Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
734/22.9T8GMR.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO DE PLANO DE RECUPERAÇÃO
INEFICÁCIA DO PLANO QUANTO AOS CRÉDITOS DA SEGURANÇA SOCIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Constitui violação não negligenciável do princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais, um plano de pagamentos em prestações de crédito da Segurança Social, com a oposição desta, e em que não se vislumbram excecionais e relevantes interesses públicos justificativos da derrogação de tal princípio.
2. A consequência de tal violação, caso o plano de pagamentos haja sido homologado com o voto favorável da maioria dos credores, é a ineficácia do plano de pagamentos em relação aos créditos da Segurança Social.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

Em 19 de dezembro de 2022 foi prolatada a seguinte sentença:

Peticionaram os credores a não homologação do plano apresentado pela Devedora nos termos que melhor constam dos requerimentos que aduziram aos autos.
A questão das garantias pessoais/avales e fianças que constava da pág. 12 de 15 da 1ª versão do Plano foi excluída da última versão do Plano sujeito à votação dos credores, pelo que as questões suscitadas pelo Banco 1... e Banco 2... a tal propósito perderam utilidade.
O facto do plano não ter acolhido algumas alterações sugeridas pelos Credores, o certo é que o mesmo foi votado por um universo de 94,094% dos credores e foi aprovado por uma maioria de 58,679%, sendo que a decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações.
De acordo com o artigo 10º da Lei nº 9/2022, de 11/01, a nova redação dada ao art. 17º F apenas se aplica aos processos especiais de revitalização instaurados após a sua entrada em vigor.
Ora, não estando em causa a violação de princípios estruturantes, designadamente da igualdade entre os credores ou violação não negligenciável de regras procedimentais ou normas aplicáveis ao seu conteúdo, seja porque se nos afigura que o conteúdo do plano não viola disposições legais de carácter imperativo ou regras legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respetivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere, afigura-se-nos não se mostrar cabalmente justificado o pedido de não homologação.
Não cabe ao Juiz/tribunal avaliar a credibilidade e viabilidade do plano apresentado, excetuando os casos em que ele seja manifestamente inviável ou inexequível e que, como tal, se evidencie como manifestamente dilatório.
Não sendo este o caso dos autos, afigura-se-nos nada obstar à homologação.
Os credores, tal como a Banco 3..., que invocou que a sua situação é previsivelmente menos favorável do que a que resultaria na ausência de qualquer plano, não alega quaisquer factos que sustentem tal conclusão, apenas manifesta oposição/não concordância com spread, carência inicial (pois que o não acionamento dos terceiros garantes já foi excluído da nova versão do Plano), pelo que também por tal fundamento não se descortina que o plano não deva ser homologado.
O invocado pela Segurança Social é passível de ser ultrapassado por via da declaração de ineficácia do Plano relativamente a tais créditos, porquanto a tal propósito a Jurisprudência tem vindo a entender que a homologação de um plano de recuperação aprovado pela assembleia de credores, sem respeitar o regime previsto no artigo 30º, nºs 2 e 3 da LGT, é ineficaz relativamente a este credor, não produzindo quanto a ele quaisquer efeitos (Veja-se, a título de exemplo o Ac. da Relação de Lisboa de 08/05/2014, Acs. do STJ de 17/04/2018 e 10/05/2018 e Ac. da Relação de Coimbra de 13/09/2016).
Veja-se ainda a este propósito o Ac. do STJ de 09/06/2021, consultável em www.dgi.pt, segundo o qual, no seu sumário pode ler-se: “I- A imposição legal de proibição da modificação restritiva do conteúdo do crédito tributário não implica necessariamente a solução drástica de recusa de homologação judicial do plano de recuperação em processo especial de revitalização, nos termos do artigo 215º e 17º-F, nº 7, do CIRE, que o tornaria totalmente inaproveitável, com frustração dos interesses particulares envolvidos e acentuado prejuízo para a organização económica e empresarial que o sistema jurídico tende a salvaguardar até onde lhe for juridicamente possível. II- A solução mais equilibrada e curial, que permitirá harmonizar os interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, respeitando ainda os compromissos internacionalmente assumidos pelo Estado Português, com a intransigente defesa dos créditos tributários em geral, consiste em fixar a ineficácia relativa à homologação do plano de revitalização no que concerne aos créditos reclamados e aprovados de que é titular o Instituto da Segurança Social. III- O plano de revitalização produzirá assim os seus efeitos, aproveitando à recuperanda e seus credores na medida do acordado, com exceção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, enquanto entidade titular de créditos de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo estes intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo.”.
Assim, em face da Jurisprudência supracitada, afigura-se-nos que também por aqui nada obsta à decisão de homologação do Plano, declarando-se a respetiva ineficácia quanto aos créditos da Segurança Social.
Do Plano resulta que quanto aos contratos de locação financeira mantêm-se os termos e condições em vigor quer quanto ao número de rendas e prestações quer quanto às condições financeiras contratualizadas obrigando-se a devedora ao pagamento das rendas vencidas à data da homologação regularizando as rendas ou prestações vencidas e não pagas até ao final do mês após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de recuperação.
Não se descortina que tal constitua alteração unilateral dos contratos, cabendo no âmbito da liberdade contratual dos contraentes a definição e aceitação da forma e meios de pagamento das prestações vencidas e quanto às restantes valerá o já contratualmente fixado, pelo que também não se nos afigura existir fundamento para a não homologação.
Em face do exposto, segue decisão.
No âmbito do presente Processo Especial de Revitalização, a Sra. Administradora Judicial Provisória nomeada no âmbito dos mesmos, aduziu aos autos o resultado final da votação, após todos os esclarecimentos solicitados e já após a decisão das impugnações, que aprova o plano de recuperação por maioria de 58,679% dos créditos relacionados.
Dos referidos elementos resulta igualmente que foi o Plano de Recuperação objeto de votação correspondente a 94,094 % dos créditos reclamados, tendo resultado a respetiva aprovação por 58,679% dos votos emitidos, sendo que destes (votos emitidos) nenhum corresponde a créditos subordinados, assim como foram ignoradas as abstenções.
Nesta conformidade, tendo a proposta do Plano de Recuperação merecido a aprovação, nada obsta à homologação da Deliberação impendente sobre tal Plano.
Assim, nos termos do disposto no art. 17ºF do CIRE e com os efeitos previstos no nº 10 (na redação anterior e aqui aplicável) e art. 217º também do CIRE, homologo por sentença o sobredito Plano de Recuperação, declarando-se o mesmo ineficaz quanto aos créditos tributários /créditos fiscais (ou como tal equiparados) oportunamente reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P..
Custas pela Requerente.
Notifique, Registe e Publicite, nos termos constantes do disposto no art. 17ºF nº 10 e 37º e 38º, todos do CIRE.

Inconformada com a decisão, a insolvente apelou, formulando as seguintes conclusões:

1ª - A recorrente não se conforma com o segmento da douta sentença proferida nos autos que homologou o Plano de Recuperação, na parte em que o declarou ineficaz quanto aos créditos tributários /créditos fiscais (ou como tal equiparados) reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P..
2º - Com efeito, no plano de recuperação apresentado em 11-07-22 (referência ...85), no que respeita aos créditos do Instituto da Segurança Social, a recorrente obriga-se, além do mais, a pagar a dívida à Segurança Social “em 150 (cento e cinquenta) prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte ao da sentença que homologue o plano de revitalização”, mais se comprometendo a pagar-lhe “os juros vencidos e vincendos calculados de acordo com a taxa de juros de mora aplicáveis às dividas ao Estado e outras entidades públicas”;
3º - Não obstante o credor Instituto da Segurança Social tenha votado contra o Plano, o mesmo foi votado por um universo de 94,094% dos credores e foi aprovado por uma maioria de 58,679%;
4ª - A recorrente entende que, salvo o devido respeito por diferente opinião, o Plano de Recuperação devia ser também declarado eficaz quanto aos créditos tributários /créditos fiscais (ou como tal equiparados) reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P..
5ª – De facto, a Lei 55-A/2010, que alterou a LGT, no seu artigo 123º, aditou o atual nº 3 ao artigo 30º, com a seguinte redação: “o disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”. E o artigo 125º da Lei 55-A/2010 prevê expressamente a aplicabilidade do nº 3 do artigo 30º aos processos de insolvência.
6ª - Com a nova redação do artº 30º pôs-se fim à querela jurisprudencial referida na sentença recorrida, prevalecendo o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários sobre o princípio da igualdade dos credores no referido processo;
7ª – É certo que no seguimento desta alteração legislativa, tem prevalecido o entendimento de que a homologação de um plano de recuperação que não respeite o regime previsto nos artigos 1º e 2º do DL nº 411/91, de 17.10 e no artigo 30º, nºs 2 e 3 da LGT, por contemplar a redução dos juros e a concessão de pagamento a prestações do crédito do Instituto da Segurança Social sem a sua autorização, é ineficaz relativamente a este credor, contra ele não produzindo quaisquer efeitos.
8º - Por isso, entende a recorrente que é hoje ponto assente não ser possível, contra a vontade do Estado (ou da Segurança Social), reduzir ou extinguir créditos tributários ou da Segurança Social, ou conceder moratória mediante o pagamento em prestações que se prolonguem por período superior ao previsto no Código Contributivo.
9º - Ora, como resulta do Plano de Recuperação da recorrente, esta obriga-se a pagar os créditos da Segurança Social em prestações mensais e sucessivas por período não superior ao legalmente previsto.
10º - De facto, no Plano da recorrente não se contempla qualquer redução do crédito da Segurança Social, nem do capital nem dos juros vencidos e vincendos, mas apenas o seu pagamento faseado, sendo que o número de prestações previstas no Plano da ora recorrente não ultrapassa o permitido pelo artº 81º do Decreto-Regulamentar n.º 1-A/2011 no âmbito da regularização de dívidas à Segurança Social (ou seja, as 150 prestações mensais e sucessivas).
11º - O Plano da recorrente cumpre pois objetivamente o disposto no artº 191º do CRCSPSS (Código Contributivo), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 20/2012, de 14/5, pois no que concerne ao diferimento das prestações das dívidas à segurança social, o Código Contributivo (Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social) prevê um tratamento bem mais favorável, em termos de condicionantes, ao contribuinte/devedor do que o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) – cfr. artºs 189º, 190º e 203º, do Código Contributivo e artºs 196º, 197º 198º e 199º, do CPPT.
12º - Além disso, as condições de autorização do pagamento em prestações das dívidas da segurança social pressupõem que ‘sejam indispensáveis para a viabilidade económica deste e desde que o contribuinte se encontre numa das seguintes situações: a) Processo de insolvência, de recuperação ou de revitalização; (redação dada pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio)’ – artº 190º, nº2, al. a) do Cód. Contributivo.
13º - Logo, conforme o próprio Código Contributivo prevê, uma das situações em que se justifica um diferimento das prestações devidas à segurança social é precisamente o da pendência de processo de revitalização sobre o devedor e estando em causa a necessidade de viabilidade económica do mesmo, como sucede in casu.
14º - Por seu turno, o artº 215º do CIRE, ex vi seu artº 17º, nº5, estatui que a homologação do plano de recuperação deve ser recusada oficiosamente pelo juiz no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo.
15º - Entende-se que “são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza”. Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, pág. 713.
16º - No caso sub judice não está em causa nem a extinção nem a redução do crédito da segurança social, visto que se mantém o seu pagamento na totalidade.
17º - Tão pouco a dívida da segurança social é objeto de tratamento desigual, menos favorável que os outros credores.
18º - Pelo exposto, entende a recorrente que o Plano de Recuperação não viola qualquer norma imperativa (ou de outra natureza) do regime de regularização de dívidas à Segurança Social e, como tal, o mesmo deve ser declarado também eficaz em relação ao ISS, IP.
19º - Ao assim não decidir, a douta sentença recorrida fez uma interpretação desconforme o disposto nas normas supracitadas.
Nestes termos, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida, sendo decretada a eficácia do Plano de Recuperação também quanto aos créditos tributários /créditos fiscais (ou como tal equiparados) reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P. Assim se fazendo serena, sã e objetiva JUSTIÇA.
Foram apresentadas contra-alegações pelo Instituto da Segurança Social, IP, pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar se o diferimento de pagamento de créditos da Segurança Social, consubstanciado num plano prestacional, se traduz numa violação não negligenciável do princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais, impeditiva da extensão de tal plano aos citados créditos.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os que constam do relatório deste acórdão.
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B. Fundamentos de direito. 

A recorrente insurgiu-se contra o segmento da sentença que declarou o plano ineficaz quanto aos créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social.
Alega a recorrente que no plano de recuperação não se contempla qualquer redução do crédito da Segurança Social, nem do capital nem dos juros vencidos e vincendos, mas apenas o seu pagamento faseado, sendo que o número de prestações previstas no plano da recorrente não ultrapassa o permitido pelo artº 81º do Decreto-Regulamentar nº 1-A/2011 no âmbito da regularização de dívidas à Segurança Social, ou seja, as 150 prestações mensais e sucessivas. Defende que o plano cumpre objetivamente o disposto no artº 191º do CRCSPSS, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 20/2012, de 14 de maio.
Importa começar por referir, desde já, que concordamos com a decisão recorrida, aliás na sequência de jurisprudência praticamente uniforme, mesmo neste tribunal da Relação (vg. processos nº 6877/21.9T8GMR.G1 de 16/02/2023, relatado pela aqui primeira adjunta e em que interveio o aqui 2º adjunto ali como 1º adjunto, e o processo 2452/20.3T8GMR-B.G1, de 20/01/2022, em que o aqui relator e a 1ª adjunta intervieram, respetivamente, como 1º e 2ºs adjuntos, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
A questão que então importa responder é a de saber se a circunstância de o pagamento prestacional à Segurança Social, com a oposição desta, deve ser entendido ou não como violação não negligenciável do princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais.
Desde logo, nos termos supra expostos, e como impõe o artº 215º, do CIRE, o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.
Ora, como refere Luís M. Martins[1], por normas procedimentais entendem-se os atos e procedimentos necessários à tramitação do processo (incluindo o seu conteúdo e forma) até à aprovação pela assembleia. Por violação não negligenciável no que respeita ao conteúdo do plano, entende-se tal vício, cujo conceito a lei não concretiza, como a violação de todas as normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, não existindo violação quando se esteja no âmbito da derrogação de normas legais pelo plano de insolvência (cfr. artºs 1º e 192º).
Relativamente à homologação do plano, e citando um acórdão da Relação de Évora, de 7/06/2018, “No controlo da legalidade do acordo de pagamento aprovado pelos credores deve o juiz recusar, mesmo ex officio, a sua homologação quando, nos termos do artº 215º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ocorrer violação não negligenciável de regras procedimentais, ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza. Por regras procedimentais deve entender-se aquelas que visam regular a forma como deverá desenrolar-se o processo, ou seja, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos procedimentais que nele devem ser dados até que os credores decidam sobre as propostas que lhes foram apresentadas, incluindo assim as regras que regulam a aprovação e votação do plano e ainda as relativas ao modo como o plano deve ser elaborado e apresentado.”.
E aqui chegados, importa apurar se a circunstância de o plano prever um plano prestacional, em que não há redução da dívida, constitui violação do citado principio da indisponibilidade dos créditos.
No já citado AcRG de 16/02/2023, processo nº 6877/21.9T8GMR.G1, em que intervieram os senhores juízes aqui adjuntos, decidiu-se nos seguintes termos:
Porém, de forma a tentar conciliar, por um lado, os interesses sociais e económicos visados com o processo de revitalização das empresas e, por outro, a tutela integral dos créditos tributários, a posição que vem sendo maioritariamente sufragada pelos tribunais superiores, designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, quando o plano obtém dos demais credores a maioria necessária de votos favoráveis à sua aprovação, passa não pela recusa de homologação mas por declarar a sua ineficácia relativamente aos créditos reclamados pelo Estado ou pela Segurança Social quando estes não autorizam a afetação dos seus créditos.
Assim, apreciando uma situação em que tal como no presente caso o plano se revitalização fixou o pagamento prestacional dos créditos do Instituto da Segurança Social, com o voto desfavorável do mesmo, o STJ no acórdão de 9.6.2021, proc. 1412/20.9T8VNF.G1.S1, (relator Luís Espírito Santo) decidiu :
“ Na situação sub judice, o plano aprovado pela maioria dos credores previa que a dívida à Segurança Social será regularizada através de Plano Prestacional a autorizar no âmbito do Processo de Execução Fiscal, no máximo de 150 (cento e cinquenta) prestações mensais e sucessivas, sendo o respetivo requerimento formalizado pela empresa no mês de aprovação do Plano, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte. - Garantias: A analisar no âmbito da execução fiscal.
Tal cláusula consubstancia objetivamente uma (inegável) restrição ao conteúdo desse mesmo crédito, ofensiva das mencionadas disposições legais e que motivou aliás o voto desfavorável do Centro Distrital do Instituto da Segurança Social de ..., ora recorrido.
Assim sendo, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães decidiu acertadamente quando entendeu que o Plano de Revitalização não podia produzir efeitos que se traduzissem na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social e contra a sua vontade, constituindo violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos e para os efeitos do artigo 215º do CIRE, aplicável ao processo especial de revitalização nos termos do artigo 17º-F, nº 7, do mesmo diploma legal. A revogação nessa parte – e segundo tal perspetiva - da sentença de 1ª instância impunha-se e afigura-se-nos não suscitar, em termos sérios e razoáveis, controvérsia ou dúvida fundada. (sobre esta matéria, vide Alexandre Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, Almedina 2015, a páginas 412 a 413, onde se enfatiza que “O aditamento do nº 3 referido (ao artigo 30º da Lei Geral Tributária) visava, designadamente, enfrentar as dúvidas que até aí surgiam acerca da relação entre o CIRE, a LGT, o CPPT, e o regime da regularização das dívidas à segurança social. Com efeito, a jurisprudência mostrava-se dividida quanto à possibilidade de o plano de insolvência, porque previsto em lei especial, afastar o regime contido em normas imperativas da legislação referida. O artigo 30º, nº 3, da LGT não permite agora dizer que as soluções previstas no plano prevaleceriam sobre a legislação fiscal”).


Todavia, da imposição legal de proibição de modificação restritiva do conteúdo do crédito tributário não resulta necessariamente a solução drástica de recusa, pura e simples, de homologação do plano de recuperação da revitalizada que o tornaria totalmente inaproveitável, com frustração dos interesses particulares envolvidos e acentuado prejuízo para a organização económica e empresarial que o sistema jurídico tende a salvaguardar até onde lhe for juridicamente possível.


Neste sentido, a solução mais equilibrada, adequada e curial que permitirá, simultaneamente, harmonizar os relevantes interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, reforçados em função dos formais compromissos assumidos internacionalmente pelo Estado Português, com a imperativa e intransigente defesa dos créditos tributários em geral, consiste em fixar ineficácia relativa à homologação da aprovação do plano de revitalização no que concerne aos créditos de natureza tributária reclamados e de que é titular o Instituto da Segurança Social. Ou seja, o plano de revitalização produzirá todos os seus efeitos, viabilizando-se assim o prosseguimento da atividade económica e comercial da empresa e satisfazendo os interesses dos credores na exata medida acordada e por eles aceite, com exceção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, enquanto entidade titular de créditos de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo, portanto, intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo (…).

Neste preciso sentido, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2018 (relator Pinto de Almeida), proferido no processo nº 5781/16.7T8VIS-D.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2014 (relator Fonseca Ramos), Processo: 1412/20.9T8VNF.G1.S1, proferido no processo nº 1786/12.5TBTNV.C2.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Abril de 2014 (relator Fernandes do Vale), proferido no processo nº 185/13.6TBCHV-A.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2014 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 217/11.2TBBGC.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 2015 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 664/10.7TYVNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
           
Trata-se, de resto, da opção jurídica perfilhada genericamente pela 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, à qual se encontra deferida a competência neste tipo de ações (artº 128º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).”
Aqui chegados, não vemos motivo, no caso concreto, para dissentir da quase unânime jurisprudência sobre o assunto. Em tese, a simples circunstância de se receber expectável e faseadamente um determinado montante, ao invés de o receber de uma só vez, é objetivamente uma situação menos favorável para o credor, mais a mais quando o mesmo nem sequer deu o assentimento a tal solução. Acresce que nem sequer se mostra alegado um qualquer comportamento contraditório do Estado através dos seus diferentes organismos, que nos levasse a concluir que a oposição da Segurança Social era meramente caprichosa e destituída de razão: pensemos, por exemplo, na aceitação em circunstâncias idênticas pela autoridade tributária de um pagamento faseado, em contradição com um outro organismo do Estado, no caso o ISS, que não aceitou tal pagamento. Mais, não vislumbramos, face aos factos do presente caso, que se verifique a necessidade de salvaguardar um interesse público consistente na prevalência da manutenção do tecido empresarial e consequente recuperação da empresa à luz das finalidades prosseguidas pelo instituto do PER.  Tal derrogação, em tese, foi admitida já pelo STJ em certos termos: “Continuamos a admitir que, em caso de flagrante e injustificada afirmação intransigente, pela autoridade tributária, das prerrogativas dos créditos fiscais, podem os Tribunais desconsiderá-las, na salvaguarda de interesses públicos, que num patamar de justificados sacrifícios imponham ao Estado (no respeito pelo paradigma insolvencial vigente, sobretudo após a Reforma de 2012, com a introdução do PER, já que a finalidade da lei insolvencial é agora a recuperação da empresa devedora e não a liquidação) o seu contributo para evitar a destruição e a liquidação da empresa.
Nesse hipotético quadro de estado de necessidade social e visando evitar a derrocada de empresas, sobretudo grandes empregadores, num meio social economicamente débil e carenciado, a justiça, a equidade e os fins sociais pelos quais o Estado deve velar, podem conduzir à atenuação daqueles direitos - “III Congresso de Direito da Insolvência” – Almedina – 2015 – “Os créditos tributários e a homologação do plano de recuperação” – António Fonseca Ramos, páginas 361 a 381 – se, e quando a posição dos credores públicos for decisiva para a recuperação da sociedade devedora.” – cfr. AcSTJ de 10/05/2018, processo nº 4986/16.5T8VIS.C1.S1.
Manifestamente, o quadro fáctico do presente caso não impõe qualquer exceção à jurisprudência praticamente unânime que considera ineficaz o plano quanto aos créditos reclamados pela Segurança Social. Consideramos, assim, também por razões de desejável uniformidade decisória, incluindo dentro da mesma Relação, que o diferimento temporal consubstanciado num plano de pagamentos em prestações dos créditos da Segurança Social, com a oposição desta, constitui uma moratória não autorizada e envolve modificação de tais créditos, traduzindo-se numa violação não negligenciável do princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais, razão pela qual inexiste fundamento para decretar a eficácia do plano também quanto aos créditos reclamados pela Segurança Social.
Impõem-se, por isso, a total improcedência do recurso e a confirmação da sentença recorrida, o que se delibera.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.

Guimarães, 30 de março de 2023.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Maria Eugénia Pedro.
2º Adjunto: Pedro Maurício.

[1] Processo de Insolvência, Almedina, 4ª edição, pág. 509.