Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1183/18.9T8GMR.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Demonstrando-se que ambos os condutores conduziam os seus veículos sobre o eixo da via, invadindo a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário ao seu, tais comportamentos devem ser considerados como causais e concorrentes para a produção do acidente, havendo nexo causal entre a ocorrência de uma violação ao Código da Estrada e o acidente.
II- Tendo a colisão ocorrido entre um motociclo e um veículo ligeiro, não tem necessariamente de ser considerada igual a medida da contribuição da culpa de cada um dos condutores, com recurso ao disposto no artigo 506º, nº 2, do Código Civil, uma vez que para efeito de graduação de culpas releva o grau de exigibilidade de cuidado, para o que concorre o tipo de veículo que se conduz.
III- Os danos não patrimoniais, por natureza insuscetíveis de avaliação em dinheiro devido a não atingirem bens integrantes do património do lesado, incidem sobre bens como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom-nome, a reputação e a beleza, da afetação dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação.
IV- O montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser fixado pelo tribunal com recurso à equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494º do Código Civil, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos.
V- Na concreta determinação do quantitativo da compensação, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjetivismo e procurar alcançar uma aplicação tendencialmente uniformizadora – ainda que evolutiva – do direito, devem ser considerados os padrões indemnizatórios geralmente adotados pela jurisprudência em casos análogos.
VI- É adequada, segundo um juízo de equidade, a fixação da indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 150.00,00 a lesado de 45 anos de idade que sofreu fraturas na perna direita, várias intervenções cirúrgicas, dores físicas quantificáveis como de grau 7, numa escala de 1 a 7, dano estético de grau 6, repercussão das sequelas nas atividades desportivas e de lazer de grau 7, disfunção eréctil com um prejuízo sexual de grau 5, impossibilidade de marcha autónoma sem recurso a duas canadianas, dependência de terceira pessoa durante 2 horas por dia para a realização de tarefas elementares do dia-a-dia, défice funcional temporário total de 964 dias acrescido de 82 dias resultantes de uma recaída, défice permanente da integridade física e psíquica de 60 pontos, e atual e futura carência de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares e ajudas técnicas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. A. B. e S. B. intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra X Seguros, SA, pedindo a condenação da Ré no pagamento:

a) Ao Autor A. B., da quantia de € 1.214.125,49, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento, e ainda do que vier a liquidar-se em ulterior incidente por danos futuros, designadamente com as cirurgias e eventual amputação de membro, prótese, consultas médicas e despesas medicamentosas;
b) À Autora S. B., da quantia de € 30.000,00, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento.
Para o efeito, alegaram a ocorrência de um acidente de viação em que interveio o Autor marido, como condutor do motociclo com a matrícula DU, pertencente a J. F., e o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula número CZ, conduzido por J. P., ao qual pertencia, e a quem imputam a culpa pela ocorrência do sinistro.
*
A Ré apresentou contestação, alegando que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do Autor e impugnando os danos e a sua quantificação.
*
1.2. Proferido despacho-saneador, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

Realizada a audiência final, proferiu-se sentença com o dispositivo que a seguir se transcreve:
«Pelo exposto, na procedência parcial da presente acção, vai a ré “X Seguros, S.A.” absolvida do pedido formulado pela autora S. B. e condenada a pagar ao autor A. B. a quantia de € 318.581,88 (trezentos e dezoito mil, quinhentos e oitenta e um euros e oitenta e oito cêntimos).
Sobre a quantia de € 252.053,88 (duzentos e cinquenta e dois mil, cinquenta e três euros e oitenta e oito cêntimos) vencer-se-ão juros a contar da sentença, à taxa de juro civil.
Sobre a quantia de € 66.528,00 (sessenta e seis mil, quinhentos e vinte e oito euros) os juros contar-se-ão desde a citação até integral pagamento, mantendo-se aquela taxa de juro.
Vai relegado para ulterior liquidação o cálculo da diferença entre o que a seguradora Y pagou ao ora autor no período de incapacidade total para o trabalho (desde o acidente até 30 de Outubro de 2017) e o salário que a sua entidade patronal efectivamente lhe pagaria nesse período.
Vai relegado para ulterior liquidação o cômputo do valor indemnizatório reportado ao custo que venha a ser necessário para atender às carências referidas no artigo 45) dos factos provados».
*
1.3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1ª
O presente recurso versa sobre o modo como ocorreu o acidente descrito nos presentes autos, sobre o quantum do rendimento mensal auferido pelo recorrente e toda a prova produzida nos presentes autos.

Efectuado o julgamento foram apurados como factos provados os seguintes:
4. No dia 11.03.2015, pelas 15.40 horas, o motociclo conduzido pelo autor e pertencente a J. F., com a matrícula DU (doravante, DU), circulava pela E.N. 205, no sentido Amares/Póvoa de Lanhoso, tendo colidido com o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula número CZ (doravante CZ), conduzido por J. P. e a este pertencente.
5. O CZ seguia no sentido oposto, tendo a colisão ocorrido na metade esquerda, atento o sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
6. A colisão ocorreu a 65 centímetros do eixo da via.
8. O contacto deu-se entre a parte da frente do lado direito, lateral direita do veículo CZ, e a parte lateral direita do motociclo DU, apanhando o membro inferior direito do autor.
9. Após a colisão, o DU seguiu de modo descontrolado para a esquerda, considerando o sentido e marcha que levava, vindo a imobilizar-se na berma do lado esquerdo, atento o sentido de marcha Amares/Póvoa de Lanhoso.
10. O CZ imobilizou-se uns metros, não concretamente apurados, mais à frente, atento o sentido de marcha Póvoa de Lanhoso/Amares. (o sublinhado e destacado é nosso).
(…)
54. À data do acidente o autor era gerente de loja de mobiliário e artigos para o lar, cabendo-lhe a tarefa de atender clientes e fornecedores, assim como supervisionar o trabalho dos operadores de loja.
55. No ano de 2013 o autor auferiu um rendimento ilíquido de 10.181,91€; em 2014 o seu rendimento anual foi de 11.851,00€ e em 2015 o seu rendimento foi de 4.316,79€.
56. À data do acidente mantinha a mesma entidade patronal e as mesmas funções.
57. Depois do acidente não mais trabalhou.

E como factos não provados, entendeu a Meritíssima Juíza a quo considerar o seguinte:
a) Que no momento em que os condutores dos veículos colidentes tiveram a percepção recíproca da (respectiva) presença, o DU seguisse pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido que levava (Amares/Póvoa de Lanhoso), junto à berma do lado direito.
b) Que o DU seguisse a velocidade não excedente dos 50 Kms/hora.
c) Que quando acabava de descrever uma curva para a sua direita, o DU se tenha deparado com o veículo CZ a ocupar totalmente a hemi-faixa destinada ao sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
d) Que tenha sido por causa do referido em c) que o autor invadiu a hemi-faixa da esquerda, considerando o sentido de levava.
e) Que, em simultâneo, o condutor do CZ tenha tentado retomar a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha Póvoa de Lanhoso/Amares.
f) Que no dia e hora referidos, o CZ circulasse do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido Póvoa de Lanhoso/Amares.
i) Que, ao iniciar a curva à esquerda, o CZ se tenha deparado com o motociclo conduzido pelo autor na hemi-faixa destinada ao sentido Póvoa de Lanhoso/Amares.
j) Que o DU não tenha conseguido descrever a curva para a direita e, por isso, haja transposto o eixo da faixa de rodagem, indo em frente.
k) Que, nesse momento e por causa de tal invasão, o condutor do CZ tenha virado para o seu lado esquerdo. (mais uma vez, o sublinhado e destacado é nosso).

Em suma, e como decorre de toda a fundamentação da decisão aqui em crise, a Meritíssima Juíza a quo não se achou capaz, em face da prova produzida, de dirigir um juízo de censura a um dos intervenientes no acidente descrito na petição inicial, sobretudo por entender, como o referiu, que desde o início ambos os intervenientes mantinham posições absolutamente antagónicas.

Porém, e com o devido respeito por opinião diversa, uma das versões – a do aqui recorrente – acabou por ter aconchego na prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente pelas declarações de parte prestadas pelo recorrente ao abrigo do disposto no artigo 466º do Cód. Proc. Civil, da testemunha M. J., arrolada pela recorrida e dos elementos objectivos constantes do auto de participação elaborado pela GNR, sendo certo que, e como muito bem referiu a Meritíssima Juíza a quo, apenas os dois condutores podiam descrever o modo como ocorreu a colisão.

Importa referir que o condutor do veículo seguro na recorrida entretanto faleceu, não tendo, por isso, sido escutada na primeira pessoa a sua versão quanto ao modo como ocorreu o acidente.

Assim, começando pelas declarações de parte prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento ao abrigo do artigo 466º do Cód. Proc. Civil – que nos abstemos de transcrever para não tornar demasiado extensas as presentes conclusões, no que se remete para o corpo destas alegações – acabou aquele por confirmar de forma quase integral a forma como o acidente vai descrito na petição inicial.

Explicou, inclusivamente, que o local provável de embate seria no local que vai apontado no croquis do auto policial pois resultou de uma manobra de evasão que o mesmo teve de realizar quando se apercebeu que o veículo seguro na recorrida estava de frente para si, na sua faixa de rodagem.

Ou seja, um dos intervenientes no acidente descrito nos presentes autos teve a oportunidade de se pronunciar em juízo quanto ao modo como o mesmo ocorreu.
E, tal como decorre do corpo destas alegações, a Meritíssima Juíza a quo começou logo por alertar o recorrente do seguinte:
Srª Juíza: - Muito bom dia senhor A. B.. O senhor é autor nesta acção e portanto tem um interesse natural nesta causa, mas como perceberá quanto mais objectivas e isentas forem as suas palavras mais elas serão tidas em conta; com verdade tem mesmo que falar porque mentir em tribunal é crime, o sr. sabe disso não é? E jura pela sua honra que vai dizer a verdade? (00:20)
Autor: - Juro (00:56). (o sublinhado e destacado é nosso).
10ª
Porém, e lida e relida a douta decisão em crise no presente recurso, em lado algum se pode ler que as declarações de parte do aqui recorrente não tenham sido objectivas, isentas ou mesmo idóneas a comprovar a tese que o recorrente verteu na petição inicial.
Ficou, assim, o recorrente sem perceber por que motivo o Tribunal a quo não valorou o seu demorado e pormenorizado depoimento.
E escutado todo esse depoimento na sua integralidade não há, com o devido respeito por opinião diversa, a mínima hesitação, a mínima contradição, a mínima suspeita de não estar o recorrente a falar com verdade.
11ª
Como se referiu no corpo destas alegações o recorrente – à semelhança do condutor do veículo seguro na recorrida – eram os únicos que poderiam, na primeira pessoa, explicar o modo como ocorreu o acidente.
Ocorre, assim, perguntar se terá o recorrente de sair prejudicado pelo facto de o condutor do veículo seguro na recorrida ter, entretanto, falecido e não tenha podido dizer, também na primeira pessoa, como tinha ocorrido a colisão entre os veículos?
Óbvia e seguramente que não.
12ª
Por um lado, tudo aquilo que o recorrente foi referindo nas suas declarações teve e tem respaldo na demais prova constante dos autos; por outro, porque o não considerar essas mesmas declarações é uma clara violação ao disposto no artigo 466º do Cód. Proc. Civil e um absoluto desvirtuar do espírito do Legislador que presidiu a introdução dessa mesma possibilidade.
É que, como é sabido, há variadíssimas situações em que apenas as partes sabem o que ocorreu, como as coisas se passaram.
E o caso dos autos é claramente uma dessas situações, tanto mais que não há qualquer testemunha que tenha presenciado a colisão.
13ª
E como já se deixou supra referido não há na decisão em crise a mais ténue referência quanto à verosimilhança, idoneidade, sinceridade, objectividade ou isenção dessas mesmas declarações.
Pura e simplesmente foram desconsideradas.
14ª
E como vai sendo entendimento quer da Jurisprudência, quer da Doutrina, as declarações de parte são mais um, de entre muitos, meios de prova legalmente possíveis e que devem ser apreciadas segundo o princípio da livre apreciação da prova.
15ª
Não há em toda a decisão recorrida, como se referiu, a mais ténue referência a qualquer outro meio de prova que pudesse ter a virtuosidade de colocar em crise as declarações isentas, objectivas e sinceras prestadas pelo aqui recorrente em sede de audiência de discussão e julgamento.
Nem mesmo as duas perícias encomendadas pela recorrida, que partem de princípios errados, como muito bem a Meritíssima Juíza a quo refere, análise com a qual estamos absolutamente de acordo.
16ª
Com efeito, aquelas perícias não só foram realizadas sem que os seus autores tivessem acesso a registos fotográficos que demonstrassem os danos que um dos veículos intervenientes no acidente apresentava – no caso o veículo seguro na recorrida – como e acima de tudo sem conhecimento da posição final dos veículos intervenientes.
17ª
É que, para que se consiga demonstrar todo o itinere percorrido pelos veículos intervenientes, necessário se torna que se conheça a posição final dos mesmos, pois é dessa mesma posição que se (re)constrói o acidente, ou seja, constrói-se o acidente do fim para o princípio.
18ª
E, desconhecendo, como desconheciam os autores daquelas perícias esse facto concreto, todas e quaisquer simulações que fizessem – nem que por aproximação – estavam e estão inquinadas à nascença, motivo por que não merecem qualquer credibilidade pois não passam de meras suposições e/ou conjecturas.
19ª
E o que terão tido essas mesmas declarações de especial para que não pudessem ter sido validadas pelo Tribunal a quo?
Existiu algum outro meio de prova que impedisse que essas mesmas declarações de parte do recorrente pudessem ter sido validadas ou as tivesse colocado em crise?!
20ª
Pelo contrário! Esse seu depoimento, essas suas declarações de parte encontraram eco em dois elementos objectivos que constam da participação do acidente de viação elaborada pelo agente da GNR que ali se deslocou:
a) – desde logo o local provável do embate que, não só foi indicado pelo condutor do veículo seguro na recorrida, mas também pela existência de vestígios nesse mesmo local (vidros e plásticos partidos, sobretudo do veículo seguro na recorrida) e
b) – por outro lado, os danos que foram verificados por esse agente participante, que fez constar em local próprio, no que tange ao veículo seguro na recorrida e que se verificavam na frente do lado direito.
21ª
Assim, considerando as declarações de parte prestadas pelo aqui recorrente na sua globalidade, coadjuvadas com esses elementos objectivos, como pode a Meritíssima Juíza a quo dizer que se manteve a dúvida quanto à real dinâmica do acidente?!!!
22ª
As regras da experiência e do normal suceder, como foi referido pela Meritíssima Juíza a quo, impõem que se conclua pela culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na recorrida.
Por um lado, porque estava a descrever uma curva para a sua esquerda – que leva sempre o condutor a cortar a curva, invadindo a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha –; por outro, porque o embate ocorre a 65 cms do eixo da via – na faixa esquerda atento o sentido de marcha prosseguido pelo recorrente – e, finalmente, a parte do veículo seguro que tem intervenção no acidente dos autos – parte da frente do lado direito – o que apenas nos pode levar a concluir, com toda a certeza, que a maior parte do veículo se encontrava na faixa de rodagem destinada ao trânsito que ali circulava como o fazia o recorrente.
23ª
E não colhe, nem pode colher, a tese do condutor do veículo da recorrida quando refere que ainda tentou evitar o acidente guinando para a esquerda.
Como seria possível que isso assim tivesse sucedido e o embate acabasse por se verificar com a frente do lado direito – farol frontal direito – quando, como o referiu o recorrente em declarações de parte, tudo se passou numa fracção de segundos?
24ª
Pelas mais elementares regras de experiência e do normal suceder jamais este condutor conseguiria em tão curto espaço de tempo – quer em termos de metros, quer em termos de segundos – sair da sua faixa de rodagem e deixar apenas 65 cms da sua via ocupada, quando o recorrente estava a sair de uma curva que não tinha, como se observa das várias imagens juntas aos autos, a mais ténue visibilidade por se tratar de uma curva fechada.
25ª
Como se afirmou no ponto III do corpo destas alegações o Tribunal a quo deveria ter decidido que o acidente descrito na petição inicial se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na recorrida por violação do disposto nos artigos 3º e 13º do Código da Estrada.
26ª
Foi, efectivamente, a invasão da metade esquerda da faixa de rodagem por parte do condutor do veículo seguro na recorrida, atento o seu sentido de marcha, que esteve na origem do sinistro descrito nos autos.
27ª
Por isso, e como se deixou referido no ponto III destas alegações, para além da matéria de facto tida já por provada, deveria ter sido dada igualmente como provada a seguinte matéria de facto:

FACTOS PROVADOS:

4. No dia 11.03.2015, pelas 15.40 horas, o motociclo conduzido pelo autor e pertencente a J. F., com a matrícula DU (doravante, DU), circulava pela E.N. 205, no sentido Amares/Póvoa de Lanhoso, tendo colidido com o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula número CZ (doravante CZ), conduzido por J. P. e a este pertencente.
5. O CZ seguia no sentido oposto, tendo a colisão ocorrido na metade esquerda, atento o sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
6. A colisão ocorreu a 65 centímetros do eixo da via.
8. O contacto deu-se entre a parte da frente do lado direito, lateral direita do veículo CZ, e a parte lateral direita do motociclo DU, apanhando o membro inferior direito do autor.
9. Após a colisão, o DU seguiu de modo descontrolado para a esquerda, considerando o sentido e marcha que levava, vindo a imobilizar-se na berma do lado esquerdo, atento o sentido de marcha Amares/Póvoa de Lanhoso.
10. O CZ imobilizou-se uns metros, não concretamente apurados, mais à frente, atento o sentido de marcha Póvoa de Lanhoso/Amares.
11. No momento em que os condutores dos veículos colidentes tiveram a percepção recíproca da (respectiva) presença, o DU seguia pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido que levava (Amares/Póvoa de Lanhoso), junto à berma do lado direito.
12. O DU seguia a uma velocidade não excedente 50 Kms/hora.
13. E quando acabava de descrever uma curva para a sua direita, o condutor do DU deparou-se com o veículo CZ a ocupar totalmente a hemi-faixa destinada ao sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
14. Por causa do referido em 13. o autor invadiu a hemi-faixa da esquerda, considerando o sentido que levava, como manobra de evasão.
28ª
E como matéria de facto que se deverá, em consequência, ter como não provada, teremos a seguinte:

FACTOS NÃO PROVADOS

a) Que no dia e hora referidos, o CZ circulasse do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido Póvoa de Lanhoso/Amares.
b) Que, ao iniciar a curva à esquerda, o CZ se tenha deparado com o motociclo conduzido pelo autor na hemi-faixa destinada ao sentido Póvoa de Lanhoso/Amares.
c) Que o DU não tenha conseguido descrever a curva para a direita e, por isso, haja transposto o eixo da faixa de rodagem, indo em frente.
d) Que, nesse momento e por causa de tal invasão, o condutor do CZ tenha virado para o seu lado esquerdo.
29ª
Porém, e se assim se não entender – o que se ventila por mera necessidade de raciocínio sem se conceder ou conceber – sempre o presente sinistro poderá ser decidido com base na responsabilidade objectiva.
Todavia, não deverá na proporção que a Meritíssima Juíza a quo plasmou na decisão recorrida de 40% para o motociclo e 60% para o veículo ligeiro.
30ª
Com efeito, e como vai sendo entendimento dos nossos Tribunais Superiores em situações similares às dos autos essa divisão ocorre sempre na ordem de 25% ou ¼ para o veículo de duas rodas e 75% ou ¾ para o veículo ligeiro.
31ª
É que, como é sabido, o que está aqui em causa – na responsabilidade objectiva – é apenas e tão só a capacidade de um ou do outro veículo em provocar danos a terceiros (e não ao utilizador).
Assim sendo, como efectivamente é, jamais pela volumetria, peso e dimensões dos veículos intervenientes no acidente dos autos poderia ocorrer semelhante divisão de 60% – 40%.
32ª
A acrescer ao acabado de referir, e ainda que nada tivesse sido demonstrado quanto ao modo como ocorreu o acidente – e foi – sempre deveria o Tribunal a quo ter ponderado o local provável do embate e as partes dos veículos que estiveram envolvidas na colisão, ou seja, o embate ocorre a 65 cms do eixo da via, na metade esquerda, atento o sentido de marcha do recorrente e o motociclo conduzido pelo recorrente é embatido na sua lateral direita pela parte frontal direita do veículo seguro na recorrida.
33ª
Ainda que em termos de repartição do risco dos veículos intervenientes no acidente em crise nos presentes autos, sempre essas duas circunstâncias – absolutamente objectivas – deveriam ter influenciado uma outra divisão da responsabilidade objectiva, no sentido de não ser atribuir ao motociclo conduzido pelo recorrente mais do que 25% ou ¼ dessa mesma responsabilidade.
34ª
Finalmente e no que ao valor do vencimento do recorrente diz respeito, outra decisão se impunha, não só pela prova testemunhal produzida nos autos como por toda a prova documental constante do mesmo.
35ª
Com efeito, desconsiderou a Meritíssima Juiz a quo as declarações produzidas pela testemunha P. M. quando referiu que o recorrente teria um vencimento de 1.200€, acrescido de ajudas de custo.
36ª
E desconsiderou essas declarações porque não era esse o valor que a declaração que a X (entidade patronal do recorrente) juntou aos autos a fls. 354 referia.
No entanto o que aquela declaração refere é que, no mês de Março de 2015 (mês do acidente) pagou ao recorrente 796,41€.
37ª
Mas essa declaração não pode ser considerada sem a necessária confrontação com o recibo de vencimento (daquele mesmo mês) junto por aquela mesma entidade e onde consta que o recorrente naquele mês recebeu:
g) – a quantia de 318,00€ de vencimento base;
h) – a quantia de 52,50€ de subsídio de alimentação;
i) – a quantia de 17,04€ de diuturnidades;
j) – a quantia de 117,00 de subsídio domingo/feriado;
k) – a quantia de 45,00€ de direitos anteriores e
l) – a quantia de 284,00€ de retroactivos,
ou seja e no que às alíneas a), b) e c) diz respeito, recebeu aquelas quantias em função dos dias úteis (8) que naquele mês trabalhou.
38ª
Assim, através daquele mesmo recibo de vencimento, poderia a Meritíssima Juiz a quo verificar que o vencimento base do recorrente era de 1.079,00€, pois é esse o valor que lá consta e, por simples cálculo aritmético, seria acrescido de:
c) – 144,37€ de subsidio de alimentação (6,56€ x 22) e
d) – 46,86€ de diuturnidades.
39ª
Isto porque, se o recorrente, a título de subsídio de alimentação recebeu 52,50€ por 8 dias de trabalho, teríamos um valor diário de 6,52€, o que representaria um valor mensal de 144,37€ (11 vezes por ano).
E, se a título de diuturnidade recebeu a quantia de 17,20€, também em função desses mesmos 8 dias de trabalho, teríamos o valor diário de 2,13€, o que representaria um valor mensal de 46,86€.
O que tudo somado, representava um rendimento mensal de 1.270,23€.
40ª
Como se isto não bastasse, da própria documentação de fls. 114 e seguintes junta pela Companhia de Seguros Y, consta que o salário médio mensal do recorrente é de 1.464,40€, salário que também engloba trabalho suplementar; Domingos e feriados e eventuais pagamentos de comissões de vendas.
Daquela documentação, também se pode inferir que ao recorrente era pago um valor diário de 36,10€ a título de ITA, valor que é encontrado da seguinte forma: - remuneração anual x 70% : 365= 36,10€.
É que, se não auferisse, pelo menos aquele valor – valor médio de 1.464,40€ -, o mesmo não estaria transferido e não seria aceite pela companhia de seguros Y, companhia que segura os eventuais acidentes de trabalho, como é o caso do acidente que se discute nos presentes autos, mas na versão de acidente de viação.
41ª
Por tudo isto, a matéria de facto dada como provada no artigo 54 deverá passar a ter a seguinte redacção:
À data do acidente o autor era gerente de loja de mobiliário e artigos para o lar, cabendo-lhe a tarefa de atender clientes e fornecedores, assim como supervisionar o trabalho dos operadores de loja, com um vencimento médio mensal de, pelo menos, 1.270,00€ ou deverá ser acrescentada à matéria de facto dada como provado, um novo artigo onde passe a constar que:
O autor, à data do acidente tinha, pelo menos, um vencimento mensal de 1.270,00€.
42ª
Feita esta alteração, alterado também terá de ser o quantum fixado a título de reflexo patrimonial do dano biológico pois, tomando como bons os todos os critérios que a Meritíssima Juiz a quo expendeu na sentença de fls a esse respeito e que aqui, por economia processual se dão por integralmente reproduzidos, temos que será adequado para indemnizar o recorrente deste prejuízo, a quantia de 330.708,00€ (1.270,00€ x 14 x 31 x 60%).
Pelo exposto, substituindo a decisão proferida em 1ª Instância por uma outra que julgue o condutor do veículo seguro na recorrida como único e exclusivo culpado pela ocorrência da colisão, ou quando muito – por uma questão de mera necessidade de raciocínio – uma divisão do risco na proporção de 25% para o motociclo e 75% para o veículo ligeiro e condene a recorrida a pagar ao recorrente a quantia de 330.708,00€ a título de reflexo patrimonial do dano biológico/perda futura de ganho se fará sã e acostumada JUSTIÇA».
*
A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação do Autor.

