Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1221/16.0JABRG.G1
Relator: CLARISSE GONÇALVES
Descritores: RECOLHA DE INFORMAÇÃO
DEPOIMENTO DE MILITAR GNR
PESSOA NÃO CONSTITUÍDA ARGUIDA
PROVA VÁLIDA
ARTº 355º
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DECISÃO NULA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Actualmente crê-se consensual o entendimento da jurisprudência de que constitui depoimento válido e eficaz o relato de agentes de investigação (PPCs) sobre recolha de informações ou outros dados e contribuições de que tomaram conhecimento no campo dos actos de investigação e outros meios de obtenção de prova, portanto, fora do âmbito de diligências processuais formais - como sucede com o interrogatórios ou tomadas de declarações - desde que a recolha não devesse ter sido submetida a tal formalismo.

II) Assim, os órgãos de polícia criminal não estão impedidos de depor em audiência de julgamento sobre factos por si detectados e constatados durante a fase investigatória.

III) Por isso que, no caso dos autos é de considerar prova válida, o depoimento de um militar da GNR quanto a recolha de informações prestadas por uma pessoa, antes da abertura de inquérito e antes de esta ser constituída arguida.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

- 1. No processo comum, com intervenção de Tribunal singular, com o nº 1221/16.0JABRG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 2, foi proferida sentença, datada, lida e depositada a 8 de Março de 2018 (fls. 147, 148 e 149), com a seguinte “Decisão” (transcrição):

“Pelo exposto, decide-se absolver a arguida Maria, pela prática do crime de incêndio p. e p. pelo artº 274º, nº 1 e 2, al. a), e 3 do Código Penal de que vinha acusada.
Sem custas.
Proceda ao depósito.
Notifique.”

- 2. Não se conformando com essa decisão, o Digno Magistrado do Ministério Público interpôs recurso (de fls. 151 a 158), apresentando as seguintes “conclusões” (transcrição):

1. Nos presentes autos, a arguida Maria foi absolvida da prática de um crime de incêndio, previsto e punido pelos art.ºs 274.º/1, /2, al. a), e /3 do Código Penal.
2. Tal como resulta da fundamentação de facto da sentença recorrida, a única razão pela qual se considerou não provado que a arguida foi a autora da fogueira referida no facto provado 9 e causa do incêndio descrita nos restantes factos provados foi a circunstância de se ter considerado que o depoimento da única testemunha - militar da GNR - não podia ser valorado relativamente às declarações que ouviu da arguida, por constituir uma conversa informal.
3. Sucede que todos os factos presenciados pelo militar da GNR, incluindo as declarações da arguida, localizaram-se numa fase em que esta testemunha ainda procurava perceber qual era a causa do incêndio, ainda não sabendo se tinha sido cometido algum crime, mormente pela arguida.
4. O referido na conclusão anterior resulta do primeiro parágrafo da página 5 da sentença recorrida e das declarações que a testemunha prestou a 00:52 e ss., 02:04 e ss., 03:04 e ss. e 14:45 e ss. da respectiva gravação áudio3 .
5. Actualmente, a larga maioria da jurisprudência dos Tribunais Superiores defende a admissibilidade do depoimento de OPC sobre aquilo que presenciaram numa fase informal/cautelar, como é o caso dos autos, mesmo relativamente a declarações de pessoas que, posteriormente, venham a ser constituídas arguidas, tendo em conta:
o poder - dever de recolha de indícios, imposto pelo art.º 249º do Código de Processo Penal;
e a circunstância da proibição do art.º 356º/7 do Código de Processo Penal visar evitar a frustração do direito ao silêncio do arguido, o qual só existe, porém, após o momento em que se deve instaurar inquérito e/ou proceder a interrogatório como arguido.
6. Pelo exposto, o depoimento da testemunha militar da GNR deve ser valorado relativamente ao facto de ter ouvido a arguida a referir que tinha sido ela a autora da fogueira – causa do incêndio, tal como consta das declarações prestadas a 03:04 e ss.
7. Em consequência, o facto 9 dos factos provados deverá passar a ter uma redacção que atribua a autoria da fogueira – causa do incêndio à arguida, sugerindo-se que passe a constar que “A arguida ateou uma fogueira no seu terreno”.
8. Em consonância com tal alteração, os elementos subjectivos do crime e constantes dos factos não provados c), d), g) e h) deverão passar para os factos provados, com as precisões necessárias para se reportarem aos factos provados, sugerindo-se a seguinte redacção:

17) A arguida quis praticar o facto referido em 9, com o propósito concretizado de incendiar o mato e a vegetação rasteira localizada no seu terreno.
18) Quanto a esta parte, a arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, apesar de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
19) A arguida não previu a possibilidade do fogo provocado por si assumir as dimensões e causar o perigo descritos nos factos povoados 10 a 12, como podia e devia ter feito, pelo que ateou o fogo.
20) Quanto a esta parte, a arguida agiu de forma livre e descuidada, apesar de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
9. Tendo em conta as elevadíssimas exigências de prevenção geral, a arguida deverá ser condenada a uma pena de prisão de 2 anos e 5 meses, suspensa por igual período.
Pelo exposto, roga-se que ao abrigo dos arts.º 426º/1, a contrario, 428º e 431º, al. b), do Código de Processo Penal, se altere a decisão de facto da forma supra defendida e, em consequência, se condene a arguida na pena de prisão de 2 anos e 5 meses, suspensa por igual período, pelo crime pelo qual vinham acusada, assim se fazendo Justiça.” (fls.158).

- 3. A arguida não apresentou qualquer resposta.

- 4. Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de se conceder “provimento ao recurso.” (fls. 178).

- 5. No âmbito do disposto no artº 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.

- 6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no disposto no artº 419º, nº 3, al. c) do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

É sabido que, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artºs 402º, 403º, 412º, nº 1, todos do Código de Processo Penal).
A questão central do recurso é, tão só, a de saber se pode, ou não, ser valorado o depoimento do militar da GNR sobre aquilo que presenciou numa fase primária, informal e/ou cautelar e sobre o que lhe foi dito por quem, posteriormente, veio a ser constituído/a arguido/a.
No entendimento do recorrente, Ministério Público, tal depoimento deve ser valorado e, consequentemente, alterada a decisão de facto e condenada a arguida “na pena de prisão de 2 anos e 5 meses, suspensa por igual período, pelo crime pelo qual vinha acusada.”

II. 1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO CONSTANTE DA SENTENÇA RECORRIDA

- A) - Factos Provados (transcrição):

“Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:

- 1. A arguida reside na Rua …, Guimarães.
- 2. Em 28 de Agosto de 2016, o prédio da residência da arguida era composto pela casa de habitação, por jardim e por um terreno com cerca de 150m2, composto por mato e outra vegetação rasteira espontânea.
- 3. O prédio da arguida era vedado com chapas de zinco com cerca de dois metros de altura.
- 4. O prédio da arguida era marcado por um desnível acentuado, com um talude de cerca de 4 metros de altura e um socalco mais alto que o telhado da casa.
- 5. Na altura, o prédio contíguo ao prédio da arguida, também marcado por um grande declive, encontrava-se abundantemente povoado por mato e vegetação, nomeadamente silvas, com cerca de dois metros de altura.
- 6. A vegetação do prédio da arguida e do prédio contíguo encontravam-se numa linha de continuidade entre si e relativamente a cerca de 16 hectares de povoamento florestal, predominantemente constituído por eucaliptos e matos.
- 7. Este povoamento florestal era contíguo aos dois referidos prédios.
- 8. Os eucaliptos ocupavam cerca de 12 hectares do povoamento florestal, com uma densidade de cerca de 900 eucaliptos por hectare, pertenciam a terceiros e tinham um valor global de cerca de 8.020, 68€.
- 9. Pessoa não concretamente apurada ateou uma fogueira no terreno da arguida.
- 10. Posteriormente, altura não concretamente apurada da tarde de 26 de Agosto de 2016, perante a abundância de vegetação e de mato da parte do prédio e o declive acentuado do talude e do mesmo terreno, o fogo progrediu para o socalco do prédio da arguida, passou pelas aberturas existentes na base da vedação de zinco e atingiu o mato e demais vegetação do prédio contíguo ao prédio da arguida, consumindo-o parcialmente.
- 11. O fogo acabou por consumir, no total, cerca de 1.000 m2 de mato e vegetação.
- 12. O fogo só não atingiu e consumiu o povoamento florestal acima identificado, em virtude da intervenção dos bombeiros, que combateram com sucesso o incêndio durante 1h e 30m, a partir das 17h e 55m desse dia.
- 13. Tendo em conta o grande calor e a falta de humidade típica do mês de Agosto, a continuidade da mata e vegetação do prédio da arguida e do prédio contíguo relativamente ao povoamento florestal contíguo, qualquer pessoa com a mínima experiência e diligência preveria a grande probabilidade do fogo ateado pela arguida poder reacender-se e, assim, atingir o povoamento florestal, com o acima referido valor.
- 14. A arguida não consta como beneficiária da Segurança Social.
- 15. A arguida não está inscrita na administração tributária.
- 16. A arguida tem antecedentes criminais: 2 crimes de ofensa à integridade física simples e 1 crime de injúria, praticados em 01.09.2007, condenada em 22.07.2009, na pena única de 190 dias de multa à taxa de €7,00.” (fls. 142v. e 143).

