Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3300/19.2T8BRG.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO RAMO VIDA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FALSAS DECLARAÇÕES
ESSENCIALIDADE DA INFORMAÇÃO
VÍCIO NA FORMAÇÃO DA VONTADE
DOLO
ANULABILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Feita a prova que à data em que subscreveu a proposta do contrato de seguro do ramo vida (a accionar em caso de morte ou invalidez - incapacidade superior a 66%), a autora sabia que lhe tinha sido diagnosticada doença grave, capaz de por em risco a sua vida e/ou determinar-lhe incapacidade total, e omitiu deliberadamente tal doença ao preencher o questionário/minuta do contrato de seguro, a autora viciou ab initio a formação da vontade da seguradora.
2. Estamos perante facto fundamental para a formação da vontade de contratar, que era do conhecimento da segurada mas não da seguradora.
3. Esta situação atinge a essência da igualdade das partes no contrato de seguro.
4. Nestas situações, decorre dos arts. 24º ,1 e 25º,1 do DL n.º 72/08 de 16/04 que o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro, desde que o elemento sobre o qual incidiu o erro seja fundamental dentro da economia do contrato.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

A. S., casada, portadora do CC: ……, com o NIF ………, residente em Travessa …, nº … na freguesia de …, Barcelos, propôs AÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO EM PROCESSO COMUM, contra

X SEGUROS, COMPANHIA DE SEGUROS DE VIDA, SA.”, NIPC: ………, com sede na Rua … Lisboa, na qual peticionou a condenação da Ré a pagar-lhe:

a) A quantia de € 50.000,00, resultante do capital assegurado no caso de invalidez permanente, pelo contrato de seguro Ramo Vida, capaz de cobrir situações de Morte ou Invalidez celebrado no contexto do mútuo de um crédito bancário para aquisição de habitação;
b) A quantia de €1.000,00 (quantia fixada provisoriamente), relativa aos prémios de seguro que foram pagos pela A. desde a participação do sinistro até ao presente e, bem assim, todos aqueles que vierem a ser pagos pela A. até efectiva assunção de responsabilidade pela R. ou integral pagamento do capital garantido;
c) Os juros que se vencerem desde a citação até integral pagamento das quantias referidas nas anteriores alíneas.

Para o efeito, alegou, em suma, o seguinte: que em meados do mês de Agosto de 2013 a autora e o seu marido V. M. dirigiram-se a um balcão do Banco X, sito na freguesia de …, onde subscreveram um contrato de Seguro Ramo Vida, capaz de cobrir situações de Morte ou Invalidez, para o que se limitaram a assinar uma proposta de adesão, a qual foi, inteiramente, preenchida pelo funcionário do banco. Todavia, não foram entregues à autora as condições e/ou exclusão do referido contrato, as quais não foram, sequer, comunicadas nem informadas, tendo apenas sido transmitido à autora pelo funcionário bancário que, em caso de morte ou invalidez (que seria considerada quando houvesse uma incapacidade superior a 66%), lhe seria pago o valor de € 50.000,00.
Desde a subscrição do referido contrato a autora passou a pagar mensalmente o prémio do respectivo seguro, prémio que sempre pagou e ainda se encontra a pagar.
No início do ano de 2014 teve a autora conhecimento que padece da doença de “Neurobehçet”, doença que desde essa data evoluiu de forma galopante, atingindo gravemente o seu Sistema Nervoso Central e que incapacitou a autora de trabalhar ou exercer qualquer actividade profissional.
Em virtude dessa situação, em 31-05-2017 a autora participou o Sinistro de Invalidez à ré. Esta não pagou à segurada o Capital Seguro, no montante de € 50.000,00.

A Ré apresentou oposição, defendendo-se, por excepção, invocando a sua ilegitimidade.
Referiu em síntese que: no passado dia 31 de Dezembro de 2014, a X Seguros – Companhia de Seguros, S.A. celebrou com Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A. um contrato denominado de “Contrato de Transferência de Carteiras”, com o qual transferiu para a Y a carteira de apólices de seguro da X Seguros – Companhia de Seguros, S.A. subscritas a partir de 01 de Julho de 2012, pelo que, tendo o contrato titulado pela apólice ........58 sido celebrado em 2013, foi tal apólice transferida para a Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A.
A pedido da autora foi admitida a intervenção a título principal, como associada da Ré, de “Y Portugal Vida – Companhia de seguros de Vida, S.A.”.
Citada para o efeito, veio a interveniente confirmar que, tendo o contrato titulado pela apólice ........58 sido celebrado em 2013, foi tal apólice transferida para a Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A..
Mais alegou o seguinte: que em meados de 2017 foi recebida na Seguradora ora Interveniente uma participação de sinistro por invalidez da Pessoa Segura, A. S., aqui Autora. De acordo com o Relatório Médico/Atestado Médico de Invalidez, há referência a diagnóstico de Doença de Behçet em Outubro/Novembro de 2013. Não obstante a documentação recebida, e as diversas insistências realizadas junto da A. e das Entidades Hospitalares, até ao momento a ora Ré não recepcionou a totalidade dos documentos tendentes à análise da eventual cobertura do sinistro. Informações essas que são essenciais à avaliação do risco e análise da eventual cobertura, ou não, do sinistro participado. Não tendo a ora interveniente tido acesso aos documentos clínicos solicitados à Autora e essenciais à análise da eventual cobertura do sinistro participado, solicitou-os directamente às Entidades Hospitalares. Aquando da celebração do seguro em apreço, a A. foi informada, enquanto pessoa segura das cláusulas contratuais do seguro a que aderia, tendo a autora, adicionalmente, declarado expressamente encontrar-se de boa saúde e ter tomado conhecimento de toda a informação pré-contratual obrigatória. À data da subscrição da apólice de seguro a A. tinha conhecimento de que não poderia omitir à Seguradora qualquer situação relacionada com o seu estado de saúde, sob pena de nulidade do contrato de seguro. A proposta de seguro de vida em apreço nos autos foi preenchida e assinada em 23.08.2013. A doença que causou a invalidez da A. foi-lhe diagnosticada apenas 2 meses após, pelo que é legítimo à Seguradora considerar que à data da subscrição da apólice a A. já poderia apresentar sintomas e queixas relacionadas com a doença em causa. Ou seja, a ora Ré desconhece se à data da subscrição do contrato de seguro em apreço nos autos (Agosto de 2013) a A. tinha pleno e efectivo conhecimento de que o seu estado de saúde não era bom, conforme declarou, ainda que o diagnóstico tenha apenas sido confirmado em Outubro/Novembro de 2013. A Ré Seguradora aceitou a adesão ao seguro celebrado com a A., desconhecendo que esta eventualmente padecia da referida doença. Tais factos se omitidos à data da subscrição da proposta de adesão, eram circunstâncias essenciais para a aceitação da adesão ao seguro pela Ré Seguradora, ou, no mínimo, teriam importância decisiva nas condições de aceitação. No caso em apreço, a A. poderá ter prestado, assim, declarações inexactas ou reticentes. As falsas declarações prestadas, no âmbito de um contrato de seguro, por parte do segurado, determinam, a sua anulabilidade, que invoca.
Termina pedindo a sua absolvição do pedido.

Foi elaborado despacho saneador, no qual se decidiu ter ficado prejudicado o conhecimento da excepção de ilegitimidade, apurando-se posteriormente a final a identidade do verdadeiro sujeito da relação controvertida, uma vez que foi deferida por despacho de 05-12-2019 a intervenção principal provocada da mesma “Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A.”, requerida pela autora.

Nessa mesma peça processual foi fixado como Objecto do Litígio o seguinte:

a) O contrato de seguro do ramo vida celebrado entre a Autora e a Ré e o direito daquela ao pagamento do capital aí previsto e ao reembolso dos prémios de seguro pagos desde a participação do sinistro;
b) Extinção do contrato e respectiva anulabilidade por falsas declarações”.
Foram ainda fixados os seguintes Temas da Prova:
Data em que a Autora teve conhecimento da doença de que padece.
Comunicação por parte do funcionário do Banco X das condições e exclusões do contrato de seguro”.

Procedeu-se a audiência de julgamento, que decorreu com observância do formalismo legal.

