Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2384/06-2
Relator: TERESA BALTASAR
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
PESSOA COLECTIVA
CAÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADO O DESPACHO IMPUGNADO
Sumário: I – Apesar do carácter público do crime de caça ilegal (artigo 30.° n.º 2 da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro), por o bem jurídico protegido ser a preservação da natureza e da diversidade biológica, bem como a exploração racional dos recursos cinegéticos, uma Associação Recreativa de Caça e Pesca tem legitimidade para se constituir assistente.
II – Para assim se entender, há que interpretar o tipo incriminador em causa atendendo aos elementos específicos do tipo legal em ordem a determinar, caso a caso, se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública ou não pública do crime.
III – Dúvidas não existem de que o bem jurídico protegido pela incriminação - o art. 30 da Lei 173/99, sob a epígrafe “Crimes contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas” -. não assume um carácter pessoal, pois inexiste uma pessoa concreta cujos interesses são defendidos pela mencionada norma punitiva.
IV – Também resulta pacífico, que o bem jurídico que se pretende salvaguardar é, efectivamente, de natureza pública, sendo, em sentido amplo, o ambiente, o meio ambiente, numa das suas particulares vertentes: a preservação da fauna, a conservação da natureza, a diversidade biológica e a gestão sustentada dos recursos e isso mesmo resulta do preâmbulo dos Decretos que regulamentaram a mencionada Lei – DL 202/2004 de 18/08 e DL 201/2005 de 24/11.
V – Ora, a incriminação acima referida – art. 30, nº2 da Lei 173/99, enxerta-se na sequência do acabado de referenciar na Lei de Bases do Ambiente, pois é norma que emerge do citado art. 46, como norma especial, mas sem perder o seu carácter preciso de norma ambiental, de norma que visa defender e tutelar o meio ambiente.
VI – Em causa não está, portanto, uma norma que defenda interesses de natureza particular, não está em causa um preceito que confira protecção especial a um sujeito titular de um interesse particular e, assim sendo, de pronto se deverá afastar a hipótese da recorrente se poder constituir assistente sob a alegação de que é “ofendida” no sentido vertido na alínea a) do nº1 do art. 68 do CPPenal.
VII – Porém, é preciso levar em conta o que acima se expõe sobre o bem jurídico protegido pela incriminação, pelo artigo 30, nº2 da Lei 173/99 de 21/09 e considerar, também, o que se mostra estipulado na Lei 83/95 de 31/09, no seu artº 25º, que estipula que “aos titulares do direito de acção popular é reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1.° que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respectivo processo, nos termos previstos nos artigos 68.°, 69.° e 70.° do Código de Processo Penal”.
VIII – De acordo com este normativo, o reconhecimento do direito a constituírem-se assistentes é conferido:
a) a quem for titular do direito de acção;
b) se estiver em causa a “violação dos interesses previstos no art.1º” e
c) que tais interesses “revistam natureza penal”.
IX – No dito art. 1º da Lei 83/95, mormente no seu nº2, prevê-se que são interesses protegidos pela presente lei “a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público”.
X – Os titulares do direito de acção popular estão como tal previstos no art. 2º da mesma Lei onde se consigna:
“1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.
2 - São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.
XI – Assim, dúvida não há que está em causa um tipo legal de crime que visa a protecção do ambiente, isto é, a protecção da natureza e da diversidade biológica atingiu o patamar da dignidade penal através da tipificação do mencionado art. 30, nº 2, pelo que estão preenchidos os dois enunciados requisitos.
XII – A associação recorrente não é uma típica associação defensora do ambiente, uma colectividade que tenha por escopo principal a defesa e salvaguarda daquele. Porém, apesar da falta dessa especificidade, certo é que, indiscutivelmente, é uma associação que de acordo com os seus estatutos “tem por objecto o fomento, gestão e exploração dos recursos cinegéticos …” – vd. fls. 14.
XIII – A sua existência acoberta-se com na já mencionada Lei de Bases gerais da Caça, a Lei 173/99 de 21 de Setembro. Nos termos do seu artigo 4, ao aludir-se às tarefas atribuídas ao Estado visando a prossecução da política cinegética nacional, expressamente se consigna a obrigação do mesmo em promover e incentivar a constituição de diversos tipos de associações para um adequado ordenamento cinegético, prevendo o art. 14 a possibilidade do Estado transferir para aquelas a gestão das diversas zonas de caça.
XIV – Ou seja, as finalidades de defesa dos recursos cinegéticos, desta singular componente ambiental natural, são protegidos ou pelo próprio Estado ou pelas formas de associativas previstas na Lei citada, regulamentando esta uma forma específica de associativismo – vd. art. 45, atribuindo às associações que visam gerir zonas de caça – como a associação recorrente – finalidades de denso conteúdo ambiental.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
- Tribunal recorrido:
Tribunal Judicial da Comarca de Vila Verde ( Proc. n.º 2/06.3LA.BRG - F. Inquérito )
- Recorrentes:
A Associação Recreativa de Caça e Pesca do Vale do N....
- Objecto do recurso:
No processo n.º 2/06.3LA.BRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Verde ( fase de Inquérito), foi proferido despacho, no qual se decidiu não admitir a intervir nos autos como assistente a Associação Recreativa de Caça e Pesca do Vale do N... ( cfr. fls. 53 destes autos ), sendo que no caso a factualidade participada era susceptível de configurar a prática de um crime de caça p. e p. pelo art. 30º, n.º 2 da Lei n.º 173/99, de 21-09.
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Inconformada, pois, com a supra referida decisão, a Associação Recreativa de Caça e Pesca do Vale do N... dela interpôs recurso, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:
1- "O preceito normativo consagrado no art. 30°, n02 da Lei n0173/99, de 21.09, incrimina vários ilícitos criminais contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, designadamente exercer a caça nas zonas de caça às quais não tenha legalmente acesso".
