Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3/09.0JABRG.G1
Relator: MANUELA PAUPÉRIO
Descritores: DENÚNCIA CALUNIOSA
ELEMENTOS DO CRIME
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECRUSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: O que importa para o preenchimento do tipo de ilícito do artº 365º, do Código Penal, é a prova de que o arguido fez a denúncia consciente (sabendo) ciente de que os factos denunciados são falsos e que apenas o faz com o intuito de que contra a(s) pessoas denunciada(s) fosse instaurado processo.
Decisão Texto Integral:
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES


Processo número 3/09.0JABRG.G1
Relatora: Maria Manuela Paupério
Adjunta: Desembargadora Maria Isabel Cerqueira
Largo João Franco, 248 - 4800-413 Guimarães – Telefone: 253 439 900 – Fax: 253 439 999
Correio electrónico: guimaraes.tr@tribunais.org.pt; Internet: www.trg.mj.pt


Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I) Relatório

Nestes autos de processo comum com o número acima identificado que correram termos pela Secção Criminal da Instância Local de Guimarães, Comarca de Braga (J1) foi o arguido Alfredo L. condenado pela autoria de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365º número 1, 14º nº 1 e 26º, 1ª parte, todos do Código Penal, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 6,00€.

Inconformado com a decisão proferida dela veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos que constam de folhas 579 a 593 dos autos que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte:

« 1º- O Recorrente entende que os pontos 5) última parte (isto é, “ e o crime de associação criminosa, este último cometido juntamente com o ofendido Armando J.”), 10), 11) e 12) da matéria de facto dada como provada foram incorrectamente julgados, devendo ser julgados não provados.