A final foi proferida sentença que julgou a acção procedente e decidiu:

a) Condenar a interveniente Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A. a pagar à autora a quantia de € 50.000,00, resultante do capital assegurado no caso de invalidez permanente, pelo contrato de seguro Ramo Vida, capaz de cobrir situações de Morte ou Invalidez celebrado no contexto do mútuo de um crédito bancário para aquisição de habitação.
b) Condenar a interveniente Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A. a pagar à autora quantia de € 1.000,00 (quantia fixada provisoriamente), relativa aos prémios de seguro que foram pagos pela A. desde a participação do sinistro até ao presente e, bem assim, todos aqueles que vierem a ser pagos pela A. até efectiva assunção de responsabilidade pela R. ou integral pagamento do capital garantido.
c) Condenar a interveniente Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A. ao pagamento de juros de mora desde o vencimento da respectiva obrigação, nos termos dos artigos 804º e 805º,2,a CC, sendo que, os juros comerciais, desde 01.07.2014 até 31-12-2014, contam com uma taxa de 8,15%, nos termos do Aviso n.º 8266/2014, D.R., 2.ª série, de 16.07.2014.
d) Absolver a ré X SEGUROS, COMPANHIA DE SEGUROS DE VIDA, SA.” dos pedidos.

Inconformada com esta decisão, a interveniente Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida S.A., dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,a), 645º,1,a) e 647º,1 do Código de Processo Civil).
Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

I) Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância a fls. dos autos de acção de processo ordinário que correram termos no Juízo Central Cível de Braga, da Comarca de Braga sob o número de processo 3300/19.2T8BRG, que julgou a acção procedente, condenando a ora Ré nos termos peticionados.
II) As presentes alegações de recurso terão por objecto quer a alteração da matéria de facto, por via da reapreciação da prova gravada e de todos os demais elementos probatórios constantes dos autos, quer a alteração da matéria de direito, pretendendo a ora apelante,
III) Mais concretamente, entende a ora recorrente que houve erro na apreciação da prova produzida na douta decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada – artigos 11.º e 31.º - e dada como não provada – alínea d) dos factos não provados, quando, da prova produzida, com particular incidência na sua componente testemunhal e documental se impunha decisão diversa.
IV) Note-se, então, no depoimento da testemunha Dr. A. C. – gravado em CD, em ficheiro com referência n.º 202, com início às 09H41 e duração de 24:37 minutos.
V) De facto, e conforme resulta do depoimento desta testemunha não há como dar como provado o facto aduzido na alínea d) dos factos não provadas da douta sentença, com a consequência de, em estrita articulação com a documentação junta aos autos, mormente a documentação relativa ao contrato de seguro em discussão e da documentação clínica junta quer pelo Centro de Saúde, quer pelo Hospital, se vir a considerar que a ora Recorrida, para efeitos da contratação desta apólice não se deveria ter proposto no sentido em que se propôs, abstendo-se de declarar que o seu estado de saúde não era bom.
VI) A bem dizer da verdade, resulta por demais evidente do depoimento transcrito, que o quadro clínico da ora recorrida era dela amplamente conhecida dada a gravidade dos sintomas já existentes à data da contratação e o depoimento da testemunha supra transcrito acaba por revestir uma importância extrema para o decisão a proferir. Porém, não foi, como devia, tido em conta e com a relevância que merecia, a explicação médica da doença de que a ora recorrida padece.
VII) A este respeito note-se a explicação que a testemunha oferece ao tribunal quanto à distinção entre o diagnóstico que é feito em Setembro e a doença em epígrafe, referindo-se, de forma deveras explicativa e credível, cremos, que naquela data o que veio a ser diagnosticado foi um aspecto ligado à doença de Behçet, que é o atingimento do sistema nervoso central, que aliás, é uma manifestação habitualmente tardia da doença.
VIII) Tal situação resulta, ademais, patente do resultado da Consulta de doenças auto-imunes em Medicina Interna, cujo médico foi o Dr. C. G., ocorrida em 01.07.2013.
IX) Este relatório, que parece não ter sido, também, tido em conta pelo douto Tribunal a quo evidencia um conhecimento profundo do clínico quanto à doença em discussão, tanto que:
-Refere quem lhe envia a utente e porquê;
-Faz uma resenha exaustiva de todas as manifestações clínicas da cliente que conferem um diagnostico incontestável de Doença de Behcet;
-Escreve na sequência e com destaque "Doença de Behcet";
-Envia a cliente a uma "consulta de oftalmologia muito prioritária" para "evitar perda de visão";
-Medica a cliente com 3 fármacos - 2 que a cliente já tomou - colchicina (um anti-inflamatório) prednisolona (um corticóide) e azatioprina (um imunossupressor) -todos eles medicamentos com efeitos secundários, com riscos sérios.
X) Bem como, a corroborar tal situação, o relatório clínico assinado pelo Dr. E. M. em 17.07.2020, onde se refere “(…) cujo diagnóstico foi realizado em Julho de 2013 no Hospital de Braga (consulta de Medicina Interna, onde fez o estudo completo que levou ao diagnóstico)”.
XI) Ora, muito se surpreende a ora Recorrente ao não ver tal informação reflectida na douta sentença proferida pelo douto Tribunal de 1.ª Instância, quando, na verdade, mereciam e merecem credibilidade, quer aqueles documentos, quer o depoimento da testemunha Dr. A. C..
XII) O douto Tribunal a quo desvaloriza o quadro clínico propriamente dito, abstendo-se de considerar que a ora Recorrida padecia de um quadro clínico deveras doloroso, marcado por ulceras gigantes na boca, problemas oculares, ulcera vaginal, erupções cutâneas exuberantes e incómodas, sujeita a biopsias dolorosas. Não considerando que o diagnóstico da doença, propriamente dita, foi feito em Julho de 2013 e não em Setembro do mesmo ano e que a ora Recorrida dele não tinha conhecimento, quando o quadro clínico era grave, desconfortante e lhe provocava limitações.
XIII) A bem dizer da verdade, conforme o douto Tribunal a quo considerou provado, a ora Recorrida bem sabia que não poderia omitir à Seguradora qualquer situação relacionada com o seu estado de saúde. Mas fê-lo!
XIV) A ora Recorrida omitiu todas as consultas e exames de diagnóstico a que recorreu por queixas muito sérias o que, salvo melhor entendimento, não pode ser desvalorizado para efeitos da contratação.
XV) Pelo que, discutindo a omissão quanto à declaração de doença no questionário clínico, tem-se, portanto, que admitir a existência de omissão deliberada!
XVI) Já que, como é bom de se ver, nos elementos juntos aos autos, em conjunto com o depoimento testemunhal do Dr. A. C., se poderá concluir que a ora Recorrida já padecia de um quadro grave que obstava à sua consideração como clinicamente saudável.
XVII) À data da subscrição, no que à apólice em discussão diz respeito, a ora Recorrida não indicou padecer de qualquer doença, respondendo negativamente a todas as questões relacionadas com eventuais problemas de saúde, quando bem sabia que apresentava um quadro clínico grave com diagnóstico de Julho de 2013.
XVIII) Dada a realidade subjacente ao quadro clínico que a ora recorrida padecia, conforme resulta do depoimento da testemunha Dr. A. C., não se poderia negar o conhecimento daquela face à gravidade da doença em questão.
XIX) Pelo que, face à prova que se produziu em Audiência de Julgamento, com relevância para que vem agora a ser reforçada nas presentes alegações, os artigos 11.º e 31.º elencados na matéria de facto dada como provada terão, necessariamente, de ser alterados, dando-se como não provados.
XX) E bem assim, deverá passar a constar da matéria dada como provada o ponto d) dos factos não provados.
XXI) Passando a incluir-se na matéria de facto dada como provada que “A doença que causou a invalide da A. foi-lhe diagnosticada em Julho de 2013, antes da subscrição do acordo referido em 6.º”.
XXII) Ou seja, à data da subscrição do contrato de seguro em apreço nos autos a ora Recorrida tinha pleno e efectivo conhecimento de quê sofria de um quadro clínico que afectava a sua saúde geral. Situação que o douto tribunal ignorou!
XXIII) Salvo o devido respeito que é muito, incorre em erro de julgamento, aplicando uma interpretação desconforme com o direito e realidade jurisprudencial patente face à tal matéria considerada provada.
XXIV) Dispõe o nº 1 do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 72/08, que: "O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”.
XXV) Dispõe, por outra parte, o n° 1 do artigo 25.º do mesmo Diploma que: "Em caso de incumprimento doloso do dever referido no nº 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.”.
XXVI) E ainda, nos termos do artigo 26.º, n.º 1, alínea b): “Em caso de incumprimento com negligência do dever referido no nº 1 do artigo 24.º, o segurador pode, mediante declaração a enviar ao tomador do seguro, no prazo de três meses a contar do seu conhecimento: b) Fazer cessar o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente.”.
XXVII) O contrato celebrado entre as partes, tal como a ora Recorrente defendeu em sede de contestação e agora mantém, não é válido por vício da vontade em face das declarações inexactas prestadas pela ora Recorrida na fase pré-contratual.
XXVIII) De todo o conspecto factual provado resulta uma tríplice conclusiva: a) a ora Recorrida omitiu o seu quadro de saúde no questionário clínico; b) aquela patologia e sintomas eram do seu conhecimento; c) tal omissão influiu negativamente na análise do risco e na consequente decisão de contratar.
XXIX) Perante este quadro legal, resulta da factualidade provada, e não reflectida na decisão proferida, que a ora Recorrente logrou não só provar que a ora Recorrida lhe prestou declarações inexactas ou omitiu doenças e tratamentos clínicos, como também logrou demonstrar que perante tal quadro clínico, contrataria de forma amplamente distinta.