1.4. Igualmente inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«A) Impugnação da decisão de facto
i. Facto provado nº 8
1. Propõe-se que o nº 8 dos factos provados assuma a seguinte redacção:
“O contacto deu-se entre a parte lateral direita, zonas da frente e do centro, do veículo CZ e a parte lateral direita do motociclo DU, apanhando o membro inferior direito do autor.”
2. No que ao veículo seguro na R. respeita, a prova esclareceu que os danos incidiram sobre a sua lateral direita, nas zonas da frente e central (e não sobre a frente do veículo, à direita):
a) Relatório da “K. quality” de fls. 62 e ss. (págs. 10, § 2º, e 14, § 3º);
b) Relatório de peritagem técnico-científica da “W” de fls. 773 e ss. (págs. 17, ponto 5.1.2., nº 1, e 27, conclusão nº 3);
c) Orçamento de reparação de fls. 833 a 834 v.;
d) Depoimento da testemunha M. J. (ficheiro 20210113 121350_5550307_2870528, passagens da gravação: 00:05:27 – 00:07:54 e 00:07:14 – 00:10:43).
ii. Aditamento aos factos provados de um ponto nº 8 A
3. A decisão de facto omite qualquer referência à tipologia de contacto e de danos sofridos pelos veículos, bem como às concretas partes embatidas, sendo que essa factualidade, resultante da instrução da causa, é instrumental ou probatória, pois dela depende o julgamento da questão da dinâmica do acidente, e pode ser considerada pelo julgador nos termos do art. 5º/2 do CPC.
4. Propõe-se o aditamento aos factos provados de um novo ponto nº 8 A, com o seguinte teor:
“Em resultado do contacto referido no número anterior, o veículo CZ sofreu danos na sua lateral direita, zonas da frente e do centro (pára-choques, guarda-lamas, capot, farol, roda da frente, pilar A, retrovisor e porta da frente, incluindo manípulo exterior, fechadura e friso), cuja reparação foi orçamentada em € 1.113,72 (sem IVA), e o motociclo DU sofreu danos de raspagem em toda a extensão da lateral direita (desde a carenagem do farol, passando pela forra do motor e pelo patim, até à ponteira de escape), com transferência de tinta vermelha daquele outro veículo, e, em virtude da queda, na lateral esquerda, que apresentava vestígios de ervas nas carenagens e de terra na protecção da manete, não tendo sofrido danos mecânicos.”.
5. Essa matéria resulta dos seguintes meios probatórios:
a) Orçamento de reparação de fls. 833 a 834 v. (quanto às partes do veículo seguro na R. concretamente embatidas e ao preço da sua reparação);
b) Relatório da “K. quality” de fls. 62 e ss. (pág. 10) e respetiva reportagem fotográfica (primeiras 28 fotografias), que mostra danos de raspagem, com transferência de tinta vermelha do veículo seguro na R., em toda a extensão do lado direito do motociclo, desde a carenagem do farol, passando pela forra do motor e pelo patim, até à ponteira de escape (fotografias nºs 17 a 26), e, do lado esquerdo, vestígios de ervas nas carenagens e de terra na protecção da manete (fotografias nºs 10, 11, 15 e 16);
c) Depoimento da testemunha M. R., que confirmou a coautoria e o conteúdo do relatório referido na alínea anterior (ficheiro 20201209 141209_5550307_2870528, passagem da gravação: 00:04:12 – 00:07:20).
iii. Alíneas f), i), j) e k) dos factos não provados
6. Propõe-se a revogação da decisão vertida nas alíneas f), i), j) e k) dos factos não provados e, consequentemente, o aditamento aos factos provados da seguinte matéria:
- “O CZ circulava do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido Póvoa de Lanhoso – Amares.”;
- “Ao iniciar a curva à esquerda, o CZ deparou-se com o motociclo conduzido pelo A. na hemifaixa no sentido Póvoa de Lanhoso – Amares.”;
- “O DU não conseguiu descrever a curva para a direita e, por isso, seguiu em frente, transpondo o eixo da faixa de rodagem.”;
- “Para tentar evitar o embate, o condutor do veículo CZ desviou-se para o seu lado esquerdo.”.
7. Essa matéria encontra suporte nos seguintes meios probatórios:
a) Auto de participação de acidente de fls. 34 e ss., contendo as declarações prestadas, no local do acidente, pelo segurado da R. ao GNR B. R.;
b) Relatório da “K. quality” de fls. 62 e ss. (pág. 7), contendo as declarações prestadas pelo segurado da R. ao averiguador M. R.;
Nota: Dada a impossibilidade de o segurado da R. testemunhar em audiência (por motivos de falecimento), ambas as declarações são passíveis de ponderação, em articulação com a restante prova;
c) Relatório de peritagem técnico-científica de fls. 773 e ss. - págs. 2 (último parágrafo do ponto 1), 14 e 15 (8 fotografias), 16 (pontos 5 e 5.1.1.), 17 (ponto 5.1.2.), 18 (ponto 5.2.), 19 (pontos 6.2. e 6.3.1.), 23 (ilações extraídas da simulação computacional nº 1), 26 (ilações extraídas da simulação computacional nº 2) e 27 e 28 (conclusões finais);
d) Testemunho do Sr. Eng. S. S. (ficheiro 20201209 101634_5550307_2870528, passagens da gravação: 00:01:15 – 00:01:36, 00:02:55 – 00:05:14, 00:08:12 – 00:14:50, 00:17:07 – 00:17:21, 00:17:22 – 00:18:12, 00:18:18 – 00:20:49, 00:20:53 – 00:21:13, 00:22:41 – 00:56:40, 01:05:38 – 01:08:38, 01:13:00 – 01:13:30, 01:16:45 – 01:18:30 e 00:19:08 – 01:20:45);
Nota: O som da gravação do depoimento do Sr. Eng. S. S. (bem como da demais prova produzida na mesma sessão de julgamento de 9.12.2020) é baixo e dificulta, mas não impossibilita, a sua audição, pelo que, ao abrigo do princípio da cooperação, a R. manifesta aqui a sua disponibilidade para transcrever o referido depoimento, se isso for considerado útil pelo Senhor Juiz Relator.
8. As simulações computacionais nºs 1 e 2 permitiram concluir, respectivamente, que a tipologia de contacto e de danos, bem como as concretas partes dos veículos embatidas, são compatíveis com a dinâmica do acidente descrita pelo segurado da R., e acolhida na contestação, e incompatíveis com a versão do acidente trazida aos autos pelo A..
9. Os esclarecimentos prestados pelo Sr. Eng. S. S., sobre a peritagem técnico-científica e os seus resultados, foram claros:
a) na dinâmica descrita pelo segurado da R., os veículos vão a fugir um do outro, cada um para a sua esquerda, pelo que as suas energias não conflituam, e nenhum dos movimentos prevalece sobre o outro; cada um dos veículos dá a sua direita ao outro e, por isso, quando se cruzam, estão lado a lado e as suas laterais direitas contactam de raspão, de forma continuada, assim se produzindo os danos de raspagem nas laterais direitas dos veículos, com transferência de tinta vermelha de um para o outro;
b) já na versão do A., ambos os veículos se desviam na mesma direcção (o motociclo para a sua esquerda e o ligeiro para a sua direita), pelo que as suas energias entram em confronto, sendo que o movimento do ligeiro prevalece sobre o do motociclo; ambos os veículos formam um ângulo agudo (o ligeiro está em posição oblíqua com a frente a apontar para a lateral direita do motociclo) e nunca ficam lado a lado (as laterais direitas nunca contactam). Há um impacto único, instantâneo e severo entre a frente do ligeiro e a lateral direita do motociclo, que é empurrado, vai pelo ar e cai no chão, sendo os danos (de deformação e perfuração da chapa) mais graves.
10. A factualidade resultante do relatório de peritagem técnico-científica e do testemunho do Sr. Eng. S. S. dissipa quaisquer dúvidas razoáveis sobre a versão do acidente alegada na contestação e possibilita a transição da matéria das als. f), i), j) e k) dos factos não provados para os factos provados.
iv. Facto provado nº 16
11. O valor da pensão indicado no nº 16 dos factos provados é o que vigorava em 2017; a partir de Janeiro de 2018, o valor passou a ser de € 789,32, como resulta da informação prestada pela “Y” nos autos (com data de 9.5.2018) – “A seguradora continua a proceder ao pagamento da pensão mensal no valor de € 789,32.” - bem como dos avisos de pagamento juntos a essa informação, emitidos em 7.11.2017, 27.11.2017, 20.12.2017, 29.1.2018, 24.2.2018, 26.4.2018 e 28.3.2018, em particular dos últimos quatro avisos, dos quais resulta que a pensão sofreu, em Janeiro de 2018, uma actualização de € 13,96, do que resultou uma pensão no valor de € 789,42.
12. Impõe-se, por isso, a alteração do nº 16 dos factos provados, sugerindo-se que a parte final assuma a seguinte redacção:
“…, ascendendo a € 7.087,84 o montante recebido a título de pensão (€ 775,46 / mês em 2017 e € 789,42 / mês em 2018) após alta, entre os meses de Novembro de 2017 e Abril de 2018.”.
v. Aditamento aos factos provados de um ponto nº 16 A
13. Os avisos de pagamento juntos com a informação da “Y” de 9.5.2018 revelam, por um lado, que, entre 12.6.2015 e 31.5.2018, o A. recebeu daquela seguradora, a título de assistência de terceira pessoa, a quantia total de € 7.647,87 e, por outro, que, nessa última data, o valor da prestação, a esse título, era de € 244,28.
14. Daquela informação da “Y”, bem como da documentação anexa, resulta, também, que esta, ao abrigo da apólice de seguro de acidentes de trabalho, e no âmbito dos autos de acidente de trabalho, assumiu a reparação do acidente de trabalho e tem vindo a suportar, para além da assistência de terceira pessoa, as demais despesas do A., nomeadamente médicas, medicamentosas e com transportes e ortóteses.
15. Essa matéria é relevante e não há por que a omitir na decisão de facto, sob pena de o A. poder ser ressarcido em duplicado, no âmbito destes autos e dos autos de acidente de trabalho nº 1092/16.6T8BRG.
16. Assim, propõe-se o aditamento aos factos provados de um novo ponto, que poderá assumir o nº 16 A, com o seguinte teor:
“Além do pagamento das prestações referidas em 16., a “Y” tem vindo a reembolsar o A., desde a data do acidente, das suas despesas médicas, medicamentosas e com transportes, ortóteses e assistência de terceira pessoa, tendo-lhe pagado por esta assistência (de terceira pessoa), no período compreendido entre 12.6.2015 e 31.5.2018, a quantia total de € 7.647,87, sendo que a respectiva prestação mensal ascendia nessa última data a € 244,28.”.
vi. Facto provado nº 40
17. Do nº 40 dos factos provados deverá transparecer que o A. responde bem à medicação para a disfunção eréctil (Cialis 20 mg), como resulta do relatório do INML de fls. 797 e ss. (pág. 3), bem como da informação clínica anexada a esse relatório sob doc. 5, pelo que se sugere que o mesmo assuma a seguinte redacção:
“Por causa do acidente, o A. passou a apresentar disfunção eréctil, respondendo bem à respectiva medicação (com “Cialis” 20 mg).”
vii. Factos provados nºs 43 e 44
18. Porque, quanto à assistência de terceira pessoa, o relatório do INML de fls. 797 e ss. apenas diz que “…, o examinando beneficiará de auxílio de terceira pessoa, para auxílio das AVDs, com uma periodicidade de aproximadamente 2h/dia.”, e não foi produzida qualquer prova sobre as actividades da vida diária que justificam essa ajuda, nem sobre a parte final do nº 43 dos factos provados, propõe-se que os nºs 43 e 44 dos factos provados dêem lugar a um único ponto, com a seguinte redacção:
“O A. necessita do auxílio de terceira pessoa para tarefas do dia a dia, pelo menos duas horas diárias.”.
viii. Facto provado nº 47
19. Provou-se a possibilidade de adaptação de um veículo para que possa ser conduzido sem a utilização do membro inferior direito (informação prestada nos autos pela empresa “Electro Mecânica R., Lda.” em 4.12.2020) e, desse modo, o preenchimento da única condição de que o INML fez depender a possibilidade de o A. continuar a exercer a sua actividade profissional (pág. 5 dos esclarecimentos prestados pelo INML a fls. 825 e ss.), não se vislumbrando por que é que o tribunal a quo verteu, no nº 47 dos factos provados, decisões alternativas, contemplando a hipótese de o A. não conseguir conduzir um veículo adaptado, com óbvio prejuízo da clareza do julgamento do ponto de facto em causa.
20. Sugere-se que o nº 47 dos factos provados assuma a seguinte redacção, única com suporte nos referidos elementos probatórios:
“O A. poderá continuar a exercer a sua profissão, com constantes e significativos esforços acrescidos, para o que deverá conduzir um veículo adaptado.”.
21. O A. não provou, minimamente, a matéria dos nºs 48 a 53 e 58 dos factos provados, nem fez qualquer esforço probatório nesse sentido (com excepção dos nºs 48, até “… Funchal”, 49, na parte em dele resulta que o A. era saudável, dinâmico e trabalhador e 51, na parte em que diz “estando o autor actualmente separado da mulher.”); não parece que as regras da experiência e da normalidade, convocadas pelo tribunal a quo, sejam suficientes, só por si, para julgar provados factos da natureza daqueles (quanto aos nºs 49 e 58, o tribunal a quo não fundamentou a decisão aí vertida).
22. A ausência de suporte probatório obriga à eliminação dos factos provados nºs 48 a 53 e 58.