2º- Porquanto, da prova produzida em sede de julgamento não resultou que, na denúncia em questão, o arguido tenha imputado, de forma consciente e dolosa, ao ofendido Armando J. factos que sabia não corresponderem à verdade.
3º- Neste sentido a própria denúncia constante de fls. 19/20/ 28 e 29,
da qual se extrai que os concretos factos imputados pelo arguido aos Inspectores da Polícia Judiciária são: uma investigação incompetente e a inércia que resulta do relatório da Policia Judiciária – factos dos quais ainda hoje o arguido está convencido serem verdadeiros, tendo indicado ao Tribunal os motivos de tal convencimento.
4º- Por conseguinte, do ponto 5 dos factos provados deveria constar o seguinte:
“Não se conformando com o desfecho do inquérito n.º 548/06.3TAGMR, o arguido elaborou a denúncia de fls. 19 e 20 /28 a 29, na qual imputa aos ofendidos Francisco L. e Eduardo M. factos passíveis de integrarem o crime de falsas declarações e, ao ofendido Armando J. factos passíveis de integrar uma incompetente investigação.”
5º- O contexto em que é feita a única referência ao crime de associação criminosa na denúncia em questão, é o seguinte:
“ A inércia que resulta do relatório da Polícia Judiciária, conjugado com as declarações dos Srs. Francisco L. e Eduardo M., sem qualquer contraditório, é, no mínimo, inaceitável num Estado que se diz de Direito. Na minha modesta opinião, o comportamento das pessoas em causa, pode configurar-se no crime de associação criminosa.”
6º- Ou seja, relativamente à menção ao crime de associação criminosa estamos perante uma mera opinião pessoal do ora Recorrente.
7º- O que aliás se evidencia pelas dúvidas com que é feita tal referência, por oposição à certeza com que o Recorrente afirma que a investigação foi incompetente.
8º- A este propósito, vejamos o ensinamento de Manuel da Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense, Tomo III, pág. 531”, quando se refere ao preenchimento da conduta típica do crime de denúncia caluniosa: “ Explicitando melhor: a comunicação tem de ter factos por conteúdo. Não relevam para o efeito as meras opiniões, conclusões pessoais, juízos de valor ou qualificações jurídicas”.
9º- Assim, não está preenchido, desde logo, um elemento essencial do tipo objectivo do crime de denúncia caluniosa.
10º- Não obstante, importa ainda sublinhar que, no que concerne aos concretos factos imputados aos Inspectores da Polícia Judiciária, que como se disse, consistem numa investigação incompetente, o arguido está ainda hoje convencido desse facto e, nas suas declarações, indicou ao tribunal a quo as razões que legitimam a sua convicção.
11º- Vejamos, pois, o depoimento do arguido nesta parte (Ficheiro: 201410091003245_2587240_2870586.wma- do minuto 0 ao minuto 52:48:
Arguido: O problema que está aqui é a má investigação (…)
Se eu digo à judiciária estão aqui cinco milhões de letras e cheques com a data tal, tal e tal. Está aqui cem mil contos que eu arranjei, através do meu irmão, para isto, tal e tal.
Sra. Juiz: E instruiu com documentos?
Arguido: Tudo, tá tudo aí. E eu disse bancos, tudo. Houve dezoito operações de letras de favor, que dá quatro milhões, cento e tal mil euros, quer dizer não estamos a falar em cinco mil contos. Estamos a falar em valores.
Eu chego aqui à beira da funcionária e, ela assina-me um letra a vencer-se daqui a 90 dias, não é, eu pego nessa letra vou ao banco, o banco põe-me o dinheiro na conta, ma eu dou-lhe a ela um cheque para daqui a dois/três dias, ela vai ao banco e recebe o dinheiro para pagar a letra, quem é que beneficia com isto, é ela ou sou eu? Quem é que beneficia Sra. Dra.?
Sra. Juiz: Sr. … o senhor sabe que aqui não faz perguntas, responde, responda se quiser.
Arguido: O beneficiário de toda esta operação é o emitente da letra, que ele aceitou uma letra agora para pagar daqui a quatro meses e, eu passava-lhe cheques a 2, 3, 8 dias, 10 dias, às vezes dependia porque eu tinha de descontar as letras.
Pagar despesas, zero, é muito dinheiro.
E quando isto aconteceu, eu pus o problema ao gestor, contei-lhe tudo, dei-lhe a documentação
E nada. E então, continuo a dizer isto, e depois quando veio a Judiciária e o Ministério Público em Guimarães quando recebeu o processo para arquivar não é, arquivou, porque o relatório da Judiciária não permitia nada.
12º- Atentemos ainda, nas declarações prestadas pelo arguido a respeito da certidão de fls.387 a 528 dos autos, das quais resulta claramente a conformidade dos documentos com as explicações dadas pelo arguido - declarações gravadas no Ficheiro 20141119115238_2587240_2870586, com a duração 00:05:59 minutos.
13º- Assim, conjugando as declarações prestadas pelo arguido com os documentos constantes da certidão de fls. 387 a 528 dos autos, constatamos que a versão apresentada pelo primeiro é, no mínimo, verosímil, contrariamente ao sustentado na sentença recorrida.
14º- Da prova produzida resulta claramente que o arguido agiu convencido da veracidade dos factos vertidos na denúncia.
15º-Acresce que, da restante prova produzida em julgamento não existem elementos de prova que, com a certeza necessária, permitam concluir que o a versão do arguido é falsa, e, muito menos, que tinha consciência da falsidade dos factos que imputou na denúncia.
16º- Pois que, salvo o devido respeito – que é muito -, o depoimento da testemunha Eduardo M. não é, por si só, suficiente para infirmar a versão do arguido, a qual, além do mais, é corroborada pelos documentos constantes da certidão de fls. 387 a 528 dos autos.
17º- Sendo certo que, o depoimento da testemunha Eduardo M. se revelou incongruente (gravado em ficheiro 20141027102213_2587240_2870586.wma – minuto 0 ao minuto 24:34; e ficheiro 20141027105249_2587240_2870586.wma – minuto 0 ao minuto 10:17).
18º- Aliás, o facto do Tribunal a quo ter entendido que não se conseguiu demonstrar, em julgamento, que a versão apresentada pelo arguido - relativamente aos factos em que se estriba para afirmar que a investigação foi incompetente - é verdadeira, tal não quer dizer que a mesma versão seja falsa.
19º- Assim, os factos dados como provados na sentença, nos pontos 10), 11), 12) deveriam ter sido julgados não provados.
20º- Por conseguinte, não se verifica também o elemento subjectivo do crime de denúncia caluniosa.
21º- A sentença recorrida violou, pelo menos, o disposto no artigo 365º do Código Penal.»

A este recurso respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, conforme se alcança de folhas 598 a 609 concluindo pela improcedência do recurso e consequente manutenção do decidido.

