tomador do seguro foi a Ordem dos Advogados e os segurados, entre outros, os advogados com inscrição em vigor naquela Ordem.

O dito contrato de seguro foi celebrado pelo prazo de 12 meses, para o ano de 2018, e o 2º Réu contratou junto da 3ª Ré uma apólice de reforço, com o capital de € 100.000,00 e eliminação da dita franquia, igualmente com início no dia 01.01.2018.

A apólice tinha uma especificidade relevante, emergente do ponto 7, intitulado de “âmbito temporal”, das respectivas condições particulares, uma vez que aí consta o seguinte:

«O Segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional coberta pela presente apólice, e mesmo ainda, que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice e sem qualquer limitação temporal da retroactividade».

Portanto, estão abrangidos pelo seguro todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador, independentemente de terem ocorrido «antes da data de efeito da presente apólice ou durante o período de seguro», desde que participados após o início da vigência da apólice (01.01.2018).

No que respeita à delimitação temporal da cobertura, a situação mais comum é o seguro apenas garantir a indemnização por sinistros ocorridos durante a vigência do contrato, ou seja, uma “apólice de ocorrência”, enquanto nos autos temos uma “apólice de reclamação” (denominação abreviada) ou “apólice à base de reclamação”, também chamada de “claims made basis” (3).

Posto isto, dentro da dicotomia seguro facultativo/seguro obrigatório, cabe agora qualificar o contrato de seguro dos autos.

Como nota preliminar, aponta-se a predominância da corrente jurisprudencial que qualifica o contrato de seguro de responsabilidade profissional emergente da actividade de advocacia como sendo um seguro obrigatório. Nesse sentido, podem citar-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.05.2015 (231/10.5TBSAT.C1.S1 – Martins de Sousa), e de 14.12.2016 (5440/15.8T8PRT-B.P1.S1 – António Silva Gonçalves), da Relação do Porto de 11.10.2017 (379/13.4TVPRT.P1 – Rui Moreira) e de 09.11.2017 (9108/16.0T8PRT-A.P1 – Inês Moura), da Relação de Évora de 17.12.2015 (601/13.7TBTMR-A.E1 – Acácio Neves), de 20.10.2016 (688/14.5TBTNV.E1 - Mário Coelho) e de 27.04.2017 (580/11.5TBCTX.E - Graça Araújo), de 08.11.2018 (139/14.5T8BJA.E1 – Mário Coelho), da Relação de Coimbra de 13.11.2018 (236/14.7TBLMG.C1 – Ferreira Lopes) e da Relação de Lisboa de 22.09.2015 (1496/09.0YXSB.L1-1 - Isabel Fonseca), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Para proceder à apontada qualificação releva o artigo 104º do Estatuto da Ordem dos Advogados, que sob a epígrafe “responsabilidade civil profissional” dispõe:

«1 - O advogado com inscrição em vigor deve celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional tendo em conta a natureza e âmbito dos riscos inerentes à sua actividade, por um capital de montante não inferior ao que seja fixado pelo conselho geral e que tem como limite mínimo (euro) 250 000, sem prejuízo do regime especialmente aplicável às sociedades de advogados e do disposto no artigo 38.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro.
2 - Quando a responsabilidade civil profissional do advogado se fundar na mera culpa, o montante da indemnização tem como limite máximo o correspondente ao fixado para o seguro referido no número anterior, devendo o advogado inscrever no seu papel timbrado a expressão «responsabilidade limitada».
3 - O disposto no número anterior não se aplica sempre que o advogado não cumpra o estabelecido no n.º 1 ou declare não pretender qualquer limite para a sua responsabilidade civil profissional, caso em que beneficia sempre do seguro de responsabilidade profissional mínima de grupo de (euro) 50 000, de que são titulares todos os advogados não suspensos».