B) Do Direito

a) Culpa do A.
23. A esperada procedência da impugnação da decisão de facto, na parte em que visa a alteração do nº 8 dos factos provados, o aditamento a estes de um ponto nº 8 A e transposição para os factos provados da matéria das alíneas f), i), j) e k) dos factos não provados, conduzirá, quase automaticamente, à procedência da apelação e à absolvição total da R. do pedido.
24. Da decisão de facto, com as modificações e aditamentos referidos na conclusão anterior, resultará que o A. violou os arts. 13º/1, 18º/2 e 25º/1 f) do CE e do art. 60º/1 (marca M1) do Regulamento de Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1.10, alterado pelo Decreto-Regulamentar nº 41/2002, de 20.8, e foi o único responsável pela produção do sinistro, pelo que nenhum direito de indemnização tem sobre a R..
b) Aplicação indevida dos arts. 503º/1 e 506º/1 do CC
25. Ainda que a decisão de facto fosse confirmada, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, sempre o tribunal a quo teria aplicado os arts. 503º/1 e 506º/1 do CC (responsabilidade pelo risco) e fixado a proporção de responsabilidade dos condutores indevidamente.
26. O art. 506º/1 do CC pressupõe a ausência de culpa dos condutores, sendo que qualquer uma das versões do acidente em confronto nos autos envolve culpa de um ou outro condutor, e mesmo os poucos factos provados sobre as circunstâncias do acidente não deixam dúvidas sobre a existência de culpa de um dos condutores ou, até, de ambos; houve, necessariamente, culpa; não se sabe é de quem (isso porque a decisão de facto, tal como está, é insuficiente para esclarecer essa dúvida).
27. Estando as partes de acordo quanto à existência de culpa, ainda que não quanto ao culpado, e deixando a decisão de facto, mesmo na versão actual, perceber que o acidente foi causado, inevitavelmente, por culpa de algum dos condutores, o que subsiste é uma dúvida quanto ao condutor culpado, que a prova não permitiu dissipar, pelo há que aplicar a segunda parte do nº 2 do art. 506º do CC e, nos seus termos, considerar igual a medida da contribuição da culpa do A. e do segurado da R..
28. Mesmo que se considere que o tribunal a quo esteve bem ao aplicar o nº 1 do art. 506º do CC, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, sempre se discordará do critério de repartição da responsabilidade adoptado pelo tribunal a quo, ou seja, da forma como este fixou a proporção em que o risco de cada um dos veículos terá contribuído para os danos.
29. A proporção do contributo do risco de cada um dos veículos para os danos deve ser definida em concreto, e não em abstracto, pelo que há que recorrer à decisão de facto para determinar o contributo do risco do veículo seguro na R. e do motociclo do A. para os danos, sendo que essa decisão não revela que o risco do primeiro veículo haja contribuído para os danos em maior grau do que o risco do segundo veículo. No mínimo, essa decisão, pela sua insuficiência, não permite que se determine a medida da contribuição do motociclo do A. e do veículo seguro na R. para os danos, sendo que, na dúvida, se deverá aplicar o já invocado nº 2 do art. 506º do CC e, nos seus termos, considerar igual a medida da contribuição para os danos de um e outro veículo.
30. Assim, se improcedesse a impugnação da decisão de facto, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, a responsabilidade dos condutores pelo acidente deveria ser repartida pelo A. e pelo segurado da R. na mesma proporção, independentemente do regime de responsabilidade (por factos ilícitos ou pelo risco) aplicado.
c) Danos do A.
 Não patrimoniais
31. O montante fixado a título de danos não patrimoniais não se enquadra nos padrões indemnizatórios adoptados noutros casos idênticos ao do A., pecando, à luz desses padrões, por excesso, com o que se desrespeitou o art. 8º/3 do CC, reflexo do princípio da igualdade, consagrado no art. 13ª da CRP, nos termos do qual sinistrados em situação idêntica não devem ser tratados de forma desigual.
32. Ponderando as circunstâncias previstas no art. 494º do CC, a que manda atender o art. 496º/4 (sendo que quer a fixação do grau de culpabilidade com recurso ao nº 2 do art. 506º do CC, quer a responsabilização pelo risco não podem deixar de pressionar a redução da compensação dos danos não patrimoniais), considera-se que, a haver alguma responsabilidade da R., os referidos danos não deveriam ser valorados em mais do que € 100.000,00, a suportar por aquela na proporção de 50%.
 Patrimoniais futuros
33. As pensões recebidas e a receber pelo A. da “Y”, pela redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho, ao abrigo da L. nº 98/2009, de 4.9, e no âmbito dos autos de acidente de trabalho nº 1092/16.6T8BRG, não podem deixar de ser deduzidas à indemnização por danos patrimoniais futuros, resultantes do dano biológico, que for fixada no presente processo cível.
34. Na parte em que há coincidência entre os objectos dos processos cível e de acidentes de trabalho, a decisão proferida no primeiro deve complementar, e não substituir ou sobrepor-se, à decisão proferida no segundo processo, o que, passando ao concreto, quer dizer que qualquer indemnização por danos patrimoniais futuros que venha a ser fixada nestes autos não deverá destinar-se a substituir a pensão fixada nos autos de acidente de trabalho, ou seja, não prevalecerá sobre a condenação da “Y” nesse autos, nem a “apagará”.
35. Numa lógica de complementaridade de regimes jurídicos distintos - de reparação de acidentes de trabalho e de responsabilidade civil automóvel -, a indemnização por danos patrimoniais futuros deverá corresponder à diferença, se existente, entre o valor fixado nestes autos, de acordo com as regras do direito civil, e a pensão anual vitalícia fixada nos autos de acidente de trabalho, calculada de acordo com o regime de reparação de acidentes de trabalho.
36. Se alguma responsabilidade da R. houvesse, a indemnização por danos patrimoniais futuros, a suportar pela R. na proporção da sua responsabilidade (que se entende ser de 50%), deveria corresponder à diferença entre o valor base mensal de € 850,00 (considerado pelo tribunal a quo) e o valor da pensão mensal definitiva que for fixado nos autos de acidente de trabalho, com efeitos retroactivos à data da alta, mantendo-se os demais factores da multiplicação usados pelo tribunal a quo, ou seja, 14 pagamentos por ano, uma esperança de vida de 31 anos e 60 pontos de dano biológico.
37. Porque o valor da pensão definitiva ainda não foi fixado naqueles autos, dependendo da prévia determinação do grau de incapacidade para o trabalho, qualquer condenação a proferir nestes autos, a título de danos patrimoniais futuros, deverá ser em valor a liquidar.
38. Se se considerasse, para efeitos de cálculo, o valor mensal da pensão provisória de 2018 (€ 789,42), os danos não patrimoniais do A. passíveis de ressarcimento nos presente autos ascenderiam a € 15.775,03, assim calculados: (€ 850,00 - € 789,42) x 14 meses x 31 anos X 60%. O recebimento desse valor de uma só vez sempre representaria um benefício para o A., pelo que se justificaria a sua redução em, pelo menos, 1/4, ou seja, para € 11.831,27; se a R. respondesse na proporção de 50%, como acima se pugnou (se responsabilidade houvesse), o valor a pagar seria de € 5.915,64.
39. O exercício contido na conclusão anterior mostra bem que o A. está e continuará a ser ressarcido da quase totalidade do seu dano pela redução da capacidade de trabalho ou de ganho nos autos de acidente de trabalho, e que o remanescente desse dano, a ser indemnizado nos presentes autos, ficará muitíssimo aquém da condenação proferida pelo tribunal a quo.
40. Mesmo que se desconsiderasse as pensões recebidas pelo A. a partir de Fevereiro de 2021, como fez (erradamente) o tribunal a quo, os seus cálculos, que o conduziram a uma indemnização por danos patrimoniais futuros de € 198.749,80, estariam incorrectos, pois a diferença entre € 221.340,00 e € 25.590,20 é de € 195.749,80 (e não de € 198.749,80) e, mesmo com base no valor da pensão em 2017, as pensões pagas até Janeiro de 2021 ascendem a € 37.330,81 (e não a € 25.590,20). Se, previamente, se tivesse descontado 1/4 ao valor de € 221.340,00 (atendendo aos benefícios que sempre adviriam do recebimento desse valor de uma só vez), e, depois, se descontasse os referidos € 37.330,81, chegar-se-ia a uma indemnização, por danos patrimoniais futuros, de € 128.674,19, longe, ainda assim, dos € 198.749,80 fixados pelo tribunal a quo (a suportar pela R. na proporção da sua responsabilidade).
 Perdas salariais no período de incapacidade absoluta
41. Em caso de responsabilidade da R., a sua condenação, seja a que título for, deverá ser na proporção daquela, a fixar, como já se pugnou, em 50%.
42. O tribunal a quo condenou a R. por perdas salariais durante o período de incapacidade absoluta, em valor a liquidar, sem consideração da proporção da sua responsabilidade, pelo que, se não se revogar a condenação, sempre o referido segmento decisório carecerá de correcção, para que fique claro que a R. só responde por metade das referidas perdas.
 Assistência de terceira pessoa
43. No âmbito dos autos de acidente de trabalho, e nos termos dos arts. 23º b), 47º/1 h) e 3 e 54º da L. nº 98/2009, de 4.9, o A. está a receber da “Y” uma prestação suplementar mensal (ainda provisória) para assistência de terceira pessoa, cujo valor era, em 2018, de € 244,28.
44. O prejuízo indemnizável nos presentes autos corresponde à diferença entre o valor mensal de € 330,00 (fixado pelo tribunal a quo) e o valor da prestação mensal para assistência de terceira pessoa que venha a ser fixado definitivamente nos autos de acidente de trabalho, multiplicada por 12 meses e, depois, por 28 anos, e, por fim, pela percentagem de responsabilidade da R. (mantendo-se, assim, os demais factores da multiplicação usados pelo tribunal a quo).
45. Assim, a haver responsabilidade da R., esta deverá ser condenada, a título de ajuda de terceira pessoa, em valor a liquidar, em virtude de ainda não ter sido fixada, definitivamente, nos autos de acidente de trabalho a respectiva prestação suplementar mensal.
46. Se, para efeitos de cálculo, se considerasse o valor da prestação suplementar mensal em 2018 (€ 244,28), e uma percentagem de responsabilidade de 50%, o valor da condenação da R., a título de assistência de terceira pessoa, não deveria ultrapassar € 14.400,96, assim calculados: (€ 330,00 - € 244,28) x 12 meses x 28 anos x 50%.
 Necessidades referidas no nº 45 dos factos provados
Nulidade parcial da sentença
47. Entre as carências futuras referidas no nº 45 dos factos provados está a readaptação do domicílio, para eliminação de barreiras arquitectónicas, não integrada no pedido do A. (nem, tão-pouco, alegada por este).
48. Nessa parte, em que a R. foi condenada nos custos, a liquidar, com a readaptação do domicílio, a sentença recorrida é nula, nos termos do art. 615º/1 e), in fine, do CPC.
Inexistência do direito de reembolso do A.
49. Porque as despesas com as necessidades referidas no nº 45 dos factos provados, que se compreendem nas prestações em espécie previstas nas diversas alíneas do nº 1 e no nº 2 do art. 25º da L. nº 98/2009, de 4.9, têm vindo a ser pagas pela “Y”, no âmbito dos autos de acidente de trabalho, situação que, por força do regime de reparação ali estabelecido, se manterá ao longo da vida do A., as referidas despesas não constituem um prejuízo para este e, por isso, não merecem a tutela do direito civil.
50. Assim, mesmo que a R. fosse (parcialmente) responsável pela regularização do sinistro, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre se imporia a revogação da sua condenação, na parte relativa às necessidades do A. referidas no nº 45 dos factos provados, e, se assim não se entendesse, a R. só responderia por essas despesas na proporção da sua responsabilidade, o que se omite no dispositivo da sentença recorrida.
 Total indemnizatório fixado na sentença recorrida
51. Ainda que se acolhesse os critérios que orientaram o tribunal a quo nas operações de liquidação das parcelas indemnizatórias, bem como os valores destas parcelas, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, o cálculo da indemnização total estaria incorrecto, pois as três parcelas indemnizatórias líquidas, nos valores de € 200.000,00 (danos não patrimoniais), € 198.749,80 (danos patrimoniais futuros) e € 110.880,00 (ajuda de terceira pessoa) somam € 509.629,80 (e não € 530.989,80), sendo que 60% (percentagem de responsabilidade atribuída pelo tribunal a quo à R.) desse valor é € 305.777,88, pelo que o valor da condenação da R. seria esse (e não € 318.581,88).
52. A sentença recorrida violou, desconsiderou ou aplicou indevidamente os arts. 13º/1, 18º/2 e 25º/1 f) do CE, o art. 60º/1 (marca M1) do Regulamento de Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1.10, alterado pelo Decreto-Regulamentar nº 41/2002, de 20.8, e os arts. 8º/3, 494º, 496º/4, 503º/1, 506º/1 e 2 e 566º/2 do CC.

Termos em que devem V. Exas. conceder provimento à apelação e, em consequência, revogar a sentença condenatória recorrida, absolvendo a R. de todo o pedido, com o que fareis a costumada JUSTIÇA!».
*
O Recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação da Ré.
*
Os recursos foram admitidos como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
**
1.5. Questões a decidir

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são questões a decidir:

i) Nulidade da sentença por condenação em objecto diverso do pedido, «nos termos do art. 615º/1 e), in fine, do CPC» (conclusões 47ª e 48ª da apelação da Ré);
ii) Erro no julgamento da matéria de facto, que tanto o Autor como a Ré assacam à sentença;
iii) Quanto à matéria de direito, em consonância com a modificação da matéria de facto preconizada pelos Recorrentes, constituem questões a decidir:

- Da apelação do Autor:
a) Responsabilidade exclusiva do condutor do veículo seguro pela Ré ou, se assim se não entender, na proporção de 75%;
b) Alteração do montante indemnizatório, «fixado a título de reflexo patrimonial do dano biológico», para o valor de € 330.708,00

- Da apelação da Ré:
c) Culpa exclusiva do Autor na produção do acidente;
d) Aplicação indevida dos artigos 503º, nº 1, e 506º, nº 1, do Código Civil;
e) Excessividade do montante indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais;
f) Dedução no montante referente a danos patrimoniais futuros, resultantes do dano biológico, das pensões recebidas e a receber no âmbito do processo de acidente de trabalho;
g) Incorrecção dos cálculos da indemnização por danos patrimoniais futuros;
h) Ausência de fixação da proporção da responsabilidade por perdas salariais no período da incapacidade absoluta;
i) Relegação para liquidação ulterior do montante indemnizatório a título de ajuda de terceira pessoa, em virtude de ainda não ter sido fixada, definitivamente, nos autos de acidente de trabalho a respectiva prestação suplementar mensal;
j) Inexistência do direito de reembolso do Autor quanto às despesas com as necessidades referidas no nº 45 dos factos provados;
k) Incorrecção do total indemnizatório fixado na sentença recorrida.
***

II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto
2.1.1. Na decisão recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
«1. O autor nasceu no dia - de Janeiro de 1970.
2. O autor casou com a co-autora em - de Julho de 2015.
3. Por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº .......52 a ora ré declarou assumir a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros CZ.
4. No dia 11.03.2015, pelas 15.40 horas, o motociclo conduzido pelo autor e pertencente a J. F., com a matrícula DU (doravante, DU), circulava pela E.N. 205, no sentido Amares/Póvoa de Lanhoso, tendo colidido com o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula número CZ (doravante CZ), conduzido por J. P. e a este pertencente.
5. O CZ seguia no sentido oposto, tendo a colisão ocorrido na metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
6. A colisão ocorreu a 65 centímetros do eixo da via.
7. No local existe uma linha longitudinal contínua a separar as duas hemi-faixas.
8. O contacto deu-se entre a parte da frente do lado direito, lateral direita do veículo CZ, e a parte lateral direita do motociclo DU, apanhando o membro inferior direito do autor.
9. Após a colisão, o DU seguiu de modo descontrolado para a esquerda, considerando o sentido e marcha que levava, vindo a imobilizar-se na berma do lado esquerdo, atento o sentido de marcha Amares/Póvoa de Lanhoso.
10. O CZ imobilizou-se uns metros, não concretamente apurados, mais à frente, atento o sentido de marcha Póvoa de Lanhoso/Amares.
11. No local do acidente, a E.N. nº 205 é sinuosa, composta por duas hemi-faixas de rodagem, uma em cada sentido, com a largura de 2,80 m cada, num total de 5,60 m.
12. O limite máximo de velocidade é de 70 km/h.
13. Aquando do acidente, o tempo encontrava-se seco e o céu limpo. 14. A via apresentava pavimento betuminoso, em bom estado de conservação, e estava delimitada lateralmente por duas linhas contínuas, com valeta e muro do lado direito, considerando o sentido de circulação do DU.
15. O autor tinha 0,29 g/l e THC-COOH 6.4 ng/ml.
16. O acidente foi considerado simultaneamente de trabalho, e corre termos sob o nº 1092/16.6T8BRG, pelo Juízo do Trabalho de Águeda, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, uma acção judicial onde se discute a medida da indemnização devida, tendo o autor recebido da “Companhia de Seguros Y S.A.”, Y, vários valores a título de salários no período de baixa médica, pensão e subsídios de férias, ascendendo a € 7.087,84 o montante recebido a título de pensão (€ 775,46/mês) após alta, entre os meses de Novembro de 2017 e Abril de 2018.
17. Em consequência do acidente o autor sofreu fractura exposta dos pratos tibiais à direita; fractura exposta do pilão tibial direito e fractura do astrágalo, escafóide társico, cunha medial e base do 2º e 4º metatarso à direita.
18. Depois de estabilizado, o autor foi transportado para o S.U do Hospital de Braga, sujeito a exames imagiológicos e submetido a uma intervenção cirúrgica, com lavagem desbridamento, redução e osteotaxia fechada com fixador externo.
19. No dia 29.04.2015 foi ali submetido a nova intervenção cirúrgica para osteossíntese do perónio distal e extracção dos fixadores externos.
20. No dia 02.06.2015 o autor foi submetido a nova intervenção cirúrgica pelas especialidades de ortopedia e cirurgia plástica daquele hospital para remoção do material de osteossíntese, curetagem dos bordos ósseos e plastia da área exposta com retalho muscular de gastrocnémio medial pediculado e tunelizado e enxerto de pele.
21. Permaneceu internado até ao dia 11.06.2015, mantendo tala de Depuy no membro inferior.
22. Iniciou tratamento fisiátrico e teve acompanhamento psicológico.
23. Foi seguido por Urologia e Psicologia no Madeira Medical Center.
24. Esteve em tratamento fisiátrico no Funchal, mantendo-se seguido em todas essas unidades até meados do mês de Dezembro de 2015. 25. Sofreu dores no pé direito, tomando opiáceos, analgésicos e anti-inflamatórios para as atenuar.
26. No dia 01.01.2016 teve que se deslocar para e do aeroporto de ambulância, atento o estado de saúde.
27. Foi-lhe diagnosticada pseudartrose asséptica do pilão e do maléolo externo e fractura dos pratos tibiais viciosamente consolidados com placas e parafusos e, por causa disso, teve que regressar a Aveiro em Janeiro de 2016.
28. No dia 24.01.2016 foi submetido a nova intervenção cirúrgica para substituição do material de osteossíntese.
29. Durante o internamento sofreu complicação por necrose cutânea, deiscência da sutura e exposição do material de osteossíntese.
30. Foi submetido a nova intervenção cirúrgica de arrastamento de pele para cobrir a ferida que apresentava no membro inferior direito e permaneceu internado até ao mês de Abril de 2016, altura em que teve alta hospitalar, regressando, de novo, ao Funchal.
31. O autor fazia penso em dias alternados à ferida que apresentava no membro inferior direito.
32. No mês de Julho de 2016 foi novamente transferido para Aveiro, para tratamentos, tendo sido seguido em Consultas de Psicologia e Urologia.
33. Teve que passar a ser acompanhado em consultas de diversas especialidades, no Porto.
34. No dia 10.12.2016 o autor foi internado no Hospital da ... para se submeter a nova intervenção cirúrgica para artrodese do tornozelo e subastragalina direita, regressando, após alta, a Aveiro.
35. Em Fevereiro de 2017 foi internado no Hospital da ..., no Porto, por apresentar fractura da tíbia na zona do parafuso proximal, tendo o internamento por objectivo uma revisão ao material de osteossíntese que tinha colocado.
36. O autor desenvolveu uma osteomielite da tíbia e acabou por se manter internado para realizar antibioterapia.
37. No dia 24.03.2017 foi submetido a nova cirurgia para osteotaxia com Orthopfix.
38. No dia 27.06.2017 foi novamente internado, tendo sido submetido a mais uma intervenção cirúrgica para extracção do material de osteossíntese colocado no membro inferior direito – fixador externo.
39. A cura das lesões fixou-se no dia 30.10.2017, a que acresceram 83 dias de baixa por uma recaída, continuando o autor a ser acompanhado na consulta de urologia e fisiatria, em Aveiro, e na consulta de psicologia, em Coimbra.
40. Por causa do acidente passou a apresentar disfunção eréctil.
41. Apesar dos tratamentos, o autor apresenta marcha claudicante com recurso necessário a duas canadianas, uso de calçado adaptado e palmilhas adequadas; dorsolombalgias; metatarsalgias; gonalgias bilaterais; perturbações do equilíbrio; perna e pé dismórficos, com pé equino-varo e ligeira rotação externa, com apoio plantar irregular; hipotrofia muscular marcada de todo o membro inferior direito, com amiotrofia da coxa direita de 4 cm em relação à contralateral; encurtamento clínico do membro inferior direito de 25 mm; espessamento e dor no joelho direito, com rigidez na flexão a 90º e completa na extensão, o que não permite avaliar a estabilidade e menisco pela dor e alterações na perna e pé direitos; anquilose subtalar; disfunção eréctil; dismorfias, designadamente, (i) área de extensa perda de substância, com deformidade, e irregular, de 42 cms de extensão nas zonas anterior e lateral, (ii) área de perda de substância, com afundamento de 6 x 1 cms na região maleolar medial direita, (iii) complexo cicatricial com área de enxerto cutâneo no terço proximal e médio da face medial da perna direita, com 20 cms de comprimento por 9 cms de máxima largura (iv), cicatriz cirúrgica do terço distal da face lateral da perna direita até à região calcaneana lateral, medindo 20 cms de comprimento, (v) cicatriz cirúrgica rodeada da distrofia cutânea importante do terço distal da face medial da perna direita até à região maleolar interna, com 14 cms de comprimento; (vi) cicatriz cirúrgica em toda a face posterior da perna, com 26 cms de comprimento por 2 cms de máxima largura (local de enxerto muscular); (vii) complexo cicatricial irregular e distrofia na região aquiliana com 9 cms de eixo maior por 6 cms de eixo menor.
42. O autor sofreu um quantum doloris de grau 7, numa escala de 1 a 7, um défice funcional temporário total de 964 dias, a que acrescem 82 dias resultantes de uma recaída; um dano estético de grau 6, uma repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 7 e um prejuízo sexual de grau 5.
43. Desde a ocorrência do sinistro que o autor está dependente de terceira pessoa para as tarefas mais elementares e básicas do dia-a-dia, pelo menos duas horas por dia, o que o faz sentir-se um estorvo para os seus familiares e amigos.
44. O autor continuará a necessitar de ajuda de terceira pessoa para o auxiliar na sua higiene pessoal, para se vestir, e para outras tarefas do dia-a-dia.
45. Futuramente o autor manterá a carência de ajudas medicamentosas (analgésicos e medicação para a disfunção eréctil), tratamentos médicos regulares (consultas regulares de ortopedia, fisiatria, psiquiatria e urologia) para avaliar a necessidade de novos tratamentos farmacológicos, médicos ou cirúrgicos; de ajudas técnicas (um par de canadianas com braço articulado e botas ortopédicas com compensação à direita) e terá que adaptar o domicílio, eliminando barreiras arquitectónicas.
46. O autor ficou a padecer de um défice da integridade física e psíquica de 60 pontos.
47. Caso o autor consiga conduzir um veículo adaptado ao uso de apenas um membro inferior, poderá continuar a exercer a profissão que exercia, ainda que com constantes e significativos esforços acrescidos; não conseguindo conduzir um veículo adaptado, fica impedido de exercer a profissão habitual.
48. Durante os 4 meses de internamento, o autor tinha a sua mulher e filhos no Funchal, tendo esse isolamento ditado uma degradação do seu estado psicológico, bem como preocupações e ansiedade na autora.
49. Antes do acidente o autor era saudável, fisicamente bem constituído, dinâmico, trabalhador, desportista, social e sociável, efectuando passeios de moto e actividades de todo-o-terreno aos fins-de-semana, nunca mais tendo podido efectuar qualquer dessas actividades.
50. Por causa da disfunção eréctil de que ficou a padecer houve perturbações no casamento.
51. Os complexos, incertezas e inseguranças do autor afectaram a relação conjugal, estando o autor actualmente separado da mulher.
52. Atentas as lesões e as cicatrizes que apresenta no membro inferior direito sente constrangimento em deslocar-se à praia ou à piscina, o que lhe causa tristeza, amargura, incómodo e mal-estar.
53. Na rua, o autor sente-se incomodado quando os outros transeuntes olham para si.
54. À data do acidente o autor era gerente de loja de mobiliário e artigos para o lar, cabendo-lhe a tarefa de atender clientes e fornecedores, assim como supervisionar o trabalho dos operadores de loja.
55. No ano de 2013 o autor auferiu um rendimento ilíquido de € 10.181,91; em 2014 o seu rendimento anual foi de € 11.851,00 e em 2015 o seu rendimento anual foi de € 4.316,79.
56. À data do acidente mantinha a mesma entidade patronal e as mesmas funções.
57. Depois do acidente não mais trabalhou.
58. Após a separação referida em 51), o autor deixou de ter qualquer tipo de relacionamento mais íntimo, o que lhe provoca profunda tristeza, amargura e angústia».
*

2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos:

«a) Que no momento em que os condutores dos veículos colidentes tiveram a percepção recíproca da (respectiva) presença, o DU seguisse pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido que levava (Amares/Póvoa de Lanhoso), junto à berma do lado direito.
b) Que o DU seguisse a velocidade não excedente dos 50 Kms/hora.
c) Que quando acabava de descrever uma curva para a sua direita, o DU se tenha deparado com o veículo CZ a ocupar totalmente a hemi-faixa destinada ao sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
d) Que tenha sido por causa do referido em c) que o autor invadiu a hemi-faixa da esquerda, considerando o sentido que levava.
e) Que, em simultâneo, o condutor do CZ tenha tentado retomar a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha Póvoa de Lanhoso/Amares.
f) Que no dia e hora referidos, o CZ circulasse do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido Póvoa de Lanhoso/ Amares.
g) Que seguisse a uma velocidade de cerca de 40 km/h.
h) Que o CZ se tenha imobilizado na berma do lado direito, na berma do lado esquerdo, na hemi-faixa do lado direito ou na hemi-faixa do lado esquerdo, considerando o sentido de marcha que levava.
i) Que, ao iniciar a curva à esquerda, o CZ se tenha deparado com o motociclo conduzido pelo autor na hemi-faixa destinada ao sentido Póvoa de Lanhoso/Amares.
j) Que o DU não tenha conseguido descrever a curva para a direita e, por isso, haja transposto o eixo da faixa de rodagem, indo em frente.
k) Que, nesse momento e por causa de tal invasão, o condutor do CZ tenha virado para o seu lado esquerdo.
l) Que seja previsível a amputação parcial ou segmentar do membro inferior direito.
m) Que antes do acidente os ora autores estivessem noivos e houvessem projectado ter filhos em comum.
n) Que paralelamente à profissão que exercia na X, o autor representasse algumas empresas de mobiliário e estofos, obtendo um rendimento médio mensal de € 1.000,00, 12 vezes por ano, com essa actividade.
o) Que o autor praticasse rapel e canoagem com um grupo de amigos antes do sinistro».
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Nulidade da sentença por condenação em objecto diverso do pedido

Na conclusão 48ª das suas alegações, a Recorrente X alega que na parte «em que a R. foi condenada nos custos, a liquidar, com a readaptação do domicílio, a sentença recorrida é nula, nos termos do art. 615º/1 e), in fine, do CPC».