- B) – Factos Não Provados (transcrição):

“- a) No dia 28 de Agosto de 2016, entre as 7h e 30m e as 8h, a arguida viu uma cobra no terreno da sua casa.
- b) Então, a arguida ateou fogo ao mato e vegetação rasteira localizados na zona inferior do talude, consumindo-os parcialmente com a fogueira assim ateada.
- c) A arguida quis praticar estes factos, com o propósito concretizado de incendiar o mato e a vegetação rasteira localizada no seu terreno.
- d) A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, apesar de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
- e) Ainda durante a manhã de 26 de Agosto, a fogueira ateada pela arguida aparentou extinguir-se.
- f) Posteriormente, altura não concretamente apurada da tarde de 26 de Agosto de 2016, a fogueira reacendeu-se.
- g) A arguida, porém, não previu tais hipóteses, como podia e devia ter feito, pelo que ateou o fogo, conforme acime descrito.
- h) Assim, a arguida agiu de forma livre e descuidada, apesar de saber que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Da discussão da causa e produção da prova não vieram a resultar outros factos não provados com interesse para a boa decisão da causa.” (fls. 143v.)

- C) – Motivação da Decisão de Facto (transcrição):

“O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente:

- nos documentos juntos aos autos.
- no depoimento da testemunha Ricardo, militar da GNR, a qual, em suma, relatou que foi ao local por existir noticia de incêndio, e verificou que já lá estavam os bombeiros a combate-lo .
Verificou que havia uma fogueira, onde deverá ter-se iniciado o incêndio. A arguida confessou que foi ela que fez a fogueira de manhã.
Não sabe porque houve incêndio da parte da tarde quando pensa que a fogueira foi feita de manhã.
Confirma o auto de fls. 09 e 10.

Com efeito da conjugação da prova produzida, tem que se concluir no sentido de que os factos dados como provados efectivamente aconteceram.

Na verdade, da conjugação da prova documental, designadamente de fls. 22 a 25 e 27 a 33 (autos de exame ao local – quanto à caracterização do mesmo e zona queimada), fls. 09 e 10 (fotografias), fls. 43 e 44 (relatório de ocorrência), fls. 68 e 69, com o depoimento da testemunha logo tem que se concluir que, efectivamente, ocorreu um incêndio nas circunstâncias de tempo e lugar, referidas nos factos provados, suas dimensões e consequências, e que foi combatido pelos bombeiros.
Já quanto ao nexo causal entre a fogueira e o incêndio, parece não haver dúvidas que foi ali que se iniciou bastando atentar na documentação supra referida, donde resulta a existência da mesma e ser daí que o incêndio evoluiu, o que também foi corroborado pela testemunha que viu tal circunstancialismo no local.
Já no que respeita à autoria, referiu a testemunha (militar da GNR) que a arguida, em conversa informal, referiu que foi ela quem fez a fogueira da parte da manhã.
Ora, cremos que, nesta parte, o depoimento da testemunha não poderá ser valorado por se tratar de conversa informal.

Ora, sobre esta questão, escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/07/01 in Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano IX, Tomo III, pag. 165 e seguintes; "… não podem ser tidas em conta conversas informais do arguido com agentes da PJ. Tais conversas informais, a propósito dos factos em averiguação, estão sujeitas ao principio da legalidade, ínsito no artigo 2º do Código de Processo Penal, proveniente do artigo 29º da CRP (nulla poena sine judicio), só em processo penal podendo ser aplicada uma pena ou medida de segurança. O processo organizado na dependência do Ministério Público tem de obedecer aos ditames dos artigos 262º e 267º. Por isso, as ditas "conversas informais" só podem ter valor probatório se transpostas para o processo em forma de auto e com respeito pelas regras legais de recolha de prova. Aliás, não há conversas informais, com validade probatória à margem do processo, sejam quais forem as formas que assumam desde que não tenham assumido os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados. (as diligências são reduzidas a auto - artigo 275º, nº 1, do Código de Processo Penal). Haveria fraude à lei se se permitisse o uso de conversas informais não documentadas e fora de qualquer controlo. Claro que as «conversas informais», uma vez transpostas para o processo, deixarão de ser informais".