Decorre do nº 1 do aludido preceito que constitui obrigação do advogado, inerente ao exercício da sua actividade, celebrar e manter um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional. Utilizando o legislador o vocábulo “deve” em vez de “pode”, isso só pode significar que não está na disponibilidade do advogado optar entre celebrar ou não celebrar tal contrato de seguro. Trata-se, portanto, de uma norma imperativa e que tem subjacente a salvaguarda do interesse público em proteger as pessoas que recorrem a advogados dos riscos de uma actuação geradora de responsabilidade, além de garantir uma maior liberdade e segurança de actuação ao advogado, aliviando-o do constrangimento sempre inerente ao receio de errar.

Mas o referido artigo ainda prevê um outro contrato de seguro, sobre o qual rege o nº 3. Tal norma impõe à Ordem dos Advogados a celebração, enquanto tomador de seguro, de um seguro de grupo, igualmente de responsabilidade civil profissional, de que são segurados todos os advogados com inscrição em vigor na Ordem. Também este é um seguro obrigatório, uma vez que em caso algum a Ordem dos Advogados pode deixar de o celebrar (neste sentido, o acórdão do STJ de 14.12.2016, já referido, assim como a generalidade dos demais também já mencionados).

Na prática, tal como sucedeu no caso dos autos, a Ordem dos Advogados disponibiliza aos advogados não suspensos um seguro de grupo base, sem custos adicionais, e o advogado pode aumentar o capital de cobertura e suprir a existência da franquia, contratando um seguro complementar de reforço.

Uma vez assente que nos autos está em causa um contrato de seguro obrigatório, não são oponíveis ao Autor, enquanto alegado lesado (beneficiário), alheio à relação contratual titulada pela apólice …, as excepções de direito material fundadas nas relações estabelecidas entre o tomador de seguro e/ou o segurado e a seguradora, na parte em que as excepções versam sobre o incumprimento por parte do segurado – ou do tomador de seguro – de deveres contratualmente fixados. É isso precisamente que resulta do nº 4 (4) do artigo 101º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, ao estabelecer que «o disposto nos nºs 1 e 2 não é oponível aos lesados em caso de seguro obrigatório de responsabilidade civil, ficando o segurador com direito de regresso contra o incumpridor relativamente às prestações que efectuar, com os limites referidos naqueles números» (5). Tal como resulta do artigo 13º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, a norma do artigo 101º é relativamente imperativa, pelo que não pode estabelecer um regime mais favorável à seguradora.

É inequívoco que no contrato de seguro foi estipulado, no artigo 3º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional”, a exclusão da cobertura da apólice das reclamações «Por qualquer facto ou circunstância já anteriormente conhecido(a) do segurado, à data de início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação», e que no artigo 8º, nº 1, da mesma cláusula se estabelecia uma obrigação de comunicação à seguradora 3ª Ré, desde a existência de reclamação até à mera intenção de um beneficiário exigir responsabilidade ao segurado, ainda que traduzida em mera circunstância ou incidente concreto susceptível de no futuro gerar uma reclamação.
Porém, por força do nº 4 do citado artigo 101º do RJCS, a alegada falta de oportuna comunicação/participação dos factos potencialmente geradores de uma reclamação por responsabilidade civil não é oponível ao Autor, como alegado lesado, podendo apenas fundamentar um direito de regresso contra o segurado (2º Réu).
Portanto, ao contrário do sustentado pela Recorrente, designadamente na contestação, «a falta de comunicação dos factos alegados na p.i. e potencialmente geradores de responsabilidade civil dos RR. e/ou da intenção do A. os responsabilizar pelos factos alegados na p.i.», enquanto «causa de exclusão da cobertura Responsabilidade Civil Profissional» do contrato de seguro celebrado com a 3ª Ré, não é oponível ao Autor.
Assim sendo, improcedem as conclusões I a VII das alegações do recurso, não sendo possível concluir que «a responsabilidade pelos factos alegados na petição inicial encontra-se excluída das garantias acordadas através dos contratos de seguros celebrados com a Apelante».
*