Dispõe o artigo 615º, nº 1, al. e), do Código de Processo Civil (CPC) que é nula a sentença quando «o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido».
É uma causa de nulidade directamente relacionada com o disposto no artigo 609º, nº 1, do CPC, segundo o qual a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
É uma nulidade que emerge, em primeira linha, da violação do princípio dispositivo que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual. Encontra ainda fundamento no princípio do contraditório, segundo o qual o tribunal não pode resolver o conflito de interesses sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Pese embora toda a evolução entretanto ocorrida, mantêm-se actuais as palavras de Alberto dos Reis (2): «O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes. (...) Também não pode condenar em objecto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido. Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a prestar um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo)».

No caso dos autos, a Recorrente argumenta que «entre as carências futuras referidas no nº 45 dos factos provados está a readaptação do domicílio, para eliminação de barreiras arquitectónicas, não integrada no pedido do A. (nem, tão-pouco, alegada por este)».
Analisados os pertinentes elementos dos autos, concluímos que assiste razão à Recorrente.
Com efeito, no último parágrafo do dispositivo da sentença decidiu-se: «Vai relegado para ulterior liquidação o cômputo do valor indemnizatório reportado ao custo que venha a ser necessário para atender às carências referidas no artigo 45) dos factos provados».
Por sua vez, o ponto nº 45 dos factos provados tem o seguinte teor: «45. Futuramente o autor manterá a carência de ajudas medicamentosas (analgésicos e medicação para a disfunção eréctil), tratamentos médicos regulares (consultas regulares de ortopedia, fisiatria, psiquiatria e urologia) para avaliar a necessidade de novos tratamentos farmacológicos, médicos ou cirúrgicos; de ajudas técnicas (um par de canadianas com braço articulado e botas ortopédicas com compensação à direita) e terá que adaptar o domicílio, eliminando barreiras arquitectónicas».
Sucede que não só o Autor não alegou tal facto como não deduziu qualquer pedido que contemplasse tal dano, pelo que ao condenar a Ré no pagamento dos custos necessários a atender às carências futuras com a readaptação do domicílio, que constitui um objecto diverso do que tinha sido objecto do pedido, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 609º, nº 1, do CPC.
Como se reconhece no despacho proferido pelo Tribunal recorrido ao abrigo do disposto no artigo 641º, nº 1, do CPC, o Autor pediu a condenação da Ré a pagar-lhe «o que se vier a liquidar em execução de sentença de acordo com o alegado nos artigos 112º, 113º, 156º, 157º e 219º a 226º desta petição inicial», onde alegara a possibilidade de vir a incorrer em despesas médicas futuras, com consultas, medicação, tratamentos, cirurgias e próteses, nada se dizendo quanto à necessidade de adaptação do domicílio.
Sucede que não foi intenção da Sra. Juiz a quo condenar a Ré no pagamento dos custos com a readaptação do domicílio, na medida em que na fundamentação da sentença deixou perfeitamente expresso qual era o respectivo objecto: «Por fim, quanto às despesas que o autor irá despender com consultas e reavaliações médicas, cirurgias, psicologia, psiquiatria, dermatologia e cirurgia vascular, face ao que se deu como provado, designadamente em 45), tais danos serão a liquidar oportunamente. Assim, na parte liquidada, a indemnização total devida ascende a € 530.989,80, o que, operando a repartição pelo risco, acima aludida, importa para o autor uma indemnização no valor de € 318.581,88. A este valor acresce o que venha a apurar-se ser a diferença entre o que a seguradora Y pagou ao ora autor no período de incapacidade total para o trabalho (desde o acidente até 30 de Outubro de 2017) e o salário que a sua entidade patronal efectivamente lhe pagaria nesse período. Mais fica relegado para ulterior liquidação o que o autor venha a carecer para atender às necessidades referidas no artigo 45) dos factos provados».
Como resulta do extracto transcrito, sendo certo que, ao não excluir a eliminação das barreiras arquitectónicas nesta parte dos danos a liquidar, a sentença estará a condenar em objecto diverso do pedido, já que não foi peticionado esse dano, a realidade é que o propósito não foi esse, mas sim o de relegar para liquidação as «despesas que o autor irá despender com consultas e reavaliações médicas, cirurgias, psicologia, psiquiatria, dermatologia e cirurgia vascular», como expressamente se fez constar da fundamentação da sentença.
Portanto, como refere o Tribunal recorrido, «há antes um erro manifesto, relevado do contexto da declaração e que deverá ser corrigido nos termos do nº 1 do art. 614º do CPC, passando a constar expressamente que o dano relegado para ulterior liquidação, a que respeita o artigo 45) dos factos provados, respeita ao seguinte segmento: “futuramente o autor manterá a carência de ajudas medicamentosas (analgésicos e medicação para a disfunção eréctil), tratamentos médicos regulares (consultas regulares de ortopedia, fisiatria, psiquiatria e urologia) para avaliar a necessidade de novos tratamentos farmacológicos, médicos ou cirúrgicos e de ajudas técnicas (um par de canadianas com braço articulado e botas ortopédicas com compensação à direita)”».
Termos em que, para que não subsista qualquer dúvida, se considera corrigido o apontado erro nos termos em que foi suprido pelo Tribunal a quo.
*

2.2.2. Impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.2.1. Em ambos os recursos, os respectivos Recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

A) No que respeita ao recurso da Ré, verifica-se que a Recorrente considera incorrectamente julgados os pontos de facto:
i) “Facto provado nº 8” (conclusão 1ª),
ii) Constantes das alíneas f), i), j) e k) dos factos não provados (conclusão 6ª),
iii) “Facto provado nº 16” (conclusão 11ª);
iv) “Facto provado nº 40” (conclusão 17ª);
v) “Factos provados nºs 43 e 44” (conclusão 18ª);
vi) “Facto provado nº 47” (conclusão 19ª);
vii) Factos provados nºs 48, 49, 50, 51, 52, 53 e 58 (conclusão 21ª).

Pretende que os pontos de facto nºs 8, 16, 40 e 47 passem a ter a seguinte redacção:
- «8. O contacto deu-se entre a parte lateral direita, zonas da frente e do centro, do veículo CZ e a parte lateral direita do motociclo DU, apanhando o membro inferior direito do autor.» (conclusão 1ª);
- «16. O acidente foi considerado simultaneamente de trabalho, e corre termos sob o nº 1092/16.6T8BRG, pelo Juízo do Trabalho de Águeda, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, uma acção judicial onde se discute a medida da indemnização devida, tendo o autor recebido da “Companhia de Seguros Y S.A.”, Y, vários valores a título de salários no período de baixa médica, pensão e subsídios de férias, ascendendo a € 7.087,84 o montante recebido a título de pensão (€ 775,46 / mês em 2017 e € 789,42 / mês em 2018) após alta, entre os meses de Novembro de 2017 e Abril de 2018.» (conclusão 12ª);
- «40. Por causa do acidente, o A. passou a apresentar disfunção eréctil, respondendo bem à respectiva medicação (com “Cialis” 20 mg).» (conclusão 17ª);
- «47. O A. poderá continuar a exercer a sua profissão, com constantes e significativos esforços acrescidos, para o que deverá conduzir um veículo adaptado.» (conclusão 20ª).
Preconiza que os factos provados nºs 43 e 44 «dêem lugar a um único ponto, com a seguinte redacção: “O A. necessita do auxílio de terceira pessoa para tarefas do dia a dia, pelo menos duas horas diárias.”».

Por outro lado, requer que sejam aditados aos factos provados os seguintes pontos de facto:
- «8-A. Em resultado do contacto referido no número anterior, o veículo CZ sofreu danos na sua lateral direita, zonas da frente e do centro (pára-choques, guarda-lamas, capot, farol, roda da frente, pilar A, retrovisor e porta da frente, incluindo manípulo exterior, fechadura e friso), cuja reparação foi orçamentada em € 1.113,72 (sem IVA), e o motociclo DU sofreu danos de raspagem em toda a extensão da lateral direita (desde a carenagem do farol, passando pela forra do motor e pelo patim, até à ponteira de escape), com transferência de tinta vermelha daquele outro veículo, e, em virtude da queda, na lateral esquerda, que apresentava vestígios de ervas nas carenagens e de terra na protecção da manete, não tendo sofrido danos mecânicos.» (conclusão 4ª);
- «16-A. Além do pagamento das prestações referidas em 16., a “Y” tem vindo a reembolsar o A., desde a data do acidente, das suas despesas médicas, medicamentosas e com transportes, ortóteses e assistência de terceira pessoa, tendo-lhe pagado por esta assistência (de terceira pessoa), no período compreendido entre 12.6.2015 e 31.5.2018, a quantia total de € 7.647,87, sendo que a respectiva prestação mensal ascendia nessa última data a € 244,28.» (conclusão 16ª).

Propõe «a revogação da decisão vertida nas alíneas f), i), j) e k) dos factos não provados e, consequentemente, o aditamento aos factos provados da seguinte matéria:
- “O CZ circulava do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido Póvoa de Lanhoso – Amares.”;
- “Ao iniciar a curva à esquerda, o CZ deparou-se com o motociclo conduzido pelo A. na hemifaixa no sentido Póvoa de Lanhoso – Amares.”;
- “O DU não conseguiu descrever a curva para a direita e, por isso, seguiu em frente, transpondo o eixo da faixa de rodagem.”;
- “Para tentar evitar o embate, o condutor do veículo CZ desviou-se para o seu lado esquerdo.”» (conclusão 6ª).
Finalmente, pretende que os pontos nºs 48, 49, 50, 51, 52, 53 e 58 sejam eliminados dos factos provados e passem a constar dos factos não provados.

B) No que concerne ao recurso do Autor, verifica-se que este Recorrente não deu integral cumprimento aos ónus que lhe são impostos no artigo 640º, nº 1, do CPC, na parte em que se impõe a obrigatoriedade de especificar, sob pena de rejeição, «os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados» (al. a).
Percorridas integralmente as conclusões da sua apelação, que é o local próprio para ser indicado o objecto da impugnação, apenas um único ponto de facto é concretamente indicado como tendo sido incorrectamente julgado: o ponto nº 54, tal como indicado na conclusão 41ª.
Tudo o mais é um arrazoado confuso, em que só pelo confronto das conclusões 27ª e 28ª com os factos provados e não provados é que se consegue deduzir, de forma muito indirecta e não sujeita a dúvidas, quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Desse esforço de análise resulta que, para além do ponto nº 54 dos factos provados, o Recorrente terá pretendido impugnar a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância quanto aos pontos de facto constantes das alíneas a), b), c) e d) dos factos não provados. Depois de assim termos concluído, constatamos que a Recorrida X Seguros, nas suas contra-alegações, também assim interpretou as alegações do Recorrente, o que evidencia que a aludida interpretação está em conforme com o princípio consagrado no artigo 236º, nº 1, do Código Civil.

Portanto, em resumo, o Recorrente considera incorrectamente julgados:
i) Os pontos de facto constantes das alíneas a), b), c) e d) dos factos não provados;
ii) O ponto nº 54 dos factos provados.

Pretende que:
a) A matéria de facto constante das aludidas alíneas a), b), c) e d) seja eliminada dos factos não provados e passe para os factos provados com o seguinte teor:
«11. No momento em que os condutores dos veículos colidentes tiveram a percepção recíproca da (respectiva) presença, o DU seguia pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido que levava (Amares/Póvoa de Lanhoso), junto à berma do lado direito.
12. O DU seguia a uma velocidade não excedente 50 Kms/hora.
13. E quando acabava de descrever uma curva para a sua direita, o condutor do DU deparou-se com o veículo CZ a ocupar totalmente a hemi-faixa destinada ao sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
14. Por causa do referido em 13. o autor invadiu a hemi-faixa da esquerda, considerando o sentido que levava, como manobra de evasão» (conclusão 27ª).
b) A «matéria de facto dada como provada no artigo 54 deverá passar a ter a seguinte redacção:
[“]À data do acidente o autor era gerente de loja de mobiliário e artigos para o lar, cabendo-lhe a tarefa de atender clientes e fornecedores, assim como supervisionar o trabalho dos operadores de loja, com um vencimento médio mensal de, pelo menos, 1.270,00€[“] ou deverá ser acrescentada à matéria de facto dada como provado, um novo artigo onde passe a constar que:
[“]O autor, à data do acidente tinha, pelo menos, um vencimento mensal de 1.270,00€[“]» (conclusão 41ª).
c) Consequentemente, preconiza que as alíneas a) a d) dos factos provados passem a ter o seguinte teor:
«a) Que no dia e hora referidos, o CZ circulasse do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido Póvoa de Lanhoso/Amares.
b) Que, ao iniciar a curva à esquerda, o CZ se tenha deparado com o motociclo conduzido pelo autor na hemi-faixa destinada ao sentido Póvoa de Lanhoso/Amares.
c) Que o DU não tenha conseguido descrever a curva para a direita e, por isso, haja transposto o eixo da faixa de rodagem, indo em frente.
d) Que, nesse momento e por causa de tal invasão, o condutor do CZ tenha virado para o seu lado esquerdo» (conclusão 28ª).
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2.2.2.2. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise do relatório pericial e respectivos esclarecimentos, e dos documentos juntos aos autos e à audição integral da gravação das declarações de parte do Autor e dos depoimentos das testemunhas B. R. (agente da GNR que elaborou o auto de notícia - participação de acidente de viação), M. R. (realizou a averiguação das circunstâncias e das causas do sinistro cujo relatório consta a fls. 62 e segs., enquanto empregado da empresa de averiguação K. quality”, contratada para o efeito pela Ré), S. S. (autor do relatório de fls. 773 segs., que procedeu à averiguação do sinistro e das suas causas no âmbito das suas funções na W, Lda., contratada para o efeito pela Ré já na pendência da acção, da qual é sócio), M. J. (mecânico e sócio-gerente da oficina que efectuou a reparação do veículo CZ), C. M. (amigo do Autor), A. S. (amiga do Autor há vários anos e que foi madrinha de casamento dos Autores), L. M. (fornecedor da X, entidade patronal do Autor) e P. M. (foi colega de trabalho do Autor na X, sendo o coordenador de várias lojas desta empresa, entre as quais a loja onde o Autor era gerente; durante vários anos foi gerente de loja tal como o Autor, o qual conhece há vários anos).

Iremos apreciar conjuntamente a parte das impugnações que versam sobre o circunstancialismo do acidente de viação, pois o núcleo factual é essencialmente o mesmo, estando os pontos de facto interrelacionados.
*

2.2.2.3. Alíneas a), b), c), d), f), i), j) e k) dos factos não provados, ponto nº 8 dos factos provados e aditamento de um ponto nº 8-A

Os referidos pontos de facto têm o seguinte teor:
8. O contacto deu-se entre a parte da frente do lado direito, lateral direita do veículo CZ, e a parte lateral direita do motociclo DU, apanhando o membro inferior direito do autor.
a) Que no momento em que os condutores dos veículos colidentes tiveram a percepção recíproca da (respectiva) presença, o DU seguisse pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido que levava (Amares/Póvoa de Lanhoso), junto à berma do lado direito.
b) Que o DU seguisse a velocidade não excedente dos 50 Kms/hora.
c) Que quando acabava de descrever uma curva para a sua direita, o DU se tenha deparado com o veículo CZ a ocupar totalmente a hemi-faixa destinada ao sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
d) Que tenha sido por causa do referido em c) que o autor invadiu a hemi-faixa da esquerda, considerando o sentido que levava.
f) Que no dia e hora referidos, o CZ circulasse do lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido Póvoa de Lanhoso/ Amares.
i) Que, ao iniciar a curva à esquerda, o CZ se tenha deparado com o motociclo conduzido pelo autor na hemi-faixa destinada ao sentido Póvoa de Lanhoso/Amares.
j) Que o DU não tenha conseguido descrever a curva para a direita e, por isso, haja transposto o eixo da faixa de rodagem, indo em frente.
k) Que, nesse momento e por causa de tal invasão, o condutor do CZ tenha virado para o seu lado esquerdo.
Já atrás mencionamos qual a decisão que cada um dos Recorrentes entende que deve ser proferida sobre as apontadas questões de facto, pelo que não procederemos à respectiva reprodução.