Veja-se, igualmente, o Acórdão da Relação do Porto de 07-03-2007, publicado em www.dgsi.pt, no qual se refere que “O depoimento do agente policial que nada presenciou e apenas ouviu da boca do arguido, antes de ser constituído arguido, a "confissão" do facto não constitui meio de prova admissível.” No mesmo sentido vai o Acórdão da Relação de Guimarães, de 31-05-2010, publicado no mesmo sítio, levando aquela proibição de prova ainda mais além, isto é, as conversas informais são desprovidas de valor probatório, quer ocorram antes ou depois da constituição de arguido.

No mesmo sentido, ao qual se adere, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra, de 04-02-2015, publicado em www.dgsi.pt: “As conversas usualmente designadas de “informais”, mantidas entre órgão de polícia criminal e o arguido, não podem ser (validamente) valoradas, sejam quais forem as condições e o tempo processual da sua obtenção, nelas se incluindo, consequentemente, as verificadas antes de aquele obter a descrita qualidade de sujeito processual.” (negrito nosso)

No mesmo sentido, defende Paulo Pinto de Albuquerque in CPP, anotado, UCE, 2ª, pág. 900, que “Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido, dentro ou fora do processo, antes ou depois de ter sido formalmente aberto inquérito, entes ou depois do suspeito ter sido constituído como arguido, declarações cuja leitura, visualização ou audição não for permitida (…9 não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas (…). Portanto, são inadmissíveis.

Também Damião da Cunha entende que os OPC se aproximam mais da figura do sujeito processual do que da figura da testemunha, apoiando-se neste ponto para justificar a proibição prevista no artigo 356.º, n.º 7, referindo que “no fundo, o CPP quis criar um tema proibido de prova (exactamente o conteúdo de declarações prestadas em fase processual anterior e não susceptíveis de leitura). Fora este tema proibido de prova, os órgãos de polícia criminal podem prestar testemunho” – Vide “O regime processual de leitura de declarações (…)”, p. 423. (negrito nosso)

Dito isto, não pode, portanto, ser valorado o depoimento do referido militar da GNR na parte em que relata a "confissão" da arguida de ser, alegadamente, autora da fogueira que deu origem ao incêndio.

Por outro lado, não foi arrolada qualquer outra prova directa ou indirecta de quem foi o agente dos factos.
As condições pessoais resultam dos documentos de fls. 109 e 110.
A existência de antecedentes criminais, resultaram do CRC juntos aos autos.” (fls. 143v. a 145).

II. 2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A grande questão suscitada pelo recorrente centra-se em saber se o tribunal a quo “ao não valorar o depoimento do militar da GNR na parte em que relata a “confissão” da agora arguida de ser, alegadamente, autora da fogueira que deu origem ao incêndio”, procedeu incorrectamente.
Entende o tribunal recorrido que o “depoimento da testemunha (o dito militar da GNR) não poderá ser valorado por se tratar de conversa informal.”
Vejamos.

De acordo com o disposto no artº 125º do Código de Processo Penal “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.”
Por sua vez, o artº 355º do mesmo diploma, no seu nº 1, estabelece que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.”
E o nº 7 do artº 356º do dito Código preceitua que “os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.”

Do exposto resulta que a lei proíbe a inquirição dos órgãos de polícia criminal sobre o conteúdo de declarações que tiverem recebido, prestadas no âmbito do processo, e cuja leitura não for permitida.
O caso que nos ocupa é diferente. O militar da GNR, Ricardo, que abordou a arguida fê-lo no intuito de perceber qual era a causa do incêndio, sem qualquer suspeita concretizada; foi no desenvolvimento da conversa que Maria, lhe disse “que tinha feito a queima, da parte da manhã, por causa de umas cobras que tinha visto no quintal e que era para as afugentar”, como o próprio referiu quando interrogado pelo Digno Magistrado do Ministério Público.