A recorrida contra-alegou, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A. Consideramos, salvo o devido respeito por opinião diversa, que a Sentença do tribunal a quo não merece quaisquer reparos.
B. A recorrente mais não pretende do que uma nova incursão na matéria de facto já estabelecida, acabando por pôr em questão a valoração que o tribunal confere aos meios de prova em causa, concretizando um ataque às ilações que o julgador retirou da prova produzida, visando impor o seu ponto de vista, a sua subjectiva leitura da prova querendo que ela seja adoptada pelo tribunal de recurso.
C. Desde logo e, diferentemente do esgrimido pela Ré/Recorrente ao discordar a recorrente da apreciação e valoração da prova testemunhal e documental, entendemos que não se justifica a alteração da matéria dos factos provados.
D. O Tribunal a quo, na fundamentação à matéria de facto, indicou de forma exaustiva e fundamentada os meios de prova em que estribou a sua convicção, pelo que, deverá manter-se inalterada a factualidade fixada pelo Tribunal a quo.
E. Desnecessário é repetir aqui a douta fundamentação da sentença quanto à aplicação e interpretação das pertinentes regras de direito aplicáveis à relação sub judice e, bem assim, quanto à melhor doutrina e jurisprudência nela invocada a qual, com a devida vénia, aqui se dá por integralmente reproduzida.
F. Impugna a Ré/Recorrente a matéria de facto dada como provada nos artigos 11º e 31º e dada por não provada na alínea D) dos factos não provados, considerando que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, e dos documentos juntos aos autos não é possível concluir pelo entendimento dado pelo Tribunal a quo.
G. Tal entendimento, assenta, apenas, naquela que foi a valoração feita pelo Tribunal Recorrido em relação ao Depoimento da Testemunha Dr. A. C. e à prova documental, que não especifica.
H. Sucede que, tal depoimento não merece, para nós, a credibilidade que a Ré Recorrida lhe pretende atribuir,
I. Na verdade, a Testemunha Dr. A. C., que sublinhe-se, médico indicado pela Ré e, que não conhece, nem acompanhou a evolução clinica da Autora. O seu depoimento bastou-se da leitura e interpretação profissional e, bem assim, pessoal, sobre os documentos/relatórios clínicos que juntos aos autos,
J. Sublinha-se ainda, quanto ao relatório elaborado pelo Médico da Unidade de Saúde USF …, não foi o Dr E. M. que diagnosticou à Autora a Doença de Behçet e, muito menos, quem lhe comunicou tal diagnóstico,
K. O teor de tal declaração decorre da leitura do Resumo de Informação Clínica da Consulta de Doenças Auto-imunes em Medicina Interna de 01.07.2013, sem que, contudo, se conclua que nessa data tenha a Autora conhecido de tal diagnóstico.
L. Em 01.07.2013 a A. foi apenas reencaminhada para tal consulta para melhor avaliação dos problemas de pele que apresentava.
M. Antes de 11.10.2013 o Médico de Família E. M., não registou qualquer diagnóstico ou sequer, suspeita, de NeuroBehçet, mas antes, e apenas, que a Autora teria problemas cutâneos e que estaria a ser seguida pela Especialidade de Dermatologia.
N. Por outro lado, os depoimentos das Testemunhas V. M., marido da Autora e o S. C., funcionário do X, acabam por conferir maior credibilidade àquela que é a versão da Autora, mormente que à data da assinatura do contrato de seguro desconhecia padecer da doença de “neurobehcet” .
O. À época a Autora apresenta uma manchas na pele, mas estava a ser seguida pela especialidade de dermatologia e desconhecia que pudessem estar associadas a uma doença grave, aliás, aparentava estar de boa saúde, o que foi confirmado pela testemunha S. C., funcionário bancário que tratou da subscrição do contrato de seguro e que costumava ver a Autora com regularidade.
P. Além disso, da prova documental constante dos autos (fls. 137 a 158), não resulta
que anteriormente à subscrição pela Autora do contrato de seguro houvesse qualquer disgnóstico médico confirmativo da doença, apenas decorrendo dos mesmos a verificação de manchas na pele de causa não apurada.
Q. Tais documentos revelam-se, pois, insuficientes para se concluir pela data em que foi dado conhecimento à Autora do diagnóstico em causa.
R. Sendo que, dos elementos clínicos a fls. 149, apenas no relatório de alta do internamento a 02.09.2013 se fez referência à doença, sem que, contudo, se apreenda de tal documento, que terá sido essa a data do seu diagnóstico e, sobretudo que terá sido nesse dia que foi dado conhecimento à Autora da mesma e da sua gravidade.
S. Pelo que, inexistindo prova suficiente (documental e/ou testemunhal) à corroboração da versão da Ré de que, -à data da subscrição do acordo referido em 6º a A. já apresentava sintomas e queixas relacionadas com a Doença de Behçet (alínea d) dos factos não provados-, não poderia pois o tribunal dar como provada tal factualidade, pelo que, muito bem se decidiu.
T. Todo o exposto, deverá a Matéria de Facto considerada por Provada e Não Provada manter-se inalterada.
U. Quanto à aplicação de direito e, uma vez que a Autora/Recorrida à data da subscrição do contrato de seguro em apreço nos autos não tinha conhecimento efectivo de que padecia de um quadro clínico grave, não se poderá considerar, como pretende a Ré, que a mesma omitiu factos com interesse para a formação do contrato de seguro.
V. A Autora/Recorrida à data da subscrição do contrato de seguro em apreço nos autos não tinha conhecimento efectivo de que padecia de qualquer doença.
W. E, nessa linha, não se pode reconhecer que a Autora violou a norma do nº 1 do art. 24.º do DL n.º 72/08, e que o contrato em questão padece do vício da anulabilidade a que alude o n° 1 do art. 25.º do mesmo diploma.
X. Pelo que, bem decidiu o Tribunal Recorrido pela condenação da Ré/Recorrente a indemnizar o tomador do seguro e/ou pessoa segura no montante do capital seguro, mormente €50.000,00 e bem assim, no valor de todos os prémios de seguro que foram pagos pelo Tomador de Seguro - a A.- desde a data da participação do sinistro até à efectiva assunção da responsabilidade pela seguradora ou efectivo pagamento do capital segurado e, ainda, ao pagamento de juros de mora desde o vencimento da respectiva obrigação, nos termos dos artigos 804ºe 805º, n.º 2, alínea a) do Código Civil.
Y. Assim, deverá o presente Recurso ser julgado totalmente improcedente e conformar-se na íntegra a sentença recorrida.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber:

a) se ocorreram erros no julgamento da matéria de facto
b) qual a correcta aplicação do Direito aos factos provados