Neste tribunal de recurso a Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu o seu parecer sufragando o entendimento de que o recurso deve proceder, com os argumentos que constam de folhas 619 a 623

Cumprido o preceituado no artigo 417º nº 2 do Código de Processo Penal nada veio a ser acrescentado no processo.

Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II) Fundamentação
Tem o seguinte teor a decisão de que se recorre: (transcrição)

1) O ofendido Armando J. é inspector da polícia judiciária, exercendo as suas funções na 3.ª secção, 2.ª brigada, do departamento de investigação criminal da polícia judiciária de Braga.
2) Nessa qualidade, o ofendido Armando J. realizou a investigação do inquérito n.º 548/06.3TAGMR, que correu termos na 2.ª secção destes serviços do Ministério Público, o qual teve início com a participação criminal apresentada pelo arguido contra João M., administrador de insolvência da sua empresa “…, Ld.ª”, imputando-lhe a prática do crime de denegação de justiça e prevaricação.
3) No âmbito do referido inquérito n.º 548/06.3TAGMR, foram os ofendidos Eduardo M., administrador da empresa “Grupo F,,,”, e Francisco L., gerente da empresa “…”, ouvidos na qualidade de testemunhas acerca dos factos aí participados.
4) Concluída a investigação naquele inquérito pelo ofendido Armando J., em 7 de Novembro de 2007 foi determinado o arquivamento dos autos pelo Ministério Público, por não ter resultado dos mesmos a prática de qualquer ilícito criminal pelo aí arguido João M..
5) Não se conformando com o desfecho do inquérito n.º 548/06.3TAGMR, o arguido elaborou a denúncia constante de fls. 19 e 20 / 28 a 29, na qual imputa aos ofendidos Francisco L. e Eduardo M. factos passíveis de integrarem o crime de falsas declarações e o crime de associação criminosa, este último cometido juntamente com o ofendido Armando J..
6) Nessa denúncia, o arguido refere: “Ex.mo Sr. Procurador-Coordenador, venho pela presente expor uma participação criminal com pedido de indemnização cível contra:
- Francisco L., mais bem identificado no processo n.º… TAGMR pelo crime de falsas declarações.
- Eduardo M., mais bem identificado no processo n.º … TAGMR pelo crime de falsas declarações.
- Os senhores inspectores da Polícia Judiciária que conduziram as investigações e fizeram o relatório final.
Processo n.º …TAGMR – e que Vossa Excelência teve conhecimento – pela incompetente investigação.
Ex.mo Sr. Procurador-Coordenador,
O crime de falsas declarações é um crime público, pelo que deveria ser o Ministério Público a propor a respectiva participação, aliás como tem feito, levianamente, ao longo de vinte anos, contra o aqui denunciante – nem que para isso tenha que inventar!
Espero que o Ministério Público, cuja missão principal consiste em defender o Direito, defender o Estado (e o Estado é o povo e não o Governo), cumpra o seu papel.
Quanto à investigação levada a cabo pelos agentes da Polícia Judiciária, esta é sem dúvida incompetente, quem sabe algo mais.
A corrupção é extremamente difícil de provar, uma vez que o dinheiro não fala, mas a incompetência e a não investigação prová-la-ei facilmente em sede própria.
Ex.mo Sr. Procurador-Coordenador,
Que a esta participação seja feita uma investigação séria e com técnicos competentes, nem que para isso seja necessário recorrer aos serviços Técnicos Fiscais, ou uma equipa especializada do DIAP.
Ex.mo Sr. Procurador-Coordenador,
A inércia que resulta do relatório da Polícia Judiciária, conjugado com as declarações dos Srs. Francisco L. e Eduardo M., sem qualquer contraditório, é, no mínimo, inaceitável num Estado que se diz de Direito. Na minha modesta opinião, o comportamento das pessoas em causa, pode configurar-se no crime de associação criminosa.
Por tal, requeira a Vossa Excelência a abertura do respectivo inquérito, para o aqui denunciante poder provar tudo o que acaba de relatar.
Requeiro ainda, que Vossa Excelência promova contra os denunciados, a prestação solidária de caução para garantia do pagamento do prejuízo causado à …, LDA num valor, nunca inferior a €2 000000 (dois milhões de euros) (…)”.