Atento o facto de Maria ter revelado factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de incêndio, o dito militar da GNR elaborou o competente auto de notícia e posteriormente constituiu-a arguida, conforme se constata de fls. 8 e 14 dos autos. Foi interrogada enquanto tal e, no mesmo dia, prestou Termo de identidade e Residência (fls. 15 a 17 e 18).
Parece-nos claro que o militar da GNR, até ao conhecimento dos indícios da prática do crime de incêndio não estava adstrito a qualquer tipo de exigência funcional e a sua actividade não corria ainda sobre o escrutínio de qualquer uma investigação criminal devidamente instaurada e formalizada.
A dita testemunha limitou-se “a tentar perceber qual era a causa do incêndio” que ainda deflagrava quando pelas 18.00h chegou ao local.
Quando questionou Maria sobre o que teria acontecido, fê-lo porque esta era a proprietária do terreno onde “a queima” se tinha iniciado e ela, melhor que ninguém para informar do sucedido.
Tratou-se de informações prestadas por Maria, antes da abertura do inquérito e antes de esta ser constituída arguida. E, neste período, a Lei não prevê qualquer limitação que impeça que os órgãos de polícia criminal sejam inquiridos relativamente ao que lhes foi transmitido e às informações iniciais que recolheram.

Actualmente crê-se “consensual o entendimento da jurisprudência de que constitui depoimento válido e eficaz o relato de agentes de investigação (OPC´s) sobre recolha de informações ou outros dados e contribuições de que tomaram conhecimento no campo dos actos de investigação e outros meios de obtenção de prova, portanto, fora do âmbito de diligências processuais formais – como sucede com os interrogatórios ou tomadas de declarações – desde que a recolha não devesse ter sido submetida a tal formalismo.

Assim, os órgãos de polícia criminal não estão impedidos de depor em audiência de julgamento sobre factos por si detectados e constatados durante a fase investigatória, como bem se sintetizou no sumário do Ac. STJ de 15-02-2007 [p. 06P4593 - Maia Costa e, no mesmo sentido, o Ac. da RP de 20-04-2016 (p. 271/03.0IDPRT.P1 - Nuno Ribeiro Coelho), recenseando variada jurisprudência e doutrina sobre a matéria]: «I - Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe. II - Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas. III - Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente. IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP). V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo. VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito. VII - O que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249.º do CPP(1).
Tudo para concluir que o depoimento da testemunha Ricardo deveria, e deve, ser valorado em conjugação com a restante prova.
Cremos que este Tribunal da Relação não pode cindir, desde já, o juízo probatório (e convicção) do tribunal recorrido e concluir, desde já também, pela condenação da arguida.
Acontece que a arguida não esteve presente na audiência de discussão e julgamento e, consequentemente, não prestou declarações.
Por outro lado, dos autos nada consta relativamente à personalidade e condições de vida da arguida.

Como é sabido, em caso de condenação o tribunal a quo deverá apurar os factos referentes às condições pessoais, económicas e de personalidade da arguida, factos essenciais para a aplicação, ou não, de uma pena de substituição e para a determinação da medida concreta da pena.

De realçar que o facto provado sob o nº 14, que refere que a “arguida não consta como beneficiária da Segurança Social”, tem o seu suporte no documento de fls. 109, em que o nome não corresponde ao nome da arguida, inexistindo aí outro elemento identificativo.
Acresce que o certificado de registo criminal junto aos autos (fls. 140 e 141) e no qual se baseou a factualidade assente no ponto 16, não é o certificado de registo criminal da arguida.
Face a todo o exposto há que declarar nula a sentença recorrida e determinar a prolação de nova sentença em que haverá que incluir na apreciação probatória o depoimento integral da testemunha, militar da GNR, Ricardo (nos termos sobreditos) e apurar da personalidade e condições de vida da arguida e do seu real certificado de registo criminal.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em declarar nula a decisão recorrida e determinar a prolação de nova decisão que haverá que incluir na apreciação probatória o depoimento integral da testemunha Ricardo e apurar da personalidade e condições de vida da arguida e do seu real certificado de registo criminal.
Sem custas.
**
(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – artº 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 10 de Setembro de 2018,

(Clarisse Gonçalves)
(Mário Silva)


1- Cfr. Ac. TRG, procº nº 564/14.1PBCHV.G1, de 6.02.2017, em que foi relatora a Exmª Srª Desembargadora Ausenda Gonçalves.