Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
367/17.1PBBRG.G1
Relator: ALDA CASIMIRO
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
VEÍCULO APREENDIDO
ELEMENTOS DO ILÍCITO
ARTº 348º
Nº 1
AL. B)
DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/02/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
A apreensão de automóvel que circula fora das condições legais tem uma função cautelar ou preventiva, procurando anular-se a potencialidade lesiva que tal daí decorre, pelo que se o fiel depositário reincidir na circulação na condução do automóvel apreendido sem que tenha regularizado a situação, comete o crime de desobediência do artº 348º, 1, b), do Código Penal, sendo que tal ordem se afigura perfeitamente legítima em face dos interesses em confronto.
Decisão Texto Integral:
Acordam, após audiência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

Relatório

No âmbito do processo comum singular nº 367/17.1PBBRG que corre termos no Juízo Local Criminal de Braga (J1), do Tribunal da Comarca de Braga, foi o arguido, J. S., divorciado, pintor de automóveis, nascido a ..-..-… na freguesia de …, Vila Nova de Famalicão, filho de … e de …, actualmente residente na Rua …, Vila Nova de Famalicão,
condenado, como autor material de:

- um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos arts. 69º/1 al. a) e 291º/1 al. b) do Cód. Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros) e na pena acessória de proibição da faculdade de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses.
- um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º/1 al. b) do Cód. Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).

Em cúmulo jurídico, ficou o arguido condenado na pena única de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), num total de €1 100,00 (mil e cem euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses.
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Sem se conformar com a decisão, o arguido interpôs recurso pedindo que “sejam reconhecidas as violações das provas quanto à valoração e credibilidade”, e que seja absolvido da pena aplicada, ou então que seja condenado em pena mais baixa, e suspensa na sua execução a pena acessória de proibição da faculdade de conduzir veículos motorizados.

Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:

1. Não poderia o douto Tribunal no Ponto 1 dar como provado que o arguido/recorrente não temeu pela sua integridade física quando foi abordado por uma patrulha da PSP não referindo se a patrulha estava devidamente identificada quer com sinalização luminosa ou outra, de forma que o arguido pudesse identificar.
2. O douto tribunal não poderia dar como provado no ponto 3 que o arguido/recorrente circulou numa velocidade sempre superior a 50 km/h legalmente previstos sem ter sido realizado qualquer teste de velocidade pelo facto de não existir radares fixos ou móveis no momento, pelo que não é possível aferir a velocidade.
3. Vem o douto Tribunal dar como provado os pontos 2, 4 e 5 mas com o devido respeito que nos merece erroneamente visto que nos 3 pontos descreve uma fuga a alta velocidade em que a meio de percurso o fugitivo resolve fazer marcha atrás cerca de 200 metros e nem assim é alcançado pelas autoridades, de salientar que era um veículo com mais de 20 anos com 1527 cc sem turbo e a gasóleo e que a sua velocidade máxima em novo era de 157 km/h (Velocidade Cruzeiro) que tendo em conta os anos do veículo com o desgaste estaria muito longe disso pelo que existem muitas incongruências nos depoimentos.
4. Os testemunhos não foram corroborados da mesma forma pelos dois agentes, além de o testemunho que o Douto Tribunal deu como credível é revestido de algumas factualidades um pouco caricatas e tendenciosas.
5. O recorrente confessou que se apercebeu que era seguido pelas autoridades já na auto estrada e que optou por não parar e caso tivesse efetuado a marcha atrás também o iria confessar mas e nada o prejudicaria ou até caso fosse verdade a confissão só o beneficiaria, agora não poderia confessar um crime que não cometeu.
6. Vem o douto Tribunal dar como provado no ponto 7, 8 e 9 relativamente ao ato de apreensão do veiculo tendo o arguido/recorrente sido constituído fiel depositário e mesmo tendo sido explicado os deveres é certo que os poucos recursos e parcos conhecimentos que o recorrente tem pelo que poderá ter agido sem a noção de estar a cometer um crime de desobediência, pelo que não deverá ser considerado que o arguido/recorrente cometeu crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº 1 aI. b) do CP.
7. Pelo exposto anteriormente, o douto Tribunal numa apreciação com uma lógica de raciocínio tendo como base as regras de experiência comum e tudo o exposto deveria ter dado como não provado os pontos 2, 3, 4, 5, 6, 9.
8. Outra questão essencial a dirimir consiste em saber se a ordem dirigida pela autoridade policial ao fiel depositário de um veículo automóvel apreendido ao abrigo do disposto no artigo 162º, nº 2, alínea f) do Código da Estrada, proibindo a circulação deste, sob a cominação de incorrer na prática de um crime de desobediência, é legítima.
9. Pelo exposto o tribunal a quo violou, ainda, o disposto no nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e o princípio jurídico do ne bis in idem.
10. Por todo o exposto e na nossa humilde opinião é que o arguido/recorrente deveria ser absolvido pelo crime de desobediência. Para sustentar a nossa posição encontramos com mesmo entendimento o Acórdão da Relação do Porto de 10 de Março de 2010, proferido no processo nº 961/05.3PTPRT.P1. e sendo fiel depositário de um veículo automóvel que lhe foi apreendido por não ter seguro de responsabilidade civil, o conduz na via pública, apesar de, no momento da apreensão, o GNR o ter notificado de que não podia circular com ele».
11. Também existe o facto que arguido confessou os factos dos autos pelo que a pena deve ser atenuada.
12. Em sede de escolha e determinação da pena refere-se ao patente problema que o arguido tem com a toxicodependência do qual se encontra a tratar e com resultados positivos que pode sofrer uma recaída depressiva e reincidir na toxicodependência em virtude de ficar sem poder conduzir não podendo descolar para o seu trabalho e tratar das suas tarefas diárias visto ainda ter 3 filhos menores e a seu cargo e morar numa zona afastada de transportes.
13. Porém e salvo o devido respeito, a pena aplicada pelo tribunal a quo é excessiva quanto aos dias de multa previstos, atendendo à situação económica do recorrente.
14. O recorrente dispõe do seu ordenado no valor de € 200,00, como forma de sustento.
15. O recorrente tem de fazer face, todos os meses, as despesas correntes pessoais e familiares, como alimentação, vestuário e saúde, e às despesas da sua habitação, nomeadamente água, luz e gás e renda em conjunto com a sua ex esposa com os seus 3 filhos.
16. Entende-se que a fixação dos dias de multa pelo mínimo, satisfaz de forma inequívoca, as exigências da prevenção geral e especial no caso concreto.
17. O Venerando Tribunal a quo quando fixou os dias da pena de multa não ponderou devidamente os critérios apontados pelo art. 71º do C. Penal, referentes à determinação da medida da pena.
18. Entende-se que no caso concreto, a situação social e económica do recorrente, imponha a previsão de uma pena de multa inferior à determinada, que, sem contrariar os fins da referida pena.
19. A pena aplicada pelo Tribunal a quo, é exagerada e desproporcional, quer no que respeita à escolha da pena aplicada quer quanto ao seu quantum, tendo em conta os factos em audiência de julgamento, bem como face às circunstâncias pessoais e outras que abonam ou deponham a favor do arguido e supra elencadas.
20. Na escolha e determinação da pena o Tribunal violou os princípios da culpa, as finalidades de prevenção e os critérios relevantes para a escolha e determinação da medida, previstos nos arts. 40º, 50º, 70º, 71º, nº 1 e 2, 72º, nº 2, alínea c) do Código Penal.
21. O arguido, porque pretende que a sua defesa, seja melhor exposta nesse douto Tribunal de recurso, até porque não é este o recurso que o satisfaça, pretende alegar na conferência, nos termos dos art.s 419º, e 423º, ambos do C.P.P..
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O Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e rebatendo cuidadosamente cada uma das questões invocadas, ainda que sem apresentar conclusões.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu o competente “visto” em face da requerida audiência.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a audiência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação

Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:

1. No dia 11 de Março de 2017, pelas 05h30m, o arguido J. S. encontrava-se parado, no interior do seu veículo de marca “Peugeot”, modelo “106”, com a matrícula GD, na Avenida ..., em Braga, quando foi abordado por uma patrulha da PSP que por ali passava.
2. Nesse momento, com o propósito de não ser identificado pela patrulha da PSP, o arguido ligou a ignição do veículo e arrancou, dirigindo-se à auto-estrada A3.
3. Durante todo o percurso, o arguido circulou a uma velocidade bastante superior aos 50 km/h legalmente previstos, não obedecendo às ordens da patrulha da PSP para abrandar e encostar o veículo automóvel.
4. Tendo entrado na auto-estrada, na direcção Braga/Vila Nova de Famalicão, o arguido J. S. parou subitamente o seu veículo automóvel, tendo, de seguida, engrenado a marcha-atrás e percorrido, deste modo, vários metros naquela via.
5. Durante o percurso que realizou, no interior da auto-estrada, em marcha-atrás, cruzou-se com dois outros veículos automóveis, colocando em perigo pelo menos a integridade física dos seus condutores, os quais tiveram que se desviar para não embaterem na viatura conduzida pelo arguido.
6. Ao circular na A3, sentido Braga-Vila Nova de Famalicão, do modo como fez, o arguido previu que poderia causar lesões na integridade física dos outros condutores, conformando-se com tal possibilidade.
7. O veículo de marca “Peugeot”, modelo “106”, com a matrícula GD encontrava-se apreendido desde 6 de Março de 2017 por falta de seguro.
8. No acto de apreensão, o arguido J. S. foi constituído fiel depositário, tendo-lhe sido explicados todos os deveres inerentes, nomeadamente que não podia circular com o veículo automóvel, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
9. O arguido sabia bem que a viatura em questão estava apreendida e impedida de circular na via pública pois fora advertido de que a sua utilização o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
10. Agiu sempre livre e lucidamente, com a perfeita consciência de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou que:

11. Por sentença proferida em 9/10/2015, transitada em julgado em 9/11/2015, o arguido J. S. foi condenado na pena de 5 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano pela prática, em 11/12/2011, de um crime de furto qualificado na forma tentada p. e p. pelos arts 22º, 23º, 203º nº1 e 204º nº2 al. e) do CP.
12. Por sentença proferida em 14/06/2016, transitada em julgado em 30/09/2016, foi condenado na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €6,00, num total de €900,00, pela prática, em 7/01/2015, de um crime de furto p. e p. pelo artº 203º nº1 do CP, pena essa já extinta.
13. Por sentença proferida em 6/04/2017, transitada em julgado em 5/07/2017, foi condenado na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num total de €400,00, pela prática, em 28/03/2017, de um crime de desobediência p. e p. pelo artº 348º nº1 al. b) do CP.
14. Por acórdão proferido em 7/06/2017, transitado em julgado em 7/07/2017, foi condenado na pena de 14 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 14 meses pela prática, em 18/03/2016, de um crime de furto qualificado na forma tentada p. e p. pelos arts 22º, 23º, 203º nº1 e 204º do CP.
15. O arguido J. S. encontra-se desempregado.
16. Faz uns biscates, auferindo mensalmente cerca de €200,00.
17. Vive com a ex-mulher, a qual é empregada fabril, auferindo mensalmente o salário mínimo.
18. Tem três filhos (de 18, 15 e 10 anos de idade), a cargo.
19. Vive em casa arrendada, pagando de renda €275,00 mensais.
20. O arguido J. S. está a tratar-se do seu problema de toxicodependência no CRI de Braga, tendo vindo a comparecer às consultas agendadas e a evidenciar uma evolução clínica positiva.

Na sentença recorrida consideraram-se não provados os seguintes factos:

Não se provou que o arguido J. S. tivesse arrancado com a sua viatura por ter receado pela sua integridade física.
Não se provou que não se tivesse apercebido que quem o abordou eram agentes da GNR.

E a sentença recorrida motivou como segue a decisão sobre a matéria de facto:

O arguido J. S. admitiu que circulou com o veículo de matrícula GD nas circunstâncias supra descritas, sabendo que não o podia fazer por estar apreendido por falta de seguro e que fora advertido que a sua utilização o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
Negou, porém, que tivesse circulado de marcha-atrás na auto-estrada, que tivesse colocado em perigo a integridade física ou a vida de outros condutores e que só se apercebeu que quem o seguia era a PSP já na A3.
Nesta parte, as suas declarações não se afiguraram credíveis, sendo notório, pelo seu ar comprometido, que nem ele próprio estava convencido do que dizia.

Assim, a convicção do tribunal quanto aos elementos constitutivos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário e ao modo como foi cometido baseou-se, sobretudo, nas declarações do agente da PSP J. L..

Num discurso pautado por grande serenidade, precisão e segurança, o referido agente explicou como abordaram o arguido, o qual apercebeu-se claramente estar perante uma patrulha da PSP e precisamente por isso arrancou em alta velocidade na direcção da A3.

Prosseguiu, descrevendo o percurso do arguido e as manobras por ele efectuadas, salientando, além do mais e no que ora importa, que, a determinada altura, na auto-estrada, ele imobilizou a viatura e começou a circular de marcha-atrás, o que fez durante pelo menos 200 metros, originando que os condutores de outros dois veículos tivessem que se desviar para não embaterem no veículo por ele conduzido. Desta forma, o arguido terá colocado em perigo pelo menos a integridade física daqueles outros dois condutores.