2- Nos terrenos cinegéticos ordenados, cuja gestão dos recursos cinegéticos está transferida ou concessionada às associações e federações de caçadores, associações de agricultores, de produtores florestais, de defesa do ambiente, autarquias locais ou para outras entidades colectivas (cfr. art. 12° e 14°, n02 da Lei n0173/99, de 21.09 - Lei de Bases Gerais da Caça), mediante a constituição de zonas de caça, o acima referido ilícito criminal visa a tutela da fauna e das espécies cinegéticas que são património dessas entidades gestoras, resultantes de acções de criação, repovoamento, reforço ou largadas (art. 5° do DL 202/2004, de 18.08).
3- Com efeito, nos terrenos cinegéticos ordenados (v. g. zonas de caça associativa), são as associações de caçadores, enquanto entidades gestoras, que investem na optimização dos recursos cinegéticos, designadamente adquirindo espécies cinegéticas criadas em cativeiro para acções de repovoamento, reforço cinegético ou largadas.
4- É a entidade gestora que compra as espécies cinegéticas e as distribui pelos terrenos da sua zona de caça, pelo que os recursos cinegéticos existentes numa zona de caça são património da entidade gestora, bem jurídico tutelado pelo art. 30°, n02 da Lei 173/99.
5- Como é consabido, o contrato de compra e venda transfere o direito de propriedade, tornando-se o comprador proprietário das coisas vendidas no momento da celebração do contrato (art. 879° e 408°, n01 do Cód. Civil).
6- Pelo exposto, tutelando o art. 30°, n02 da Lei n0173/99 a fauna e as espécies cinegéticas, património da entidade gestora da zona de caça, assiste legitimidade à aqui recorrente, enquanto gestora da zona de caça associativa onde o arguido caçou sem ter acesso legal, para se constituir assistente e requerer a abertura de instrução, de harmonia com o disposto nos arts. 68°, n01, aI. a) e 287°, n01, aI. b) do C. P. P ..
7- Com efeito, a aqui recorrente é a exclusiva titular do interesse que constitui objecto jurídico do crime tipificado no art. 30°, n02 da Lei n0173/99, na medida em que o interesse protegido pela incriminação da caça ilegal, nas situações em que os terrenos se encontram ordenados, é o da entidade gestora da zona de caça, proprietária das espécies cinegéticas.
SEM PRESCINDIR:
8. Mesmo que se entenda tratar-se de uma norma penal de tutela do ambiente, da preservação da natureza ou da diversidade biológica, como o sufragou o Tribunal recorrido, hipótese que não se admite, mas se coloca por dever de patrocínio judiciário, sempre haveria de reconhecer-se à aqui recorrente, enquanto associação gestora da zona de caça, defensora e protectora dos recursos cinegéticos, naturais e ambientais, legitimidade para se constituir assistente, nos termos previstos especialmente pelo art. 25° da Lei n083/95, de 31 de Agosto - Lei da Acção Popular.
9. Com efeito, a aqui recorrente é uma pessoa colectiva, com a natureza jurídica de associação, dotada de personalidade jurídica, constituída por escritura pública outorgada em 30.05.2001 no Cartório Notarial de Vila Verde.
10. Nas suas atribuições e nos seus objectivos estatutários está previsto expressamente "o fomento, gestão e exploração dos recursos cinegéticos das freguesias de Marrancos e Arcozelo, bem como piscatórias da bacia hidrográfica do rio Neiva" - Cfr. artigo primeiro da escritura de constituição -doe. n.º 1.
11. Enquanto concessionária da zona de caça associativa de Marrancos, a aqui recorrente é defensora dos interesses e bens jurídicos protegidos pela Lei de Bases Gerais da Caça, designadamente, os bens merecedores de tutela penal pelo art. 30°, n02 dessa lei - preservação da fauna e das espécies cinegéticas.
12. Posto isto, sendo a ora recorrente titular do direito de acção popular, assiste--lhe o direito de se constituir assistente, nos termos previstos nos artigos 68°, 69° e 70° do Código de Processo Penal (art. 25° da Lei da Acção Popular - Lei n083/95, de 31.08).
13. Nestes termos, deve o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, revogar-se o douto despacho recorrido, reconhecendo-se legitimidade à aqui recorrente para se constituir assistente e requerer a abertura de instrução.
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O Mº Pº respondeu ( cfr. fls. 54 e 55 ), concluindo que no seu entender o recurso não deverá merecer provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.
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Carlos V..., arguido nos autos, respondeu ( cfr. fls. 56 a 58 ), concluindo, igualmente, que no seu entender o recurso não deverá merecer provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.
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A fls. 36, destes autos, foi proferido despacho de sustentação do despacho recorrido.
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O Ex.mo Procurador Geral Adjunto ( Sr. Dr. R... S... ), nesta Relação emitiu parecer (cfr. fls. 63 a 78 ), no qual conclui que, pelas razões que ali expôs, o recurso deve merecer provimento.
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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, não veio a ser apresentada qualquer resposta.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.
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Cumpre apreciar e decidir:
- É de começar por salientar que são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1, do C. P. Penal.
- Sendo que, no essencial, a única questão colocada no requerimento de interposição do recurso é a de saber se a Associação Recreativa de Caça e Pesca do Vale do N... (legalmente constituída e entidade gestora de uma zona de caça- art.s 12 e 14 da Lei n.º 173/99, de 21-09 - por concessão de acordo com a Portaria n.º 454/2002, de 23-04), pode ser admitida a intervir nos autos como assistente - em processo cuja factualidade participada é susceptível de configurar a prática de um crime de caça p. e p. pelo art. 30º, n.º 2 da Lei n.º 173/99, de 21-09 (Lei de bases gerais da caça).
- É o seguinte o teor do despacho recorrido, que aqui se transcreve:
" Conclusão em 29 de Setembro de 2006.
Folhas 91:
Atendendo ao carácter público do crime em causa (artigo 30.° n.º 2 da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro), sendo o bem jurídico protegido a preservação da natureza e da diversidade biológica, bem como a exploração racional dos recursos cinegéticos, entendo que a Requerente não tem legitimidade para se constituir assistente, uma vez que não é a titular do bem jurídico protegido - artigo 68.° n.º 1 a) do Código de Processo Penal.