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

A ré -X Seguros - Companhia de Seguros de Vida S.A- dedica-se ao exercício da actividade de seguro directo e de resseguro do ramo "Vida".
No passado dia 31 de Dezembro de 2014, a X Seguros – Companhia de Seguros, S.A. celebrou com Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A. um contrato denominado de “Contrato de Transferência de Carteiras”.
Sendo que, tal contrato transferiu para Y a carteira de apólices de seguro da X Seguros – Companhia de Seguros, S.A. subscritas a partir de 01 de Julho de 2012, pelo que, tendo o contrato titulado pela apólice ........58 sido celebrado em 2013, foi tal apólice transferida para a Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A.;
A interveniente confirmou que, tendo o contrato titulado pela apólice ........58 sido celebrado em 2013, foi tal apólice transferida para a Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A..
Em meados do mês de Agosto de 2013 a autora e o seu marido V. M. dirigiram-se a um balcão do Banco X, sito na freguesia de ..., Barcelos.
Naquele balcão e, uma vez que a autora era à data mutuária de um crédito, foi-lhe sugerido pelo funcionário do banco a subscrição de um denominado “Contrato de Seguro Ramo Vida”, capaz de cobrir situações de Morte ou Invalidez.
A autora subscreveu o acordo referido em 6º, subscrição que se bastou com a assinatura de uma proposta de adesão, a qual foi inteiramente preenchida pelo funcionário do banco.
As condições e/ou exclusão do acordo referido em 6º não foram comunicadas nem informadas à autora.
Tendo apenas sido transmitido à autora pelo funcionário bancário que, em caso de morte ou invalidez (que seria considerada quando houvesse uma incapacidade superior a 66%), lhe seria pago o valor de € 50.000,00.
10º Desde a subscrição do acordo referido em 6º a autora passou a pagar mensalmente o prémio do respectivo seguro, prémio que sempre pagou e ainda se encontra a pagar.
11º No início do ano de 2014 teve a autora conhecimento que padece da doença de “Neurobehçet”.
12º Doença que desde essa data evoluiu de forma galopante.
13º Atingindo gravemente o seu Sistema Nervoso Central.
14º Passando, desde então, a autora a estar limitada nas suas funções cognitivas e psicomotoras.
15º Mormente, nas actividades intelectivas, mnésica, de atenção e do senso critico.
16º Passou a autora a depender fortemente de terceiros na sua conduta diária.
17º Ficando incapaz de gerir autonomamente o seu lar, os assuntos pessoais e familiares.
18º A autora ficou totalmente incapaz de trabalhar ou exercer qualquer actividade profissional.
19º Em 27 de Maio de 2015 foi a autora sujeita a uma Junta Médica, onde lhe foi atribuída uma incapacidade permanente global de 79 %.
20º Tal incapacidade é definitiva.
21º Em virtude da situação vivenciada, mormente da padecida incapacidade permanente, em 31-05-2017 a autora participou o Sinistro de Invalidez à interveniente.
22º Juntando à respectiva participação os documentos de fls. 8 vs., 9 e 9 vs., (dois atestados médicos e um atestado médico de incapacidade de multiuso no qual lhe foi atribuída uma incapacidade permanente global de 79 %).
23º Nem a ré, nem a interveniente pagaram à autora o montante de €50.000,00.
24º Em meados de 2017 foi recebida na Seguradora, ora Interveniente -a Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A., uma participação de sinistro por invalidez da Pessoa Segura, A. S., aqui Autora.
25º O acordo referido em 6º foi celebrado em 23.08.2013.
26º A Interveniente solicitou directamente às Entidades Hospitalares o acesso aos documentos clínicos solicitados à Autora e essenciais à análise da eventual cobertura do sinistro participado.
27º A Interveniente apresentou Queixa junto da CADA (Comissão de acesso a Documentos Administrativos).
28º A autora assinou o acordo mencionado em 6, onde consta que declara, “…estar de boa saúde, não sofrer de qualquer doença de qualquer etiologia (cardíaca, pulmonar, tumoral, imunológica, renal, obesidade, circulatória, hepática ou qualquer outra), não ter sido submetido nem estar a aguardar a realização de cirurgia, não ter efectuado consulta médica não de rotina nem ter sido sujeito a qualquer internamento hospitalar, não existir qualquer restrição à minha capacidade de trabalhar, não ter existido qualquer interrupção na minha actividade profissional nos últimos 6 meses, não ter sofrido qualquer acidente.”.
29º A autora assinou o acordo mencionado em 6, onde consta que declara, “…não ter omitido nada em relação ao eu estado de saúde. Estou ciente de que, caso haja ….. , deverei obter o questionário clínico previsto para tal, preenchê-lo e devolvê-lo à Seguradora. Estou ciente, também, de que qualquer falsa declaração ou omissão da minha parte relativa ao Termo de Responsabilidade terá como consequência a nulidade do contrato de seguro, conforme determina a lei. Declaro ter conhecimento de que a X Seguros não garante o pagamento das importâncias seguras caso o sinistro seja devido a situações pré-existentes à data da celebração do contrato de seguro”.
30º À data da subscrição da apólice de seguro a autora tinha conhecimento de que não poderia omitir à Seguradora qualquer situação relacionada com o seu estado de saúde.
31º A doença que causou a invalidez da autora foi-lhe diagnosticada em 2 de Setembro de 2013, após a subscrição do acordo referido em 6º.
32º A Ré Seguradora aceitou a adesão ao seguro celebrado com a autora, desconhecendo que esta eventualmente padecia da referida doença.

IV- Factos não provados

Não se provou, que:
a) De acordo com os Relatórios Médicos e Atestado Médico de Incapacidade Multiuso apresentados pela autora junto à participação de sinistro, documentos que se encontram nos autos a fls. 8 vs. a 10, há referência a diagnóstico de Doença de Behçet em Outubro/Novembro de 2013.
b) Não obstante a documentação recebida, e as diversas insistências realizadas junto da autora e das Entidades Hospitalares, até ao momento a ora Ré não recepcionou a totalidade dos documentos tendentes à análise da eventual cobertura do sinistro.
c) Aquando da celebração do seguro em apreço, a autora foi informada, enquanto pessoa segura de todas as cláusulas contratuais do acordo a que aderia.
d) À data da subscrição do acordo referido em 6º a autora já apresentava sintomas e queixas relacionadas com a Doença de Behçet.

IV

Conhecendo do recurso.
Começa a recorrente por querer impugnar a decisão sobre matéria de facto.
Como é sabido, há regras apertadas para poder impugnar a decisão sobre matéria de facto.

Constam do art. 640º CPC os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos, 2017, fls. 158):
“a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:

a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b);
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (vg. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.

No caso concreto, a recorrente indica de forma clara quais os pontos de facto que considera mal julgados e quais as respostas que entende que o Tribunal deveria ter dado aos mesmos, e indica em concreto os meios de prova que em seu entender deveriam ter levado a decisão diversa.
Podemos pois conhecer desta parte do recurso.
A recorrente contesta a resposta que o Tribunal deu aos factos provados nºs 11 e 31, e ao facto não provado constante da alínea d).

Recordemos o seu teor:
11º No início do ano de 2014 teve a autora conhecimento que padece da doença de “Neurobehçet”.
31º A doença que causou a invalidez da autora foi-lhe diagnosticada em 2 de Setembro de 2013, após a subscrição do acordo referido em 6º.
d) À data da subscrição do acordo referido em 6º a autora já apresentava sintomas e queixas relacionadas com a Doença de Behçet.

Bem vistas as coisas, a discordância da recorrente resume-se à questão de saber se, quando subscreveu o contrato de seguro, já a autora sabia que padecia de doença grave, in casu, “doença de behçet”.
O Tribunal recorrido responde que não sabia.
Mas a recorrente entende que com a prova constante dos autos, é essencial concluir que sabia.

O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão da seguinte forma, na parte que agora interessa:

No que toca à factualidade vertida em 11, a testemunha V. M. explicou em Tribunal que, apenas no final do ano de 2013 é que a esposa começou a piorar e teve diversas idas ao hospital, nomeadamente um internamento ocorrido em Setembro desse ano. Contudo, só no início do ano de 2014 é que lhes foi dado conhecimento da gravidade da situação, nomeadamente de que o diagnóstico em causa era a doença de “neurobehçet”, da qual nunca tinham ouvido falar. Analisada a documentação clínica de fls. 137 a 158, não resulta que, anteriormente a 2 de Setembro de 2013, houve qualquer diagnóstico médico confirmado da referida doença, apenas sintomas, como manchas na pele e sonolência, mas cuja causa ainda não estava apurada (“vide” doc. de fls. 149, “in fine”). Pese embora conste do documento de fls. 160 que o referido diagnóstico ocorreu em Julho de 2013 no Hospital de Braga, a documentação clínica já enunciada (fls. 137 a 158 não suporta tal conclusão), nem resulta de nenhuma documentação existente nos autos, a data exacta em que foi dado conhecimento à autora do diagnóstico em causa.
O facto descrito em 31 resulta do teor da declaração médica aposta no documento clínico de fls. 149, “in fine”.

Factos não Provados:

Analisados os Relatórios Médicos e Atestado Médico de Incapacidade Multiuso apresentados pela autora junto à participação de sinistro, documentos que se encontram nos autos a fls. 8 vs. a 10, não há qualquer referência a que o diagnóstico de Doença de Behçet ocorreu em Outubro/Novembro de 2013 (al. a)).
Não se provou a factualidade referida em d) porquanto os sintomas relatados nos documentos clínicos – sonolência e manchas na pele – à data da assinatura do contrato não estavam ainda diagnosticados como associados à doença de “neurobehçet”, não há nada nos autos, nem na prova produzida em julgamento que permita dizer que algum médico informou a autora de que tais sintomas eram causados pela referida doença. Por outro lado, quer a testemunha V. M., quer o funcionário bancário S. C. referiram que, à data a autora não parecia estar doente. Por fim, a primeira referência à referida doença, nos elementos clínicos constantes dos autos reporta-se a 2 de Setembro de 2013 (fls. 149, “in fine”), tendo o contrato de seguro sido subscrito em 23 de Agosto de 2013”.