7) Na posse desta denúncia, o arguido decidiu entregá-la nos Serviços do Ministério Público de Guimarães, no dia …l de 2008.
8) Em consequência desta queixa veio a resultar para os ofendidos um processo-crime com o n.º …TAGMR, que correu termos na 2.ª secção, para investigação dos crimes de associação criminosa e de falsas declarações.
9) Feitas as diligências investigatórias reputadas pertinentes no âmbito desse inquérito, em 12 de Fevereiro de 2010 foi determinado o arquivamento dos autos pelo Ministério Público, por não ter resultado dos mesmos a prática de qualquer ilícito criminal pelos aí denunciados, Armando J., Francisco L...
10) O arguido apresentou a queixa supra referida contra os ofendidos Armando J., Francisco L. e Eduardo M., com perfeito conhecimento de que o conteúdo da mesma não correspondia à verdade, por tais factos nunca terem ocorrido.
11) O arguido agiu com a intenção de que aos ofendidos Armando J., Francisco Lopes e Eduardo M., fosse instaurado, como foi, um processo criminal, apesar de bem saber que os factos denunciados nunca ocorreram e que não eram verdadeiros.
12) O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, tendo perfeito conhecimento da ilicitude da sua conduta e que a mesma era proibida e punida por lei.
13) O arguido já sofreu as seguintes condenações:
- Por sentença de …, transitada em 2/05/2008, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º do RGIT, cometido em 31/08/2003, foi condenado na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de € 2,50, já declarada extinta pelo pagamento;
- Por sentença de …, transitada em 14/11/2007, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo art.º 347.º do Código Penal, cometido em 18/03/2003, foi condenado na pena de 180 dias de prisão substituída por 180 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, já declarada extinta pelo pagamento;
- Por sentença de …, transitada em 3/05/2011, pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos art.ºs 180.º, n.º1, 182.º e 184.º do Código Penal, cometido em 8/12/2008, foi condenado na pena de 170 dias de multa à taxa diária de € 5,00, já declarada extinta pelo pagamento.
14) O arguido tem como habilitações literárias o curso industrial têxtil, equivalente ao 9.º ano de escolaridade; é reformado, tendo sido industrial, recebendo uma pensão mensal de € 716,00, não tendo outras rendimentos; é casado; a mulher é doméstica; tem dois filhos maiores e uma neta, com todos mantendo boa relação; vive em casa dos filhos.
2. Factos não provados
Não há factos não provados.
3. Motivação da decisão de facto
O tribunal ancorou a sua convicção no conjunto da prova produzida, que analisou e valorou de forma crítica, fazendo apelo às regras da experiência comum e da lógica e a critérios de normalidade e razoabilidade.
Assim, revelaram-se essenciais, em primeira linha, as declarações do próprio arguido, na medida em que, na sua objectividade, assumiu a prática dos factos que lhe vinham imputados. Entre o mais e muito concretamente, confirmou ter sido quem elaborou a denúncia de fls. 19 a 20 / 28 a 29 e a entregou nos serviços do Ministério Público de Guimarães, e expressamente afirmou que o fez por estar então, e ainda hoje, totalmente convicto da realidade dos factos por si denunciados nessa participação, avançando as razões desse seu convencimento. Só não assumiu saber que o que afirmou na denúncia não corresponde à verdade e a sua actuação ciente da reprovabilidade penal da sua conduta.