Revistos integralmente todos os meios de prova produzidos sobre estes pontos de facto, e não apenas aqueles que cada uma das partes menciona em abono da sua tese, entendemos que o Tribunal a quo decidiu bem e que inexiste qualquer fundamento para alterar a decisão sobre a matéria de facto.
Primeiro, a valoração do caso dos autos reveste uma elevada dificuldade por serem escassos os elementos objectivos disponíveis.
Com efeito, para além das condições objectivas da estrada e o sentido em que seguia cada um dos veículos envolvidos no acidente de viação, apenas se sabe qual o local provável onde ocorreu o embate (que se presume ser o correcto, apesar de ter sido indicado pelo condutor do veículo CZ – o condutor do DU estava impossibilitado de o fazer –, sendo que ambas as partes o dão por adquirido) e quais os danos produzidos no motociclo com a matrícula DU. Tudo o mais é susceptível de diferentes interpretações.
Não há sequer um rasto de travagem (ou vestígios de marcas de arrastamento do motociclo pelo alcatrão, na fase pós embate) que permita estabelecer pelo menos a trajectória de um dos veículos. Mesmo os locais onde ficaram os veículos depois do acidente não está objectivamente determinado, pois quando chegou a patrulha da Guarda Nacional Republicana o veículo ligeiro já tinha sido deslocado para a berma pelo respectivo condutor e o motociclo tinha sido mudado pelos bombeiros (v. depoimento do guarda que elaborou o auto de notícia).
Acresce que, para além dos respectivos condutores, nenhuma pessoa assistiu ao acidente.
Já no plano subjectivo, os dois condutores apresentaram versões absolutamente antagónicas e incompatíveis. Desfazer essa assimetria de posições em audiência de julgamento tornou-se tarefa impossível, na medida em que o condutor do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula número CZ, que nenhum dano pessoal sofreu no acidente (ao contrário do Autor, que ficou com a perna direita “desfeita”), faleceu entretanto (decesso que nada tem a ver com a situação dos autos). É de recordar que o condutor do CZ teve a oportunidade de apresentar a sua versão à GNR (e de indicar o local provável do embate) logo no local do acidente, ao contrário do Autor, que não estava em condições de o fazer devido às lesões; na audiência de julgamento, sucedeu o contrário, pois, apenas foi ouvido o Autor, uma vez que já tinha falecido o outro condutor.
A agravar tudo isto temos a circunstância de não haver uma única fotografia dos danos produzidos no veículo CZ, que foi entretanto reparado, ao contrário do que sucede relativamente ao motociclo DU, em que todos os pormenores são observáveis nas inúmeras fotografias juntas aos autos.
A circunstância de não haver fotografias do CZ e, em consequência, não se saber de forma precisa onde ocorreram os danos e a sua extensão, profundidade e natureza, torna extremamente difícil o apuramento da concreta dinâmica do acidente. Por exemplo, é completamente diferente que os danos sejam predominantemente na frente do lado direito, na lateral direita da parte da frente, na zona junto ao pilar A direito ou na porta da frente do lado direito (porta junto ao passageiro da frente). A cada uma dessas diferentes situações corresponde uma dinâmica do acidente diferente, com a inerente repercussão da responsabilidade dos condutores envolvidos. Pode-se argumentar que existe o orçamento que foi junto pela Ré, mas o mesmo não nos fornece os elementos que são susceptíveis de ser apurados através da simples visualização das fotografias do DU.
Daí que numa fase de recurso quase tudo continue a ser discutido, mais parecendo que ainda não houve fase de julgamento. Como são poucos os elementos objectivos, são defendidas teses absolutamente extremas, antagónicas e subjectivas.
O Autor, como não há testemunhas, pretende que se dê como boa a sua versão, por ser a única pessoa sobreviva que presenciou o acidente; no seu entender, se inexiste qualquer testemunha que contradiga a sua versão, então só esta é válida e merecedora de credibilidade. A Ré, com base em interpretações muito subjectivas dos escassos elementos objectivos existentes por parte de duas pessoas que foram contratadas para averiguar o circunstancialismo e causas do acidente muito depois de o mesmo ter ocorrido, pretende que se considere como prevalecente a sua tese, aparentemente correspondente à do condutor do CZ.
Quanto à tese extrema do Autor, segundo a qual, ao iniciar a curva para a sua direita lhe surgiu pela frente o CZ todo na sua meia faixa de rodagem («a ocupar totalmente a sua faixa de rodagem» - art. 6º da p.i.)., pelo que teve de guinar para a esquerda e que o CZ também se desviou para o mesmo lado (ou seja, para o lado direito, considerando o sentido de marcha do veículo ligeiro), é pouco credível, pois, se assim fosse dificilmente se produziriam alguns danos na parte lateral direita do carro e o local do embate não seria onde se verificou. Além disso, ensinando a experiência comum que numa curva como aquela seria natural que o condutor do CZ tivesse tendência para cortar a curva por dentro, já é pouco provável que adoptasse uma condução tão absurda (diríamos mesmo suicida) que o levasse a ocupar toda hemi-faixa contrária ao seu sentido de trânsito.
No que concerne à tese antagónica da Ré, segundo a qual o condutor do CZ seguia na sua hemi-faixa de rodagem (sem cortar, nem que seja um pouco, a curva) quando, ao iniciar a curva à esquerda, se depara com o motociclo a circular pela mesma, uma vez que este seguia em velocidade excessiva e, por não conseguir descrever a curva, seguiu em frente e atravessou-se à frente do veículo ligeiro, em cuja frente embateu («o qual, seguindo em velocidade excessiva, não conseguiu descrever a curva para a direita e transpôs o eixo da faixa de rodagem, indo em frente e, já na via de trânsito contrária, atravessando-se à frente do veículo seguro na R., em cuja frente (mais sobre o centro e a direita) embateu» - art. 6º da contestação), não só não existem elementos que permitam afirmar a velocidade excessiva (os danos materiais produzidos parecem contrariar essa tese), como nenhum elemento objectivo confirma a existência do embate exclusivo na “frente” do CZ, tese que viria a ser convolada na pendência da acção (depois de se defender o embate na frente passa-se a sustentar um embate na lateral do veículo), e a existência de danos também na lateral direita do veículo (além de na parte frontal) contraria tal versão.
Segundo, se já é difícil a qualquer tribunal perante o qual é produzida a prova concluir sobre a realidade dos factos num circunstancialismo como aquele que se acaba de descrever, muito mais o é a um tribunal de recurso, que não teve oportunidade de usufruir da imediação na produção da prova, como sucede no caso vertente, em que as testemunhas foram confrontadas com documentos e uma delas (S. S.) até recorreu a miniaturas dos veículos envolvidos (motociclo e veículo ligeiro) para melhor explicar a sua interpretação da dinâmica do acidente.
Terceiro, tendo revisto toda a prova produzida, concluímos que não é possível formular uma convicção divergente daquela que se mostra expressa na decisão recorrida no que respeita à dinâmica do acidente. Não existe qualquer erro de apreciação por parte do Tribunal recorrido e o resultado probatório dos meios de prova produzidos só poderia, no nosso humilde entendimento, conduzir àquela decisão. Todas as considerações e valorações feitas na sentença, a propósito da dinâmica do acidente, estão em conformidade com os elementos objectivos a que já aludimos e com os meios de prova que descreve, pelo que está devida e exemplarmente fundamentada.
Parece-nos inteiramente pertinente a motivação da decisão sobre a matéria de facto, quando aí se afirma que, «a mais da factualidade aceite pelas partes, na formação da sua convicção quanto à dinâmica do acidente [artigos 4) a 14) dos factos provados e alíneas a) a k) dos factos não provados) o tribunal considerou desde logo a documentação junta, designadamente o auto de participação de fls. 34 ss. (confirmado por B. R., agente da GNR) e o croqui junto a fls. 36, verso (do qual, entre o demais, resulta que o ponto de colisão foi determinado em função, quer das declarações do condutor do CZ, quer dos elementos objectivos existentes, mormente dos vestígios ali concentrados; refere-se também que os veículos não estão aí mencionados porquanto a sua posição foi alterada após a colisão – daí a não prova dos factos pertinentes à sua posição final, após colisão).
Importa referir que os condutores intervenientes foram os únicos a presenciar o sinistro e que os seus relatos são absolutamente conflituantes: o condutor do CZ (que não pôde ser inquirido por ter falecido entretanto) referiu sempre (as primeiras declarações foram-lhe tomadas no próprio dia do sinistro, como se vê da participação de fls. 34, verso, ss.) que o ora autor não desfez a curva, indo embater na frontal direita do CZ apesar de este ainda ter feito um desvio à esquerda, tentando evitar a colisão; o ora autor (que não pôde ser ouvido no dia do sinistro dada a gravidade das lesões), mais tarde (fls. 37), quando prestou declarações, referiu que o CZ se lhe apresentou na sua hemi-faixa, totalmente em contramão, tendo sido necessário desviar o motociclo para a esquerda, ainda assim não logrando impedir a colisão.
Em audiência de julgamento, o ora autor prestou declarações de parte, mantendo a versão que consta de fls. 37, correspondente à da p.i., pelo que as duas únicas pessoas que estiveram presentes no momento do sinistro assumiram de modo constante uma tese antagónica.
Entendeu-se que nenhuma delas, por si só, deveria prevalecer sobre a outra e que tal só se justificaria se houvesse elementos que permitissem afirmar o contrário.
No trilho desses elementos, manteve-se a dúvida quanto à real dinâmica do acidente.
Concretizando, foi relevante a análise das duas perícias solicitadas pela ré a entidades terceiras: uma, junta a fls. 62 ss., realizada pela “K. quality”, para a qual foram prestados os esclarecimentos orais de M. R., perito averiguador; a outra, junta a fls. 773 ss., para a qual foram prestados os esclarecimentos orais de S. S., autor do relatório.
Essa análise não foi, porém, decisiva.
No relatório da K. (fls. 62 ss.) diz-se que “pelo apurado, os veículos intervenientes que circulavam em sentidos opostos, ao cruzarem entre si, colidiram frontalmente na via de circulação do veículo seguro (CZ)” (pág. 2). Essa conclusão resultou das declarações do mecânico, M. J. (pág. 10).
Tal afirmação foi corroborada por M. R. (perito averiguador da K.), que em julgamento referiu que o embate no veículo terá sido a meio, prolongando-se para a óptica e para o lado direito.
Isso mesmo foi também dito pelo condutor do CZ, quando prestou declarações ao perito da K..
Como referiu este perito (e também o da W, adiante referido), foi mediante a recolha de declarações e dados fotográficos (designadamente quanto aos danos, já que o veículo ligeiro foi reparado antes de ser visto pelos peritos) que o relatório pôde ser realizado. Não houve elementos para determinar a velocidade a que seguiam os veículos, tampouco tendo sido possível perceber em que local se imobilizou o CZ [daí o teor da alínea h)].
Como melhor se dirá mais adiante, esta ausência de elementos que permitissem apurar a velocidade a que seguiam os veículos relevou bastante nas dúvidas quanto à dinâmica [dúvidas essas que culminaram na falta de determinação da(s) culpa(s)].
Do mesmo relatório (da K.) resulta que: para o CZ, a curva onde o sinistro ocorreu desenha-se para a esquerda e é antecedida por uma contracurva; a estrada tem inclinação descendente (pág. 3) e o embate ocorreu na via de circulação do CZ, a 0,65 m do eixo da via, “o que significa que o condutor do (motociclo) transpôs a via de circulação do (CZ)” (pág. 17) - esta ilação é verdadeira, mas incompleta, pois não podemos ignorar que, tendo a colisão ocorrido na frente, lado direito, e lateral direita do CZ, inelutavelmente que também uma parte significativa deste veículo se encontrava na hemi-faixa contrária ao seu sentido de marcha. Daí que a referência, que aí também se lê, de que “o (CZ) se encontrava na sua via de circulação”, seja incorrecta. Não se encontrava totalmente na sua via de circulação, pois invadia parcialmente a contrária.
As imagens anexas ao relatório da K. são bem esclarecedoras das características do local, sendo particularmente relevantes as de fls. 81, verso, a 83, verso (nelas se percebe como é que a curva se apresentava ao motociclo: fechada e sem margem para desvio à direita, por aí existir um muro) e as de fls. 85, verso, a 87 (na primeira das quais percebe-se a curva à direita que antecede a contracurva, para o CZ, à esquerda, nesta se dando o acidente; essa curva que precede a do sinistro está mais claramente demonstrada no relatório da W, a fls. 776, verso).
Quanto ao relatório da W (fls. 774 ss.), do mesmo consta que “o acidente ocorreu quando o motociclo embateu na zona frontal do veículo ligeiro de passageiros” (pág. 4) e que “o veículo CZ sofreu danos na frente do lado direito”. Mais adiante refere-se que “pelos registos fotográficos do veículo CZ não foi possível observar os danos provenientes do acidente uma vez que as fotografias foram obtidas depois do veículo ter sido reparado. No entanto, segundo o que consta do relatório de averiguação, o veículo CZ apresentava danos na zona lateral direita, mais precisamente entre o painel frontal direito e o vértice frontal direito. O veículo também apresentava danos da óptica da direita, no pára-choques do lado direito e no capô” (pág. 12, fls. 779). Os danos do motociclo, por seu turno, demonstravam que a colisão ocorreu ao longo da lateral direita, que apresentava a cor do CZ em vários pontos, sugerindo marcas de raspagem.
Com estes dados, e com os elementos objectivos conhecidos quanto ao local do sinistro e ao ponto de colisão, ignorando embora velocidades e posição final dos veículos (apesar do que se refere na pág. 19 desse relatório, esta posição final era desconhecida, como o próprio perito corroborou em audiência de julgamento), através do software “Pc_Crash” foram realizadas simulações computacionais. Do relatório da W constam duas análises: uma (simulação computacional nº 1) tendo por base a tese da ré, de acordo com a qual o CZ seguia na sua hemi-faixa até se ter deparado com o motociclo desgovernado e em contramão, desviando à esquerda; uma outra (simulação computacional nº 2) tendo por base uma versão que não corresponde à do autor mas é mais aproximada, de acordo com a qual o CZ seguia a cortar a curva, invadindo parcialmente a hemi-faixa destinada à circulação do motociclo, mantendo essa trajectória enquanto o motociclo, perante aquela invasão, fugia para a sua esquerda. Perante as duas simulações, o perito concluiu ser mais provável a tese da ré. O principal argumento é o de que a segunda simulação implicaria um impacto mais directo entre os veículos, e não sob a forma de raspão. De acordo com esta simulação, ademais, nesta hipótese o motociclo faria umas piruetas antes de cair na valeta, o que teria impacto nos danos e os tornaria pouco compatíveis com os visionados nas fotografias (lateral direita com marcas de raspagem no CZ e danos na carenagem frontal, do lado esquerdo, com vestígios de erva e terra).
Quando inquirido em audiência de julgamento, designadamente quanto às razões pelas quais a versão do autor não foi levada ao simulador (note-se que, de acordo com esta tese, o mesmo seguia na hemi-faixa destinada ao seu sentido de marcha quando, na curva, lhe surgiu a circular o CZ, em contramão, obrigando-o a uma brusca viragem à esquerda, o mesmo tendo feito o CZ, razão pela qual a colisão ocorreu no ponto indicado no auto), o perito da W, S. S., afirmou que, nessa versão, os danos seriam ainda mais avultados: haveria marcas de impacto e não de raspagem.
Ora, salvo o devido respeito pela lógica dos argumentos, pela valia da tecnologia ao dispor e pelo conhecimento especializado envolvido na análise, e sem prejuízo também da isenção demonstrada, que foi evidente, o tribunal ficou com sérias dúvidas de que os dados disponíveis fossem suficientes para aquela conclusão.
Desde logo, pelo facto de nada se saber quanto às velocidades imprimidas aos veículos na circulação e na aproximação. Note-se que, se a questão da compatibilidade dos danos com as teses alegadas tem essencialmente a ver o ângulo em que ocorreu a colisão, a velocidade não será indiferente, pois se um dos veículos (por exemplo, o motociclo) conseguisse acelerar suficientemente na fuga, possivelmente lograria o ângulo compatível com os danos de raspão. Note-se que nenhum dos peritos inquiridos pôs em causa a possibilidade de o condutor do motociclo, apesar de estar a descrever uma curva à direita, poder guinar rapidamente para a esquerda, como alega o autor. Ponto é que não estivesse a descrever a curva com acentuada inclinação (e a velocidade também interfere neste dado, não havendo nada nos autos que permita afirmar que vinha ou não vinha inclinado e, se vinha, qual o grau de inclinação).
Acresce que é desconhecida a distância a que os condutores se avistaram reciprocamente, o que tem impacto na decisão da reacção a tomar (sem prejuízo de, independentemente dessa distância, ainda assim algum deles poder errar na escolha da reacção ou cometer um erro de avaliação da situação, como frequentemente sucede nos acidentes, designadamente nos que envolvem motociclos – vd., a título de exemplo, as conclusões do estudo “Reconstituição de Acidentes Rodoviários com Veículos de Duas Rodas”, de RUI FERNANDO SOUSA PINTO, in: file:///C:/Users/MJ02327/Downloads/Disserta.pdf).
E também não há dados que permitam afirmar em que posição estava cada um dos veículos na hemi-faixa por onde circulava (mais ou menos centrado).
Por fim, apesar de os danos no CZ incidirem muito na lateral, existiu também colisão na parte frontal, pois também aí há danos, como ambos os relatórios referem e foi confirmado em julgamento pelo mecânico, M. J..
É também de referir que, olhando apenas às regras da normalidade e experiência comum, o que elas nos dizem é que é mais frequente um veículo “cortar a curva” quando ela se lhe apresenta para a esquerda (particularmente se provier de uma contracurva) do que o contrário (“cortar a curva” que se lhe apresenta para a direita). E este dado é mais favorável à tese do autor do que à do segurado da ré» (3).
Quarto, tal como resulta da motivação da decisão da matéria de facto e constatamos directamente na prova produzida, parece-nos que os únicos factos que poderiam ser dados como provados no que respeita à dinâmica do acidente são aqueles que constam dos pontos nºs 4 a 10. Tudo o mais, com todo o respeito pelos Recorrentes, não passam de interpretações ou construções intelectuais perfeitamente subjectivas sem verdadeira correspondência nos poucos elementos objectivos que os autos nos fornecem.
Por vezes sucede que não conseguimos reconstituir a realidade ou alguns dos factos que a integram. E pior do que constatar tal impossibilidade é ficcionar (que é diferente de presumir a partir de um determinado elemento objectivo) o que ocorreu: isso já não é realizar a justiça, é dar como provados factos de que não se tem a certeza se ocorreram ou não. Quando o juiz, depois de analisar os meios de prova, não consegue, em sã consciência, afirmar convictamente a realidade de um facto, tem o dever legal e ético de o dar como não provado.
É o que sucede no caso dos autos. Vistos e revistos os meios de prova, continua a existir «a dúvida quanto à real dinâmica do acidente», como muito bem salientou a Exma. Juiz na sentença. Aliás, desconhecem-se muitos dos elementos que permitiriam reconstituir o circunstancialismo do acidente, designadamente a velocidade a que os veículos seguiam e as trajectórias dos mesmos, incluindo as manobras encetadas pelos condutores quando se aperceberam da possibilidade de colidirem entre si. Sabe-se apenas que embateram entre si a 65 centímetros do eixo da via, na metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
Por isso, não é possível afirmar se o DU (alínea a)) ou o CZ (al. f)) seguiam pela respectiva hemi-faixa de rodagem, que o CZ ocupava totalmente a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido Amares/Póvoa de Lanhoso (alínea c)), que o motociclo conduzido pelo Autor seguia na hemi-faixa destinada ao sentido Póvoa de Lanhoso/Amares (alínea i)), que o DU seguia a uma velocidade não superior a 50 km/hora (alínea b)), que o CZ seguia a uma velocidade de cerca de 40 km/h (al. g)), que o DU tenha ido em frente por não ter conseguido descrever a curva para a direita (al. j)) e quais as concretas manobras que cada um dos condutores dos veículos realizou quando se apercebeu da presença do outro (alíneas d), e) e k)). Para que fique perfeitamente claro: não existe prova minimamente segura e convincente sobre qualquer dos pontos de facto constantes das alíneas a) a k) da factualidade não provada, nem existem factos que permitam alicerçar uma presunção natural sobre a sua verificação, pelo que o Tribunal recorrido só poderia considerá-los não provados.
Quanto à modificação do ponto nº 8, preconizada pela Ré, aquilo que se podia dar como provado, atentos os danos produzidos nos dois veículos (que se conhecem exaustivamente no que respeita ao veículo DU e de que somente temos um esboço algo tosco quanto ao veículo CZ, conforme já atrás enfatizamos) é apenas que o contacto entre os dois veículos deu-se entre a parte da frente do lado direito, lateral direita do veículo CZ, e a parte lateral direita do motociclo DU, apanhando o membro inferior direito do Autor, tal como o Tribunal a quo deu como provado e corresponde inteiramente à apreciação que se faz da globalidade dos meios de prova produzidos sobre essa questão factual.
Existe pelo menos um obstáculo à modificação proposta pela Ré: verificaram-se danos tanto na parte da frente como na lateral direita do CZ e não apenas na sua lateral direita, como defende a Recorrente. Desde logo, no auto de notícia consta que o condutor do CZ declarou que o motociclo lhe embateu na sua «frontal direita» e o agente da GNR mencionou ter constatado que o veículo ligeiro tinha «danos na frente do lado direito». Depois, consta dos autos, no relatório elaborado pelo averiguador M. R., para a K. quality, Lda., uma declaração escrita do condutor do CZ onde este afirma que o motociclo embateu «sobre o lado direito da frente» do veículo ligeiro, sendo que em audiência, o referido averiguador, disse «que o embate no veículo terá sido a meio, prolongando-se para a óptica e para o lado direito», como se transcreve na sentença. Também o relatório elaborado pela testemunha S. S. refere que «o veículo CZ apresentava danos que se localizavam na lateral direita com danos no painel frontal direita, na ótica da direita, no pára-choques do lado direito e no capô». Finalmente, existe um depoimento que desfaz toda e qualquer dúvida, que é o de M. J., uma vez que esta testemunha esteve no local do acidente, transportou o veículo CZ e procedeu à sua reparação. Segundo esta testemunha, o veículo ligeiro apresentava igualmente danos na parte frontal, para além de na lateral direita.
Portanto, entendemos não existir fundamento para alterar a redacção do ponto de facto nº 8.

Relativamente à introdução de um ponto de facto nº 8-A, com o conteúdo constante da conclusão 4ª, verifica-se que corresponde a um facto não alegado pelas partes e que todos esses elementos estavam na disponibilidade da Ré, que não o alegou. Podendo fazê-lo, mas não o tendo feito, a Recorrente transforma a sua inacção em censura ao Tribunal a quo: «A decisão de facto omite qualquer referência à tipologia de contacto e de danos sofridos pelos veículos, bem como às concretas partes danificadas».
Além disso, nem sequer tem correspondência na versão que carreou para os autos na contestação, onde, sob o artigo 6º, alegou: «No dia e hora referidos, o segurado da R. circulava na referida estrada nacional, no sentido Póvoa do Lanhoso – Amares, dentro da sua via de trânsito, a uma velocidade de cerca de 40 km/h, quando, ao iniciar a curva à esquerda, se deparou com o motociclo conduzido pelo A., no sentido Amares – Póvoa do Lanhoso, o qual, seguindo em velocidade excessiva, não conseguiu descrever a curva para a direita e transpôs o eixo da faixa de rodagem, indo em frente e, já na via de trânsito contrária, atravessando-se à frente do veículo seguro na R., em cuja frente (mais sobre o centro e a direita) embateu».
No que respeita ao conteúdo, constata-se que a premissa de que se parte na redacção do sugerido ponto de facto nº 8-A não se verifica: o veículo CZ apresentava danos também na parte frontal e ignora-se a concreta dinâmica do acidente. Não se sabe o circunstancialismo que motivou a existência de danos tanto na parte frontal como na parte lateral direita do CZ. Também suscita algumas dúvidas que do mero contacto lateral decorresse o esmagamento da perna direita do Autor nos termos em que se verificou, mais plausível com uma batida forte do que com uma mera “raspagem”.
Acresce que não se conhecem os danos produzidos no veículo CZ com o detalhe que é possível verificar nas fotografias do motociclo DU, as quais são perfeitamente esclarecedoras. Afirmar danos genéricos, e apenas alguns deles (v. a questão dos danos na parte frontal) sem se conhecer a sua extensão, características e natureza é um exercício pueril e que pouco contribui para a decisão da causa.
Também não se pode perder de vista que nos autos não está formulado qualquer pedido relacionado com a indemnização dos danos materiais verificados em qualquer dos veículos, pelo que não se descortina a utilidade do referido ponto de facto.
Vejamos agora a questão da aquisição processual dos factos instrumentais.
Em conformidade com o disposto no artigo 5º, nº 2, al. a), do CPC, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa.
Na definição de Miguel Teixeira de Sousa (4), «os factos probatórios (ou instrumentais) são os factos que constituem a base de uma presunção legal (art. 349.º e 350.º CC) ou judicial (art. 349.º e 351.º CC). (b) As presunções judiciais (ou naturais) permitem, com base em máximas de experiência, inferir o facto probando de um facto probatório. P. ex.: são factos probatórios aqueles que, perante a alegação da aquisição da propriedade através de usucapião, demostram a posse da coisa». No fundo, são factos que permitem a afirmação, por presunção, de factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da excepção oposta ao direito invocado.
Além de nem sequer se impor necessariamente uma pronúncia judicial sobre os mesmos, quando apenas sirvam de apoio à formação da convicção sobre outros factos (v. artigo 607º, nº 4, do CPC), não se descortina que ilação pode ser retirada do ponto de facto ora sugerido. Seguramente não permite alicerçar qualquer presunção legal. Quanto a uma eventual presunção natural (judicial), não é possível o seu estabelecimento com base nos danos verificados nos dois veículos, como já resulta do que expusemos quando procedemos à apreciação dos pontos de facto constantes das alíneas dos factos não provados. Dos danos não é possível inferir aqueles factos não provados.

Termos em que se julgam improcedentes as impugnações da decisão sobre a matéria de facto no que respeita às alíneas a), b), c), d), f), i), j) e k) dos factos não provados, ao ponto nº 8 dos factos provados e ao aditamento de um ponto nº 8-A aos factos provados.
*

2.2.2.4. Do ponto de facto nº 54 (impugnação do Autor)
Neste ponto de facto o Tribunal considerou provado que:
«54. À data do acidente o autor era gerente de loja de mobiliário e artigos para o lar, cabendo-lhe a tarefa de atender clientes e fornecedores, assim como supervisionar o trabalho dos operadores de loja».

Em conformidade com o que consta da conclusão 41ª das suas alegações, o Autor pretende que «a matéria de facto dada como provada no artigo 54 deverá passar a ter a seguinte redacção:
À data do acidente o autor era gerente de loja de mobiliário e artigos para o lar, cabendo-lhe a tarefa de atender clientes e fornecedores, assim como supervisionar o trabalho dos operadores de loja, com um vencimento médio mensal de, pelo menos, 1.270,00€ ou deverá ser acrescentada à matéria de facto dada como provado, um novo artigo onde passe a constar que:
O autor, à data do acidente tinha, pelo menos, um vencimento mensal de 1.270,00€».