Notifique.
Vila Verde, 29 de Setembro de 2006. "
- Importa, para melhor compreensão da questão em apreço referir o seguinte:
- Os autos ( Proc. n.º 2/06.3LA.BRG - fase de Inquérito ) tiveram origem em participação subscrita pelo Presidente da Direcção da Associação Recreativa de Caça e Pesca do Vale do N..., datada de 24-10-2005, comunicando que, por falta de pagamento atempado das quotas, Carlos V..., sócio da referida associação estava impedido de praticar o exercício da caça na zona de caça associativa daquela;
- A factualidade participada é susceptível de configurar a prática de um crime de caça p. e p. pelo art. 30º, n.º 2 da Lei n.º 173/99, de 21-09 (Lei de bases gerais da caça) - o qual estipula o seguinte " 2 — Na mesma pena incorre quem exercer a caça em terrenos não cinegéticos, nos terrenos de caça condicionada sem consentimento de quem de direito, nas áreas de não caça e nas zonas de caça às quais não se tenha legalmente acesso.");
- Por entender que não existiam indícios do arguido ter praticado os factos em molde que os mesmos constituíssem o aludido crime o M. P., em 05-07-2006, decidiu arquivar o inquérito ( vide fls. 42, destes autos);
- A Associação Recreativa de Caça e Pesca do Vale do N..., em 05-09-2006, requereu a sua constituição como assistente e a abertura de instrução ( vide fls. 44 a 50, destes autos);
- Em 29-09-2006, veio a ser proferido o despacho recorrido, o qual indefere o aludido requerimento de constituição como assistente desta Associação.
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- Ora, desde já é de referir que se concorda inteiramente com o exposto no parecer do Digno P.G.A, que aqui se vai transcrever, sendo, pois, inútil, por desnecessário, acrescentar outros comentários ao que, e bem, ali se referiu, onde consta o seguinte:

"Para manifestar a nossa posição sobre o mérito do recurso, seja-nos permitido extractar o teor de parte de um douto e clarificador acórdão do STJ de 12/07/2005, tirado no processo 2535/05 e relatado pelo Conselheiro Simas Santos, decisão que dará o referencial doutrinal e jurisprudencial necessário para a apreciação exigida para a questão.
Diz-se em tal aresto:
“2.2.
Vejamos, então, seguindo a par e passo o também mencionado acórdão n.º 1/2003, começando pelos dispositivos legais convocados para a decisão da questão suscitada.
Prescreve a Constituição, a propósito da função jurisdicional, que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (art. 202.º, n.º 2); competindo ao Ministério Público, além do mais, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática (art. 219.º).
Dispõe agora igualmente a Lei Fundamental, quanto às garantias de processo criminal, que o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei (n.º 7 do art. 32.º); tendo entendido o Tribunal Constitucional que «a revisão constitucional de 1997 faz-se no contexto da vigência do artigo 68º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal e nada indica que tenha querido outra coisa senão dar dignidade constitucional ao que aí se estabelece» [Ac. n.º 76/02, de 26.2.02, proc. n.º 647/98].
Dispõe o Código de Processo Penal (CPP) (art. 48.º) que o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos art.ºs 49.º (procedimento dependente de queixa), 50.º (procedimento dependente de acusação particular) a 52.º (concurso de crimes).
Neste diploma instrumental definem-se, assim, a posição e atribuições do Ministério Público no processo, competindo-lhe:
Colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade.
Em especial:
(a) receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar­lhes;
(b) dirigir o inquérito;
(c) deduzir acusação e sustentá­la efectivamente na instrução e no julgamento;
(d) interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa;
(e) promover a execução das penas e das medidas de segurança.
E no já falado art. 68.º, dispõe o CPP, sobre o assistente:
«1 – Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes e a pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se alguma delas houver comparticipado no crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
2 – Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem lugar no prazo de oito dias a contar da declaração referida no artigo 246.º, n.º 4.
3 – Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando­o no estado em que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz:
a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento;
b) Nos casos dos artigos 284.º e 287.º, n.º 1, alínea b), no prazo estabelecido para a prática dos respectivos actos.
4 – O juiz, depois de dar ao Ministério Público e ao arguido a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento, decide por despacho que é logo notificado àqueles.
5 – Durante o inquérito, a constituição de assistente e os incidentes a ela respeitantes podem correr em separado, com junção dos elementos necessários à decisão.»
Completando no art. 69.º, com a disposição sobre a posição processual e as atribuições dos assistentes:
«1 – Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.
2 – Compete em especial aos assistentes:
a) – Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias;
b) – Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente da acusação particular, ainda que aquele a não deduza;
c) – Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério público o não tenha feito.»
Vê-se, assim, que, no nosso ordenamento, o exercício da acção penal foi confiado a um órgão de Estado – ao Ministério Público, pela forma especificada nos referidos dispositivos do Código de Processo Penal, de acordo com a concepção de que o jus puniendi e o correlativo jus procedendi são de interesse eminentemente público.
Mas não se esqueceu que «para uma autêntica protecção da vítima, mais decisivo ainda que o auxílio “social” em sentido amplo que lhe possa ser prestado é o conferir-lhe voz autónoma, logo ao nível do processo penal, permitindo-lhe uma acção conformadora do sentido da decisão final» [Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Processo Penal, CEJ pág. 10], pelo que manteve a figura do assistente.
Na verdade, a consideração de que o crime ofende principalmente interesses da comunidade «não pode fazer olvidar que em grande número de crimes quem primeiro sofre o mal do crime são os particulares e, por isso, a sua participação activa no processo, permite dar-lhes satisfação pela ofensa sofrida convencendo-os da efectivação da justiça no caso, e trazer ao processo a sua colaboração» [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, pág. 240].