Sucede que o arguido, na parte não confessória, não conseguiu convencer. Desde logo, em face da sua própria argumentação, de onde resultou bem evidente a falta de sustentação ou comprovação das suas asserções, sempre emitindo de modo muito fácil juízos, opiniões e deduções, sem qualquer sustentáculo em factos objectivos e concretos. É de registar que, se é muito fácil afirmar, como o arguido o fez, que o advogado do Grupo … lhe deu a entender que ia corromper a polícia judiciária para que a investigação no processo n.º …TAGMR tivesse o desfecho que teve, o certo é que o arguido, para além de não ter oferecido qualquer prova concreta dessa ocorrência, sequer foi capaz de afirmar um qualquer conhecimento / conivência entre os intervenientes naquele processo (nomeadamente, entre o inspector da polícia judiciária Armando J. que conduziu a investigação naquele processo e lavrou o relatório final e os indicados Francisco L. e Eduardo M.), nem adiantar o interesse / benefício de toda a situação para aquele inspector da polícia judiciária. Também não deixamos de atentar no conteúdo assertivo da própria denúncia elaborada pelo arguido, nomeadamente quando aí diz “quanto à investigação levada a cabo pelos agentes da Polícia Judiciária, esta é sem dúvida incompetente, quem sabe algo mais”, “a corrupção é extremamente difícil de provar, uma vez que o dinheiro não fala”, “o comportamento das pessoas em causa, pode configurar-se no crime de associação criminosa” (em que o próprio usou o negrito nesta expressão “associação criminosa”), “por tal, requeiro a Vossa Excelência, a abertura do respectivo inquérito”, de onde resulta bem evidente o que o arguido inequivocamente quis afirmar e requerer com a apresentação daquela denúncia. Ademais, também não podemos deixar de notar os especiais conhecimentos em matéria de direito que o arguido revelou ter no decurso das suas declarações, em que o mesmo evidenciou saber bem como são dirigidas as investigações, e não obstante tudo isso, unicamente com base naquela que é a sua razão, a sua narrativa e naquela alegada e não comprovada conversa com um advogado, sem qualquer facto objectivo e concreto, permitiu-se formular juízos e asserções da natureza e gravidade em causa. Acresce que, pese embora o arguido tenha oferecido um conjunto de documentos, correspondentes a cópias de letras e cheques constantes do referenciado processo n.º ….3TAGMR, pretendendo com a sua junção demonstrar a existência do crédito da sociedade …, Ld.ª relativamente ao Grupo …, o certo é que esses documentos, por si só, de modo algum permitiram sustentar a narrativa do arguido, a qual, de resto, foi frontal e coerentemente infirmada pelo depoimento da testemunha Eduardo A.. Por outro lado ainda, é de dizer que também a prova testemunhal oferecida pelo arguido de modo algum permitiu sustentar a sua versão dos factos, porquanto: a testemunha Joaquim R., seu amigo de longa data, tão-somente veio a tribunal relatar uma alegada conversa de circunstância que manteve com o irmão do arguido Francisco L. (testemunha nos presentes autos, que se recusou a depor, em face da advertência feita nos termos do art.º 134.º do Código Penal); a testemunha Sónia M., filha do arguido, que entre 1999 e 2004 exerceu funções na área financeira na empresa …, disse saber da existência de letras e cheques entre a FLP e a …, mas afirmou nada saber sobre o/s negócio/s por trás da emissão desses documentos; e a testemunha Alfredo M., filho do arguido, afirmou nada saber sobre os negócios entre as empresas …e … e a mais disso limitou-se a vir dizer ao tribunal que na família foi falado o assunto do tio “…” ter emprestado dinheiro ao Grupo … a pedido do pai/arguido. Resta dizer que a prova testemunhal oferecida na acusação, a par das declarações do próprio arguido e da prova documental produzida, permitiu ancorar o conjunto da factualidade dada como provada.