Vejamos agora a argumentação da recorrente.

Começa por remeter para o depoimento da testemunha Dr. A. C., dizendo que do mesmo resulta por demais evidente que o quadro clínico da ora recorrida era dela amplamente conhecida dada a gravidade dos sintomas já existentes à data da contratação.
Ora, a verdade é que esta testemunha (médico de medicina interna e com contrato de avença com o X há 17 anos) declarou que nunca conheceu nem nunca examinou a autora. O que ele fez foi analisar, com os conhecimentos que a sua profissão lhe traz, a proposta de sinistro. Explicou que teve acesso a relatórios médicos que deixavam algumas dúvidas, e posteriormente teve acesso ao processo clínico do Hospital de Braga e do Centro de Saúde onde a autora foi seguida. E explicou ainda, em traços gerais, o funcionamento e os sintomas da doença em causa.
Ora, assim sendo, em bom rigor não estamos perante prova testemunhal, mas sim pericial.
Dito isto, o depoimento da “testemunha” em causa foi inteiramente credível, até pelos seus conhecimentos técnicos altamente especializados. Mas, excluindo a caracterização e sintomas típicos da doença de “behçet”, o que este médico trouxe aos autos não foi mais do que aquilo que já resultava da documentação a eles junta. Em termos de sintomas da doença, o Dr. A. C. explicou que os mesmos são muito variados, começando normalmente por um grande número de aftas de grande dimensão na cavidade bucal e na zona genital, acompanhadas de erupções cutâneas ao longo do corpo. Acrescem manifestações ao nível da pele, dos olhos, e do sistema vascular, entre outras. Explicou ainda que não é fácil fazer o diagnóstico desta doença, pois o mesmo implica a análise integrada de uma multiplicidade de sintomas localizados e aparentemente independentes entre si.
Mas, em termos do que mais nos interessa agora, a testemunha não trouxe nada de novo que não constasse já dos documentos juntos aos autos.
São estes que nos interessam, pois será deles que sairá a solução correcta.
E olhando para eles, temos de começar já por dizer que dos mesmos resulta, de forma incontornável, que assiste inteira razão à recorrente.
Com efeito, de fls. 262 e seguintes do histórico consta a ficha clínica da autora enviada pela USF - …, da qual resulta que a autora era ali seguida por “doenças da boca / língua / lábio desde 13.3.2013; por doenças da pela e outra desde 2.12.2011; por erupção cutânea generalizada desde 10/01/2012.
Assim se vê como já desde 2011 a autora ia frequentemente procurar ajuda médica por sintomas variados que, embora sem o saber na altura, eram já o prenúncio do que estava para vir, como bem explicou o médico Dr. A. C..
A fls. 737 do histórico consta um documento enviado pelo Hospital de Braga, comprovativo de uma consulta de dermatologia datada de 20.5.2013, do qual resulta que a médica dermatologista Dra. F. V. desconfiou que poderia estar perante a doença de behçet, e escreveu no relatório: “hipótese de dx: DÇA DE BEHÇET”. E pediu análises, e consulta de medicina interna a fim de confirmar essa hipótese de diagnóstico.
Ora, este documento só por si não nos dá a resposta ao litígio, pois ele não encerra um verdadeiro diagnóstico, mas uma mera “hipótese de diagnóstico”. E, recorrendo a regras de bom senso e de experiência, temos de dizer que é muito pouco provável que a médica em causa, apesar de ter suspeitado de que estava perante a doença de behçet, o tenha explicado à autora. Com efeito, sem ter a certeza da sua hipótese de diagnóstico, não faria qualquer sentido estar a dizer à autora que ela tinha uma doença gravíssima, sabendo o sofrimento e a ansiedade que isso iria causar. Admite-se como provável que a médica em causa tenha usado uma qualquer formulação vaga ou neutra, adiando o momento da comunicação para quando houvesse a certeza.
Porém, a fls. 749 do histórico temos outro documento enviado pelo Hospital de Braga, que nos dá conta que a autora foi consultada em 1.7.2013, em consulta de medicina interna, pelo Dr. C. G., o qual escreve um detalhado relatório. Nele refere que a doente vem de dermatologia por suspeita de doença de behçet; descreve os variados sintomas que já se vêm registando desde há 1 ano. Pede exame urgente de oftalmologia. E então faz mesmo o diagnóstico de doença de Behçet.
Na sequência disto, temos a fls. 701 do histórico uma declaração escrita pelo Dr. E. M., datada de 17.7.2020 onde se pode ler, em resumo, que a autora sofre da doença de behçet, cujo diagnóstico foi feito em Julho de 2013 no hospital de Braga, consulta de medicina interna.
Temos ainda o documento de fls. 739 do histórico, do qual resulta que em 3.9.2013 a autora foi à urgência geral do Hospital de Braga, em cujo relatório se pode ler que sofre de doença de behçet e é acompanhada em consulta de doenças auto-imunes por behçet há 2 meses.
E a fls. 763 do histórico temos um relatório médico subscrito pelo Dr. C. G. (o especialista em medicina interna que fez o diagnóstico supramencionado), no qual refere que acompanha a doente desde 7/2013 por doença de behçet.
E é com base neste conjunto de documentos que o Dr. A. C., quando ouvido como testemunha, declarou que, de acordo com a medicina interna do Hospital de Braga, a autora já tinha o diagnóstico desta doença 1 mês antes de assinar o contrato. E acrescentou ainda que o quadro clínico era tão exuberante e tão penoso que era impossível a autora não valorizar a doença que tinha.
Pois bem.
É um dado assente que a autora subscreveu o contrato de seguro do ramo vida em 23.8.2013.
E sabemos o percurso que a autora percorreu até esse momento: começou a ser seguida na sua unidade de saúde por “doenças da boca, língua e lábio desde 13.3.2013; por doenças da pele desde 2.12.2011; por erupção cutânea generalizada desde 10/01/2012; em 20.5.2013 vai a mais uma consulta de dermatologia, na qual a médica formulou a hipótese de a autora sofrer da doença de behçet; é encaminhada para consulta de medicina interna, que se realiza em 1.7.2013, na qual o especialista em medicina interna faz então o diagnóstico de behçet.
Ora, aqui chegados, temos de concluir que, se na consulta de dermatologia que teve lugar em 20.5.2013 é de presumir que a médica não tenha informado a autora da gravidade do seu estado de saúde, já na consulta de medicina interna que teve lugar em 1.7.2013 a presunção tem de ser a oposta, a de que o Dr. C. G. informou mesmo a autora que todos os sintomas que a vinham afligindo ao longo dos últimos dois anos eram manifestações da doença de behçet. Admite-se que o nome da doença não tenha dito nada à autora, mas isso é irrelevante, pois o médico em causa, seguramente, informou-a da gravidade do seu estado.

Vamos aqui dar por reproduzido o teor das conclusões VIII e IX, da recorrente, com inteira concordância:

Tal situação resulta, ademais, patente do resultado da consulta de doenças auto-imunes em Medicina Interna, cujo médico foi o Dr. C. G., ocorrida em 01.07.2013.
Este relatório, que parece não ter sido, também, tido em conta pelo douto Tribunal a quo evidencia um conhecimento profundo do clínico quanto à doença em discussão, tanto que:
-Refere quem lhe envia a utente e porquê;
-Faz uma resenha exaustiva de todas as manifestações clínicas da cliente que conferem um diagnostico incontestável de Doença de Behcet;
-Escreve na sequência e com destaque "Doença de Behcet";
-Envia a cliente a uma "consulta de oftalmologia muito prioritária" para "evitar perda de visão";
-Medica a cliente com 3 fármacos - 2 que a cliente já tomou - colchicina (um anti-inflamatório) prednisolona (um corticóide) e azatioprina (um imunossupressor) -todos eles medicamentos com efeitos secundários, com riscos sérios”.