Nas conclusões VIII a XII das suas alegações, a Recorrente argumenta que, no essencial, «mesmo que se equacione a natureza obrigatória dos contratos de seguro dos autos e se considere inoponível ao lesado a exceção da falta de participação do sinistro à Seguradora, ora Apelante, tal exceção sempre será oponível aos Segurados da Apelante, 1.º e 2.º Réus nos presentes autos», pelo que a «Apelante sempre teria a possibilidade de repercutir sobre os Réus advogados o sacrifício patrimonial decorrente do incumprimento do dever de participação do sinistro». Sustenta que «evidentes razões de economia processual justificam o conhecimento da exceção perentória decorrente do pré-conhecimento dos factos e consequente exclusão das garantias acordadas através dos contratos de seguro celebrados com a Apelante nos presentes autos, tendo em vista a eventual condenação dos Réus advogados ou o reconhecimento de eventual direito de regresso que possa vir a assistir à aqui Apelante».
Salvo o devido respeito, a Recorrente suscita nesta parte das suas alegações uma questão nova.
O que a 3ª Ré pediu na sua contestação foi a sua absolvição do pedido com fundamento na procedência de uma excepção peremptória de direito material, nos termos que atrás se explicitaram. Invocou tal excepção relativamente ao Autor e não relativamente aos Réus advogados. E foi dessa excepção peremptória, tal como foi invocada, que o Tribunal a quo conheceu.
Ora, como é sabido, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Além disso, estando a defesa dos Réus direccionada para os fundamentos invocados pelo Autor na petição inicial, a discussão da questão ora suscitada implicaria uma diminuição sensível do exercício do direito de contraditório e de defesa por parte, pelo menos, do 2º Réu, o qual não teve oportunidade de discutir, por exemplo, a validade das cláusulas da apólice e o cumprimento do dever de informar, entre muitos outros aspectos, traduzidos na alegação de factos e na invocação das excepções que entender pertinentes. Nesta acção não se discute a responsabilidade de uns Réus perante os outros, mas sim a responsabilidade de todos os Réus perante o Autor, uma vez que foram demandados pelo mesmo. Não existe aqui uma demanda entre Réus, cujas vicissitudes só podem ser discutidas amplamente em acção própria, designadamente quanto ao ora invocado direito de regresso da 3ª Ré sobre o 2º Réu.

Termos em que improcede a apelação.
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2.2.2. Da litigância de má-fé

O Recorrido F. M. requereu que a Recorrente seja condenada como litigante de má-fé, em multa e indemnização, questão que importa apreciar.

Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 542º do Código Civil, «diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver aduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Está essencialmente em causa o facto de a Recorrente ter invocado no presente recurso que só teve conhecimento dos factos alegados na p.i. em 07.08.2018, na sequência da sua citação para a acção judicial, quando efectivamente teve deles conhecimento em 07.06.2018, como reconheceu em requerimento que apresentou em 15.07.2019 na primeira instância.
Embora seja uma situação de fronteira, entendemos que não estão reunidos os pressupostos da litigância de má-fé.

Primeiro, no contexto do recurso era absolutamente indiferente que o conhecimento dos factos alegados na p.i. tivesse advindo à Recorrente em 07.08.2018, como alegou no recurso, ou em 07.06.2018, quando a corretora de seguros procedeu à respectiva comunicação à empresa que gere os sinistros (ou mesmo em 18.06.2018, quando o Recorrido F. M. procedeu à comunicação directa à Recorrente). Nem a invocação da excepção peremptória nem, consequentemente, o recurso se alicerçavam directamente nesse facto, independentemente de ter ocorrido em 07.06.2018 ou em 07.08.2018, mas sim no pré-conhecimento dos factos alegados na p.i., o que emergia das cláusulas do contrato de seguro que supra se identificaram em 2.1.12. e 2.1.13., em especial esta última - o artigo 3º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato de seguro -, ao estabelecer que «Ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações:

a) Por qualquer facto ou circunstância já anteriormente conhecido(a) do segurado, à data de início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação;(…)».