O Recorrente entende que o acrescento, ao ponto nº 54, relativo a «um vencimento médio mensal de, pelo menos, 1.270,00€» resulta provado em face do recibo de vencimento de Março de 2015 e do depoimento da testemunha P. M..

Analisada a argumentação do Recorrente e os meios de prova que invoca e efectuado o seu confronto com a fundamentação e o resultado probatório da generalidade dos meios de prova produzidos sobre esta concreta questão factual, concluímos não lhe assistir razão.
Primeiro, o facto constante do ponto nº 54 corresponde, ipsis verbis, ao alegado pelo Autor nos artigos 177º e 178º da petição inicial, matéria que foi integralmente considerada provada e respeita à profissão exercida à data do acidente e ao seu conteúdo funcional.
Não é objecto desse ponto de facto o salário mensal do Autor ou qualquer outro aspecto remuneratório, que assim exorbita do que aí se deu como provado, pelo que, quando muito, só poderia ser objecto de aditamento através de um novo ponto de facto.
Sobre a questão factual dos rendimentos do Autor versa, isso sim, o ponto nº 55, onde se deu como provado que «no ano de 2013 o autor auferiu um rendimento ilíquido de € 10.181,91; em 2014 o seu rendimento anual foi de € 11.851,00 e em 2015 o seu rendimento anual foi de € 4.316,79».
Verifica-se que o Autor não impugnou a decisão proferida sobre o ponto nº 55, cujo facto se tem, por isso, como adquirido e consolidado.
Ora, o facto que o Autor pretende que seja aditado à factualidade provada é incompatível com o facto nº 55. Como bem destaca a Ré nas contra-alegações, se recebesse da X um rendimento mensal bruto de € 1.270,00, o mesmo auferiria um rendimento anual bruto de € 17.780,00 (€ 1.270,00 x 14 meses), muito superior ao que declarou em 2015 (relativamente ao ano de 2014), e que consta do nº 55 dos factos provados.
Segundo, mesmo que não ocorresse a aludida incompatibilidade, também em substância não existiria fundamento para, com base no depoimento da testemunha P. M., dar como provado que o Autor, à data do acidente tinha um vencimento mensal de € 1.270,00.
A realidade é que a aludida testemunha demonstrou não saber qual o vencimento mensal do Autor, afirmando, por um lado, que cada empregado negoceia as suas próprias condições retributivas e, por outro, que não sabia exactamente qual era o vencimento daquele. Não só afirmou o desconhecimento como o reiterou: «eu não sei exactamente», «eu não sei quanto» e «se me pergunta quanto é, eu não sei».
Além de não resultar do aludido depoimento que o Autor auferisse um vencimento mensal de € 1.270,00, a testemunha limitou-se a dar um palpite quando declarou que «o vencimento devia andar aí à volta dos 1.200€, com ajudas de custo à volta disso». Como é óbvio, uma tal matéria factual não se prova por palpites.
Terceiro, se o Autor porventura tivesse um salário médio mensal superior ao que resulta do ponto de facto nº 55, ser-lhe-ia muito fácil provar tal facto, o que não fez.
O que não nos parece legítimo é, a partir do seu último recibo de vencimento (junto pela sua entidade patronal – a X – em 24.05.2018), referente ao mês em que ocorreu o acidente, aparentemente correspondente a 8 dias de trabalho, estar a retirar extrapolações sobre qual seria o seu vencimento médio mensal (que por natureza se refere a uma média de vários meses e não de um único mês), que, em todo o caso, consta aí indicado como sendo, em termos brutos, € 1.079,00 e não € 1.270,00.
Além de a extrapolação que faz nas suas alegações ser contrária ao que resulta do ponto nº 55, designadamente quando do mesmo emerge que em 2014 o seu rendimento anual foi de € 11.851,00 (e não existe a mais leve sombra de prova sobre qualquer alteração salarial significativa), o Autor não demonstrou quais as suas condições salariais, designadamente no sentido de apurar se auferia ajudas de custo e se as mesmas integravam ou não a retribuição mensal, sendo certo que, em condições normais, em conformidade com o disposto no artigo 260º, nº 1, do Código do Trabalho, não a integram, tal como o subsídio de alimentação.
Em suma, não nos parece minimamente demonstrado que o vencimento médio mensal do Autor seja de € 1.270,00.
Quarto, o recibo relativo ao mês de Março de 2015 prova apenas o que recebeu nesse mês, no valor global líquido de € 796,14, onde está incluída uma verba no montante de € 284,00 de retroactivos e outra de € 45,00 de direitos anteriores. Não demonstra qual é o seu vencimento médio mensal. E repare-se que o Recorrente propugna para que se considere provado «um vencimento médio mensal de, pelo menos, 1.270,00€».
Quinto, por último, verifica-se que a apontada questão foi devidamente analisada pelo Tribunal a quo, na parte em que fez constar:
«Assim sendo, estas afirmações foram desconsideradas, tal como se desconsideraram as declarações de P. M. quando referiu que o autor receberia € 1.200,00 na X. Não é esse o valor que consta da declaração que a própria X juntou a fls. 354. E também não é isso que consta das declarações de IRS juntas a fls. 100 a 111. Destas resulta, diferentemente, que no ano de 2013 o autor auferiu um rendimento ilíquido de € 10.181,91, o que dá um rendimento mensal de € 727,21, sem qualquer tributação – vd. fls. 102; em 2014 o seu rendimento anual foi de € 11.851,00, o que representa um rendimento mensal de 846,50 e em 2015, considerando que deixou de trabalhar aquando do sinistro, o seu rendimento anual foi, apenas, de € 4.316,79 (o que dá uma média mensal de 308,28).
Não houve, pois, prova bastante para rendimentos superiores e/ou pagamentos marginais relativamente aos quais não houvesse declaração fiscal nem descontos, impondo-se assim a prova apenas parcial dos rendimentos invocados, de acordo com as regras da repartição do ónus da prova – art. 342º do CC (concordando-se, neste ponto, com a ré, quando afirma que “o desleixo probatório da parte não pode ser compensado com a tolerância probatória do julgador”)».
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2.2.2.5. Do ponto de facto nº 16 (impugnação da Ré)

O facto provado nº 16 tem o seguinte teor:
«16. O acidente foi considerado simultaneamente de trabalho, e corre termos sob o nº 1092/16.6T8BRG, pelo Juízo do Trabalho de Águeda, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, uma acção judicial onde se discute a medida da indemnização devida, tendo o autor recebido da “Companhia de Seguros Y S.A.”, Y, vários valores a título de salários no período de baixa médica, pensão e subsídios de férias, ascendendo a € 7.087,84 o montante recebido a título de pensão (€ 775,46/mês) após alta, entre os meses de Novembro de 2017 e Abril de 2018».

A Ré pretende que passe a ter a seguinte redacção (v. conclusão 12ª):
«16. O acidente foi considerado simultaneamente de trabalho, e corre termos sob o nº 1092/16.6T8BRG, pelo Juízo do Trabalho de Águeda, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, uma acção judicial onde se discute a medida da indemnização devida, tendo o autor recebido da “Companhia de Seguros Y S.A.”, Y, vários valores a título de salários no período de baixa médica, pensão e subsídios de férias, ascendendo a € 7.087,84 o montante recebido a título de pensão (€ 775,46 / mês em 2017 e € 789,42 / mês em 2018) após alta, entre os meses de Novembro de 2017 e Abril de 2018.».
No fundo, trata-se apenas de introduzir o trecho em que se refere «em 2017 e € 789,42 / mês em 2018», explicitando qual foi o valor pago por mês em 2018, uma vez que o valor global recebido da Y àquele título, assim como todos os demais elementos factuais, é igual tanto no ponto de facto considerado provado como naquele cuja redacção é agora sugerida.

Trata-se de uma precisão factual que se impõe por resultar da informação prestada nos autos pela Y em 09.05.2018 (v. ainda a documentação que acompanha aquela informação). O valor mensal liquidado pela Y, após alta, era de € 775,46 até Dezembro de 2017, mas a partir de Janeiro de 2018 passou a ser de € 789,42.

Por isso, determina-se que o ponto nº 16 dos factos provados passe a ter a seguinte redacção:

«16. O acidente foi considerado simultaneamente de trabalho, e corre termos sob o nº 1092/16.6T8BRG, pelo Juízo do Trabalho de Águeda, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, uma acção judicial onde se discute a medida da indemnização devida, tendo o autor recebido da “Companhia de Seguros Y S.A.”, Y, vários valores a título de salários no período de baixa médica, pensão e subsídios de férias, ascendendo a € 7.087,84 o montante recebido a título de pensão (€ 775,46 / mês em 2017 e € 789,42 / mês em 2018) após alta, entre os meses de Novembro de 2017 e Abril de 2018.».
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2.2.2.6. Do ponto de facto nº 16-A (impugnação da Ré)

A Ré pretende que seja aditado aos factos provados o seguinte ponto de facto (conclusão 16ª):
«16-A. Além do pagamento das prestações referidas em 16., a “Y” tem vindo a reembolsar o A., desde a data do acidente, das suas despesas médicas, medicamentosas e com transportes, ortóteses e assistência de terceira pessoa, tendo-lhe pagado por esta assistência (de terceira pessoa), no período compreendido entre 12.6.2015 e 31.5.2018, a quantia total de € 7.647,87, sendo que a respectiva prestação mensal ascendia nessa última data a € 244,28.».
A realidade deste facto emerge das informações prestadas nos autos pela Y em 09.05.2018 e 30.11.2018.
É um facto complementar dos que constam nos pontos nºs 43, 44 e 45, relevante atenta a questão de direito atinente à relação existente entre este processo e o de acidente de trabalho nº 1092/16.6T8BRG.

Pelo exposto, determina-se o aditamento de um ponto nº 16-A aos factos assentes, com o seguinte teor:
«16-A. Além do pagamento das prestações referidas em 16., a “Y” tem vindo a reembolsar o A., desde a data do acidente, das suas despesas médicas, medicamentosas e com transportes, ortóteses e assistência de terceira pessoa, tendo-lhe pagado por esta assistência (de terceira pessoa), no período compreendido entre 12.06.2015 e 31.05.2018, a quantia total de € 7.647,87, sendo que a respectiva prestação mensal ascendia nessa última data a € 244,28.».
*
2.2.2.7. Do ponto de facto nº 40 dos factos provados (impugnação da Ré)

O facto provado nº 40 tem o seguinte teor:
«40. Por causa do acidente passou a apresentar disfunção eréctil».
A Ré pretende que passe a ter a seguinte redacção (v. conclusão 17ª):
«40. Por causa do acidente, o A. passou a apresentar disfunção eréctil, respondendo bem à respectiva medicação (com “Cialis” 20 mg)».

No relatório pericial médico-legal fez-se constar que «Em agosto de 2016 iniciou igualmente seguimento de Urologia na C., por queixas de disfunção eréctil e queixas urinárias. Realizou ecodoppler peniano que não revelou alterações, tendo iniciado terapêutica com Cialis, com boa resposta».
No documento nº 5 anexo ao relatório, que constitui uma informação clínica prestada pela C. – Hospital Privado de …, SA, sobre o acompanhamento que aí teve em consulta de urologia, exarou-se que o Autor «Mantém boa resposta de Disfunção Eréctil com Cialis 20 mg – deverá manter ad eternum por médico assistente».
Essa situação foi dada por adquirida tanto no aludido relatório médico-legal como nos esclarecimentos posteriormente prestados, no que respeita à repercussão permanente na actividade sexual, em que foi valorizada como de grau cinco numa escala de sete graus de gravidade crescente.
Apesar de ter sido valorizado na perícia, o facto de o Autor ter boa resposta à terapêutica com o medicamento Cialis, na dosagem de 20 miligramas, constitui um elemento caracterizador do referido dano.
Por corresponder à verdade apurada no processo, deve o apontado facto ser aditado ao ponto nº 40.

Termos em que se determina que o ponto nº 40 dos factos provados passe a ter o seguinte teor:
«40. Por causa do acidente, o Autor passou a apresentar disfunção eréctil, respondendo bem à respectiva medicação (com “Cialis” 20 mg).».
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2.2.2.8. Dos pontos de facto nºs 43 e 44 dos factos provados (impugnação da Ré)

Os pontos de facto referidos em epígrafe têm o seguinte teor:
«43. Desde a ocorrência do sinistro que o autor está dependente de terceira pessoa para as tarefas mais elementares e básicas do dia-a-dia, pelo menos duas horas por dia, o que o faz sentir-se um estorvo para os seus familiares e amigos.
44. O autor continuará a necessitar de ajuda de terceira pessoa para o auxiliar na sua higiene pessoal, para se vestir, e para outras tarefas do dia-a-dia».

Na conclusão 18ª a Recorrente sintetiza as razões por que impugna a decisão proferida sobre esses dois pontos:
«Porque, quanto à assistência de terceira pessoa, o relatório do INML de fls. 797 e ss. apenas diz que “…, o examinando beneficiará de auxílio de terceira pessoa, para auxílio das AVDs, com uma periodicidade de aproximadamente 2h/dia.”, e não foi produzida qualquer prova sobre as actividades da vida diária que justificam essa ajuda, nem sobre a parte final do nº 43 dos factos provados, propõe-se que os nºs 43 e 44 dos factos provados dêem lugar a um único ponto, com a seguinte redacção:
“O A. necessita do auxílio de terceira pessoa para tarefas do dia a dia, pelo menos duas horas diárias.”».

Analisada a argumentação da Recorrente e efectuado o seu confronto com os meios de prova produzidos sobre esta matéria, concluímos não existir fundamento para proceder à alteração sugerida.
Com efeito, em primeiro lugar, estamos no âmbito de factos que resultam directamente do resultado da prova pericial, o qual é inequívoco sobre o grau de dependência de terceiros para as actividades da vida diária do Autor. Só pelo que consta do relatório pericial já era legítimo concluir que o Autor «está dependente de terceira pessoa para as tarefas mais elementares e básicas do dia-a-dia, pelo menos duas horas por dia» e que «continuará a necessitar de ajuda de terceira pessoa para o auxiliar na sua higiene pessoal, para se vestir, e para outras tarefas do dia-a-dia». É isso mesmo que resulta do relatório. A sigla “AVDs”, com o significado, segundo se julga, de “actos da vida diária”, utilizada no relatório engloba precisamente a realização da higiene pessoal, o acto de vestir-se e outras tarefas (básicas) do dia-a-dia, que são actos e necessidades impreteríveis, tal como consta dos dois pontos de facto, pelo que nem sequer se compreende a razão de ser da impugnação. Acresce que a produção de prova pericial é determinada precisamente para o tribunal e as partes não ficarem sujeitos à subjectividade de uma prova como a testemunhal. Na prova pericial na área da medicina os factos são determinados de forma científica, atentos os conhecimentos especiais do perito, e com base neles o tribunal pode extrair as devidas presunções sobre as suas consequências.
Em segundo lugar, quanto ao mais, estamos perante uma pessoa que desde o sinistro esteve sujeito às vicissitudes que se mostram descritas nos pontos nºs 17 a 40 dos factos provados e que, apesar dos tratamentos, «apresenta marcha claudicante com recurso necessário a duas canadianas, uso de calçado adaptado e palmilhas adequadas; dorsolombalgias; metatarsalgias; gonalgias bilaterais; perturbações do equilíbrio; perna e pé dismórficos, com pé equino-varo e ligeira rotação externa, com apoio plantar irregular; hipotrofia muscular marcada de todo o membro inferior direito, com amiotrofia da coxa direita de 4 cm em relação à contralateral; encurtamento clínico do membro inferior direito de 25 mm; espessamento e dor no joelho direito, com rigidez na flexão a 90º e completa na extensão, o que não permite avaliar a estabilidade e menisco pela dor e alterações na perna e pé direitos; anquilose subtalar; disfunção eréctil; dismorfias, designadamente, (i) área de extensa perda de substância, com deformidade, e irregular, de 42 cms de extensão nas zonas anterior e lateral, (ii) área de perda de substância, com afundamento de 6 x 1 cms na região maleolar medial direita, (iii) complexo cicatricial com área de enxerto cutâneo no terço proximal e médio da face medial da perna direita, com 20 cms de comprimento por 9 cms de máxima largura (iv), cicatriz cirúrgica do terço distal da face lateral da perna direita até à região calcaneana lateral, medindo 20 cms de comprimento, (v) cicatriz cirúrgica rodeada da distrofia cutânea importante do terço distal da face medial da perna direita até à região maleolar interna, com 14 cms de comprimento; (vi) cicatriz cirúrgica em toda a face posterior da perna, com 26 cms de comprimento por 2 cms de máxima largura (local de enxerto muscular); (vii) complexo cicatricial irregular e distrofia na região aquiliana com 9 cms de eixo maior por 6 cms de eixo menor». Além disso, o Autor «sofreu um quantum doloris de grau 7, numa escala de 1 a 7, um défice funcional temporário total de 964 dias, a que acrescem 82 dias resultantes de uma recaída; um dano estético de grau 6, uma repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 7 e um prejuízo sexual de grau 5».
Atentos todos esses factos, o teor do relatório pericial, as queixas que o Autor apresentou, as suas declarações de parte e os depoimentos das testemunhas A. S. e C. M., donde emerge a constatação de uma situação de tristeza, de desânimo e de perda da alegria de viver, bem andou o Tribunal ao dar como provados os pontos de facto nºs 43 e 44.
Termos em que se desatende a impugnação da decisão da matéria de facto no que respeita aos mencionados pontos de facto.
*

2.2.2.9. Do ponto de facto nº 47 dos factos provados (impugnação da Ré)
O facto provado nº 47 tem o seguinte teor:
«47. Caso o autor consiga conduzir um veículo adaptado ao uso de apenas um membro inferior, poderá continuar a exercer a profissão que exercia, ainda que com constantes e significativos esforços acrescidos; não conseguindo conduzir um veículo adaptado, fica impedido de exercer a profissão habitual».

A Ré pretende que o referido ponto de facto passe a ter a seguinte redacção (conclusão 20ª):
«47. O A. poderá continuar a exercer a sua profissão, com constantes e significativos esforços acrescidos, para o que deverá conduzir um veículo adaptado.»
Para o efeito, argumenta que a empresa Electro Mecânica R., Lda., que se dedica à adaptação de veículos para deficientes motores, foi notificada «para vir aos autos informar da possibilidade técnica de adaptação de um veículo para que o travão e o acelerador possam ser accionados com o membro inferior esquerdo ou manualmente» e que em 04.12.2020 «essa empresa prestou nos autos a seguinte informação:
“Vimos por este meio em resposta ao V/ pedido em referência informar que é possível adaptar qualquer viatura para o travão e o acelerador serem acionados manualmente.
Relativamente à possibilidade dos referidos pedais serem acionados pelo membro inferior esquerdo somente em viaturas com transmissão automática e com a respectiva adaptação do pedal de acelerador para ser acionado à esquerda do pedal de travão.”».
Conclui que «sendo possível a adaptação de um veículo para que o A. não precise de usar o membro inferior direito para o conduzir, encontra-se preenchida a (única) condição de que o INML fez depender a possibilidade de aquele continuar a exercer a sua actividade profissional».

Nos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito médico fez-se constar:
«O perito médico não tem conhecimentos técnicos automóveis suficientes para saber se é possível adaptar um veículo por forma a ser conduzido apenas com o membro inferior esquerdo.
Se tal se afigurar possível, então é de admitir que as sequelas não sejam totalmente impeditivas do exercício da atividade profissional, sendo assim compatíveis com este exercício, implicando, no entanto, constantes esforços significativamente acrescidos».
Atalhando argumentação, depois de escutar atentamente o depoimento da testemunha P. M., que foi colega de trabalho do Autor na X, exerce as funções de coordenador de várias lojas desta empresa, entre as quais a loja onde o Autor era gerente, e que durante vários anos foi gerente de loja tal como o Autor, esta Relação ficou convicta que o Autor, devido às sequelas do acidente, não dispõe de condições físicas que lhe permitam desempenhar as funções de gerente de loja ou, numa designação mais pomposa, de director comercial. A aludida testemunha descreveu exaustivamente, com inteiro conhecimento de causa, qual o conteúdo funcional da referida profissão habitual do Autor, designadamente que é necessário um dinamismo e uma disponibilidade física que o Autor não possui, atento o concreto objecto do comércio da referida empresa (loja de mobiliário e de artigos para o lar) e o que isso envolve (atender clientes, contactar e atender fornecedores, supervisionar os funcionários da loja, etc.). Resulta perfeitamente claro do aludido depoimento que um gerente de uma loja da X não pode exercer as suas funções sentado a uma secretária ou quando só se consegue deslocar com o apoio de duas canadianas.
Repare-se que não está em causa se o Autor consegue ou não exercer outra profissão, mas sim aquela que é a sua “profissão habitual”, que é a de gerente de loja/director comercial da X, e isso é para nós inequívoco que não consegue.
Por outro lado, tal estado (impossibilidade de exercer a profissão habitual) é independente de conseguir ou não conduzir um veículo adaptado, circunstância que só relevaria para se fazer transportar de casa para o trabalho. Dito de uma forma mais crua: que interesse há em saber se o Autor consegue conduzir um veículo adaptado para se fazer transportar de casa a uma loja da X, quando, uma vez lá chegado, não terá condições para exercer a sua profissão (e nem sequer terá aí emprego)?
Estando esta Relação limitada pelos termos da pretensão deduzida (que se entende improcedente por o Autor nem sequer conseguir exercer a sua profissão habitual) e, por isso, não podendo oficiosamente fazer constar do ponto nº 47 o facto que corresponde à sua convicção (adquirida com a revisão da prova produzida), deve indeferir-se a impugnação e manter-se a redacção do facto tal como está.
Termos em que se julga improcedente a impugnação sobre este ponto de facto.
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2.2.2.10. Dos pontos de facto nºs 48, 49, 50, 51, 52, 53 e 58 dos factos provados (impugnação da Ré)

Os referidos pontos de facto têm o seguinte teor:

«48. Durante os 4 meses de internamento, o autor tinha a sua mulher e filhos no Funchal, tendo esse isolamento ditado uma degradação do seu estado psicológico, bem como preocupações e ansiedade na autora.
49. Antes do acidente o autor era saudável, fisicamente bem constituído, dinâmico, trabalhador, desportista, social e sociável, efectuando passeios de moto e actividades de todo-o-terreno aos fins-de-semana, nunca mais tendo podido efectuar qualquer dessas actividades.
50. Por causa da disfunção eréctil de que ficou a padecer houve perturbações no casamento.
51. Os complexos, incertezas e inseguranças do autor afectaram a relação conjugal, estando o autor actualmente separado da mulher.
52. Atentas as lesões e as cicatrizes que apresenta no membro inferior direito sente constrangimento em deslocar-se à praia ou à piscina, o que lhe causa tristeza, amargura, incómodo e mal-estar.
53. Na rua, o autor sente-se incomodado quando os outros transeuntes olham para si.
58. Após a separação referida em 51), o autor deixou de ter qualquer tipo de relacionamento mais íntimo, o que lhe provoca profunda tristeza, amargura e angústia».
Na conclusão 22ª a Ré sustenta que «a ausência de suporte probatório obriga à eliminação dos factos provados nºs 48 a 53 e 58».

Da análise dos diversos meios de prova resulta, em primeiro lugar, que nenhuma prova foi produzida sobre se «o Autor deixou de ter qualquer tipo de relacionamento mais íntimo», após se ter separado da mulher, pelo que necessariamente fica prejudicada a consideração da consequência de um facto não demonstrado. Por isso, não podendo estabelecer-se qualquer presunção judicial sobre tal matéria, que carecia de demonstração, deve o ponto nº 58 ser julgado como não provado.
Em segundo lugar, quanto ao ponto nº 48, nenhum meio de prova alicerça a afirmação sobre as «preocupações e ansiedade na autora».
Em terceiro lugar, no que concerne ao ponto nº 49, também não encontramos lastro probatório que permita suportar a afirmação de que o Autor era «desportista, social e sociável, efectuando passeios de moto e actividades de todo-o-terreno aos fins-de-semana, nunca mais tendo podido efectuar qualquer dessas actividades». Se o Autor era desportista e se fazia passeios de moto ou actividades de todo-o-terreno aos fins-de-semana é algo que não se pode presumir. Portanto, deve o ponto nº 49 ser expurgado do extracto transcrito.
Em quarto lugar, quanto à restante factualidade, entendemos que a mesma resultou demonstrada. Partindo da constatação objectiva das lesões e sequelas de que ficou a padecer, bem patenteadas no relatório pericial, e considerando as declarações de parte do Autor e os depoimentos das testemunhas A. S. e C. M., seus amigos, e as regras da experiência, é lícito concluir pela verificação daquela factualidade.

Pelo exposto, na parcial procedência da impugnação, decide-se:
a) Eliminar o ponto nº 58 dos factos provados e aditar uma alínea p) aos factos não provados com o seguinte teor:
«p) Que após a separação da mulher o autor tenha deixado de ter qualquer tipo de relacionamento mais íntimo e que isso lhe provoque profunda tristeza, amargura e angústia»;
b) Determinar que os pontos nºs 48 e 49 passem a ter o seguinte teor:
«48. Durante os 4 meses de internamento, o Autor tinha a sua mulher e filhos no Funchal, tendo esse isolamento ditado uma degradação do seu estado psicológico»;
«49. Antes do acidente o Autor era saudável, fisicamente bem constituído, dinâmico e trabalhador»;
c) Aditar aos factos não provados os seguintes pontos:
«q) Que o referido no ponto nº 48 tenha causado à Autora preocupações e ansiedade na Autora»;
«r) Que o Autor fosse desportista, social e sociável, e efectuasse passeios de moto e actividades de todo-o-terreno aos fins-de-semana».
*
Apreciadas que estão as impugnações da decisão sobre a matéria de facto, os factos provados são os seguintes:

1. O autor nasceu no dia - de Janeiro de 1970.
2. O autor casou com a co-autora em - de Julho de 2015.
3. Por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº .......52 a ora ré declarou assumir a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros CZ.
4. No dia 11.03.2015, pelas 15.40 horas, o motociclo conduzido pelo autor e pertencente a J. F., com a matrícula DU (doravante, DU), circulava pela E.N. 205, no sentido Amares/Póvoa de Lanhoso, tendo colidido com o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula número CZ (doravante CZ), conduzido por J. P. e a este pertencente.
5. O CZ seguia no sentido oposto, tendo a colisão ocorrido na metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido Amares/Póvoa de Lanhoso.
6. A colisão ocorreu a 65 centímetros do eixo da via.
7. No local existe uma linha longitudinal contínua a separar as duas hemi-faixas.
8. O contacto deu-se entre a parte da frente do lado direito, lateral direita do veículo CZ, e a parte lateral direita do motociclo DU, apanhando o membro inferior direito do autor.
9. Após a colisão, o DU seguiu de modo descontrolado para a esquerda, considerando o sentido e marcha que levava, vindo a imobilizar-se na berma do lado esquerdo, atento o sentido de marcha Amares/Póvoa de Lanhoso.
10. O CZ imobilizou-se uns metros, não concretamente apurados, mais à frente, atento o sentido de marcha Póvoa de Lanhoso/Amares.
11. No local do acidente, a E.N. nº 205 é sinuosa, composta por duas hemi-faixas de rodagem, uma em cada sentido, com a largura de 2,80 m cada, num total de 5,60 m.
12. O limite máximo de velocidade é de 70 km/h.
13. Aquando do acidente, o tempo encontrava-se seco e o céu limpo. 14. A via apresentava pavimento betuminoso, em bom estado de conservação, e estava delimitada lateralmente por duas linhas contínuas, com valeta e muro do lado direito, considerando o sentido de circulação do DU.
15. O autor tinha 0,29 g/l e THC-COOH 6.4 ng/ml.
16. O acidente foi considerado simultaneamente de trabalho, e corre termos sob o nº 1092/16.6T8BRG, pelo Juízo do Trabalho de Águeda, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, uma acção judicial onde se discute a medida da indemnização devida, tendo o autor recebido da “Companhia de Seguros Y S.A.”, Y, vários valores a título de salários no período de baixa médica, pensão e subsídios de férias, ascendendo a € 7.087,84 o montante recebido a título de pensão (€ 775,46 / mês em 2017 e € 789,42 / mês em 2018) após alta, entre os meses de Novembro de 2017 e Abril de 2018.
16-A. Além do pagamento das prestações referidas em 16., a “Y” tem vindo a reembolsar o A., desde a data do acidente, das suas despesas médicas, medicamentosas e com transportes, ortóteses e assistência de terceira pessoa, tendo-lhe pagado por esta assistência (de terceira pessoa), no período compreendido entre 12.06.2015 e 31.05.2018, a quantia total de € 7.647,87, sendo que a respectiva prestação mensal ascendia nessa última data a € 244,28.
17. Em consequência do acidente o autor sofreu fractura exposta dos pratos tibiais à direita; fractura exposta do pilão tibial direito e fractura do astrágalo, escafóide társico, cunha medial e base do 2º e 4º metatarso à direita.
18. Depois de estabilizado, o autor foi transportado para o S.U do Hospital de Braga, sujeito a exames imagiológicos e submetido a uma intervenção cirúrgica, com lavagem desbridamento, redução e osteotaxia fechada com fixador externo.
19. No dia 29.04.2015 foi ali submetido a nova intervenção cirúrgica para osteossíntese do perónio distal e extracção dos fixadores externos.
20. No dia 02.06.2015 o autor foi submetido a nova intervenção cirúrgica pelas especialidades de ortopedia e cirurgia plástica daquele hospital para remoção do material de osteossíntese, curetagem dos bordos ósseos e plastia da área exposta com retalho muscular de gastrocnémio medial pediculado e tunelizado e enxerto de pele.
21. Permaneceu internado até ao dia 11.06.2015, mantendo tala de Depuy no membro inferior.
22. Iniciou tratamento fisiátrico e teve acompanhamento psicológico.
23. Foi seguido por Urologia e Psicologia no Madeira Medical Center.
24. Esteve em tratamento fisiátrico no Funchal, mantendo-se seguido em todas essas unidades até meados do mês de Dezembro de 2015. 25. Sofreu dores no pé direito, tomando opiáceos, analgésicos e anti-inflamatórios para as atenuar.
26. No dia 01.01.2016 teve que se deslocar para e do aeroporto de ambulância, atento o estado de saúde.
27. Foi-lhe diagnosticada pseudartrose asséptica do pilão e do maléolo externo e fractura dos pratos tibiais viciosamente consolidados com placas e parafusos e, por causa disso, teve que regressar a Aveiro em Janeiro de 2016.
28. No dia 24.01.2016 foi submetido a nova intervenção cirúrgica para substituição do material de osteossíntese.
29. Durante o internamento sofreu complicação por necrose cutânea, deiscência da sutura e exposição do material de osteossíntese.
30. Foi submetido a nova intervenção cirúrgica de arrastamento de pele para cobrir a ferida que apresentava no membro inferior direito e permaneceu internado até ao mês de Abril de 2016, altura em que teve alta hospitalar, regressando, de novo, ao Funchal.
31. O autor fazia penso em dias alternados à ferida que apresentava no membro inferior direito.
32. No mês de Julho de 2016 foi novamente transferido para Aveiro, para tratamentos, tendo sido seguido em Consultas de Psicologia e Urologia.
33. Teve que passar a ser acompanhado em consultas de diversas especialidades, no Porto.
34. No dia 10.12.2016 o autor foi internado no Hospital da ... para se submeter a nova intervenção cirúrgica para artrodese do tornozelo e subastragalina direita, regressando, após alta, a Aveiro.
35. Em Fevereiro de 2017 foi internado no Hospital da ..., no Porto, por apresentar fractura da tíbia na zona do parafuso proximal, tendo o internamento por objectivo uma revisão ao material de osteossíntese que tinha colocado.
36. O autor desenvolveu uma osteomielite da tíbia e acabou por se manter internado para realizar antibioterapia.
37. No dia 24.03.2017 foi submetido a nova cirurgia para osteotaxia com Orthopfix.
38. No dia 27.06.2017 foi novamente internado, tendo sido submetido a mais uma intervenção cirúrgica para extracção do material de osteossíntese colocado no membro inferior direito – fixador externo.
39. A cura das lesões fixou-se no dia 30.10.2017, a que acresceram 83 dias de baixa por uma recaída, continuando o autor a ser acompanhado na consulta de urologia e fisiatria, em Aveiro, e na consulta de psicologia, em Coimbra.
40. Por causa do acidente, o Autor passou a apresentar disfunção eréctil, respondendo bem à respectiva medicação (com “Cialis” 20 mg).

41. Apesar dos tratamentos, o autor apresenta marcha claudicante com recurso necessário a duas canadianas, uso de calçado adaptado e palmilhas adequadas; dorsolombalgias; metatarsalgias; gonalgias bilaterais; perturbações do equilíbrio; perna e pé dismórficos, com pé equino-varo e ligeira rotação externa, com apoio plantar irregular; hipotrofia muscular marcada de todo o membro inferior direito, com amiotrofia da coxa direita de 4 cm em relação à contralateral; encurtamento clínico do membro inferior direito de 25 mm; espessamento e dor no joelho direito, com rigidez na flexão a 90º e completa na extensão, o que não permite avaliar a estabilidade e menisco pela dor e alterações na perna e pé direitos; anquilose subtalar; disfunção eréctil; dismorfias, designadamente, (i) área de extensa perda de substância, com deformidade, e irregular, de 42 cms de extensão nas zonas anterior e lateral, (ii) área de perda de substância, com afundamento de 6 x 1 cms na região maleolar medial direita, (iii) complexo cicatricial com área de enxerto cutâneo no terço proximal e médio da face medial da perna direita, com 20 cms de comprimento por 9 cms de máxima largura (iv), cicatriz cirúrgica do terço distal da face lateral da perna direita até à região calcaneana lateral, medindo 20 cms de comprimento, (v) cicatriz cirúrgica rodeada da distrofia cutânea importante do terço distal da face medial da perna direita até à região maleolar interna, com 14 cms de comprimento; (vi) cicatriz cirúrgica em toda a face posterior da perna, com 26 cms de comprimento por 2 cms de máxima largura (local de enxerto muscular); (vii) complexo cicatricial irregular e distrofia na região aquiliana com 9 cms de eixo maior por 6 cms de eixo menor.
42. O autor sofreu um quantum doloris de grau 7, numa escala de 1 a 7, um défice funcional temporário total de 964 dias, a que acrescem 82 dias resultantes de uma recaída; um dano estético de grau 6, uma repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 7 e um prejuízo sexual de grau 5.
43. Desde a ocorrência do sinistro que o autor está dependente de terceira pessoa para as tarefas mais elementares e básicas do dia-a-dia, pelo menos duas horas por dia, o que o faz sentir-se um estorvo para os seus familiares e amigos.
44. O autor continuará a necessitar de ajuda de terceira pessoa para o auxiliar na sua higiene pessoal, para se vestir, e para outras tarefas do dia-a-dia.
45. Futuramente o autor manterá a carência de ajudas medicamentosas (analgésicos e medicação para a disfunção eréctil), tratamentos médicos regulares (consultas regulares de ortopedia, fisiatria, psiquiatria e urologia) para avaliar a necessidade de novos tratamentos farmacológicos, médicos ou cirúrgicos; de ajudas técnicas (um par de canadianas com braço articulado e botas ortopédicas com compensação à direita) e terá que adaptar o domicílio, eliminando barreiras arquitectónicas.
46. O autor ficou a padecer de um défice da integridade física e psíquica de 60 pontos.
47. Caso o autor consiga conduzir um veículo adaptado ao uso de apenas um membro inferior, poderá continuar a exercer a profissão que exercia, ainda que com constantes e significativos esforços acrescidos; não conseguindo conduzir um veículo adaptado, fica impedido de exercer a profissão habitual.
48. Durante os 4 meses de internamento, o Autor tinha a sua mulher e filhos no Funchal, tendo esse isolamento ditado uma degradação do seu estado psicológico.
49. Antes do acidente o Autor era saudável, fisicamente bem constituído, dinâmico e trabalhador.
50. Por causa da disfunção eréctil de que ficou a padecer houve perturbações no casamento.
51. Os complexos, incertezas e inseguranças do autor afectaram a relação conjugal, estando o autor actualmente separado da mulher.
52. Atentas as lesões e as cicatrizes que apresenta no membro inferior direito sente constrangimento em deslocar-se à praia ou à piscina, o que lhe causa tristeza, amargura, incómodo e mal-estar.
53. Na rua, o autor sente-se incomodado quando os outros transeuntes olham para si.
54. À data do acidente o autor era gerente de loja de mobiliário e artigos para o lar, cabendo-lhe a tarefa de atender clientes e fornecedores, assim como supervisionar o trabalho dos operadores de loja.
55. No ano de 2013 o autor auferiu um rendimento ilíquido de € 10.181,91; em 2014 o seu rendimento anual foi de € 11.851,00 e em 2015 o seu rendimento anual foi de € 4.316,79.
56. À data do acidente mantinha a mesma entidade patronal e as mesmas funções.
57. Depois do acidente não mais trabalhou.
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2.2.2. Reapreciação de Direito

2.2.2.1. Responsabilidade na produção do acidente

Nas respectivas apelações, o Autor sustenta que se verifica a responsabilidade exclusiva do condutor do veículo seguro pela Ré ou, se assim se não entender, na proporção de 75%, enquanto a Ré imputa ao Autor a culpa exclusiva na produção do acidente.
No que respeita ao circunstancialismo do acidente de viação, os factos são exactamente os mesmos que alicerçaram a aplicação de direito feita na sentença recorrida.
O acidente de viação dos autos consistiu numa colisão entre o motociclo conduzido pelo Autor, com a matrícula DU, e o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula número CZ, seguro na Ré, quando ambos circulavam na Estrada Nacional nº 205, que liga Amares a Póvoa de Lanhoso. O Autor seguia com o motociclo no sentido Amares/Póvoa de Lanhoso, enquanto o veículo CZ seguia em sentido contrário.
No local do acidente, a EN nº 205 é sinuosa, composta por duas hemi-faixas de rodagem, uma em cada sentido, com a largura de 2,80 m cada, num total de 5,60 m.
A colisão ocorreu na metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido Amares/Póvoa de Lanhoso, a 65 centímetros do eixo da via.
Como o contacto se deu entre a parte da frente do lado direito, lateral direita do veículo CZ, e a parte lateral direita do motociclo DU, conclui-se que ambos os veículos, no momento da colisão, estavam a invadir ligeiramente a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário àquele que seguiam.
Portanto, ambos os condutores violaram o disposto no artigo 13º, nº 1, do Código da Estrada, onde se estabelece que «a posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem», bem como transpuseram uma linha longitudinal contínua delimitadora de sentidos de trânsito (v. artigo 146º, al. o), do Código da Estrada e o artigo 60º, nº 1 (marca M1), do Regulamento de Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro).
De acordo com o nosso regime jurídico, no domínio dos acidentes de viação a responsabilidade civil compreende quer a responsabilidade pela culpa, quer a responsabilidade pelo risco - cfr. nomeadamente o artigo 483º e segs., assim como o artigo 499º e segs., todos do Código Civil (CCiv.). No âmbito da responsabilidade a título de culpa ainda há que fazer a distinção entre culpa efectiva de algum ou ambos os intervenientes (ou de vários/todos os intervenientes se forem mais de dois) no acidente e culpa legalmente presumida do condutor de veículo por conta de outrem, a que alude o nº 3 do artigo 503º do CCiv.
Nas conclusões das suas alegações, na parte em que pressupôs a confirmação da decisão de facto, como se veio a verificar, a Ré sustenta que o Tribunal recorrido, por ter considerado inexistir culpa de qualquer dos condutores, ao aplicar o regime da responsabilidade pelo risco e fixado a proporção de responsabilidade dos condutores na percentagem de 40% para o Autor e de 60% para o condutor do veículo seguro na Ré, aplicou indevidamente os artigos 503º, nº 1, e 506º, nº 1, do CCiv.
No entender da Ré, o «506º/1 do CC pressupõe a ausência de culpa dos condutores, sendo que qualquer uma das versões do acidente em confronto nos autos envolve culpa de um ou outro condutor, e mesmo os poucos factos provados sobre as circunstâncias do acidente não deixam dúvidas sobre a existência de culpa de um dos condutores ou, até, de ambos». Sustenta, por isso, que «deixando a decisão de facto, mesmo na versão actual, perceber que o acidente foi causado, inevitavelmente, por culpa de algum dos condutores, o que subsiste é uma dúvida quanto ao condutor culpado, que a prova não permitiu dissipar, pelo há que aplicar a segunda parte do nº 2 do art. 506º do CC e, nos seus termos, considerar igual a medida da contribuição da culpa do A. e do segurado da R.».
Diga-se desde já que, no nosso entendimento, quer se julgue gerada a responsabilidade dos condutores a título de culpa efectiva – pois que inexiste qualquer facto que permita a caracterização a título de culpa legalmente presumida – quer se conclua, em via subsidiária, pela aplicação da responsabilidade pelo risco, consideramos que a repartição da responsabilidade na produção do acidente deve ser feita na proporção fixada na sentença. A responsabilidade dos condutores pelo acidente deverá ser repartida pelo Autor e pelo segurado da Ré naquela proporção, independentemente do regime de responsabilidade civil aplicado, ou seja, por factos ilícitos ou pelo risco.

Todavia, diferentemente do Tribunal a quo, entendemos de ambos os condutores violaram deveres objectivos de cuidado, ao circularem sobre o eixo da via, invadindo ligeiramente a parte da faixa de rodagem (lado direito) destinada ao sentido de trânsito contrário ao seu, e transpondo – numa curva – uma linha longitudinal contínua. A circulação naqueles termos constitui uma violação de preceitos do Código da Estrada e as regras de trânsito configuram deveres cuja violação pode servir de base à imputação a título de negligência.
No caso, a circulação fora da mão adoptada por ambos os condutores foi causal da colisão entre os dois veículos: podem imputar-se aos dois condutores concretos comportamentos causais concorrentes para a produção do acidente. Havendo nexo causal entre a ocorrência de uma violação ao Código da Estrada e o acidente, entende-se existir uma presunção juris tantum de negligência contra o autor da mesma. Como a matéria de facto provada não fornece o mínimo indício de que o acidente possa ter sido causado por algum caso fortuito, como uma avaria mecânica de algum dos veículos, ou por causa de força maior estranha ao funcionamento dos veículos, presume-se a culpa efectiva de ambos os condutores.
Mas uma vez aqui chegados, a conclusão não deve ser no sentido de considerar igual a contribuição da culpa de cada um dos condutores, com recurso ao disposto no artigo 506º, nº 2, do CCiv., aplicando uma regra salomónica sem atender às circunstâncias do caso concreto.
É que a culpa e a graduação desta têm sempre de ser apreciadas com base no circunstancialismo da situação da vida real que é objecto de análise pelo julgador. Isto partindo da definição de que a culpa constitui um nexo de imputação subjectiva que exprime a ligação psicológica do agente com a produção do acidente e traduz o grau de censurabilidade que a conduta merece.
Recorrendo a um exemplo extremo, é diferente conduzir um camião ou um velocípede pelo eixo da via – fora da mão e com transposição de uma linha longitudinal contínua –, não só a aptidão para produzir danos é desproporcionalmente diversa, circunstância que releva também para a repartição da responsabilidade pelo risco, como a censurabilidade dirigida a um e outro condutor é díspar. Ambas são condutas reprováveis, mas a culpa do condutor do camião é mais intensa, incidindo sobre ele um reforçado dever de actuar de outro modo em face da elevada aptidão da sua conduta, em face da natureza do veículo que conduz, para causar danos graves a terceiros.
Como se enfatiza no sumário do acórdão de 01.07.1997, do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo nº 430/97 - 1ª Secção, relatado por Cardona Ferreira: «I - Embora o nº 1 do art. 506º, do CC, se reporte, literalmente, a situações de responsabilização por risco, o âmbito geral desse artigo, como se vê da epígrafe e do n.º 2, não é alheio a situações culposas. II - Para além disso, para efeito de graduação de culpas releva o grau de exigibilidade de cuidado, para o que concorre o tipo de veículo que se conduz. III - Acontecendo que a condução de um automóvel é mais passível de provocar danos a terceiros que ao condutor, enquanto a condução de um veículo de duas rodas é mais adequado à verificação de danos no próprio condutor, o incumprimento de diligência por aquele é mais gravoso que o deste, salvo ocorrência de circunstância especiais».