Na sentença recorrida não é feita qualquer referência a este documento, nem sequer para o desvalorizar.
Porém, o mesmo existe, e o seu peso probatório é incontestável. Assim, quando a testemunha V. M. explicou em Tribunal que apenas no final do ano de 2013 é que a esposa começou a piorar e teve diversas idas ao hospital, nomeadamente um internamento ocorrido em Setembro desse ano, contudo, só no início do ano de 2014 é que lhes foi dado conhecimento da gravidade da situação, nomeadamente de que o diagnóstico em causa era a doença de “neurobehçet”, da qual nunca tinham ouvido falar, temos de olhar para esse depoimento com vários grãos de sal.
A sentença recorrida acrescenta ainda que “analisada a documentação clínica de fls. 137 a 158, não resulta que, anteriormente a 2 de Setembro de 2013, houve qualquer diagnóstico médico confirmado da referida doença, apenas sintomas, como manchas na pele e sonolência, mas cuja causa ainda não estava apurada (“vide” doc. de fls. 149, “in fine”)”. Pese embora conste do documento de fls. 160 que o referido diagnóstico ocorreu em Julho de 2013 no Hospital de Braga, a documentação clínica já enunciada (fls. 137 a 158 não suporta tal conclusão), nem resulta de nenhuma documentação existente nos autos, a data exacta em que foi dado conhecimento à autora do diagnóstico em causa”.
Ora, só podemos considerar que tal se ficou a dever a mero lapso, pois o documento a que nos referimos consta dos autos e é incontroverso.
E não foi sequer beliscado pela prova testemunhal produzida.
A conclusão que temos de tirar é simples: quando em 23.8.2013 a autora subscreveu o contrato de seguro do ramo vida, já um especialista de medicina interna lhe tinha comunicado, quase dois meses antes, no âmbito de uma consulta médica, que ela sofria da doença de behçet.
Um último ponto importa esclarecer: no ponto nº 11 dos factos provados é feita referência à doença de “Neurobehçet”. Já na alínea d) dos factos não provados se refere a doença de “Behçet”. De acordo com o depoimento do Dr. A. C., “Behçet” não é a mesma coisa que “Neurobehçet”. O diagnóstico da doença de Behçet foi feito, como vimos, em 1.7.2013, e em Setembro, tal como declarou o referido médico, foi feito outro diagnóstico ligado a esta doença, consistente em a doença ter atingido o sistema nervoso central. Como não estamos no âmbito de uma publicação científica ligada à Medicina, nem temos qualquer competência na matéria, iremos considerar que, para efeitos do que se discute nestes autos, as duas expressões se equivalem, até porque, se bem percebemos, a doença de behçet, quando atinge o sistema nervoso central, passa a ser designada de neurobehçet.

Assim, a conclusão a retirar, em termos da matéria de facto, é esta:

a) o facto provado nº 11 deve passar a ter a seguinte redacção: “em 1.7.2013 teve a autora conhecimento que padece da doença de “behçet”.
b) o facto provado nº 31 passa a ser não provado.
c) o facto não provado constante da alínea d) passa a ser o facto provado nº 32, com a redacção sugerida pela recorrente.

Por razões de ordem prática, passamos agora elencar a lista definitiva dos factos provados

A ré -X Seguros - Companhia de Seguros de Vida S.A- dedica-se ao exercício da actividade de seguro directo e de resseguro do ramo "Vida".
No passado dia 31 de Dezembro de 2014, a X Seguros – Companhia de Seguros, S.A. celebrou com Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A. um contrato denominado de “Contrato de Transferência de Carteiras”.
Sendo que, tal contrato transferiu para Y a carteira de apólices de seguro da X Seguros – Companhia de Seguros, S.A. subscritas a partir de 01 de Julho de 2012, pelo que, tendo o contrato titulado pela apólice ........58 sido celebrado em 2013, foi tal apólice transferida para a Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A.;
A interveniente confirmou que, tendo o contrato titulado pela apólice ........58 sido celebrado em 2013, foi tal apólice transferida para a Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A..
Em meados do mês de Agosto de 2013 a autora e o seu marido V. M. dirigiram-se a um balcão do Banco X, sito na freguesia de ..., Barcelos.
Naquele balcão e, uma vez que a autora era à data mutuária de um crédito, foi-lhe sugerido pelo funcionário do banco a subscrição de um denominado “Contrato de Seguro Ramo Vida”, capaz de cobrir situações de Morte ou Invalidez.
A autora subscreveu o acordo referido em 6º, subscrição que se bastou com a assinatura de uma proposta de adesão, a qual foi inteiramente preenchida pelo funcionário do banco.
As condições e/ou exclusão do acordo referido em 6º não foram comunicadas nem informadas à autora.
Tendo apenas sido transmitido à autora pelo funcionário bancário que, em caso de morte ou invalidez (que seria considerada quando houvesse uma incapacidade superior a 66%), lhe seria pago o valor de € 50.000,00.
10º Desde a subscrição do acordo referido em 6º a autora passou a pagar mensalmente o prémio do respectivo seguro, prémio que sempre pagou e ainda se encontra a pagar.
11º Em 1.7.2013 teve a autora conhecimento que padece da doença de “behçet”.
12º Doença que desde essa data evoluiu de forma galopante.
13º Atingindo gravemente o seu Sistema Nervoso Central.
14º Passando, desde então, a autora a estar limitada nas suas funções cognitivas e psicomotoras.
15º Mormente, nas actividades intelectivas, mnésica, de atenção e do senso critico.
16º Passou a autora a depender fortemente de terceiros na sua conduta diária.
17º Ficando incapaz de gerir autonomamente o seu lar, os assuntos pessoais e familiares.
18º A autora ficou totalmente incapaz de trabalhar ou exercer qualquer actividade profissional.
19º Em 27 de Maio de 2015 foi a autora sujeita a uma Junta Médica, onde lhe foi atribuída uma incapacidade permanente global de 79 %.
20º Tal incapacidade é definitiva.
21º Em virtude da situação vivenciada, mormente da padecida incapacidade permanente, em 31-05-2017 a autora participou o Sinistro de Invalidez à interveniente.
22º Juntando à respectiva participação os documentos de fls. 8 vs., 9 e 9 vs., (dois atestados médicos e um atestado médico de incapacidade de multiuso no qual lhe foi atribuída uma incapacidade permanente global de 79 %).
23º Nem a ré, nem a interveniente pagaram à autora o montante de €50.000,00.
24º Em meados de 2017 foi recebida na Seguradora, ora Interveniente -a Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A., uma participação de sinistro por invalidez da Pessoa Segura, A. S., aqui Autora.
25º O acordo referido em 6º foi celebrado em 23.08.2013.
26º A Interveniente solicitou directamente às Entidades Hospitalares o acesso aos documentos clínicos solicitados à Autora e essenciais à análise da eventual cobertura do sinistro participado.
27º A Interveniente apresentou Queixa junto da CADA (Comissão de acesso a Documentos Administrativos).
28º A autora assinou o acordo mencionado em 6, onde consta que declara, “…estar de boa saúde, não sofrer de qualquer doença de qualquer etiologia (cardíaca, pulmonar, tumoral, imunológica, renal, obesidade, circulatória, hepática ou qualquer outra), não ter sido submetido nem estar a aguardar a realização de cirurgia, não ter efectuado consulta médica não de rotina nem ter sido sujeito a qualquer internamento hospitalar, não existir qualquer restrição à minha capacidade de trabalhar, não ter existido qualquer interrupção na minha actividade profissional nos últimos 6 meses, não ter sofrido qualquer acidente.”.
29º A autora assinou o acordo mencionado em 6, onde consta que declara, “…não ter omitido nada em relação ao eu estado de saúde. Estou ciente de que, caso haja ….. , deverei obter o questionário clínico previsto para tal, preenchê-lo e devolvê-lo à Seguradora. Estou ciente, também, de que qualquer falsa declaração ou omissão da minha parte relativa ao Termo de Responsabilidade terá como consequência a nulidade do contrato de seguro, conforme determina a lei. Declaro ter conhecimento de que a X Seguros não garante o pagamento das importâncias seguras caso o sinistro seja devido a situações pré-existentes à data da celebração do contrato de seguro”.
30º À data da subscrição da apólice de seguro a autora tinha conhecimento de que não poderia omitir à Seguradora qualquer situação relacionada com o seu estado de saúde.
31º A Ré Seguradora aceitou a adesão ao seguro celebrado com a autora, desconhecendo que esta eventualmente padecia da referida doença.
32º A doença que causou a invalidade da autora foi-lhe diagnosticada em Julho de 2013, antes da subscrição do acordo referido em 6.