Referia Luís Osório, que a atribuição da titularidade do exercício da acção penal ao Ministério Público era o resultado de uma evolução regressiva quanto à intervenção nessa área dos particulares de sorte que, primitivamente a eles pertencendo tal exercício, a evolução se deu no sentido de lhes restringir esses poderes, mas não de os extinguir, pois que não deixando de ter presente que «o indivíduo que foi ofendido com um crime não parece a pessoa mais própria para incarnar o interesse geral da repressão do crime», é certo, no entanto, que «os motivos que levaram o nosso legislador a manter o sistema existente e afastar-se dos outros geralmente referidos no estrangeiro, baseia-se na demonstração que a experiência nos patenteia do quanto é eficaz e benéfica a ampla colaboração dos particulares na acusação, pois que se bem que eles possam, muitas vezes, levar para o processo uma natural paixão que desvirtua a função da acusação, essa paixão pode e deve ser eficazmente contrabalançada pela imparcialidade tanto do Ministério Público como do Juiz» [Comentário ao Código de Processo Penal Português, I, pág. 192 e ss.].
A Novíssima Reforma Judiciária interveio no sentido de evitar a complexidade da instrução e do julgamento das causas com a múltipla intervenção de representantes forenses das partes acusadoras [Cfr. art. 21.º do CPP de 1929]. E a reforma do processo penal empreendida pelo Decreto n.º 35007 de 13 de Outubro de 1945 deixou de se referir à “parte acusadora”, que passou a designar como assistente, vincando assim o seu carácter de parte acessória [José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, II, pág. 156 e ss, critica, nos seguintes termos, essa qualificação no direito actual: «Não faz sentido hoje designar os assistentes como partes acessórias, fundamentalmente por duas ordens de razões (i) primeiro pela circunstância de o próprio conceito de parte não se coadunar com a estrutura do sistema processual penal (ii) segundo porque eles são tomados na sistemática do Código de Processo Penal como verdadeiros sujeitos principais e não como participantes. Na verdade os assistentes podem constituir, modificar ou fazer extinguir relações jurídico processuais, nomeadamente em função do seu direito de acusar - mormente em matéria de crimes particulares de requerer instrução ou de desistir da acusação, tudo conforme melhor veremos adiante a propósito do estatuto desta figura.»].
Reafirmou, então, o legislador que «o exercício da acção penal pertence ao Ministério Público como órgão do Estado. O direito de punir é um direito exclusivo do Estado e por isso os particulares podem, nos termos que a lei determina, colaborar no exercício da acção penal pelo Ministério Público, mas não exerce-la como direito próprio» (Preâmbulo do Decreto-Lei n.° 35007).
O que retomou na Lei de Autorização Legislativa do actual Código de Processo Penal (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro) indicando (art. 2°, n.º 1, 7), o sentido da mesma:
Fixação da competência exclusiva do Ministério Público para promover o processo penal, ressalvado o regime dos crimes semi-públicos e particulares, e da subordinação estrita da intervenção processual dos assistentes, salvo nos crimes particulares e semi-públicos, à actuação do Ministério Público, sem prejuízo do direito de recorrerem autonomamente das decisões que os afectem (art. 2.º, n.º 1, 11).
Na sequência, tem-se afirmado que a figura do assistente corresponde a uma especificidade do processo penal português, sem correspondência no direito comparado [Damião da Cunha, Algumas Reflexões sobre o Estatuto do Assistente e seu representante no Direito Processual Penal Português, RPCC, 5°, 1995, pág. 153, e A Participação dos particulares no exercício da acção penal, mesma RPCC, 8°, págs. 593 e segs. Como se sintetiza na resposta à motivação do Ministério Público no processo n.º 1052/01 da Relação do Porto «em termos de Direito Comparado, os sistemas predominantemente acusatórios tendem a autonomizar a acção privada - que se não confunde com a acção penal pública - facto “que dá à acção da vítima a natureza de uma acção penal privada (poursuite privée), e, de modo correlativo, a reparação do prejuízo causado à vítima releva tradicionalmente, e de modo ainda principal, do domínio civil, podendo, porém, ser determinada logo uma compensação pecuniário pelo juiz no final da instância penal, em que a vítima apenas figura enquanto simples testemunha, salvo se ela própria desencadear a acção penal (Procédures Pénales d’Europe, obra colectiva sob a direcção de Mireille Delmas-Marty, Paris, 1995, pág. 387). Em contrapartida, nos sistemas de inspiração originariamente inquisitória, o monopólio do exercício da acção penal adquirido pelo Ministério Público acarretou, por esse facto, a outorga do estatuto de parte no processo à vítima, que viu ser-lhe concedido a possibilidade, em alternativa à via civil, de fazer valer os seus interesses civis perante as jurisdições penais, através do meio de junção da acção privada à acção pública” (ibidem). Uma situação especial é constituída pelo Direito alemão, em que é reconhecida, de forma residual, a acção penal privada (Privatklage) à vítima, a qual é parificada ao Ministério Público, mas somente quanto a infracção de pouca importância e no caso de estas porem em causa interesses essencialmente privados (§ 374, 1 da Strafprozessordnung), sendo certo que o ofendido pode constituir-se, em alguns casos, parte acessória ou assistente (Nebenklage. § 395 do mesmo diploma)].
E a nossa Doutrina, sem deixar de advertir para o factor eventualmente perturbador que pode representar a intervenção do particular nesta sede, uma vez que dele não será de esperar a objectividade, a imparcialidade, o que impõe especiais cautelas na sua intervenção, não deixa de reconhecer os benefícios decorrentes dessa mesma intervenção [Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, pág. 137 e ss, Figueiredo Dias Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, o novo Código de Processo Penal, CEJ, 1995, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I , pág. 307 e ss. e Damião da Cunha, loc. cit.
Do estatuto de assistente destacam-se, pois, a sua qualificação como sujeito processual, mesmo quando se trate de processos por crimes públicos e os poderes processuais alargados que lhe são conferidos, nomeadamente o direito de recurso relativamente a todos os tipos de crimes (Com a ressalva de que, de acordo com o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/99 do STJ, de 30-10-97, publicado no DR de 10-09-99, «o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.»).
Foi definido como «o sujeito processual que intervém no processo como colaborador do Ministério Público na promoção da justa aplicação da lei ao caso e legitimado em virtude da sua qualidade de ofendido ou de especiais relações com o ofendido pelo crime ou da natureza deste (art. 69.º, n.º 1)» [Germano Marques da Silva, op. cit. ,págs. 242-3].
E, na verdade, a concepção legal de assistente acolhida pela lei traduz-se na qualificação dele como um sujeito processual, um mero colaborador do Ministério Público [n.º 1 do art. 69.º do CPP], podendo «co-determinar, dentro de certos limites e circunstâncias, a decisão final do processo» [Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Processual Penal, 11], subordinado à actuação do Ministério Público [José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, II, pág. 156 e ss. É na fase de inquérito e na fase eventual de instrução que mais se fará sentir, em regra, a intervenção processual do assistente na contribuição para a definição do objecto do processo. Da dedução da acusação em diante - e estando fixado definitivamente o objecto do processo - é que verdadeiramente a actuação do assistente é subordinada à do Ministério Público Cfr. Damião da Cunha, loc. cit., pág. 156]. O que não quer dizer que não possam ocorrer conflitos [Cfr. os art.ºs 277° e 287°, n.º 1, al. b), do CPP].
Mas, «o assistente está legitimado a agir no processo penal, enquanto detentor de um específico interesse na questão de direito sujeita a apreciação judicial. Sendo que esse interesse, embora particular, é um elemento de ponderação na concreta decisão do caso, pelo que a intervenção do assistente é também uma exigência de ordem pública (pois que a decisão justa é aquela que tem por suporte a consideração de todos os pontos juridicamente relevantes – incluindo o do assistente)» [Damião da Cunha, A participação dos particulares no exercício da acção penal, RPCC, 8, pág. 593].

2.3.
Como se vê dos textos transcritos, o Código de Processo Penal não providencia directamente um conceito de assistente, limitando-se a indicar quem se pode constituir como tal e a estruturar a sua posição processual e atribuições.
Podem, assim, constituir-se assistentes:
(a) as pessoas e entidades a quem leis especiais [Cfr., v.g., as Leis n.º 13/85 de 6 de Julho, Lei do Património Cultural; n.º 10/87 de 4 de Julho, Associação de Defesa do Ambiente; n.º 95/88 de 17 de Agosto, – Direito de Acção Popular das Mulheres; n.º 83/95 de 31 de Agosto – Acção Popular; n.º 20/96 de 6 de Julho – Associação Antiracistas; n.º 24/96 de 31 de Julho – Associação de Defesa do Consumidor] conferirem esse direito (corpo do n.º 1 do art. 68.º);
(b) qualquer pessoa em determinados crimes expressamente indicados [Crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção] [al. e) do n.º 1 do art. 68.º];
(c) as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento [O que remete para a disciplina constante dos art.ºs 113.º a 117.º do Código Penal sobre a queixa e a acusação particular e as diversas disposições da parte especial do mesmo diploma] [al. b) do n.º 1 do art. 68.º];
(d) os representantes [O cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes e a pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime] do ofendido falecido, não renunciante, incapaz ou menor de 16 anos [als. c) e d) do n.º 1 do art. 68.º]; e
(e) os ofendidos, maiores de 16 anos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação [O Código Penal no n.º 1 do art. 113.º ao dispor sobre os titulares do direito de queixa refere-se igualmente ao «ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação»] [al. a) do n.º 1 do art. 68.º].
Centremos, agora, a nossa atenção sobre esta última categoria determinante para a solução da questão de direito colocada no presente recurso: o ofendido, titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Constata-se, desde logo, que não se trata de todo e qualquer ofendido, quando é sabido que o Código de Processo Penal também utiliza esse vocábulo com um sentido mais vasto [fá-lo designadamente nos art.ºs 30.º, 39.º, 87.º, 88.º, 138.º, 203.º, 215.º, 243.º, 283.º, 383.º, 387.º], mas só do que for titular daqueles interesses.
Retomou-se assim a fórmula usual no nosso direito processual anterior [Art. 4.º, n.º 2 do DL n.º 35007, com referência ao art. 11.º do CPP de 1929], e que o Código Penal de 1982 consagrara no n.º 1 do art. 111.º [Sobre as diferenças das duas disposições, cfr. Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, pág. 207], e afastou-se o conceito lato de lesado ou ofendido de que o CPP também se socorre: «todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal»
No domínio daquela legislação ponderava-se: «o que deve entender-se pela expressão partes particularmente ofendidas? Penso que devem assim considerar-se os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal. Quando prevê e pune os crimes, o legislador quis defender certos interesses: o interesse da vida no homicídio, o da integridade corporal nas ofensas corporais, o da posse ou propriedade no furto, no dano ou na usurpação de coisa alheia. Praticada a infracção, ofenderam-se ou puseram-se em perigo estes interesses que especialmente se tiveram em vista na protecção penal, podendo também prejudicar-se secundariamente, acessoriamente, outros interesses. Os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou directamente ofendidas e que, por isso, se podem constituir acusadores» [Beleza dos Santos, Partes particularmente ofendidas em processo criminal, na Revista de Legislação e Jurisprudência, 57, pág. 2].
O vocábulo «especialmente» usado pela Lei, significa, pois, de modo especial, num sentido de «particular», como se referiu, e não «exclusivo».
Estas considerações mantêm validade, tanto mais que, como se viu, o legislador actual adoptou a mesma formulação, devendo entender-se, pois, que se adoptou o conceito estrito, imediato ou típico de ofendido.
Nesse sentido se tem pronunciado a Doutrina [Cfr., v.g., Figueiredo Dias, op. cit., pág. 512-3 e Direito Penal – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 75 e 670, Figueiredo Dias e Anabela Miranda Rodrigues, A Sociedade Portuguesa de Autores em Processo Penal, Temas de Direito de Autor, III, Damião da Cunha, ob. cit., José António Barreiros, ob. cit., pág. 167, Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, pág. 206, Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, Maia Gonçalves CPP Anotado e Simas Santos e Leal-Henriques, CPP Anotado] e a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, designadamente deste Supremo Tribunal de Justiça [Cfr., v.g., os Acs. do STJ de 23.11.88; BMJ 381-544, de 18.9.97, proc. n.º 527/97; de 20.1.98, proc. nº 1326/97; de 17.6.98, proc. n.º 217/98, de 29.3.00, Acs do STJ VIII, 1, pág. 234].
Importa, assim, reter que deriva da própria expressão da lei que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido, da al. a) do n.º 1 do art. 68.º do CPP, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos.
A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, designadamente em caso de concurso de infracções, em que se pode ser ofendido por um só dos crimes.
Deve atender-se ao Código Penal, à sistemática da sua Parte Especial [Sem esquecer, quanto ao valor da sistemática, a posição de Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, pág. 232: «O bem jurídico constitui a base reconhecida da estrutura e da interpretação dos tipos. No entanto, o conceito de bem jurídico não deve ser equiparado sem mais com a ratio legis, mas que deve atribuir-se um sentido real próprio, anterior à norma penal concludente em si mesmo, pois de outra maneira não poderia cumprir a sua função sistemática como indicador do conteúdo e da delimitação do preceito penal e como contraponto das causas de justificação nas colisões valorativas.»], e, em especial, interpretar o tipo incriminador em causa [«atendendo aos elementos específicos do tipo legal do crime e ao dado sistemático resultante do capítulo da parte especial em que o crime se integra», Ac. do STJ de 29.3.2000, Acs do STJ VIII, 2, 243.] em ordem a determinar caso a caso se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública ou não pública do crime.
A tarefa, que é fácil em muitos casos, como o homicídio, as ofensas contra a integridade física, os crimes contra a liberdade, oferece já dificuldades em relação aos crimes agrupados em determinados capítulos, como os crimes de perigo comum ou os crimes contra a realização da Justiça em que «o interesse protegido por ser claramente um interesse de ordem pública, no sentido mais forte do termo e, portanto aparentemente, não é possível encontrar a pessoa concreta, individual, que se possa dizer ofendida» (Na expressão de Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, pág. 206-7). Mas, só caso a caso, e perante o tipo incriminador, se poderá afirmar, em última análise, se é admissível a constituição de assistente.
E esta análise do tipo legal interessado deve ter presente que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente [Cfr. sobre a formulação, Figueiredo Dias e Anabela Miranda Rodrigues, A Sociedade Portuguesa de Autores em Processo Penal, Temas de Direito de Autor, III].
Mas não se pode esquecer que, como refere Jescheck [Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª Edição, pág. 6], «o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas a normas juridico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coactivo do Estado através da pena pública. (...) Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos. O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objecto da acção (ou do ataque) (v.g. a vida de uma pessoa ou a segurança de quem participa no tráfico), que o preceito penal deseja assegurar, do titular do bem jurídico protegido» (sublinhado agora). O que significa que poderá um só tipo legal proteger «especialmente», mais do que um bem jurídico, questão a dilucidar, perante cada tipo e cada acção dele violadora”.
2.2
Efectuado este percurso, importante e decisivo, considere-se o caso concreto. Para tanto há que evidenciar o tipo legal em causa e nele descobrir o bem jurídico que pretende proteger, defender.
Claro que se deverá, sempre, notar o que acima já deixamos bem enunciado: há que interpretar o tipo incriminador em causa atendendo aos elementos específicos do tipo legal em ordem a determinar, caso a caso, se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública ou não pública do crime.
Dispõe o art. 30 da Lei 173/99, sob a epígrafe “Crimes contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas”:
1 - A infracção ao disposto no n.° 1 do artigo 6.° do presente diploma é punida com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 100 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem exercer a caça em terrenos não cinegéticos, nos terrenos de caça condicionada sem consentimento de quem de direito, nas áreas de não caça e nas zonas de caça às quais não se tenha legalmente acesso.
Dúvidas não existem de que o bem jurídico protegido pela incriminação não assume um carácter pessoal. Inexiste uma pessoa concreta cujos interesses são defendidos pela mencionada norma punitiva.
In casu, resulta pacífico, que o bem jurídico que se pretende salvaguardar é, efectivamente, de natureza pública, sendo, em sentido amplo, o ambiente, o meio ambiente, numa das suas particulares vertentes: a preservação da fauna, a conservação da natureza, a diversidade biológica e a gestão sustentada dos recursos.
Isso mesmo resulta do preâmbulo dos Decretos que regulamentaram a mencionada Lei – DL 202/2004 de 18/08 e DL 201/2005 de 24/11. Logo nos seus preâmbulos se deixou expressamente exarado:
A Lei de Bases Gerais da Caça estabelece os princípios orientadores que devem nortear a actividade cinegética nas suas diferentes vertentes, com especial ênfase para a conservação do meio ambiente, criação e melhoria das condições que possibilitam o fomento das espécies cinegéticas e exploração racional da caça, na perspectiva da gestão sustentável dos recursos cinegéticos” – DL 202/2004; e
“A reformulação da política cinegética nacional, orientada para o ordenamento de todo o território cinegético, a adequação da legislação em vigor às novas realidades do País, bem como as preocupações de conservação do meio ambiente, constituíram os principais motivos da aprovação da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, Lei de Bases Gerais da Caça” – DL 201/2005.
Na verdade, a Lei de Bases do Ambiente – Lei 11/87 de 07/04 – prevê no seu artigo 6º os componentes ambientais naturais, aí se especificando a fauna, na alínea f), estipulando no art. 7º os genéricos meios de defesa daqueles, consignando que
“Em ordem a assegurar a defesa da qualidade apropriada dos componentes ambientais naturais referidos no número anterior, poderá o Estado, através do ministério da tutela competente, proibir ou condicionar o exercício de actividades e desenvolver acções necessárias à prossecução dos mesmos fins, nomeadamente a adopção de medidas de contenção e fiscalização que levem em conta, para além do mais os custos económicos, sociais e culturais da degradação do ambiente em termos de obrigatoriedade de análise prévia de custos-benefícios”.
E no art. 16 da mesma Lei, se prevê, especificadamente, os meios de defesa relativos à fauna, afirmando-se:
“1- Toda a fauna será protegida através de legislação especial que promova e salvaguarde a conservação a conservação e a exploração das espécies sobre as quais recaiam interesses científico, económico ou social garantido o seu potencial genético e os habitats indispensáveis à sua sobrevivência.
2- A fauna migratória será protegida através de legislação especial que promova e salvaguarde a conservação das espécies através do levantamento, da classificação e da protecção, em particular dos montados e das zonas húmidas, ribeirinhas e costeiras.
3- A protecção da fauna autóctone de uma forma mais ampla e a necessidade de proteger a saúde pública implicam a adopção de medidas de controle efectivo, severamente restritivas, quando não mesmo de proibição, a desenvolver pelos organismos competentes e autoridades sanitárias, nomeadamente no âmbito de:
a) Manutenção ou activação dos processos biológicos de auto-regeneração;
b) Recuperação dos habitats degradados essenciais para a fauna e criação de habitats de substituição, se necessário;
c) Comercialização da fauna silvestre, aquática ou terrestre;
d) Introdução de qualquer espécie animal selvagem, aquática ou terrestre, no País, com relevo para as áreas naturais;
e) Destruição de animais tidos por prejudiciais, sem qualquer excepção, através do recurso a métodos não autorizados e sempre sob controle das autoridades competentes;
f) Regulamentação e controle da importação de espécies exóticas;
g) Regulamentação e controle da utilização de substâncias que prejudiquem a fauna selvagem;
h) Organização de lista ou listas de espécies animais e das biocenoses em que se integram, quando raras ou ameaçadas de extinção.
4- Os recursos animais, cinegéticos e piscícolas das águas interiores e da orla costeira marinha serão objecto da legislação especial que regulamente a sua valorização, fomento e usufruição, sendo prestada especial atenção ao material genético que venha a ser utilizado no desenvolvimento da silvicultura e da aquicultura” (sublinhado nosso).
Já o artigo 46 daquela Lei de Bases estipula que
“Além dos crimes previstos e punidos no Código Penal serão ainda consideradas crimes as infracções que a legislação complementar vier a qualificar como tal de acordo com o disposto na presente lei”.
Ora, a incriminação acima referida – art. 30, nº2 da Lei 173/99, enxerta-se na sequência do acabado de referenciar na Lei de Bases do Ambiente. É norma que emerge do citado art. 46, como norma especial. Mas sem perder o seu carácter preciso de norma ambiental, de norma que visa defender e tutelar o meio ambiente Vd. Contra-alegações do MºPº na Apelação 1090/90, de 21/12/1990, do Tribunal da Relação de Coimbra, in www.diramb.gov.pt:
“Por seu turno, o direito ao ambiente tem de ser entendido em moldes bem diferentes.
Assumindo na nossa ordem jurídica a natureza de direito subjectivo público (cfr. L.F. Colaço Antunes, in "A Tutela dos Interesses Difusos em Direito Administrativo: para uma legitimação procedimental"- Almedina, Coimbra, a Pg. 64) é, na opinião da generalidade dos nossos constitucionalistas, um dos direitos de natureza análoga aos do Título II, a que se refere o artº. 17º da CRP, sendo-lhe, por conseguinte, aplicável o regime específico dos "direitos, liberdades e garantias (cfr. entre outros J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, revista e ampliada 1º Vol., Coimbra Editora, a Pg. 348).
É que, na realidade, não se trata apenas de um "direito positivo" a uma determinada actividade do Estado, mas também de um "direito negativo" seja de um direito à abstenção por parte do Estado ou de Terceiros de acções atentatórias do ambiente.
Na sua dimensão de "direito positivo", o direito ao ambiente implica, ainda segundo os referidos constitucionalistas, a obrigação de determinadas prestações para o Estado, cujo não cumprimento poderá configurar, entre outras coisas, situações de omissão inconstitucional - cfr. artigo 283º da CRP.
A necessidade dessas incumbências é ainda reforçada pelo facto da defesa do ambiente se incluir entre as tarefas fundamentais do Estado, nos termos do artigo 9º e), e do nosso diploma fundamental.
Convém também dizer que o direito ao ambiente é ainda considerado, quanto à sua natureza, um "interesse difuso" (sobre o conceito desta figura, que apresenta a especificidade de não possuir portador institucional, veja-se L.F. Colaço Antunes, que segue uma posição próxima da doutrina italiana - Gianni, Recchia, Zuccolini, etc -, in ob. citada, a Pg. 19 e ss)”.
. Em causa não está, portanto, uma norma que defenda interesses de natureza particular, não está em causa um preceito que confira protecção especial a um sujeito titular de um interesse particular.
Assim sendo, de pronto se deverá afastar a hipótese da recorrente se poder constituir assistente sob a alegação de que é “ofendida” no sentido vertido na alínea a) do nº1 do art. 68 do CPPenal.
Claro está que o crime em causa não é um dos que está previsto na alínea e) do dito nº1 do art. 68.
Nenhumas das situações previstas nas alíneas do nº1 do art. 68 do CPPenal conferem o direito a que a recorrente se arroga.
O bem jurídico tutelado pela norma penal não se confunde com o direito de propriedade que a recorrente invoca em seu favor. Este último é, efectivamente, de natureza particular. No caso apenas poderia relevar se se considerasse que a caça abatida pelo arguido é propriedade da recorrente e, consequentemente, se possa perfilar um delito contra a propriedade, um crime de dano e ou furto em concurso com o crime acima evidenciado. Só que tal não possui consistência tendo em conta o que se mostra prescrito no art. 64, nº1 do DL 202/2004 de 18/08, na redacção do DL 201/2005 de 24/11 que refere:
“O caçador adquire o direito à propriedade do animal por ocupação, sem prejuízo de regime diverso em zonas de caça e em montarias e batidas a espécies cinegéticas de caça maior em terrenos cinegéticos não ordenados, não podendo, porém, ser recusado ao caçador o direito ao troféu dos exemplares de caça maior, desde que cumpridos os termos regulamentares ou contratuais”.