Em segundo lugar, baseou-se ainda o tribunal no depoimento isento da testemunha Maria, igualmente agente da PSP, a qual, pese embora não tivesse sido tão assertiva como o seu colega em virtude de já não se recordar de todos os pormenores, nomeadamente se dois condutores tiveram que se desviar do veículo conduzido pelo arguido para nele não embaterem, ainda assim adiantou que lembra-se perfeitamente que o arguido circulou de marcha-atrás na auto-estrada durante cerca de 200 metros.

Levou-se também em conta o auto de apreensão de veículo de fls 11, devidamente analisado em sede de audiência de julgamento.

A prova do elemento subjectivo, na ausência de confissão, é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos e das regras de experiência comum. Desta perspectiva, pode certamente dizer-se que, ao conduzir o veículo de matrícula GD da forma que o fez, o arguido J. S. agiu de modo livre e consciente, bem sabendo que não o podia fazer por o mesmo estar apreendido por falta de seguro, que estava a violar pelo menos a proibição de circular de marcha-atrás em auto-estradas e que, com a condução supra descrita, punha em perigo os demais utentes da via, tendo-se conformado com tal previsão. Sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, relevou o certificado junto aos autos a fls 77 e ss.

No que concerne à sua situação pessoal e económica, as suas próprias declarações e o depoimento da testemunha G. M., sua companheira. Foi ainda valorada a informação clínica de fls 82.
Quanto aos restantes factos não provados, cumpre dizer que nenhuma outra prova se produziu em audiência que permitisse dar como provados outros factos para além dos que, nessa qualidade, se demonstraram.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.

O recorrente alega:

- erro de apreciação das provas;
- errada integração jurídica quanto à conduta do arguido como autor de um crime de desobediência;
- pena excessiva;
- deveria ter sido suspensa a execução da pena acessória de proibição de conduzir.
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Do erro de apreciação das provas

O recorrente impugna a generalidade dos factos dados como provados – concretamente, os factos dados como provados nos pontos 1 a 9 – pretendendo que de acordo com a lógica e as regas da experiência, não podiam ter-se por provados ou, então, questionando a convicção do Tribunal recorrido.

Assim, o recorrente impugna, de forma ampla, toda a matéria de facto provada (com excepção das sua condições pessoais e antecedentes criminais registados), mas não indica que provas é que no seu entender impunham diversa decisão.

Ora querendo impugnar a matéria de facto, em obediência ao nº 3 do art. 412º do Cód. Proc. Penal, o recorrente deveria ter especificado, sob pena de rejeição do recurso (nos termos do nº 1 do art. 420º do mesmo Cód.), as provas que no seu entender impunham decisão diversa da recorrida, com referência aos respectivos suportes técnicos (nº 4 do citado art. 412º, com sublinhado nosso).

E o certo é que as menções feitas nas alíneas a), b) e c) dos nºs 3 – concretamente a alínea b) – e 4 do referido art. 412º estão intimamente relacionadas com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão fáctica.

Estabelece a alínea b) do art. 431º do Cód. Proc. Penal que havendo documentação da prova (como no caso em concreto) a decisão do Tribunal da primeira instância só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do art. 412º do mesmo Cód..

A este respeito concluiu o Tribunal Constitucional (Acórdão nº 140/2004, de 10.03.2004, in D.R., II Série, de 17.04.2004) que não é inconstitucional a norma do art. 412º, nº 3, alínea b) e nº 4 quando interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne a matéria de facto, da especificação nele exigida, tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.

No caso em análise, não tendo o recorrente, cumprido com o ónus imposto no art. 412º, nº 3, alínea b) e nº 4, este Tribunal ad quem não pode reexaminar a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, concretamente no que concerne à apreciação da prova, apenas podendo atender ao texto da decisão recorrida (onde, aliás, estão suficiente e logicamente indicados, de forma bastante, os elementos de prova onde foi baseada a convicção) para averiguar dos vícios alegados nos termos do art. 410º 2 do Código que se tem vindo a citar, ou outros que sejam do conhecimento oficioso.

E diga-se, podia defender-se que o recorrente, embora não o tenha feito expressamente, invocou o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal e que é, aliás, de conhecimento oficioso.

O erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da decisão, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.

Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 9.12.1998 (BMJ 482, p. 68) onde se conclui que “erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta” e o Acórdão do STJ de 12.11.1998 (BMJ 481, p. 325) onde se refere que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa”.

Questiona o recorrente que tenha sido dado como provado que foi abordado por uma patrulha da PSP não se referindo se a patrulha estava devidamente identificada, com sinalização luminosa ou outra, de forma que o arguido pudesse identificar. Todavia, a forma de identificação da patrulha não tinha que ser dado como provada, bastando que resultasse da prova e é certo que na motivação o Tribunal refere que em face do depoimento das testemunhas, não havia dúvida de que o arguido se apercebeu da qualidade da patrulha.

No que concerne à velocidade dada como provada no ponto 3., não tendo a mesma sido medida de forma legalmente prevista para a aferição da velocidade, o certo é que o que o Tribunal recorrido deu como provado foi que: “3. Durante todo o percurso, o arguido circulou a uma velocidade bastante superior aos 50 km/h legalmente previstos, não obedecendo às ordens da patrulha da PSP para abrandar e encostar o veículo automóvel”, e esta afirmação não tem que ser efectuada, necessariamente, por recurso a qualquer radar medidor da velocidade, já que os Agentes da autoridade que seguiam o recorrente no seu veículo, facilmente se aperceberiam – até por recurso ao seu próprio conta-quilómetros – se o recorrente seguia à velocidade de cerca de 50 Km/h ou superior.

Quanto aos factos dados como provados nos pontos 2, 4 e 5, diremos que, ao contrário do que alega o recorrente, não foi dada como provada uma fuga a alta velocidade em que a meio de percurso o fugitivo resolve fazer marcha atrás cerca de 200 metros, mas antes: circulação a velocidade bastante superior aos 50 km/h legalmente previstos e em marcha-atrás por vários metros na auto-estrada. Assim, mesmo que o veículo do recorrente tivesse mais de 20 anos, 1527 cc sem turbo e a gasóleo, teria sido perfeitamente possível este tipo de condução. E também não será de espantar, nem contrário às regras da lógica e da experiência, que o arguido tenha efectuado uma manobra de marcha-atrás por vários metros sem que tenha sido interceptado nessa altura pelos Agentes perseguidores, os quais podiam perfeitamente ter optado por não interceptar o veículo para não correr o risco de provocar um acidente. Por outro lado, não é a circunstância de os Agentes perseguidores estarem a assinalar a perseguição que torna menos perigosa a condução do arguido.

Finalmente, não será por ter poucos recursos e parcos conhecimentos que o arguido/recorrente ficaria impossibilitado de perceber os deveres de um fiel depositário, deveres que lhe foram explicados, pelo que nada obsta à conclusão de que agiu com noção de estar a cometer um crime de desobediência.
Pelo que, analisada a sentença de forma lógica e de acordo com as regras da experiência, não vemos que tenha existido qualquer erro notório na apreciação da prova.
Pelo que não podemos concluir pela existência de qualquer vício.

Do crime de desobediência

Alega o recorrente que foi errada a integração jurídica feita pelo Tribunal a quo quanto à sua conduta como autor de um crime de desobediência, defendendo que não é legítima a ordem dirigida pela autoridade policial ao fiel depositário de um veículo automóvel apreendido ao abrigo do disposto no art. 162º, nº 2, alínea f) do Cód. da Estrada, proibindo a circulação deste, sob a cominação de incorrer na prática de um crime de desobediência.
Em favor da sua tese cita o Acórdão da Relação do Porto de 10.03.2010, proferido no processo nº 961/05.3PTPRT.P1, segundo a qual: uma vez que o Cód. da Estrada configura como contra-ordenação a condução com o veículo apreendido, não pode o Agente de autoridade cominar a prática do crime de desobediência para a mesma conduta.

Rege o Cód. da Estrada, quanto à obrigação de seguro, que “os veículos a motor e seus reboques só podem transitar na via pública desde que seja efectuado, nos termos da legislação especial, seguro de responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização” (cfr. o nº 1 do art. 150º) e que “quem infringir o disposto no n.º 1 é sancionado com coima de (euro) 500 a (euro) 2500 se o veículo for um motociclo ou um automóvel ou de (euro) 250 a (euro) 1250 se for outro veículo a motor” (nº 2 do mesmo art. 150º).