Aplicação do Direito

O Tribunal recorrido considerou que, atento o contrato de seguro celebrado, e o facto de à autora ter sido diagnosticada em 2.9.2013 a doença de “neurobehçet”, com incapacidade para as necessidades básicas, bem como para o exercício da sua actividade profissional, e com um grau de 79% de incapacidade definitiva, recai sobre a seguradora interveniente a obrigação de indemnizar a autora no montante do capital seguro, mormente € 50.000,00, e, bem assim, no valor de todos os prémios de seguro que foram pagos por aquela desde a data da participação do sinistro até à efectiva assunção da responsabilidade pela seguradora ou efectivo pagamento do capital segurado.
Recordemos que a interveniente tinha recusado o pagamento da indemnização, invocando em juízo que a autora prestou falsas declarações quando subscreveu o contrato de seguro, na medida em que era portadora de doença grave pré-existente, da qual devia ter conhecimento, face aos sintomas de que padecia.
E o Tribunal recorrido, como vimos, tinha considerado não provado que à data da celebração do contrato de seguro – 23.08.2013 – a autora já apresentasse sintomas da doença em causa e que soubesse que padecia da mesma, tendo omitido tal informação.
Porém, tal decisão só foi proferida porque o Tribunal não se apercebeu que constava dos autos documento que demonstrava sem margem para dúvidas a veracidade da tese defendida pela interveniente.
Com a alteração da matéria de facto que esta Relação introduziu, tornou-se pacífico que quando a autora celebrou em 23.8.2013 o contrato de seguro, já tinha conhecimento desde 1.7.2013 que padecia da doença de “behçet”, doença que desde essa data evoluiu de forma galopante, atingindo gravemente o seu Sistema Nervoso Central, e deixando-a totalmente incapaz de trabalhar ou exercer qualquer actividade profissional. Não obstante, quando assinou o contrato, a autora, sabendo disso, declarou “…estar de boa saúde, não sofrer de qualquer doença de qualquer etiologia (cardíaca, pulmonar, tumoral, imunológica, renal, obesidade, circulatória, hepática ou qualquer outra), não ter sido submetido nem estar a aguardar a realização de cirurgia, não ter efectuado consulta médica não de rotina nem ter sido sujeito a qualquer internamento hospitalar, não existir qualquer restrição à minha capacidade de trabalhar, não ter existido qualquer interrupção na minha actividade profissional nos últimos 6 meses, não ter sofrido qualquer acidente”.
Além disso, declarou ainda “…não ter omitido nada em relação ao meu estado de saúde. Estou ciente de que, caso haja ….. , deverei obter o questionário clínico previsto para tal, preenchê-lo e devolvê-lo à Seguradora. Estou ciente, também, de que qualquer falsa declaração ou omissão da minha parte relativa ao Termo de Responsabilidade terá como consequência a nulidade do contrato de seguro, conforme determina a lei. Declaro ter conhecimento de que a X Seguros não garante o pagamento das importâncias seguras caso o sinistro seja devido a situações pré-existentes à data da celebração do contrato de seguro”.
Ou seja, à data da subscrição da apólice de seguro a autora tinha conhecimento de que não poderia omitir à Seguradora qualquer situação relacionada com o seu estado de saúde.
Não obstante, foi isso mesmo que ela fez. Celebrou o contrato omitindo que menos de 2 meses antes lhe tinha sido feito o diagnóstico de “doença de behçet”.
E a Ré Seguradora aceitou a adesão ao seguro celebrado com a autora, desconhecendo que esta padecia da referida doença. Por isso é que a interveniente / recorrente afirmou na sua contestação que “à data da subscrição da apólice de seguro a A. tinha conhecimento de que não poderia omitir à Seguradora qualquer situação relacionada com o seu estado de saúde, sob pena de nulidade do contrato de seguro. A autora, ao omitir factos com interesse para a formação do contrato de seguro viciou ab initio a vontade de formação do contrato de seguro”.
Cumpre agora apenas determinar quais as consequências que este novo enquadramento factual terá na pretensão deduzida pela autora de receber da recorrente a quantia de € 50.000,00, resultante do capital assegurado no caso de invalidez permanente, pelo contrato de seguro.
E a resposta é evidente e, quanto a nós, incontroversa.
Ao contrato de seguro ora em causa é aplicável o regime do DL n.º 72/2008, de 16/04, que aprovou o novo Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS).
A lei impõe que quem está a negociar a realização de um contrato «deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte» (art. 227º CC).
Dispõe também o art. 24º ,1 do DL n.º 72/08 que: "o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”. E de acordo com o art. 25º,1 do mesmo Diploma, em caso de incumprimento doloso do dever referido no nº 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.
A posição da Seguradora é a de que, tendo a autora, aquando da celebração do contrato de seguro, prestado falsas declarações, o contrato de seguro é anulável. Anulabilidade que ela invocou nos articulados.
Ora, recuando um pouco no tempo, temos que já no art. 29º C. Comercial era cominada a sanção da invalidade do contrato de seguro para os casos de erro como vício de vontade – declarações falsas ou omissões relevantes -, incidindo sobre a própria formação do contrato, na medida em que impediam a formação da vontade real da seguradora, uma vez que tal formação se baseia em factos ou circunstâncias ignoradas (que lhe foram omitidos ou escondidos).
Estando em causa um seguro do ramo Vida, a declaração do risco consistirá fundamentalmente na informação relativa ao estado de saúde da pessoa a segurar. Para esse efeito, as seguradoras usam um questionário, o qual funciona como uma das formas de declaração inicial do risco pelo candidato tomador do seguro que tem por objectivo a ponderação por parte da seguradora dos riscos a correr com a celebração do contrato que lhe é proposto (cfr. Acórdão do TRL de 12.7.2018 - Manuel Marques).
Como vimos, a autora subscreveu em 23.8.2013 um “Contrato de Seguro Ramo Vida”, capaz de cobrir situações de Morte ou Invalidez, assinando uma proposta de adesão, a qual foi inteiramente preenchida pelo funcionário do banco. Este funcionário transmitiu à autora que, em caso de morte ou invalidez (que seria considerada quando houvesse uma incapacidade superior a 66%), lhe seria pago o valor de € 50.000,00.
E desde então a autora tem pago os respectivos prémios.
Em 27 de Maio de 2015 foi a autora sujeita a uma Junta Médica, onde lhe foi atribuída uma incapacidade permanente global de 79 %, tratando-se de incapacidade definitiva.
A autora participou em 31.5.2017 esse evento à Seguradora, para que lhe fosse pago o valor de € 50.000,00, por ter ocorrido o facto futuro e incerto previsto no contrato (sinistro de invalidez).
Onde é que está então o problema?
Está em que, no momento da celebração do contrato, a autora já sabia que sofria da doença de “behçet” ou “neurobehçet”.
Esse facto, trágico mas fundamental para o destino da acção, não era do conhecimento da Seguradora, mas era do conhecimento da autora, porque já lhe tinha sido comunicado pelo seu médico de medicina interna em 1.7.2013.
A essência da igualdade das partes no contrato de seguro foi assim atingida no seu núcleo duro. A autora celebrou o contrato de seguro sabendo que era portadora de uma doença grave, que poderia levar à sua invalidez absoluta ou pior, e a Seguradora celebrou-o desconhecendo tal facto em absoluto.
Para que este desequilíbrio não suceda a lei estabelece para o segurado o ónus de, no momento da formação do contrato, comunicar ao segurador todas as circunstâncias conhecidas que possam influenciar a determinação do risco, que no caso do seguro do ramo Vida consistirá essencialmente na informação sobre o seu estado de saúde, o que, além do mais, resulta ainda do princípio da boa fé, pois a avaliação do risco depende das informações prestadas pelo segurado no momento da formação do contrato (cfr. Acórdão do TRC de 13.9.2016 (relator Fonte Ramos). Ou, como se decidiu no Acórdão do STJ de 2.12.2013 (relator - Granja da Fonseca), “impõe-se que o tomador do seguro responda com absoluta verdade ao questionário/minuta do contrato de seguro, informando a seguradora de todos os elementos necessários, para que esta possa avaliar o risco, decidir sobre a sua aceitação e em que condições e estabelecer o respectivo prémio de seguro”.
Em abstracto, ainda se poderia colocar a questão de saber se o elemento sobre o qual incidiu o erro era fundamental dentro da economia do contrato, ou se era meramente secundário. É a questão da essencialidade das declarações na formação da vontade negocial. Como se escreve no sumário do Acórdão desta Relação de 12.11.2020 – Relator Alcides Rodrigues, “para anular o contrato o segurador terá de demonstrar que o dolo o conduziu ao erro e que, se conhecesse o erro, não teria celebrado o contrato, ou seja, terá de demonstrar a essencialidade do erro”.
No acórdão do STJ de 23.2.2012 (Abrantes Geraldes - Relator) afirma-se: “era importante que se tratasse de inexactidão susceptível de influir na aceitação do contrato de seguro proposto à Seguradora ou nas respectivas condições. Tal efeito encontrou eco em diversos acórdãos dos tribunais superiores que se debruçaram, por exemplo, sobre situações em que existia:
-Omissão no boletim de adesão a contrato de seguro de grupo do ramo vida de que o aderente sofria de cirrose hepática;
-Omissão de que o segurado tinha sido submetido a intervenção cirúrgica de extirpação parcial do estômago;
-Omissão de que o segurado fora submetido a uma intervenção cirúrgica de substituição da válvula aórtica.
Dando especial ênfase a casos apreciados neste Supremo Tribunal, são de destacar as seguintes situações:
-Ac. do STJ, de 11-7-06, CJSTJ, tomo I, pág. 151: omissão do segurado de que sofria de angina de peito;
-Ac. do STJ, de 2-12-08, CJSTJ, tomo III, pág. 158: omissão do segurado de que sofria da diabetes;
-Ac. do STJ, de 27-5-08, CJSTJ, tomo II, pág. 81: omissão do segurado de que sofria de hipertensão arterial.
Ademais, era correntemente assumido que recaía sobre a Seguradora o ónus da prova de um nexo de causalidade entre a inexactidão, omissão ou falsas declarações e a outorga do contrato.
Neste sentido cfr. os Acs. do STJ, de 4-3-04, CJSTJ, tomo I, pág. 102, de 17-11-05, CJSTJ, tomo III, pág. 120, e de 24-2-08, CJSTJ, tomo I, pág. 116, segundo os quais cabia à Seguradora o ónus da prova de que o segurado, quando subscreveu a proposta de seguro e respondeu ao questionário clínico apresentado, tinha conhecimento de que padecia da doença que o vitimou, ou que exarou declarações falsas ou reticentes de factos ou circunstâncias dele conhecidas, susceptíveis de influir na formação do contrato e suas condições, enquanto relacionadas com a avaliação do risco a assumir (cfr. ainda JOSÉ VASQUES, Contrato de Seguro, pág. 225).
No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação extraiu a afirmação da anulabilidade do contrato de seguro do facto que foi aditado, como facto alegadamente confessado, de que “no âmbito de uma consulta de rotina, no mês de Setembro de 2004, em que foi observada pelo Dr. C. A., a A. realizou então uma endoscopia que apresentava resultados normais”, em conjugação com a resposta negativa a uma pergunta do questionário, subscrito posteriormente, em Novembro de 2004, segundo a qual a A. “não tinha realizado endoscopia”. Ainda que tal factualidade se mantivesse, de modo algum poderia encontrar-se em nesta discrepância motivo para a invocação da anulabilidade do contrato de seguro”.

No caso destes autos nenhuma dúvida se levanta sobre a essencialidade da informação que foi omitida pela autora à sua seguradora. Repare-se que a doença de behçet, que foi diagnosticada à autora em 1.7.2013, desde essa data evoluiu de forma galopante, atingindo gravemente o seu Sistema Nervoso Central, passando, desde então, a autora a estar limitada nas suas funções cognitivas e psicomotoras, mormente, nas actividades intelectivas, mnésica, de atenção e do senso critico, tendo a autora passado a depender fortemente de terceiros na sua conduta diária, ficando incapaz de gerir autonomamente o seu lar, os assuntos pessoais e familiares, ficando totalmente incapaz de trabalhar ou exercer qualquer actividade profissional, ao ponto de em 27 de Maio de 2015 ter sido sujeita a uma Junta Médica, onde lhe foi atribuída uma incapacidade permanente global de 79 %, definitiva.
Quando a autora subscreveu o contrato de seguro já sabia que sofria desta doença, já tinham passado quase dois meses desde que na consulta de medicina interna esse diagnóstico tinha sido feito, e já tinha tido todo esse tempo para reflectir no significado de tal diagnóstico.
Apesar disso, assinou o acordo, onde consta que declara, “…estar de boa saúde, não sofrer de qualquer doença de qualquer etiologia (cardíaca, pulmonar, tumoral, imunológica, renal, obesidade, circulatória, hepática ou qualquer outra), não ter sido submetido nem estar a aguardar a realização de cirurgia, não ter efectuado consulta médica não de rotina nem ter sido sujeito a qualquer internamento hospitalar, não existir qualquer restrição à minha capacidade de trabalhar, não ter existido qualquer interrupção na minha actividade profissional nos últimos 6 meses, não ter sofrido qualquer acidente.”.
Mais ainda, consta do acordo que assinou que declara, “…não ter omitido nada em relação ao meu estado de saúde. Estou ciente de que, caso haja ….. , deverei obter o questionário clínico previsto para tal, preenchê-lo e devolvê-lo à Seguradora. Estou ciente, também, de que qualquer falsa declaração ou omissão da minha parte relativa ao Termo de Responsabilidade terá como consequência a nulidade do contrato de seguro, conforme determina a lei. Declaro ter conhecimento de que a X Seguros não garante o pagamento das importâncias seguras caso o sinistro seja devido a situações pré-existentes à data da celebração do contrato de seguro”.
Em síntese, à data da subscrição da apólice de seguro a autora tinha conhecimento de que não poderia omitir à Seguradora qualquer situação relacionada com o seu estado de saúde. Não obstante omitiu que lhe tinha sido diagnosticada quase dois meses antes a doença de behçet.
Tal omissão não pode deixar de ser vista como deliberada, ergo dolosa, pois não é deste mundo o cenário segundo o qual alguém, justamente no acto de subscrever um seguro do ramo vida, para ficar protegido do risco de futura morte ou invalidez permanente, se tivesse esquecido que lhe tinha sido recentemente diagnosticada uma doença grave que poderia com grande probabilidade provocar-lhe invalidez permanente ou mesmo a morte.
Ninguém se esquece de um facto como este. Se a autora o omitiu, e omitiu mesmo, foi deliberadamente.
E a Ré Seguradora aceitou a adesão ao seguro celebrado com a autora, desconhecendo que esta eventualmente padecia da referida doença. Também pelas mesmas exactas razões acabadas de aduzir, é certo e seguro concluir que se a ré soubesse da doença de que a autora era portadora não teria celebrado o contrato. E com toda a legitimidade, pois era um seguro em que não havia apenas o risco de evento futuro e incerto, mas antes a certeza de que o sinistro já ocorreu, o dano já existe no presente, e vai agravar-se no futuro.
O remédio jurídico que a lei prevê para estas situações que desvirtuam por completo a essência do contrato de seguro é a anulabilidade do contrato, como vimos.
Anulabilidade essa invocada pela Seguradora na sua contestação, pelo que resta ao Tribunal declarar a mesma e dela extrair as devidas consequências.
De acordo com o art. 289º,1 CC, tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
O contrato de seguro, sendo anulado, não produz qualquer efeito.
Verifica-se, pois, que era legítima a recusa por parte da Seguradora de entregar o capital seguro com fundamento na anulação do contrato.
Como tal, a pretensão da autora formulada nesta acção, que pressupunha a validade e eficácia do contrato de seguro, improcede na íntegra.

Sumário:

1. Feita a prova que à data em que subscreveu a proposta do contrato de seguro do ramo vida (a accionar em caso de morte ou invalidez - incapacidade superior a 66%), a autora sabia que lhe tinha sido diagnosticada doença grave, capaz de por em risco a sua vida e/ou determinar-lhe incapacidade total, e omitiu deliberadamente tal doença ao preencher o questionário/minuta do contrato de seguro, a autora viciou ab initio a formação da vontade da seguradora.
2. Estamos perante facto fundamental para a formação da vontade de contratar, que era do conhecimento da segurada mas não da seguradora.
3. Esta situação atinge a essência da igualdade das partes no contrato de seguro.
4. Nestas situações, decorre dos arts. 24º ,1 e 25º,1 do DL n.º 72/08 de 16/04 que o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro, desde que o elemento sobre o qual incidiu o erro seja fundamental dentro da economia do contrato.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e, em consequência, revogando parcialmente a sentença recorrida, julga a acção totalmente improcedente, absolvendo a interveniente Y Portugal Vida – Companhia de Seguros de Vida, S.A. dos pedidos, e mantendo-se a absolvição da ré X Seguros, Companhia de Seguros de Vida, SA.

Custas pela autora (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 11.5.2022

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)