Sendo a forma de aquisição da propriedade a ocupação – arts. 1316 e 1318 “Podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos artigos seguintes”do CCivil, então, afastada está a mencionada possibilidade que acima se abordou.
2.3
Mas será que a recorrente pode alcançar o seu desiderato por existência de lei especial que tal direito lhe confira, conforme previsão do nº1 do art. 68 citado – “Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito…”?
A nossa resposta leva em conta o que acima deixamos dito sobre o bem jurídico protegido pela incriminação, pelo artigo 30, nº2 da Lei 173/99 de 21/09. E considera, também, o que se mostra estipulado na Lei 83/95 de 31/09.
Diz-se nesta Lei, no seu art. 25, que
“Aos titulares do direito de acção popular é reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1.° que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respectivo processo, nos termos previstos nos artigos 68.°, 69.° e 70.° do Código de Processo Penal”.
De acordo com este normativo, o reconhecimento do direito a constituírem-se assistentes é conferido:
a) a quem for titular do direito de acção;
b) se estiver em causa a “violação dos interesses previstos no art.1º” e
c) que tais interesses “revistam natureza penal”.
No dito art. 1º da Lei 83/95, mormente no seu nº2, prevê-se que são interesses protegidos pela presente lei “a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público”.
Os titulares do direito de acção popular estão como tal previstos no art. 2º da mesma Lei onde se consigna:
“1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.
2 - São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.
Passando-se para o caso concreto, dúvida não há que está em causa um tipo legal de crime que visa a protecção do ambiente. A protecção da natureza e da diversidade biológica atingiu o patamar da dignidade penal através da tipificação do mencionado art. 30, nº2. Estão preenchidos, pois, os dois enunciados requisitos.
A associação recorrente não é uma típica associação defensora do ambiente, uma colectividade que tenha por escopo principal a defesa e salvaguarda daquele. Porém, apesar da falta dessa especificidade, certo é que, indiscutivelmente, é uma associação que de acordo com os seus estatutos “tem por objecto o fomento, gestão e exploração dos recursos cinegéticos …” – vd. fls. 14.
A sua existência acoberta-se com na já mencionada Lei de Bases gerais da Caça, a Lei 173/99 de 21 de Setembro. Nos termos do seu artigo 4, ao aludir-se às tarefas atribuídas ao Estado visando a prossecução da política cinegética nacional, expressamente se consigna a obrigação do mesmo em promover e incentivar a constituição de diversos tipos de associações “… das associações de caçadores, de agricultores, de defesa do ambiente, de produtores florestais, autarquias e outras entidades interessadas na conservação…”. para um adequado ordenamento cinegético, prevendo o art. 14 a possibilidade do Estado transferir para aquelas a gestão das diversas zonas de caça.
Ou seja, as finalidades de defesa dos recursos cinegéticos, desta singular componente ambiental natural, são protegidos ou pelo próprio Estado ou pelas formas de associativas previstas na Lei citada, regulamentando esta uma forma específica de associativismo – vd. art. 45, atribuindo às associações que visam gerir zonas de caça – como a associação recorrente – finalidades de denso conteúdo ambiental.

Resulta do exposto que a recorrente é, efectivamente, uma titular do direito de acção na forma prevista no art. 2º da Lei 83/95 citada.
Estão, por isso, preenchidos todos os requisitos para a recorrente poder intervir nos autos como assistente. Ou seja, lei especial à mesma é conferido tal direito.

2.4

Em conclusão: a recorrente porque é uma associação gestora de uma zona de caça através de legal concessão, porque prossegue finalidades ambientais na área da sua componente natural e porque em causa está um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas – art. 30, nº 2 da Lei 173/99, possui legitimidade para se constituir assistente em conformidade com o art. 25 da Lei 83/95 de 31/08, lei especial a que alude o art. 68, nº1 do CPPenal. Recurso a julgar procedente, só pela razão exposta.
(...)
__________________________________________________
3 " ... das associações de caçadores, de agricultores, de defesa do ambiente, de produtores florestais, autarquias e outras entidades interessadas na conservação .... ".
*
- Termos em que, face a tudo o que se deixou referido, deve o recurso ser julgado procedente e ser revogado o despacho impugnado determinando-se que ele seja substituído por outro que admita a intervenção nos autos, como assistente, da Associação Recreativa de Caça e Pesca do Vale do N....
E o sentido da decisão quanto a esta questão determina que se considere também procedente o recurso interposto na parte em que a recorrente se insurgiu contra o indeferimento do seu pedido de realização de instrução uma vez que a decisão nessa sede proferida em 1ª instância era uma mera decorrência da que não tinha reconhecido legitimidade à requerente para ser admitida como assistente.
Por isso, reconhecida essa qualidade à requerente e, por essa via, a sua legitimidade para formular aquele pedido, deve o tribunal de 1ª instância apreciar o pedido apresentado quanto aos demais aspectos que não foram ainda objecto de decisão judicial.
*
- DECISÃO:
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães, em revogar o despacho impugnado determinando que ele seja substituído por outro que admita a intervenção nos autos como assistente da Associação Recreativa de Caça e Pesca do Vale do N... e que, subsequentemente, aprecie o seu pedido de realização de instrução.
Sem custas
D. N. .
Texto processado por computador e revisto pela primeira signatária (art. 94º, n.º 2 do C. P. Penal - Proc. n.º 2384/06 – 2ª Secção - Relatora: Teresa Baltazar / Ajuntos: Anselmo Lopes e Fernando Monterroso).
Guimarães, 05 de Fevereiro de 2007