Nesta sequência, foi particularmente importante o depoimento da testemunha Henrique M., inspector-chefe da polícia judiciária, em exercício de funções no departamento de investigação criminal de Braga, o qual elucidou que a investigação no âmbito do referido processo n.º….3TAGMR foi efectuada pelo inspector Armando J. sob a sua chefia e que se tratou de uma investigação normal, sem qualquer tipo de pressão, nada tendo encontrado revelador de uma qualquer irregularidade ou anormalidade, elucidando que, em face do relatório final por aquele apresentado no indicado processo, concordou com ele, tendo considerado todos os elementos constantes do processo (v.g. os documentos, letras e cheques, juntos pelo aqui arguido) e tendo entendido não ser necessária qualquer outra diligência. Disse ainda que teve conhecimento do teor da denúncia apresentada e atestou que o ofendido Armando J. sentiu-se difamado e ficou muito perturbado. Mais atestou que o inspector/ofendido Armando J. é um excelente profissional, a quem são entregues investigações complexas, sensíveis e mediáticas, nunca nada lhe tendo sido apontado capaz de beliscar a sua integridade profissional e ou pessoal.
Também foi essencial o depoimento da testemunha Armando J., inspector da polícia judiciária, o qual confirmou ter sido quem, no exercício das suas funções, conduziu a investigação no âmbito do referido processo n.º ….3TAGMR, pontualmente coadjuvado, auxiliado por outros colegas nalgumas diligências, e nele elaborou o respectivo relatório final, assegurando ter-se tratado de uma investigação normal, em que produziu aquele relatório quando considerou que a investigação estava concluída, que não era necessária qualquer outra diligência e que os documentos apresentados pelo denunciante / aqui arguido não eram prova bastante para assacar qualquer responsabilidade criminal ao denunciado, tendo aquele seu relatório merecido a concordância do citado inspector-chefe Henrique M.. Assegurou ainda não conhecer qualquer das pessoas intervenientes no indicado processo e não ter recebido qualquer pressão externa ou interna para conduzir a investigação num determinado sentido. Mais asseverou a não correspondência à verdade das afirmações feitas pelo arguido na denúncia que contra si apresentou e o abalo que tais afirmações causaram na sua honra e brio profissional e pessoal.
Foi ainda considerado o depoimento da testemunha Sérgio M., inspector da polícia judiciária, que relatou uma diligência que acompanhou no âmbito do referido processo n.º …TAGMR, cuja investigação esteve a cargo do seu colega Armando J., o qual afirmou que este falou consigo sobre a denúncia contra ele apresentada, exteriorizando o quanto estava magoado, incomodado e agastado com a situação, e atestou ainda esta testemunha a integridade profissional do ofendido Armando J..
Por fim, foi valorada a prova documental constante dos autos, com particular destaque para o teor da referida denúncia de fls. 19 a 20/28 a 29, a certidão de fls. 47 a 55, extraída do processo n.º 952/08.2TAGMR, que teve a sua origem naquela denúncia, e a certidão de fls. 123 a 213, extraída do processo n.º 548/06.3TAGMR.
Perante este quadro probatório, na convocação das máximas da lógica e da experiência e de critérios de normalidade e razoabilidade, foi possível ao tribunal formar a sua convicção, com o exigido grau de certeza e segurança, no sentido da realidade dos factos tal como resultaram provados – em concreto, que o arguido entregou nos serviços do Ministério Público de Guimarães a denúncia constante de fls. 19 a 20 / 28 a 29, na qual imputou aos ofendidos Armando J., Eduardo A. e Francisco L. factos susceptíveis de integrarem a prática por estes dos crimes de associação criminosa e falsas declarações, o que fez com intenção de que contra eles fosse instaurado procedimento criminal, como ali requereu e sucedeu, e com perfeita consciência de que os factos denunciados não correspondiam à verdade – o que sabia, tinha de saber, na ponderação de tudo o se deixou dito, e muito concretamente, na ausência de factos concretos, objectivos capazes de ancorar as suas asserções, e como pessoa de normal capacidade de entendimento e discernimento e até com particulares conhecimento em matéria de direito.
Ao apuramento dos antecedentes criminais do arguido foi crucial o teor do seu certificado de registo criminal actualizado que se encontra junto a fls. 546 a 552.
As condições sociais e pessoais do arguido e a sua situação económica foram apuradas a partir do declarado pelo próprio sobre a matéria.»