Por seu turno, sobre a apreensão de veículos, rege o art. 162º do Cód. citado que “o veículo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando (nº 1): [...], f) não tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil nos termos da lei” e que, “nos casos previstos no número anterior, o veículo não pode manter-se apreendido por mais de 90 dias devido a negligência do titular do respectivo documento de identificação em promover a regularização da sua situação, sob pena de perda do mesmo a favor do Estado” (nº 2 seguinte).

Ora salvo o devido respeito por diversa opinião, parece claro que é punido como contra-ordenação a condução de veículo sem que tenha sido efectuado o necessário seguro de responsabilidade civil, mas nada obsta a que seja punido como crime o exercício da condução com veículo apreendido (ainda que a apreensão tenha resultado da falta de seguro) desde que tenha sido efectuada por Agente de autoridade a respectiva cominação da prática de crime de desobediência. Estamos perante condutas totalmente diferentes.

Independentemente de qual seja a infracção administrativa que levou à apreensão do veículo automóvel e respectivas sanções, o arguido foi condenado pela prática de um crime de desobediência por utilizar o veículo automóvel que lhe fora confiado na qualidade de depositário, apesar de ter sido advertido de que não podia utilizar o mencionado veículo, sob pena de incorrer, caso o fizesse, na prática de um crime de desobediência.

E o certo é que a utilização de veículo automóvel pelo depositário a quem foi confiado com a obrigação de não o fazer, não constitui infracção punível a título diverso do crime de desobediência previsto na al. b), do nº 1, do art. 348º, do Cód. Penal, pelo que não é de qualquer forma posta em causa a natureza subsidiária daquela incriminação.

A apreensão de automóvel que circula fora das condições legais tem uma função cautelar ou preventiva, procurando anular-se a potencialidade lesiva que daí decorre, pelo que se o fiel depositário reincidir na condução do automóvel apreendido sem que tenha regularizado a situação, cometerá o crime de desobediência desde que tenha havido a regular cominação com tal crime, sendo que tal ordem se afigura perfeitamente legítima em face dos interesses em confronto.

Acrescentaremos apenas que, no sentido de que a utilização de veículo automóvel apreendido, por falta de seguro, pelo depositário a quem foi confiado com a obrigação de não o fazer, constitui o crime de desobediência previsto na al. b), do nº 1, do art. 348º, do Cód. Penal, desde que tenha havido a regular cominação com tal crime, sendo esta perfeitamente legítima, vão os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.02.2011 (Proc. nº 242/07.8PQLSB.L1-5; da Relação do Porto de 13.01.2010 (Proc. 10452/08.5 TDPRT.P1); da Relação de Coimbra de 8.10.2014 (Proc. nº 296/13.8GCAGD.C1); e da Relação de Évora de 30.06.2015 (Proc. nº 170/14.0GBBNV.E1 (todos disponíveis em www.dgsi.pt) – veja-se ainda o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do S.T.J. nº 5/2009 de 18/02/09, publicado na 1ª Série do D.R. de 19/03/2009, nos termos do qual, “o depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348º nº1 b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22º nºs 1 e 2 do DL nº 54/75, de 12/02”.

Assim, e em face da matéria de facto provada, podemos concluir, tal como a sentença recorrida, que o arguido cometeu o crime de desobediência em que foi condenado, sem que tal entendimento configure qualquer violação do princípio ne bis in idem.

Mais diremos que este entendimento não configura qualquer violação do disposto no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, pois que não foi violado nem o princípio da presunção de inocência nem o princípio in dubio pro reo.

Da medida da pena

Alega o recorrente que lhe foram fixadas penas excessivas e desproporcionadas, quer na medida, quer na escolha, pois confessou os factos (o que lhe deveria ter determinado uma atenuação da pena) e não foi atendida a sua situação social e económica.

Quanto à escolha das penas, a alegação do recorrente deve-se certamente a lapso, já que a opção pela pena de multa feita pelo Tribunal recorrido é sem dúvida a mais benéfica e que mais favorece o arguido.

Quanto à medida das penas, disse o Tribunal recorrido:

O crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, al. b) CP, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
O crime de desobediência praticado pelo arguido é punido com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias.
(…) opta-se pela pena de pena de multa relativamente a ambos os crimes.
Nos termos do art.º 71º Cód. Penal, a determinação da medida concreta da pena deve ser feita «em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes». Para tanto, o tribunal atenderá «a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido”.

Contra o arguido, a particular intensidade do dolo (dolo directo), sendo particularmente intensa a sua vontade criminosa, conforme decorre claramente da matéria de facto dada como provada.
A seu favor, a inexistência de consequências danosas do seu comportamento de ordem patrimonial ou não patrimonial e a circunstância de estar socialmente inserido.
O arguido J. S. confessou os factos respeitantes ao crime de desobediência, mas não o fez relativamente ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
As exigências de prevenção geral são relevantes dada a nossa alta taxa de sinistralidade rodoviária e o alarme social que comportamentos semelhantes aos dos autos suscitam.
As exigências de prevenção especial também são significativas dados os antecedentes criminais do arguido.
Tudo ponderado, julga-se adequado aplicar ao arguido J. S. a pena de 180 dias de multa pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelos arts 291º, nº 1, alínea b) e 69º, nº 1, alínea a) do CP e de 90 dias de multa pela prática do crime de desobediência p. e p. pelo artº 348º nº1 al. b) do CP.
(…)
De acordo com o artº 77º, nº1 do CP, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena, são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

Dispõe ainda o nº2 do citado artigo que “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”
Por aplicação dos critérios acabados de enunciar, a moldura legal abstracta do cúmulo jurídico do presente caso é de multa de 180 dias a 270 dias.
Na medida da pena, haverá agora que considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Assim, tendo em atenção o número de crimes (dois), a sua natureza (crimes de diferente natureza, protegendo bens jurídicos diversos), os antecedentes criminais do arguido, a denotarem uma personalidade algo propensa à prática de factos ilícitos típicos, e a circunstância de ambos os crimes estarem relacionados com a mesma situação, isto é, estão interligados e foram cometidos na mesma altura, decide-se aplicar ao arguido a pena única de 220 dias de multa.

De acordo com os nºs 1 e 2 do art. 40º do Cód. Penal, “a aplicação de penas… visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Figueiredo Dias (Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 65 a 111), diz que o legislador de 1995 assumiu no art. 40º do Cód. Penal, os princípios ínsitos no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa: princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, defendendo que:

1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

Américo Taipa de Carvalho (Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, p. 322), interpreta o actual art. 40º do Cód. Penal concluindo que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Assim, está subjacente ao art. 40º uma concepção preventivo-ética da pena: preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.

A medida concreta da pena é determinada, nos termos definidos pelo art. 71º do Cód. Penal, “dentro dos limites definidos na lei… em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo-se “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) a intensidade do dolo ou da negligência; c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”

Considerando os critérios que supra deixámos definidos, diremos que a ilicitude (consubstanciada no desvalor da acção e do resultado), em ambos os casos, se mostra um pouco abaixo da média, considerando a falta de consequências danosas.
O dolo tem sempre intensidade elevada, pois é directo (na medida em que o recorrente representou e quis as consequências da conduta).
São acentuadas as necessidades de prevenção geral que se revelam neste tipo de crimes, pelo perigo que delas pode resultar e a falta de consciencialização da comunidade.
O recorrente regista antecedentes criminais pela prática de crimes de furto. Já no que concerne aos antecedentes criminais registados pela prática de um crime de desobediência, é de realçar que o mesmo foi cometido após a prática dos factos agora em análise, pelo que não deve ser agora considerado.
O recorrente confessou os factos atinentes à desobediência, mas não quanto a condução perigosa de veículo rodoviário. De qualquer forma, a confissão referente à desobediência não justifica qualquer atenuação da pena (pelo menos uma atenuação especial com base no arrependimento sincero do agente, que não fica demonstrada apenas com uma confissão) mas será obviamente considerada, como também o foi pelo Tribunal recorrido.

Está familiar e socialmente inserido – encontra-se desempregado, mas faz uns biscates, auferindo mensalmente cerca de €200,00; vive com a ex-mulher, a qual é empregada fabril, auferindo mensalmente o salário mínimo; tem três filhos (de 18, 15 e 10 anos de idade), a cargo; vive em casa arrendada, pagando de renda €275,00 mensais; tem um problema de toxicodependência de que se está a tratar evidenciando uma evolução clínica positiva.
Estes factos não foram discriminados em sede de medida da pena na sentença recorrida, mas isso não significa que não tenham sido considerados, já que o Tribunal a quo deixou expresso que o recorrente estava socialmente inserido.
E analisando as circunstâncias apuradas na sua globalidade, considerando a culpa do recorrente e as exigências reclamadas pela prevenção especial e pela prevenção geral positiva (ou de integração), isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada, cremos que as penas parcelares fixadas se afiguram algo excessivas, sendo mais adequado fixá-las próximo do primeiro terço da moldura abstracta.

Assim, aplica-se a pena de 120 dias de multa pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário e a pena de 45 dias de multa pela prática do crime de desobediência.
Operado o necessário cúmulo jurídico, nos termos do art. 77º do Cód. Penal, fica o arguido/recorrente condenado na pena única de 140 dias de multa, computados à taxa diária fixada na sentença recorrida.

Da suspensão da execução da pena acessória

Diz o recorrente que tem um problema de toxicodependência, do qual se encontra a tratar com resultados positivos, e que pode sofrer uma recaída depressiva e reincidir na toxicodependência em virtude de ficar sem poder conduzir e não poder deslocar-se para o seu trabalho e tratar das suas tarefas diárias (visto ainda ter 3 filhos menores a seu cargo e morar numa zona afastada de transportes). Requer, por isso, a suspensão da execução da pena acessória.

Acontece que a suspensão da execução da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados não está legalmente prevista.
Preceitua a alínea a) do nº 1 do art. 69º do Cód. que “é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º”. Esta norma não prevê qualquer possibilidade de suspensão desta proibição de conduzir.
No Cód. Penal a única suspensão de execução da pena que existe é a suspensão da execução da pena de prisão (cfr. o art. 50º do Cód. Penal).
Apenas o Cód. da Estrada prevê a possibilidade de suspensão da inibição de conduzir mas tal reduz-se apenas a contra-ordenações estradais e ainda assim, actualmente, só por referência às contra-ordenações graves e não às muito graves (cfr. o disposto no art. 141º do Cód. da Estrada), o que é demonstrativo que a suspensão só tem lugar naqueles casos em que o juízo-ético de censura e as razões de prevenção se mostram mais ténues - no sentido de não ser possível suspender a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados aplicada nos termos do art. 69º do Cód. Penal vejam-se, por todos, o Ac. da Relação de Coimbra de 7.01.2004, proc. 3717/03; e os Ac. da Relação do Porto de 8.03.2006, Proc. 0516505, e de 18.12.2013, Proc. 600/12.6PFPRT.P1, todos pesquisados em www.dgsi.pt; e ainda Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, 1ª ed., p. 28 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2ª ed., p. 264.

Por outro lado, não foi dado como provado na sentença que o arguido precise da carta de condução para trabalhar ou para realizar as suas tarefas diárias. Mas ainda que assim fosse, sempre a solução seria a mesma, sem que esta interpretação violasse o direito (constitucionalmente protegido) do arguido ao trabalho.

Como se pode ler no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 440/2002, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados não colide com quaisquer princípios constitucionais, designadamente o direito ao trabalho, uma vez que “a proibição de conduzir não fica postergado o direito ao trabalho, mas tão só constrangido” e “a contrição do direito ao trabalho que possa resultar para o arguido da aplicação da medida sancionatória em causa apresenta-se, de um ponto de vista constitucional, como plenamente justificada, como um meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos”, como a segurança e a vida das pessoas, “sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores uma tal conduta comporta, pondo em causa a vida de todos os que circulam nas estradas”. E sintetiza o mesmo Acórdão “Daí que a alegada violação do direito a trabalhar sem restrições, tal como é sustentado pelo recorrente, não possa, sem mais, ser valorada em termos absolutos, pois que a limitação que a este direito é imposta com a aplicação da sanção inibitória o é na medida em que o sacrifício parcial que daí resulta não é arbitrário, gratuito ou carente de motivação, mas sim justificado para salvaguarda de outros bens ou interesses constitucionalmente protegidos pela lei fundamental” – neste sentido vejam-se ainda os Acórdãos do TRC de 7.04.2010 (Proc. nº 139/09.7) e do TRP de 5.05.2010 (Proc. nº 339/07.4PAESP.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Pelo que esta pretensão do recorrente não pode proceder.
***

Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, modificando a medida das penas de multa aplicadas ao arguido/recorrente que passarão a ser as seguintes:

- pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário fica o arguido/recorrente condenado na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa; e pela prática do crime de desobediência fica o arguido/recorrente condenado na pena de 45 (quarenta e cinco) dias de multa.
- em cúmulo jurídico, fica o arguido/recorrente condenado na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa.
No mais mantém a sentença recorrida.
Sem custas.

Guimarães, 2.07.2018
(processado e revisto pela relatora)


(Alda Tomé Casimiro)
(Fernando Pina)
(Fernando Monterroso), Presidente