Isso é perfeitamente claro, na medida em que os factos imputados aos 1ª e 2º Réus ocorreram nos anos de 2010 e 2011 e a Recorrente alegou que o 2º Réu teve necessariamente deles conhecimento antes do dia 01.01.2018, ou seja, antes do início do contrato de seguro. É por isso que nas alegações a Recorrente fez constar:

«- E, o segurado da 4.ª Ré, a corresponder à verdade o alegado pelo A. na p.i., o que não se aceita mas que por dever de patrocínio se equaciona, não pode ter deixado de ter conhecimento dos factos que lhe são imputados e/ou da intenção do A. lhe imputar responsabilidade pelos mesmos, antes da data da propositura da presente ação judicial, mormente antes do dia 01.01.2018».

Segundo, se em abstracto era irrelevante a Recorrente ter tomado conhecimento dos factos, através de comunicação do segurado, em 07.06.2018 ou 07.08.2018, em concreto nenhuma relevância era susceptível de produzir, atenta a decisão da questão de direito exposta em 2.2.1..
Terceiro, constata-se que a Recorrente foi voluntariamente aos autos da primeira instância dizer que tomou conhecimento dos factos alegados na p.i. em 07.06.2018 e não em 07.08.2018, requerendo a correspondente rectificação. Tal atitude indicia estar-se perante um lapso.
Quarto, independentemente da qualificação do facto e do pedido de correcção, o certo é que nenhuma vantagem retiraria da sua anterior afirmação.
Por isso, salvo o devido respeito por diferente posição, não pode a Recorrente ser condenada como litigante de má-fé.
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2.3. Sumário

1 – Os contratos de seguro previstos no artigo 104º do Estatuto da Ordem dos Advogados revestem natureza de seguro obrigatório.
2 – Estando em causa um contrato de seguro obrigatório, não é oponível ao autor, enquanto lesado (beneficiário), alheio à relação contratual titulada pela apólice, a excepção peremptória de direito material fundada na falta de oportuna comunicação/participação dos factos potencialmente geradores de uma reclamação por responsabilidade civil.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Mais se julga improcedente o pedido de condenação da Recorrente como litigante de má-fé.
Custas pela Recorrente.
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Guimarães, 03.10.2019
(Acórdão assinado digitalmente)

­ Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Alberto Taveira (2º adjunto)



1 - O que consta entre parêntesis é da nossa autoria, uma vez que nos parece que das conclusões consta um lapso material.
2 - «No seguro de responsabilidade civil, o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros».
3 - Segundo José Vasques, em a Lei do Contrato de Seguro anotada, pág. 479, «Ao contrário do que sucede com a generalidade dos outros seguros de danos (art.º 123.º), em que a cobertura é temporalmente delimitada (art.º 37.º, n.º 2, al. e), pelos danos sofridos pelas coisas seguras durante o período de vigência do contrato, no seguro de responsabilidade civil são configuráveis cláusulas de delimitação temporal da garantia que a circunscrevem atendendo ao momento:
a) da prática do facto gerador da responsabilidade (action commited basis);
b) da manifestação do dano (loss ocurrence basis); ou
c) da sua reclamação (claims made basis), independentemente do facto gerador ter sido praticado antes do início da vigência do contrato (como resulta do n.º 3) e desde que o tomador do seguro ou o segurado não tivesse conhecimento do sinistro à data da celebração do contrato (art.º 44.º n.º 2)».
4 - Este preceito constitui uma manifestação especial do regime geral de inoponibilidade das excepções pelo segurador ao terceiro lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil consagrado no art.147º do mesmo RJCS, cujo nº 1 dispõe que «o segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro».
5 - Os nºs 1 e 2 do referido artigo 101º, que tem por epígrafe a “falta de participação do sinistro”, dispõem assim:
«1 - O contrato pode prever a redução da prestação do segurador atendendo ao dano que o incumprimento dos deveres fixados no artigo anterior lhe cause. 2 - O contrato pode igualmente prever a perda da cobertura se a falta de cumprimento ou o cumprimento incorrecto dos deveres enunciados no artigo anterior for doloso e tiver determinado dano significativo para o segurador». No artigo 100º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro prevêem-se as obrigações inerentes à participação do sinistro, dispondo o nº 1 que «a verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento».