Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
264/17.0T8FAF.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: CONTA BANCÁRIA
BENS PRÓPRIOS
BENS COMUNS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- Para que se possa declarar que o saldo de uma conta bancária titulada por um só cônjuge casado no regime de comunhão de adquiridos é bem próprio do mesmo é necessário que este ilida a presunção de comunhão prevista no artigo 1725º do Código Civil, visto que a titularidade de uma conta não predetermina a propriedade dos fundos nela contidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Autora e Apelada: M. F., divorciada, residente em rue …, França,
Réu e Apelante: C. M., divorciado, titular do contribuinte n.º …, residente em rue …, França
Autos de: apelação (em ação declarativa de condenação com processo comum)

I- Relatório

A Autora pediu que fosse proferida sentença que condenasse o Réu a:

1º) reconhecer que o valor de 49879,79€ utilizado no pagamento do preço devido pelo imóvel adquirido pela escritura pública de compra e venda realizada em 7/2/2002 era um bem da Autora existente antes da data da celebração do casamento e pertencia ao património próprio da Autora;
2º) reconhecer a existência de um crédito de compensação do património próprio da Autora sobre o património comum do extinto casal no valor de 49879,79€.
Para tanto, alegou, em síntese, que foi casada com o Réu entre 27/06/1998 e 3/12/2012, sob o regime da comunhão de adquiridos e que na pendência do casamento, em 2002, ambos compraram um prédio urbano pelo preço de 99.759,58 €; o montante de 49879,79 € utilizado para pagamento de parte do preço desse imóvel estava depositado na conta bancária cujo titular é a Autora e era proveniente das poupanças da Autora, enquanto solteira. A fim de pagar a metade remanescente do preço do imóvel em causa, a Autora e o Réu contraíram empréstimo com o "Banco …, S.A.", que foi, entretanto, totalmente liquidado.
O Réu, além de excecionar, impugnou, invocando, também em súmula, que a Autora confunde dois factos e circunstâncias distintos, ser única titular da conta poupança que foi utilizada e o bem ser seu bem próprio (que não era o caso); aceita que à data do casamento a Autora já era titular da conta poupança emigrante, com um saldo de cerca de 24.939,89 €, mas invoca que esta o utilizou para a compra de um outro imóvel, no concelho de onde é natural. Defende que, caso não proceda a exceção dilatória que invoca, deve ser absolvido do pedido.
Em 23 de fevereiro de 2018, veio a Autora, em requerimento para junção de documento, invocar que, “não obstante a declaração emitida pela Caixa ... e apresentada juntamente com a petição inicial, na verdade o valor aplicado pela Autora na aquisição da habitação em causa nos presentes autos foi apenas de 35.000,00€, pelo que requer respeitosamente a V.Ex.ª seja admitida a redução do valor do pedido”.

Após saneamento dos autos e a realização do julgamento, veio a ser proferida sentença com o seguinte teor condenatório (que não atentou na redução do pedido):

“Em conformidade com o exposto, decide este tribunal julgar a presente ação integralmente procedente e, em consequência, declara-se que o valor de € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos) utilizado no pagamento do preço devido pelo imóvel adquirido pela escritura pública de compra e venda realizada em 7/2/2002 era um bem da Autora existente antes da data da celebração do casamento e pertencia ao património próprio da Autora. Consequentemente, declara-se que a existência de um crédito da Autora sobre o património comum do extinto casal no valor de € 49. 879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos).”

No recurso que interpôs, o Réu, pugnando pela improcedência da ação formulou as seguintes
conclusões:

1. A) O Tribunal “a quo” proferiu douta sentença com a qual o R., ora Recorrente não se pode conformar e que decide:
“… julgar a presente ação integralmente procedente e, em consequência, declara-se que o valor de € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos) utilizado no pagamento do preço devido pelo imóvel adquirido pela escritura pública de compra e venda realizada em 7/2/2002 era um bem da Autora existente antes da data da celebração do casamento e pertencia ao património próprio da Autora.
Consequentemente, declara-se que a existência de um crédito da Autora sobre o património comum do extinto casal no valor de € 49. 879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos). Custas a cargo do Réu.”
B) Todavia, a decisão do Tribunal “a quo” padece de erro nos pressupostos de facto, com manifesto erro de julgamento da matéria de facto e, por consequência, aplicação inadequada do direito;
C) Para tanto, em muito terá contribuído a posição da Autora nos vastos e avulsos articulados/requerimentos que o Tribunal “a quo” sempre lhe foi permitindo e que acabou por redundar em ostensivo erro de julgamento;
D) Porém, bem mais grave do que isso, a análise que o Tribunal “a quo” fez dos documentos que foram carreados através de ofícios da Caixa ... para os autos, foi incipiente e desatenta, porquanto numa análise, minimamente atenta, verificaria que a A. não tinha na sua conta bancária de solteira, à data da celebração do matrimónio, o dinheiro que lá dizia possuir, ou seja, na moeda então corrente (o escudo), o equivalente a € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos);
E) Não tinha tal valor na conta, mas o Tribunal “a quo” deixou-se levar por um documento que tinha como mero desiderato, obter a isenção de SISA, e por se tratar de uma conta chamada “conta-emigrante”, que tinha, então, em termos fiscais tal “benefício”;
F) Mas, na escritura da casa ... (terra natal do Recorrente), diz-se: “... e que os mesmos no pagamento do preço utilizaram a quantia de quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos contravalor PTE dez milhões de escudos, que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada na agência de Cabeceiras de Basto da Caixa ......” – sublinhado e destacado nosso;
G) Diz-se, “os mesmos”, precisamente porque o Réu, ora Recorrente, na condição de casado, contribuíra, também, para que essa conta fosse provisionada à data da escritura, só tendo sido essa conta utilizada e indicada por ambos na escritura, como se deixou dito, logo em sede de Contestação, atento o desiderato da isenção de SISA;
H) Na matéria de facto dada como provada, o Tribunal “a quo” refere, em 1.5. o seguinte: 1.5. Da referida escritura de compra e venda ficaram a constar as seguintes declarações proferidas pela representante de autora e réu: “... aceita este contrato e que os mesmos no pagamento do preço utilizaram a quantia de quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos contravalor PTE dez milhões de escudos, que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada na agência de Cabeceiras de Basto da Caixa ..., conforme declaração que se arquiva...”;
I) Ora, de maneira nenhuma poderia o Tribunal “a quo” olvidar que na data da escritura, em 07/02/2002, A. e R. eram casados; E, eram casados desde 27/06/1998 (sob o regime da comunhão de adquiridos), ambos contribuindo, desde a data do casamento, para todos os encargos da vida familiar e indistintamente, para esta ou aquela conta bancária, para este ou aquele pagamento;
J) Aliás, desde o casamento, ambas as Partes contribuíam para os depósitos que naquela conta poupança-emigrante (embora apenas titulada pela A.) se foram verificando, independentemente de quem, na oportunidade o fizesse;
K) A A. e ora Recorrida bem sabe, não o podendo empalmar, que também o R. auferia um rendimento considerável, exercendo a profissão de motorista de turismo internacional, actividade da qual muitas vezes auferia a título de gratificações, uma quantia superior ao seu próprio salário, já de si, bastante elevado;
L) A A. e ora Recorrida, tal como já se adiantou em sede de Contestação, com a presente acção, mais do que uma tentativa de obter um lucro que não lhe pertencer, pretende a revanche face a um divórcio com o qual não soube e ainda não sabe lidar, mostrando ressabiamento e tentando, por qualquer meio, prejudicar o Recorrente. Essa é que é a realidade dos factos;
M) O Tribunal “a quo” podia dar como provado que à data do casamento a A. já era titular da conta poupança emigrante da agência da bancária de Cabeceiras de Basto da Caixa ..., o que o R. corroborou no seu art. 16º de Contestação;
N) Já não podia, porque desmentido pela própria agência da bancária de Cabeceiras de Basto da Caixa ... (através de vários ofícios dirigidos aos autos), que a A. possuía nessa conta a quantia equivalente a € 49.879,79 (quarenta e nove mil, oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos) à data do casamento;
O) O Tribunal “a quo” partiu de uma errada premissa, considerando e confundindo a titularidade da conta poupança-emigrante com a titularidade dos fundos lá depositados, pelo que laborou em erro ostensivo nos pressupostos de facto;
P) Isso mesmo se retira, também, do ponto 1.6. da matéria de facto dada como provada: 1.6. Na escritura pública em questão, foi arquivada uma declaração denominada “Declaração para efeitos de isenção de Sisa”, na qual a Caixa ... declara que a Autora fez prova da sua qualidade de emigrante e é titular de conta emigrante de cujo saldo utilizou o montante de 10 000 000$00 (dez milhões de escudos) para aquisição do prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... da freguesia de ..., omisso à matriz, sendo o valor da compra de 20 000 000$00 (vinte milhões de escudos);
Q) Fez o Tribunal “a quo” tábua rasa do desiderato da declaração junta à escritura e que, tal como a mesma referia, era uma mera “Declaração para efeitos de isenção de Sisa”, que se destinava a comprovar que, pelo menos metade do valor da aquisição saía daquela conta, e apenas para efeitos de isenção de SISA;
R) Perturbador, é ainda o facto de, a acrescer à incipiente e perfunctória análise que o Tribunal “a quo” fez à prova carreada para os autos, por documentos e prova testemunhal, optou ainda, por inverter o ónus da prova, sem qualquer justificação e sem o referir, pois competia à A. provar os factos que alegou e não ao R. demonstrar a inverosimilhança dos mesmos, tendo atuado o Tribunal “a quo” em manifesta violação do nº 1, do art. 5º do CPC;
S) Isso mesmo resulta do ponto 2. da sentença em crise, quando refere: 2. Factos não provados [Da contestação] 2.1. Desde a data do casamento de autora e Réu e até à data de celebração da escritura referida no art.º 3.º da p.i., ambos contribuíam para os depósitos na conta supra referida.;
T) É caso para perguntar, onde, quando e como demonstrou a A. que, na constância do matrimónio, o R. não contribuiu da mesma forma e que o dinheiro da conta poupança-emigrante, na data da escritura de 07/02/2002 era apenas seu;
U) Outrossim, o Tribunal “a quo” não fez uma análise crítica, nem demonstrou o mínimo cuidado na utilização das regras da experiência comum. Pois, se a casa de Cabeceiras de Basto, comprada na constância do matrimónio foi atribuída na totalidade à A. (por ser comprada na sua terra natal), já a casa ..., foi comprada na terra natal do R., para ser um bem que apenas seria seu. Mais, não reparou o Tribunal “a quo”, que o dinheiro que a A. possuía de solteira foi utilizado na aquisição dessa casa de Cabeceiras de Basto e não na aquisição da casa .... Para tanto, bastaria que o Tribunal “a quo” tivesse lido a Contestação do Réu, a qual, nos seus artigos 16º a 26º espelha a realidade dos factos e onde se demonstra a lisura e correcta actuação do R.;
V) Com efeito, não fosse a honestidade e lisura do R., estaríamos nestes autos a discutir também, porque adquirida na constância do matrimónio, a casa de Cabeceiras de Basto (terra natal da A.);
W) Salvo o devido respeito, a mera utilização das regras da experiência comum diz-nos que cada um investiu na sua terra natal;
X) Porém, só o Tribunal “a quo” não conseguiu entender algo tão simples, como não conseguiu entender que esta acção judicial está carregada e eivada de ressabiamento e revanchismo por um divórcio que já ocorreu em 2012;
Y) Por qualquer razão esconsa, achou que a Autora tinha assim tanto dinheiro em solteira que dava para comprar duas casas;
Z) Foi alegado pelo R. ora Recorrente que em 31 de Agosto de 2000, a A. celebrou no Cartório Notarial de …, a escritura de compra do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …, inscrito na freguesia de …, do concelho de Cabeceiras de Basto, lavrada a fls. 17 do Livro de Notas para Escrituras Diversas número 58 – C no extinto Cartório Notarial de …, pelo preço de cinco milhões de escudos (ou seja €24.939,89 (vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e oitenta e nove cêntimos) – conforme doc. 1 junto com a Contestação;
AA) Porém, para o Tribunal “a quo”, quer a alegação, quer o documento, é como se não existissem!!!;
BB) No ponto 3. da MOTIVAÇÃO, refere a decisão em crise: 3. Motivação O tribunal decidiu em função de uma análise crítica dos depoimentos ouvidos em audiência, conjugados com os documentos juntos aos autos, nos termos que se passam a descrever. A matéria de facto dada como provada resultou da apreciação do teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente, da escritura pública de compra do imóvel referido na petição inicial e da declaração emitida pela Caixa .... No mais, começou o tribunal por ouvir M. P., irmã da autora, que veio afirmar que este última trabalha desde 12 anos e desde os 16 que está na Suíça, onde foi arrecadando as suas poupanças. M. M., veio apenas dizer que mediou um negócio entre a Autora e determinada pessoa cujo nome não recorda, para compra de uma casa em Cabeceiras. Crê que a autora ainda era solteira quando mediou tal negócio. Em declarações de parte ouvimos a Autora que declarou que após o casamento passou a usar uma conta conjunta que tinha com o Réu, nunca tendo sido usada por ambos a conta referida nestes autos. Reiterou o teor da sua petição, no mais. A matéria de facto dada como não provada não foi objecto de qualquer prova credível, por parte do Réu a quem competia o ónus da prova da mesma;
CC) Após a incorrecta e perfunctória análise que fez à matéria de facto e aos documentos de que dispunha, o Tribunal “a quo” completou, no ponto 4. Do Direito, a sua tese do erro, do seguinte modo: 4. Do Direito É questão a resolver nos presentes autos a da qualidade de bem próprio da autora da quantia de € 49.879, 79, usada, na aquisição pelo extinto casal composto pela Autora e pelo Réu, da casa de habitação com logradouro e tudo o que o compõe, situado no lugar de ..., freguesia de ..., do concelho de Fafe, descrito na Conservatória sob o número 0.../061097.;
DD) Mais à frente, refere o Tribunal “a quo”, que“... Com vista a uma breve análise do regime de bens supletivo vigente, tomaremos de comodato o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 12/2015, Diário da República n.º 200/2015, Série I de 2015- 10-13, no qual se pode ler: O regime de bens supletivo vigente é, actualmente, o da comunhão de adquiridos - art. 1717.º do Código Civil -"Na falta de convenção antenupcial, ou no caso de caducidade, invalidade ou ineficácia da convenção, o casamento considera-se celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos" - mais adaptado a outra realidade histórica e social e ao estatuto de igualdade dos cônjuges contemplado no art. 1671.º do Código Civil "o casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges." No regime de comunhão de adquiridos cada cônjuge conserva o direito de propriedade dos bens que levou para o casamento em virtude de direito próprio anterior, conservando a sua plena administração.”;
EE) Porém, contrariamente ao que refere, nem a análise é breve, nem tão pouco a situação sub judicio nela se subsume, pois como atrás referido, o Tribunal “a quo” fez um pré juízo, partindo da errada premissa de que a A. levava de solteira na conta poupança-emigrante o valor de 49879,79€ (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos);
FF) E, levantando voo, tendo por estribo eminentes Professores de Direito, a sentença recorrida afastou-se da realidade dos factos (menos teóricos, mais terrenos e reais), citando o Professor Pereira Coelho, a Reforma de 1977, o Professor Antunes Varela, o Professor Guilherme de Oliveira, a inovação do Código Civil de 1966, Pires de Lima (Advogado e Jurista), entre outros. Após longa citação e dissertação doutrinal e apartada da realidade dos factos, recomeça a referir-se ao “... caso dos autos”;
GG) E, aqui que era expectável que pudesse dizer muito, diz mesmo muito pouco. Refere, assim, a sentença em crise: No caso dos autos, resultou provado que em 7/2/2002, no Cartório Notarial ..., a Autora e o Réu outorgaram escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca do seguinte prédio urbano: casa de habitação com logradouro e tudo o que o compõe, situado no lugar de ..., freguesia de ..., do concelho de Fafe, descrito na Conservatória sob o número 0.../061097 (.../...), omisso na matriz, mas nela já participado e da referida escritura de compra e venda ficaram a constar as seguintes declarações proferidas pela representante: “... aceita este contrato e que os mesmos no pagamento do preço utilizaram a quantia de quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos contravalor PTE dez milhões de escudos, que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada na agência de Cabeceiras de Basto da Caixa ..., conforme declaração que se arquiva...”; Na escritura pública em questão, foi arquivada uma declaração denominada “Declaração para efeitos de isenção de Sisa”, na qual a Caixa ... declara que a Autora fez prova da sua qualidade de emigrante e é titular de conta emigrante de cujo saldo utilizou o montante de 10 000 000$00 (dez milhões de escudos) para aquisição do prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... da freguesia de ..., omisso à matriz, sendo o valor da compra de 20 000 000$00 (vinte milhões de escudos). Ora, a declaração supra transcrita, constante da escritura de compra e venda celebrada por autora e réu, na pendência do seu casamento é precisamente a declaração a que se refere o art. 1723º, al. c), do Código Civil, ou seja, corresponde à menção de que a quantia mencionada de € 49.879, 79, era bem próprio da autora. Parece-nos inequívoca, nesse sentido, a dita declaração quando afirma “que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada”. Aliás, a dita declaração, inserta numa escritura de compra e venda de um imóvel, por um casal, como era o caso da Autora e do Réu, apenas poderia ter este fito, o de salvaguardar o património próprio de um dos cônjuges, no caso, o da autora. O Réu foi parte na referida escritura, devidamente representado, assim como a autora, por mandatário, pelo que a menção em causa teve a sua intervenção e, necessária, aceitação. Nestes termos e atendendo a que o autor não logrou provar nada em contrário do declarado na escritura, apenas podemos concluir que a quantia referida era, de facto, bem próprio da autora, procedendo, em conformidade e na totalidade, a acção.;
HH) Ora, sempre salvo o devido respeito, que consabidamente muito é, o Tribunal “a quo” não conseguiu descortinar que a “Declaração para efeitos de isenção de Sisa”, não é a mesma que trata a alínea c), do art. 1723º do Código Civil, mas apenas a declaração necessária para efeitos da aplicação da isenção prevista no artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 540/76, de 9 de julho, mantido em vigor pelo Decreto-Lei n.º 323/95, de 29 de novembro. E, mais grave do que isso, que a sobredita declaração não excluía que, a proveniência dos fundos existentes na conta poupança-emigrante, apenas titulada pela A., poderia ter origem nos rendimentos do trabalho auferidos pelo então marido, o aqui Recorrente, uma vez que a mesma se encontrava desfalcada com a compra da casa de Cabeceiras de Basto !!!;
II) É, pois, com muita estupefação e preocupação que o Recorrente vê que o Tribunal recorrido tratou este assunto com tal superficialidade, que levou a uma decisão ininteligível e incongruente com as mais básicas regras da experiência comum;
JJ) Uma vez mais, com a devida vénia, teria de ser dado como não provado que a A. levava, desde solteira, na sua conta poupança-emigrante o valor de 49879,79€ (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos) até ao momento da escritura da casa ..., adquirida na constância do matrimónio e atento o regime de bens, em 07/02/2002;
KK) Resulta dos documentos juntos aos autos, em especial pela Caixa ... e documento nº 1 junto com a Contestação, e ainda da transcrição dos depoimentos das testemunhas acima integralmente transcritos, que o dinheiro que a A. levava de solteira, era bem menos, mais concretamente €24.939,89 (vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e oitenta e nove cêntimos), e que terá servido – isso sim – para comprar a casa de Cabeceiras de Basto, na sua terra natal;
LL) Sendo modificada nos sobreditos termos a matéria de facto, como é da mais elementar reposição de justiça, terá de ficar dado como assente que se provou na acção que as economias de solteira da A. e que levou para o casamento serviram para a compra da casa de Cabeceiras de Basto e não para a casa ... (em Fafe), com o que se fará verdadeira Justiça;
MM) Aliás, na sua Contestação, o A. obtemperou neste sentido, pois fez partilha dessa casa de Cabeceiras de Basto a favor da A., apesar de comprada em 2000, na constância do matrimónio;
NN) Face à posição assumida pela A. ao ter intentado esta acção contra si, a única leitura que o Recorrente consegue fazer é a do ressabiamento e revanchismo da A., face ao divórcio que ocorreu entre ambos;
OO) O aqui Recorrente é uma pessoa que procura a paz, mas também pretende agora a reposição da verdade material dos factos, face à decisão tão injusta, desadequada, ininteligível e infundamentada tomada pelo Tribunal “a quo” suportada em factos falsos, por mero desígnio de vingança da A..

Foi apresentada resposta, com as seguintes
conclusões:

“I- O Recorrente entende que a decisão do Tribunal "a quo" padece de erro nos pressupostos de facto, com manifesto erro de julgamento da matéria de facto e, por consequência, aplicação inadequada do direito.
II- A fim de sustentar a sua tese, o Autor alega não ter sido efetuada pelo Tribunal "a quo" uma análise dos documentos apresentados nos autos pela instituição bancária Caixa ... e que o Tribunal "a quo" se "deixou levar" por um documento cujo escopo era a obtenção da isenção de SISA, o que não corresponde à verdade.
III- Desde logo, o Recorrente interpreta a expressão "...os mesmos..." aposta na escritura de compra e venda da habitação localizada em ..., Fafe, celebrada em 07/02/2002, na parte onde se refere "... e que os mesmos no pagamento do preço utilizaram a quantia de quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos contravalor PTE dez milhões de escudos, que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada na agência de Cabeceiras de Basto da Caixa ......"; no sentido de também o Recorrente ter realizado depósitos na conta bancária em causa.
IV- No entanto, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, o Recorrente não provou que contribuiu e depositou desde o casamento e até à data da escritura, com quaisquer valores ou quantias na conta bancária poupança emigrante mencionada na referida escritura e declaração anexa.
V- Tendo o Réu alegado em sede de articulado de Contestação, que contribuiu e depositou valores na conta bancária emigrante, cujo único titular era a Autora, incumbia-lhe o ónus da prova da exceção invocada, o não logrou provar.
VI- Por outro lado, a falta de colaboração prestada pela agência de Cabeceiras de Basto da instituição bancária Caixa ..., foi no mínimo vergonhosa e os serviços centrais da referida instituição bancária responderam apenas em 07/11/2018, onde se pode constatar que à data do casamento a Autora possuía bem mais do que uns trocos.
VII- Alega ainda o Recorrente não ter o Tribunal "a quo" tido "cuidado" na utilização das regras da experiência comum, por não ter julgado provado que o dinheiro pertencente à Autora foi utilizado na aquisição de uma habitação sita em Cabeceiras de Basto e não na aquisição da habitação sita em ... e pelas regras da experiência comum cada cônjuge teria investido na sua terra Natal.
VIII- O Recorrente entende que este facto devia resultar provado por ter sido alegado em sede de Contestação, por tal escritura se encontrar anexa a tal articulado e face à prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento.
IX- Ora, mais uma vez e salvo o devido respeito por douto entendimento diverso, não logrou o Recorrente provar a forma e o modo de pagamento da habitação situada em Cabeceiras de Basto, incumbia-lhe o ónus da prova da exceção invocada, o não logrou provar.
X- Por outro lado, o Tribunal "a quo" atendeu aos termos e ao disposto na escritura de compra e venda realizada em 07/02/2002 no Cartório Notarial ..., quando entendeu e interpretou a declaração "...aceita este contrato e que os mesmos no pagamento do preço utilizaram a quantia de quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos contravalor PTE dez milhões de escudos, que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada na agência de cabeceiras de Basto da Caixa ..., conforme declaração que se arquiva..." como a declaração a que se refere o artigo 1723º, alínea c) do Código Civil e não à declaração anexa a tal escritura.
XI- O Recorrente entende que devia ser julgado como não provado que a Autora levava desde solteira na sua conta poupança-emigrante o valor de 49879,79€ (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), com fundamento no documento n.º1 anexo à Contestação que consiste numa escritura de compra e venda de imóvel situado em Cabeceiras de Basto, na constância do casamento, apesar de não ter o Recorrente logrado provar a forma de pagamento de tal imóvel, inclusivamente se o preço de tal imóvel foi efetivamente pago pela Autora e quando foi liquidado.
XII- Ora, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, não resultou das declarações prestadas pela testemunha Maria a forma de pagamento do imóvel situado em Cabeceiras de Basto, resulta apenas ter sido outorgado um contrato promessa prévio à escritura de compra e venda antes da data do casamento celebrado entre a Autora e o Réu, não existindo contradição entre o documento n.º1 anexo à Contestação (escritura de compra e venda de imóvel sito em Cabeceiras de Basto, realizada posteriormente ao casamento) e as declarações prestadas pela testemunha Maria.
XIII- Aliás, as declarações prestadas pela testemunha M. M., que interveio no negócio respeitante ao imóvel sito em Cabeceiras de Basto, confirmam a outorga de um contrato promessa prévio à escritura de compra e venda do imóvel sito em Cabeceiras de Basto.
XIV- Em suma, salvo o devido respeito por douto entendimento contrário, o Recorrente não logrou provar que a Autora gastou as suas "economias" de solteira na aquisição de uma habitação em Cabeceiras de Basto, na constância do matrimónio, pelo que bem andou o Tribunal "a quo"ao considerar que a matéria alegada em sede de Contestação respeitante à aquisição pela Autora de um imóvel sito em Cabeceiras de Basto, constitui matéria conclusiva, irrelevante, instrumental e/ou de Direito.
XV- Por todo o exposto, bem andou o Tribunal "a quo" ao julgar provada a matéria constante do ponto 1.5 e 1.6 dos Factos provados, por tais factos constarem de documento autêntico.
XVI- Perante as seguintes declarações constantes da escritura outorgada em 07/02/2002: "...aceita este contrato e que os mesmos no pagamento do preço utilizaram a quantia de quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos contravalor PTE dez milhões de escudos, que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada na agência de cabeceiras de Basto da Caixa ..., conforme declaração que se arquiva...", bem andou o Tribunal "a quo" ao julgar que estas consistem na declaração a que se refere o artigo 1723º, alínea c) do Código Civil e ao julgar o pedido totalmente procedente.”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou sejam de conhecimento oficioso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face teor das alegações e conclusões importa verificar:

--- se a matéria de facto não provada deve ser alterada, aditando-se-lhe o seguinte facto: - “a A. levava, desde solteira, na sua conta poupança-emigrante o valor de 49879,79€ (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos) até 07/02/2002” e se por via de tal alteração a ação deve improceder.

III- Fundamentação de Facto

A sentença vem com a seguinte matéria de facto provada:

1--Factos provados:

1.1. A Autora e o Réu casaram em -/6/1998, sem convenção antenupcial, sob o regime de comunhão de adquiridos;
1.2. O casamento da Autora e do Réu foi dissolvido por douta sentença proferida em 3/12/2012, transitada em julgado em 18/12/2012, proferida pelo Tribunal de Grande Instance de Paris, França;
1.3. Em 7/2/2002, no Cartório Notarial ..., a Autora e o Réu outorgaram escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca do seguinte prédio urbano: casa de habitação com logradouro e tudo o que o compõe, situado no lugar de ..., freguesia de ..., do concelho de Fafe, descrito na Conservatória sob o número 0.../061097 (.../...);
1.4. A Autora e o Réu adquiriram o prédio urbano descrito no artigo 3º pelo preço de € 99.759,58 (noventa e nove mil setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos);
1.5. Da referida escritura de compra e venda ficaram a constar as seguintes declarações proferidas pela representante de autora e réu: “... aceita este contrato e que os mesmos no pagamento do preço utilizaram a quantia de quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos contravalor PTE dez milhões de escudos, que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada na agência de Cabeceiras de Basto da Caixa ..., conforme declaração que se arquiva...”;
1.6. Na escritura pública em questão, foi arquivada uma declaração denominada “Declaração para efeitos de isenção de Sisa”, na qual a Caixa ... declara que a Autora fez prova da sua qualidade de emigrante e é titular de conta emigrante de cujo saldo utilizou o montante de 10 000 000$00 (dez milhões de escudos) para aquisição do prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... da freguesia de ..., omisso à matriz, sendo o valor da compra de 20 000 000$00 (vinte milhões de escudos);

2. Factos não provados

2.1. Desde a data do casamento de autora e Réu e até à data de celebração da escritura referida no art.º 3.º da p.i., ambos contribuíam para os depósitos na conta supra referida.
Acrescentar-se-á infra o seguinte facto não provado, o que já se menciona, para simplicidade na futura consulta dos autos:
2.2.- a quantia utilizada para pagamento de parte do preço do imóvel aludido no ponto 1.3 e a que se refere o ponto 1.5, que se encontrava depositada na conta bancária poupança-emigrante de que a Autora era titular, era proveniente das poupanças da Autora enquanto solteira.”

IV- Motivação de Facto e Fundamentação de Direito

-- A. Da impugnação da matéria de facto

Pretende o Recorrente que se adite aos factos não provados a menção que a Autora levava, desde solteira, na sua conta poupança-emigrante o valor de 49.879,79€ (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos) até 07/02/2002.
Este facto, face à causa de pedir, mostra-se efetivamente essencial para a decisão da causa.
Com efeito, a autora alegou que metade do preço da compra do imóvel escriturado em 2002 foi pago com dinheiro que era bem seu antes da data da celebração do casamento (e logo era seu património próprio). E pretende que tal seja declarado na alínea a) do seu petitório.
A sentença, que não se pronunciou, nem considerou, a redução do pedido, não deu nem como provado, nem como não provado, que a quantia utilizada para tal pagamento já existia na conta bancária da autora antes do casamento, limitando-se a assentar o que constava da escritura, a qual refere que para o pagamento do preço os Réus utilizaram a quantia “que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada na Agência…”, embora tenha dito no decisório que aquela quantia era um bem da Autora existente antes da data da celebração do casamento. Da mesma forma, não analisou os extratos e informações bancárias, juntas aos autos, nem se pronunciou, sequer na motivação, sobre os factos instrumentais alegados pelo Réu e retratados nas mesmas informações (a compra da casa da …).
Tendo em conta que os autos têm todos os elementos necessários para o apuramento da questão, há que buscar às alegações das partes os elementos que possam ajudar na discussão da matéria, sem primeiro deixar de salientar o teor dos documentos juntos ao autos que relevam para a decisão da questão:
-e1- A 6-11-2018 foi junta informação pela CAIXA ..., com os seguinte teor: “Em resposta ao ofício em referência, cumpre-nos informar V. Exª do seguinte: “À data de 25-06-1998 a conta nº ......122 presentava o saldo de 4.973.595$50, a conta nº ......220 apresentava o saldo de 373.566$00 e a conta nº ......500 apresentava o saldo de 245.056$00; - A conta nº ......564 foi aberta a 18-08-1988, a conta nº ......844 foi aberta a 20-07-2010 e a conta nº ......161 foi aberta a 29-07-2013…”
(É patente o lapso de escrita deste documento, quando refere o ano de 1988, por pretender referir o ano de 1998, como decorre do extrato bancário da conta ......564, onde consta a data da sua criação em 18-8-1998).
-e2- A declaração de 26 de fevereiro de 2018 com o timbre da CAIXA ..., junta pela Autora no mesmo dia, com os seguintes dizeres “Declaramos que o cliente M. F., com o Cartão de Cidadão …, e número de contribuinte …, possui nesta instituição uma conta com o número ........500, aberta em 05 de Agosto 1991, tendo sido desde a abertura e até à data a única titular. Essa conta funcionou como base para abertura de outras poupanças e depósitos que a ela ficaram ligadas, nomeadamente ......564, ......161, 177...122, ......220 e ......844” junta pela Autora.
-e3- Os extratos bancários juntos a 26-7-2017, relativos à conta ......564, de onde resulta, de mais relevante, que foi aberta em Agosto de 1998 com dois depósitos, no valor global de 1.257.389$50 escudos e que mercê de outra sucessão de depósitos, a 21 de setembro de 1998 apresentava um saldo de 4.027.604$50, mas em 31 Dezembro de 1998 já perfazia 7.519.202$00 escudos, tendo continuado a ter diversos depósitos ao logo do tempo e apenas dois débitos: um em 14-2-2000 no valor de 4.577.000$00 (passando a conta a apresentar o saldo de 3.373.905$00) e outro em 6-9-2001, no valor de 7.000.000$00 (passando a contar a apresentar o saldo de 350.523$00).
-e4- Os cheques juntos aos autos em 16 de Março de 2018, à ordem do vendedor do imóvel da escritura mencionada no ponto 1.3 da matéria de facto provada, sacados sobre a conta referida em e3: o cheque n.º 4711115869 no valor de 7.000.000$00 sacado sobre a conta bancária ... ...564, cujo único titular era a Autora e outro, de conta solidária, no valor de 5.500.000$00, da nova rede.
Nem as testemunhas, nem a Autora depuseram de forma concretizada sobre os saldos bancários da Autora.
Dos elementos documentais resulta, pois, que a Autora, à data do casamento, tinha efetivamente (e pelo menos) as quantias de 4.973.595$50, 373.566$00 e 245.056$00 em contas bancárias por si exclusivamente tituladas (e1). Também resulta que abriu uma conta bancária dois meses depois do casamento (e3), com depósitos elevados e que foi com um cheque sacado sobre essa conta que pagou cerca de 35.000,00 € do imóvel em questão (sete milhões de escudos, e não os 49.879,79 € a que se referiu na petição inicial, depois reduzidos por requerimento que não veio a ser atendido na sentença(e4). Não se sabe qual a origem das quantias que foram depositadas nessa conta e, visto que a mesma continuou a ser regularmente carregada, com valores da mesma ordem de grandeza, durante anos, não é possível, com um mínimo de segurança, presumir que foi provida apenas ou essencialmente com as quantias que esta trazia das poupanças anteriores ao casamento.
Mesmo que se entendesse que é viável que se presuma que nos primeiros três meses que se seguiram ao casamento a conta foi provisionada com dinheiro que a Autora já teria antes deste (apresentando um saldo de 4.027.604$50 a 21-9-1998), certo é que em fevereiro de 2000 esse montante foi totalmente despendido (com um débito de 4.577.000$00), pelo que não existiria já na conta quando foi feita a aquisição aqui em debate.
Esta conclusão está, aliás, em conformidade com a confissão complexa efetuada pelo Réu no seu articulado, admitindo um saldo à data do casamento que teria sido gasto na aquisição da habitação na freguesia natal da Autora (escriturada no Verão de 2000) já na pendência do casamento e que não pode ser cindida (artigo 360º do Código Civil).
Enfim, não há qualquer elemento probatório que nos possa fazer acreditar que o dinheiro utilizado para o pagamento da compra da casa titulada pela escritura referida no ponto 1.3 da matéria de facto provada já era da titularidade da Autora antes do casamento ou que a quantia com que esta fez o pagamento desse preço já era sua desde a data do casamento, como esta alegou e pretendeu que fosse declarado.
Veja-se que das declarações das testemunhas e dos articulados resulta claro que a Autora era emigrante antes de casar e assim continuou.

Assim, expurgando da pretensão do Autor a matéria conclusiva, efetivamente há que dar como não provado que:

--- 2.2.- a quantia utilizada para pagamento de parte do preço do imóvel aludido no ponto 1.3 e a que se refere o ponto 1.5, que se encontrava depositada na conta bancária poupança-emigrante de que a Autora era titular, era proveniente das poupanças da Autora enquanto solteira.”.
Procede, pois, a impugnação da matéria de facto.

-- B--Da aplicação do direito aos factos apurados

- Da titularidade do saldo da conta

Tem sido salientando na doutrina e jurisprudência, e é, aliás, do senso comum, que a titularidade de uma conta não predetermina a propriedade dos fundos nela contidos, que pode pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou mesmo até porventura a um terceiro. Não se pode, pois, confundir a titularidade de uma conta com a propriedade dos valores ou montantes nela depositadas. (1)
Existe a presunção, judicial, de que haverá uma coincidência entre a titularidade da conta e a obtenção dos valores nela depositados, por corresponder estatisticamente à normalidade das situações, não sendo de esperar que quem colhe tais quantias, em seu nome, as deposite ou permita que sejam depositadas na conta de outrem, da qual não teria a disponibilidade, exceto em circunstâncias excecionais (sendo circunstâncias típicas, entre outras, os casos em que o seu titular as queira esconder de terceiros, nomeadamente para se furtar a penhoras, usando um “testa de ferro” e bem assim os casos em que o cônjuge com mais rendimentos no âmbito de um casamento celebrado segundo o regime da comunhão geral, prevendo o divórcio, pretende evitar que tais quantias por si obtidas sejam consideradas na partilha dos bens comuns, o mesmo ocorrendo com os cônjuges que aufiram mais rendimentos fruto do seu trabalho no âmbito de um casamento em que vigore o regime da comunhão de adquiridos).
Assim, há efetivamente que presumir-se que as quantias depositadas em nome da Autora foram obtidas por esta, mas daqui não se pode antever que as mesmas integravam o seu património próprio e não o património comum do extinto casal.
É sabido que o casamento tem consequências patrimoniais. Existe na nossa lei um conjunto de regras que, fundamentalmente, determina a quem pertencem os bens das pessoas casadas: o regime de bens. A lei permite aos nubentes que escolham um de três regimes de bens, sendo que. se não for efetuada tal escolha, o regime supletivo é (e era à data do casamento da Autora e Réu) o regime da comunhão de adquiridos (artigo 1717º do Código Civil).
Nesse regime, com o casamento, a par do património próprio de cada um dos cônjuges cria-se um novo património, comum. A nossa ordem jurídica, desde 01-06-1967, entende que a existência desse património, sem que deixem de existir patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, é o meio que mais facilitará (mas não o único) o projeto que este contrato visa, previsto no artigo 1577º do Código Civil: “constituir família mediante uma plena comunhão de vida” e melhor protegerá os interesses dos próprios cônjuges.
Desse património comum fazem parte "os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei" - artigo 1724.º, alínea b), do Código Civil” (como foi afirmado no acórdão uniformizador que a sentença sob recurso citou). Ou, como resulta da própria letra da lei: “Da comunhão fazem parte o produto do trabalho dos cônjuges, assim como os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei (cfr. artigo 1724.º do CC)”.
Por seu turno, “são considerados próprios dos cônjuges: a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento; b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação; c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior”, considerando-se adquiridos por virtude de direito próprio anterior, entre outros, os obtidos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele, os adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento, os comprados antes do casamento com reserva de propriedade e os que foram adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento. Por outro lado, também os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges por meio de troca direta; o preço dos bens próprios alienados e os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges, conservam a qualidade de bens próprios, tudo nos termos dos artigos 1772.º e 1723º do Código Civil.

Sendo que, “quando haja dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns” – cfr. artigo 1725.º do Código Civil.

Assim, presumindo-se que efetivamente a Autora adquiriu os montantes que depositou, não pode presumir-se que esses valores integram o seu património próprio, porquanto a regra é que pertencem ao património comum e a causa que a mesma invocou para excetuar tal provento da comunhão não se provou (que já tinha tal valor à data do casamento).

Esta conclusão também foi a alcançada, em situação que neste ponto é semelhante à ora em análise, pelo Tribunal da Relação do Porto, em 01/24/2018, no processo 14407/13.0TDPRT-D.P3 (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano) : “Com efeito, sendo o regime de bens do casamento a comunhão de bens adquiridos, e não resultando da factualidade dada como provada que as quantias naquelas constantes tivessem sido por ele trazidas para o casamento, nem que fossem resultado da alienação de seus bens próprios e tendo ainda em atenção a presunção legal decorrente do art. 1725º do Código Civil, os saldos credores daquelas contas (como bens móveis que se tratam) presumem-se igualmente bem comum.” Também no mesmo sentido o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, de 08-11-2017, no processo 01315/16, :“Na falta de prova de que os valores monetários depositados em contas bancárias sejam bens próprios do cônjuge devedor, ou revistam qualquer das formas indicadas no número 2 do art.º 1696, do Código Civil, por força do disposto nos art.º 1725º, e 1730.º, n.º 1 do Código Civil terão de considerar-se como integrando a comunhão conjugal.”

A sentença concluiu que quando a representante do então casal, formado por Autora e Réu, afirmou na escritura de aquisição do imóvel que estes “no pagamento do preço utilizaram a quantia de 49.870,79 €, que a mulher como emigrante e em conta emigrante tinha depositada”, pretende declarar que tal quantia era bem próprio da Autora. Face a todo o expendido, não se consegue perceber de onde se tira tal conclusão, visto que a representante não o classifica como bem próprio, nem diz a sua proveniência.

Lida, aliás, esta declaração no seu contexto, com a declaração acoplada “para efeitos de isenção de sisa”, onde se faz menção que a Autora fez prova da sua qualidade de emigrante e que titular de conta de emigrante para tal efeito, resulta claro que o objetivo da declaração é apenas essa: a isenção de sisa e não situar a data em que foram obtidas as quantias em causa, mais se deixando antever que tais quantias poderão ser fruto do seu trabalho, o qual não integraria, se posterior ao casamento, o seu património próprio, nos termos do citados artigo 1724º do Código Civil.

Visto que há uma diferença entre a titularidade de uma conta e a atribuição do seu saldo, a afirmação que a Autora tinha essa quantia como emigrante e em conta emigrante não significa, face à presunção de contitularidade, que a esteja a afastar da comunhão conjugal, mas que está a referir que adquiriu essa quantia (que como vimos integra o património comum) na qualidade de emigrante e a depositou em conta emigrante.
Aliás, basta atentar nas pretensões da Autora formuladas nesta ação para perceber que essa declaração não é a declaração a que se refere o artigo 1723º, alínea c) do Código Civil: esta alínea afirma que conservam a qualidade de bens próprios os bens adquiridos (ou as benfeitorias feitas) com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges. Ora, como decorre do pedido dos autos, a Autora não pretende que se considere esse imóvel bem próprio seu, porque adquirido por si, mas que tem “um crédito de compensação sobre o património comum do extinto casal” (Até porque aceita que a restante parte do preço foi suportada por ambos; afirmando que tal crédito lhe vem do facto de tal quantia ser sua desde os tempos de solteira: o que não logrou provar, face aos extratos bancários juntos).

Assim, por força do disposto no artigo 1725º do Código Civil, não se pode considerar que os valores utilizados no pagamento do preço do imóvel adquirido por escritura pública provenientes da conta titulada pela Autora possam considerar-se bem próprio, tendo que improceder a primeiro pedido.

E não obstante entender-se que se devem efetuar as compensações entre patrimónios no momento da partilha, evitando os casos de enriquecimento do património de um cônjuge à custa do património do outro (como decorre artigos 1682.º, n.º 4, 1687.º, n.º 2 e 1689.º do Código Civil) (2) e que se deve admitir um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro, certo é que aqui não se provou qualquer enriquecimento do património comum, o qual compreenderá a casa de …, porque não se demonstrou que para a aquisição desse bem comum foram utilizados quantias que faziam parte do seu património próprio.

Enfim, improcede a ação.

V- Decisão

Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença proferida, e em consequência absolve-se o Réu do pedido.
Custas da ação e da apelação pela recorrida (artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil).
Notifique.
Guimarães, 2020-01-23

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes



1. Seria fastidiosa a enunciação da vasta jurisprudência e doutrina nesse sentido, podendo, a título exemplificativo chamar-se à colação o acórdão proferido Supremo Tribunal de Justiça de 11/15/2017 no processo 879/14.9TBSSB.E1.S1, referindo José Ibraimo Abudo, Do Contrato de Depósito Bancário, Instituto de Cooperação Jurídica/FDUL, 2004, pág. 157, Pinto Coelho, in BMJ, nº 304, pág. 449, e “Operações e Banco e Depósito Bancário, RLJ, 81, pág. 227, Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, 1998, págs. 134 e 135, e doutrina e jurisprudência aí citadas e bem assim, o seguinte impressivo trecho sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/26/2010, no processo 303-A/1996.S2: “…V - O direito de crédito perante o banco depositário, traduzido no direito de movimentar uma conta plural, nada tem a ver com o direito real de propriedade que incide sobre o dinheiro depositado que pode pertencer a todos os titulares, a um só deles ou mesmo a terceiro. Nem da titularidade conjunta ou solidária de determinada conta bancária se pode presumir serem os seus titulares formais os efetivos proprietários dos fundos respectivos.”
2. Questão diversa da sub-rogaçao real tratada no acórdão vertido na sentença, por não pretender a Autora pôr em causa que a casa de …, adquirida por ambos durante o casamento, lhe passe a pertencer, em vez de integrar o património comum, até ser partilhada, mas uma mera compensação patrimonial (cf entre outros, a propósito desta compensação Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 08-11-2001 no processo 4931/10.1TBLRA.C1.)