Importa então conhecer:
O âmbito do recurso é limitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí suscitadas aquelas que este tribunal tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal.
Ora no caso vertente vem alegar erro de julgamento, porquanto, em seu entendimento a matéria constante dos pontos 5), 10, 11 e 12 da matéria assente teria de ter resultado não provado.
Entende portanto o recorrente que a prova produzida em audiência não permitiria dar como provado os factos constantes daqueles artigos, impondo-nos portanto a audição da gravação da prova produzida em audiência.
Fazendo um breve exórdio dos factos que deram origem à denúncia apresentada temos o seguinte; o arguido apresentou uma queixa-crime contra determinada pessoa a qual originou a abertura de um inquérito que correu sob o número 548/06.3TBGMR e que veio a terminar pelo arquivamento.
No seu modo de ver, no entendimento que tem das coisas, o aqui arguido e ali queixoso afirma que haveria muitas razões para acusar e que apenas assim não aconteceu porque as pessoas ouvidas mentiram e porque houve uma investigação incompetente. Por esse facto, descontente com a conclusão do processo e completamente, convencido da razão que lhe assistia, apresenta ao Ministério Público uma queixa contra as pessoas que, naquele inquérito, segundo crê, mentiram – Francisco L., seu irmão e Eduardo M. – queixando-se ainda dos inspetores da PJ que conduziram aquela investigação dizendo“ (…) na sua modesta opinião o comportamento das pessoas em causa pode configurar-se no crime de associação criminosa”.
Consta do nº 5 da matéria assente o seguinte:
«Não se conformando com o desfecho do inquérito n.º 548/06.3TAGMR, o arguido elaborou a denúncia constante de fls. 19 e 20 / 28 a 29, na qual imputa aos ofendidos Francisco L. e Eduardo M. factos passíveis de integrarem o crime de falsas declarações e o crime de associação criminosa, este último cometido juntamente com o ofendido Armando J..»
Isto porque tendo sido Armando J. um dos inspetores que teve a seu cargo a dita investigação e tendo tido conhecimento da queixa apresentada pelo arguido veio apresentar a queixa porque “(…) as afirmações vertidas nessa denúncia não correspondem à verdade e põe em causa a honra profissional e pessoal do denunciante (…).
Sucede porém que, como se retira da queixa apresentada pelo arguido, ele não nomeia concretamente o denunciante, referindo-se, no geral aos inspetores da PJ que teriam levado a cabo a investigação e emitindo uma opinião.
Para alguém com conhecimentos jurídicos que lesse a queixa apresentada não poderia deixar de sorrir perante a opinião expressa no seu final – a de que todos poderiam ter cometido o crime de associação criminosa – pois quem os tem sabe como aparece deslocada e injustificada essa imputação, mesmo que se admitisse ser verdade tudo o mais que o queixoso, aqui agora arguido, ali tivesse dito.
No entanto basta começar a ouvir a gravação da prova produzida em audiência para nos apercebermos que o arguido é uma pessoa muito indignada com a sua situação particular e que não é imune a tudo o que vai ouvindo e lendo. E que relata de modo muito desabrido, mas notoriamente sentido, uma série de coisas que são mais ou menos do senso comum e que facilmente se ouvem propaladas pelos vários meios de comunicação social-
É um homem notoriamente revoltado que diz:
«Armas não tenho, mas tenho a língua e ainda por cima quem está aqui sou eu; não uso armas, mas do pouco português que sei, uso a língua, mas não resulta nada, quem está aqui como arguido sou eu.»
E a inquirição vai seguindo, sempre com o arguido verberando de modo muito enfático o seu descontentamento com “ o sistema” de justiça, explicando que sabe existir “corrupção” e também nas corporações, que se vai ouvindo coisas nos jornais e na televisão que até o bastonário dos advogados o Dr. Marinho Pinto o disse, que há corrupção…depois, a determinada altura, o próprio arguido diz que, nos termos do Código Penal para haver associação criminosa era preciso que eles se conhecessem todos (eles referindo-se aos agentes da judiciária e aos outros participantes no processo) mas que não usou essa expressão com o rigor jurídico, mas que não tendo a investigação desembocado naquilo que era o seu objetivo entende que qualquer coisa se passou.
Atentemos no que se encontra preceituado no artigo 365º do Código Penal no qual se previne e pune o crime de denúncia caluniosa:
«1 — Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. (…)»
As declarações prestadas pelo arguido demonstram à saciedade que está convencido da veracidade daquilo que diz; que a investigação não foi bem conduzida porque deveria ter havido acusação e não houve. Concretamente explica que juntou ao processo documentos que não foram investigados e que se tivessem sido vistos (sobretudo, dizemos nós, se fossem vistos pelos olhos e do modo como o arguido pretendia que fossem) o desfecho do processo seria outro.
Isto é o que ele afirma. Não se cuida aqui de saber se com razão ou sem ela. Notoriamente sem razão, pois assim o decidiu o Ministério Público que arquivou a queixa apresentada.
Ora, no caso vertente, estando o arguido acusado de um crime de denúncia caluniosa era imperiosa a prova de que o arguido apresentou queixa ciente que os factos denunciados eram falsos. Acórdão da RP de 12/03/2014, processo 12/12.1TAAFE-A.P1, in www.dgsi.pt
I – Apresentada uma queixa-crime, na qual se imputam factos ou juízos desonrosos a outra pessoa, deverá a mesma ser analisada de forma a perceber se (i) ela apenas denuncia factos suscetíveis de configurar um crime, (ii) se os apresenta de forma dolosa com a consciência da sua falsidade, ou se, além da denúncia, (iii) emite juízos de valor vexatórios sobre o denunciado.
II - No primeiro caso, temos o puro exercício de um direito, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado pelo artigo 20°, da CRP e, por isso, apesar da imputação da prática de factos que podem constituir crime, não há impedimento ou restrição ao exercí­cio do direito pois que deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos.
III - No segundo caso - em que a denúncia é feita de forma dolosa com a consciência da sua falsidade -, estamos perante a prática do crime de Denúncia caluniosa, p. e p. pelo artigo 365º, do Cód. Penal. Este é o mecanismo através do qual a Lei asse­gura o respeito pelos direitos dos visados em denúncias infundadas, feitas com consciência da falsidade e com a intenção clara de instauração de procedimento
IV - No terceiro caso - em que a denúncia não se limita à narração dos factos e, numa linguagem ofensiva, emite juízos de valor vexatórios sobre o denun­ciado - a situação pode constituir um crime de Difamação, p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1, do Cód. Penal, na medida em que o denunciante se serve da queixa para atingir, especificamente, a honra e consideração do denunciado.

No entanto isto não equivale a dizer que é caluniosa a queixa apresentada contra alguém que se revele completamente infundada, que não corresponda à verdade (falsa neste sentido). Aliás é flagrante o modo ínvio como é conduzido o julgamento, tentando fazer prova de que o inquérito 548/06.3TBGMR correu da mesma maneira que tantas outros inquéritos.
Não era isso que importava apurar.
O que importa para o preenchimento do tipo de ilícito é a prova de que o arguido fez a denuncia consciente, (sabendo) ciente de que os factos denunciados são falsos e que apenas o faz com o intuito de que contra a(s) pessoa(s) denunciada(s) fosse instaurado processo.
Um exemplo simples; se alguém vê a sua casa furtada e indica aos agentes policiais, como suspeita de tal crime uma determinada pessoa que viu a passar, junto da casa, correndo, na altura do sucedido, e depois se vem a concluir que afinal se tratava de um atleta que por ali se andava treinando, completamente alheio a tal evento, a denúncia apresentada contra aquela pessoa não é uma denúncia caluniosa, ainda que se tenha revelado completamente infundada.
O arguido afirmou perentoriamente ter ouvido de uma das pessoas contra quem pretendia, no primeiro processo, ver deduzida acusação dizer-lhe que a sua denúncia “ não daria em nada porque se mexia bem dentro da judiciária”. Ficou, portanto, com uma ainda maior desconfiança relativamente aos procedimentos quando a sua queixa redundou numa não acusação.
O julgamento, como se concluiu pela audição da prova gravada, girou em torno da “prova” de que a investigação (naquele referido inquérito) foi devidamente conduzida, de que os procedimentos adotados foram os que normalmente são praticados… mas não era esse, como já se disse, o cerne da questão a decidir; essa essencialidade importava a prova de que o arguido sabia que estava a fazer uma imputação falsa. Ora essa prova não se fez. Aliás, em boa verdade, não chega sequer a fazer uma imputação. Limita-se a emitir a sua opinião. Errada, talvez até desrespeitosa, mas nada mais do que isso
Importa assim alterar nesta parte a matéria assente, considerando-se não provado que a queixa apresentada pelo arguido não foi feita por ele com o conhecimento de que o que denunciava não correspondia à verdade a matéria constante do ponto 10 da matéria assente, como também não provado o que consta do ponto 11, ou seja não se prova que o arguido soubesse que os factos denunciados não eram verdadeiros. Assim sendo não resta se não absolver o arguido do crime de denúncia caluniosa, dando assim provimento ao recurso interposto.

III) Decisão

Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido Alfredo L. e, em consequência, absolve-lo da prática de um crime de denúncia caluniosa.

Sem tributação
(elaborado pela relatora e revisto por ambas as subscritoras)

17 de dezembro de 2015

Maria Manuela Paupério Maria Isabel Cerqueira