No caso dos autos, estando em confronto um veículo ligeiro de passageiros e um motociclo, em que existe concorrência de culpas, afigura-se-nos que a contribuição da culpa de cada um dos condutores foi de 60% pelo condutor do veículo seguro na Ré e de 40% pelo Autor. Não seria de aplicar o disposto no nº 2 do artigo 506º do CCiv., uma vez que este pressupõe uma situação de dúvida sobre a contribuição da culpa dos agentes que no caso não se verifica.
Mas se porventura, em face do desconhecimento da dinâmica do acidente, se considerasse que a produção do acidente apenas era imputável a título de responsabilidade do risco, como se fez na sentença recorrida, a proporção da responsabilidade também deveria ser repartida na mesma proporção, mas aqui já com base no critério definido no nº 1 do artigo 506º do CCiv., ou seja, «na proporção em que o risco de cada uma dos veículos houver contribuído para os danos». Trata-se de uma distribuição em concreto, em que se atende à proporção do risco real e objectivo de cada veículo para os danos, sendo que no caso dos autos apenas estão em causa os danos pessoais sofridos pelo Autor e não os danos nos veículos envolvidos.
Neste pressuposto e em face dos dados factuais tidos como provados, é fácil concluir que os danos resultam de uma maior segurança do condutor do veículo automóvel – protegido pela carroçaria, pelo tamanho e em geral pela estrutura do automóvel – na colisão com o motociclo. Sendo certo que desta colisão resulta, consabidamente, um risco maior de danos do que o que resultaria da colisão de dois automóveis.
Como bem se salienta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.2010, proferido no processo n° 839/07.6TBPFR.P1.S1, relatado por Lopes do Rego (5), «a medida do risco causado com a circulação rodoviária de certa viatura se deve fixar em função da sua vocação ou apetência para, em caso de colisão, provocar danos acrescidos no outro ou outros intervenientes no sinistro: note-se que a maior fragilidade e menor grau de segurança de um dos veículos intervenientes numa colisão, enquanto determina efectivamente uma maior apetência para provocar danos relevantes ao seu próprio utilizador, implica uma típica redução do risco de lesão grave nos outros utilizadores da via pública que conduzam viaturas mais sólidas, pesadas ou estáveis. Ora, sendo este segundo o factor decisivo, é evidente que – como decidiu o acórdão recorrido e constitui, aliás, solução jurisprudencial corrente – é substancialmente maior a capacidade de um veículo automóvel infligir danos relevantes ao utilizador de um motociclo ou ciclomotor com o qual colida em circunstâncias indeterminadas do que a apetência para o segundo lesar gravemente o condutor do automóvel envolvido na colisão (como é notório e resulta, de forma paradigmática, da gravidade extrema das lesões sofridas no acidente dos autos pelo condutor do velocípede com motor envolvido na colisão com a viatura segurada)».
Portanto, no caso em apreciação temos como adequada a proporção estabelecida na sentença, ao fixar em 60% e 40% a proporção de risco com que respectivamente o veículo ligeiro CZ e o motociclo conduzido pelo Autor concorreram para a produção do sinistro. São veículos com características estruturais, dimensão e peso diferentes e é maior a apetência do veículo automóvel ligeiro para, em caso de colisão, provocar lesões graves nos demais utentes das vias públicas, que utilizem veículos de menor peso e dimensões, como é o caso de um motociclo, em que o respectivo condutor, sobretudo este, está sempre muito desprotegido devido às características estruturais dos veículos de duas rodas (6).
*

2.2.2.2. Do montante da indemnização pelo dano biológico

O Autor, na sua apelação, pretende a alteração do montante indemnizatório, «fixado a título de reflexo patrimonial do dano biológico», para o valor de € 330.708,00.
Na sentença recorrida fixou-se em € 221.340,00 a indemnização devida pelo reflexo patrimonial do dano biológico, com base num rendimento médio mensal de € 850,00.
A pretensão do Recorrente alicerçava-se directamente na pretendida modificação da matéria de facto, com o aditamento de um ponto em que se considerasse demonstrado que auferia, à data do acidente um vencimento médio mensal de € 1.270,00.
Tendo improcedido tal pretensão, não se verifica a premissa que permitiria a alteração daquele valor indemnizatório para € 330.708,00 (€1.270,00 x 14 x 31 x 60%).
Por isso, improcedem as conclusões formuladas sobre esta questão.
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2.2.2.3. Excessividade do montante indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais

A Recorrente insurge-se contra o montante fixado na sentença a título de danos não patrimoniais, no montante € 200.000,00 (respondendo a Ré por 60% desse valor, ou seja, € 120.000,00), alegando que não se enquadra nos padrões indemnizatórios adoptados noutros casos idênticos ao do Autor, pecando, à luz desses padrões, por excesso, pelo que não deveriam ser valorados em mais do que € 100.000,00, suportando a proporção correspondente à responsabilidade do seu segurado (60%, ou seja, € 60.000,00).

Segundo o nº 1 do artigo 496º do CCiv., são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.
Cumprido o critério da gravidade dos danos, o montante da indemnização, nos termos do nº 4 do artigo 496º, deve ser fixado pelo tribunal com recurso à equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos.
Os danos não patrimoniais, por natureza insusceptíveis de avaliação em dinheiro devido a não atingirem bens integrantes do património do lesado, incidem sobre bens como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom-nome, a reputação e a beleza, da afectação dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação.
Como os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente, sendo possível, todavia, em certa medida, compensar o dano mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro, isto é trata-se de proporcionar ao lesado uma compensação monetária que, de algum modo, alivie os sofrimentos que o facto lesivo lhe provocou, ou lhos faça esquecer. O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória.
Na concreta determinação do quantitativo da compensação, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo e procurar alcançar uma aplicação tendencialmente uniformizadora – ainda que evolutiva – do direito, devem ser considerados os padrões indemnizatórios geralmente adoptados na jurisprudência em casos análogos (7).

No caso dos autos, há que considerar o conjunto de factos descritos nos pontos nºs 1 e 17 a 53 dos factos provados.
Merecem particular relevo, para a fixação do valor da indemnização, (i) as concretas lesões sofridas pelo Autor no acidente (ponto 17 dos factos provados); (ii) os exames médicos e tratamentos a que foi submetido, em particular os vários ciclos de fisioterapia (cf. pontos 22, 23, 24, 25, 31, 32 e 33, dos factos provados); (iii) as dez intervenções cirúrgicas a que foi submetido (cf. pontos 18, 19, 20, 28, 30, 34, 35, 36, 37 e 38 dos factos provados); (iv) os sucessivos períodos de internamento hospitalar (pontos 18, 21, 28, 30, 34, 35 e 38); (v) as dores físicas extremamente intensas sofridas pelo Autor, quantificáveis de grau 7, numa escala de 1 a 7, e as que vai continuar a sofrer durante toda a sua vida (ponto 42); (vi) o défice funcional temporário total de 964 dias, a que acrescem 82 dias resultantes de uma recaída (pontos 39 e 42); (vii) o dano estético de grau 6 numa escala de 7 (ponto 42); (viii) a repercussão das sequelas nas actividades desportivas e de lazer de grau 7 numa escala de 7 (ponto 42); (ix) a disfunção eréctil que passou a apresentar, com um prejuízo sexual de grau 5 numa escala de 7 (ponto 42); (x) a dependência, actual e futura, de terceira pessoa para a realização de tarefas elementares e básicas do dia-a-dia, de pelo menos duas horas por dia (pontos 43 e 44); (xi) a actual e futura carência de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares e ajudas técnicas (ponto 45); (xii) o défice da integridade física e psíquica de 60 pontos de que ficou a padecer permanentemente (ponto 46); (xiii) a impossibilidade de marcha autónoma sem recurso a duas canadianas e ainda assim de forma claudicante e uso de calçado adaptado e palmilhas adequadas; o padecimento psicológico, os constrangimentos e os sentimentos de tristeza, amargura, incómodo e mal-estar (pontos 48, 50 a 57); as graves lesões e sequelas que permanecem (v. ponto 41); a idade do Autor à data do acidente, que era de 45 anos (nasceu em -.01.1970 – ponto 1 dos factos provados).
A valorização dos danos não patrimoniais, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, só tem ultrapassado € 150.000,00 em casos de excepcional gravidade, designadamente em situações de incapacidade permanente entre os 90 e os 100%.
Na sentença invoca-se o acórdão do STJ de 23 de Outubro de 2018, relatado por Henrique Araújo. Após consulta à base de dados da DGSI, verificamos que tal acórdão foi proferido no processo 902/14.7TBVCT.G1.S1 e recaiu sobre uma situação em que «(i) à data do acidente, o lesado tinha 54 anos; (ii) exercia a actividade de serralheiro naval, mecânico e civil; (iii) por força do acidente, ficou a padecer de um défice funcional permanente de 72 pontos incompatíveis com a actividade profissional habitual; (iv) o grau de incapacidade e as graves limitações funcionais associadas dificultarão ou impossibilitarão o exercício de outra actividade profissional na respectiva área, traduzindo, na prática, uma situação de incapacidade total permanente». Acrescentamos nós que em termos de mobilidade a situação é menos grave do que a dos autos, mas que ao nível da repercussão permanente na actividade sexual e ao défice funcional é mais grave. O valor indemnizatório de € 150.000,00 foi fixado na primeira instância e confirmado por este Tribunal da Relação de Guimarães, pelo que o STJ limitou-se a dar por verificada a situação de dupla conforme «Como o acórdão recorrido confirmou o valor da indemnização pelos danos não patrimoniais atribuído da sentença da 1ª instância (€ 150.000,00), verifica-se uma situação de dupla conformidade quanto a esse específico pedido». É uma situação com algum paralelo com a dos autos, mas que não reflecte propriamente a jurisprudência do STJ, mas antes a desta Relação.
A reflectir a jurisprudência, ainda assim evolutiva, daquele mais alto Tribunal, veja-se o acórdão do STJ de 5 de Julho de 2017, proferido no processo 4861/11.0TAMTS.P1.S1, relatado por Gabriel Catarino, em cujo sumário se lê: «Não merece reparo o valor de € 140.000,00 fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, ponderando os níveis de graus de dor que a demandante teve que suportar - ficar entalada entre os dois veículos enquanto a assistência não aportou -, o sofrimento que teve que padecer pelas intervenções cirúrgicas a que teve de submeter - e aquelas a que terá, porventura, de se submeter -, a angústia de se ver privada de um membro inferior, o desgosto de se ver como uma pessoa fisicamente diferente dos demais e objecto de condescendência, bem com outras mazelas e aleijões psíquicos (designadamente: dor fantasma ao nível do membro inferior direito; dificuldade de marcha com claudicação; dores constantes no pé esquerdo, com edema motivados pela sobrecarga do membro inferior; stress pós traumático associado a perturbação de pânico e perturbação mista de ansiedade e depressão; pensamentos suicidas; o quantum doloris fixável no grau 6/7; o dano estético fixável no grau 5/7; a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7; a repercussão permanente na actividade sexual é fixável no grau 4/7; sentimento de vergonha da ofendida pelo seu corpo face às lesões sofridas que a fazem sentir-se diminuída e sem vontade de responder aos estímulos sexuais do seu companheiro com quem vive)». A situação é muito semelhante à dos autos, pois a lesada tinha 46 anos de idade, se bem que em virtude das lesões sofreu «amputação transfemural a nível do terço distal da coxa direita e apresenta múltiplas cicatrizes visíveis nos membros inferiores» (ambos e não apenas no direito).

Para situações um pouco menos graves do que a dos autos, mas com algum paralelismo que permite encontrar um valor aproximado através de um critério proporcional, temos as seguintes situações:
- No Ac. do STJ de 12.07.2018, proferido no processo nº 1842/15.8T8STR.E1.S1, da 2a Secção, foi fixada em € 60.000,00 a indemnização a título de danos não patrimoniais a atribuir a um lesado de 45 anos que, «como sequela das lesões sofridas, o Autor é portador de perturbação persistente do humor; o Quantum Doloris é fixável no grau 6/7; como sequela, em termos médico-legais o Autor ficou com um dano estético, fixável, no grau 3/7; a repercussão permanente nas atividade desportivas e de lazer é fixável em 3/7; a repercussão permanente na atividade Sexual é fixável no grau 3/7; o autor vai precisar de ajudas medicamentosas, ajudas técnicas e tratamentos médicos regulares; e, há lugar a dependências permanentes que incluem os produtos de apoio pela necessidade de uso diário de meia e contenção elástica grau II na perna esquerda e uso de cinta de contensão lombar»;
- No Ac. do STJ de 19.04.2018, proferido no processo nº 196/11.6TCGMR.G2.S1, da 7ª Secção, foi fixada em € 45.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais, tendo sido ponderado em especial, o seguinte quadro factual: as circunstâncias em que ocorreu o acidente (sem qualquer culpa da Autora), a extrema gravidade das lesões sofridas por esta, os dolorosos tratamentos a que foi sujeita, com destaque para as duas intervenções cirúrgicas, com anestesia geral, o longo período de clausura hospitalar e de tratamentos, as deslocações que teve que realizar para curativos e consultas, quer ao Porto quer a Vizela, a enorme incomodidade daí resultante, as graves e extensas sequelas anátomo-funcionais decorrentes do acidente, que se traduzem num deficit funcional permanente de elevado grau (26 pontos), correspondente a uma IPP de 49,2495% e a um dano estético de grau 4, numa escala de 1 a 7, as intensas dores sofridas (de grau 5, numa escala de 1 a 7), o desgosto e amargura de, com 43 anos de idade, se ver fisicamente limitada e sem perspectivas futuras, em termos laborais»;
- No Ac. do STJ de 17.03.2016, proferido no processo nº 338/09.1TTVRL.P3.G1.S1, da 4ª Secção, foi fixada em € 50.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais, «a sinistrada com 36 anos de idade, deformação grave do pé direito, com amputação dos cinco dedos e do antepé, dificuldade na deslocação e uso de prótese para toda a vida, cicatrizes em 18% da superfície corporal e graves alterações psicológicas»;
- No Ac. do STJ de 04.06.2015, proferido no processo nº 1166/10.7TBVCD.P1.S1, da 7ª Secção, foi fixada em € 40.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais «a jovem de 17 anos, vários tratamentos médicos, intervenções e internamentos, alta mais de 4 anos depois do acidente, repercussões estéticas, quantum doloris de grau 6, e grave culpa da condutora do veículo causador do acidente»;
- No Ac. do STJ de 05.07.2012, proferido no processo nº 1451/07.5TBGRD.C1.S1, da 2ª Secção, foi fixada em € 60.000,00 a indemnização a título de danos não patrimoniais «por perda, total e irreversível, da visão de um dos olhos, deformação estética de 6 numa escala de 1 a 7, sofrimento, durante meses, de dores, de intensidade 6 numa escala igual, outras lesões, como fractura do malar direito e da órbita direito, intervenções cirúrgicas, e um consequente quadro psíquico muito negativo»;
- No Ac. do STJ de 07.07.2009, proferido no processo nº 1145/05.6TAMAI.C1, da 3ª Secção, foi fixada em € 75.000,00 a indemnização a título de danos não patrimoniais a adulto com 36 anos, amputação do membro inferior esquerdo, várias intervenções e tratamentos médicos, repercussões estéticas, claudicação por inadaptação à prótese, e quantum doloris de grau 6.

Na jurisprudência desta Relação de Guimarães, o patamar dos € 200.000,00, como valor indemnizatório dos danos não patrimoniais emergentes de lesões causadas em acidente de viação, tem sido reservado para situações substancialmente mais graves. Por exemplo, no acórdão de 17.12.2018, proferido no processo nº 2177/16.4T8VCT.G1 (8), relatado por Afonso Cabral de Andrade, confirmou-se a decisão da 1ª instância que fixara o montante da indemnização por danos não patrimoniais em € 200.000,00, num caso em que o lesado que tinha 39 anos de idade à data do acidente, «ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 95 pontos, dos quais 75 pontos são por perturbações cognitivas severas, com défices sensitivo-motores incompatíveis com a autonomia para as actividades da vida diária, sendo que tal défice é impeditivo de toda e qualquer actividade profissional», «vai necessitar de ajuda permanente de terceira pessoa, ao longo de toda a sua vida», sofreu «um quantum doloris no grau 7, numa escala de sete graus de gravidade crescente» e «um dano estético permanente no grau 6, numa escala de sete graus de gravidade crescente».
Para casos semelhantes ao dos autos a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem apontado predominantemente para valores que não ultrapassam os € 150.000,00, pelo que mostra-se exagerada a indemnização de € 200.000,00 arbitrada pelos danos não patrimoniais sofridos, a qual deve ser equitativamente reduzida para € 150.000,00, valor que se afigura equilibrado e adequado às circunstâncias do caso concreto.
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2.2.2.4. Dedução das pensões recebidas e a receber no âmbito do processo de acidente de trabalho

Está suscitada a questão da dedução no montante referente a danos patrimoniais futuros, resultantes do dano biológico, das pensões recebidas e a receber no âmbito do processo de acidente de trabalho.
Sustenta a Recorrente que «a indemnização por danos patrimoniais futuros, a suportar pela R. na proporção da sua responsabilidade (…), deveria corresponder à diferença entre o valor base mensal de € 850,00 (considerado pelo tribunal a quo) e o valor da pensão mensal definitiva que for fixado nos autos de acidente de trabalho, com efeitos retroactivos à data da alta, mantendo-se os demais factores da multiplicação usados pelo tribunal a quo, ou seja, 14 pagamentos por ano, uma esperança de vida de 31 anos e 60 pontos de dano biológico».
Argumenta ainda que, como o valor da pensão definitiva ainda não foi fixado nos autos de acidente de trabalho, «dependendo da prévia determinação do grau de incapacidade para o trabalho, qualquer condenação a proferir nestes autos, a título de danos patrimoniais futuros, deverá ser em valor a liquidar».

Salvo o devido respeito, a argumentação da Recorrente parte de uma errada concepção sobre quem é o primeiro ou primacial responsável pela indemnização do dano patrimonial resultante de um acidente de viação que é simultaneamente acidente de trabalho.
Da argumentação da Recorrente, na parte em que defende a dedução das pensões a receber no âmbito do processo de acidente de trabalho no montante aqui atribuído ao Autor a título de indemnização pelo reflexo patrimonial do dano biológico, parece depreender-se que, no seu entender, quando concorram uma com a outra, a responsabilidade objectiva da entidade patronal prevalece sobre a responsabilidade subjectiva do causador do acidente de viação, o que temos por errado.
Dando por adquirido que o acidente sofrido pelo Autor é simultaneamente de viação e de trabalho, dispõe o artigo 17º, nº 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro (LAT): «quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais».
Esta disposição estabelece a prevalência da responsabilidade que incide sobre o responsável civil pelo evento danoso sobre a responsabilidade objectiva da entidade patronal do lesado.

Os demais números do referido preceito consagram ainda um conjunto de direitos da entidade patronal e, consequentemente, da seguradora para a qual haja transferido a sua responsabilidade por acidentes de trabalho, designadamente o direito ao reembolso de quantias que houverem pago, a efectivar por uma de três formas:

- exercendo o direito ao reembolso contra o próprio sinistrado, caso este tenha recebido (em processo em que não haja tido lugar a intervenção principal, como sucede no caso dos autos) indemnização que represente duplicação da que lhe tinha sido outorgada em consequência do acidente laboral (nº 2);
- substituindo-se ao lesado na propositura da acção indemnizatória contra os responsáveis civis, se lhe pagou a indemnização devida pelo sinistro laboral e o lesado não cuidou de os demandar no prazo de 1 ano a contar da data do acidente (nº 4);
- intervindo como parte principal na causa em que o sinistrado exerce o seu direito ao ressarcimento no plano da responsabilidade por factos ilícitos, aí efectivando o direito de reembolso das quantias já pagas (nº 5).

Consagra-se expressamente no nº 5 do artigo 17º, nº 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, a admissibilidade da intervenção principal espontânea do empregador e da sua seguradora na acção em que o sinistrado reclama dos responsáveis, nos termos gerais, o pagamento de uma indemnização pelo acidente. A finalidade primordial de tal intervenção, “como parte principal”, é a de permitir reclamar o seu eventual crédito sobre os ditos responsáveis.
São duas as razões de base que levaram o legislador a consagrar, desde antes da actual LAP, a referida possibilidade de intervenção do empregador e da sua seguradora na acção instaurada pelo sinistrado.
Por um lado, embora se aluda a acidente simultaneamente de viação e de trabalho, a responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco (9), pelo que a responsabilidade da entidade patronal ou da respectiva seguradora tem carácter subsidiário ou transitório. Quem deu causa ao acidente, a título de culpa ou risco, é que deve indemnizar a vítima (sinistrado) pelos prejuízos sofridos em resultado do acidente, em conformidade com a ressalva do nº 1 do artigo 17º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro. Por isso, a entidade patronal ou a respectiva seguradora podem repercutir sobre o responsável civil ou a respectiva seguradora aquilo que, a título de responsável objectivo e subsidiário, pelo acidente laboral, tenham pago ao sinistrado.
Por outro lado, como se afirma no acórdão do STJ de 11.12.2012, proferido no processo nº 40/08.1TBMMV.C1.S1 (Lopes do Rego), «constitui entendimento uniforme e reiterado o de que as indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral – assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto».
Com efeito, do disposto no artigo 26º, nº 1, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) e no artigo 17º da Lei nº 98/2009, resulta que a indemnização por acidente de trabalho e a indemnização por acidente de viação, com fundamento em culpa ou no risco, não são cumuláveis, desde que haja identidade de danos ressarcidos a um e a outro título, mas antes complementares até ao ressarcimento integral do dano/prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto. Além disso, resulta dos mesmos normativos que a indemnização laboral é consumida ou pode vir a ser consumida pela indemnização que venha a ser arbitrada com base em facto ilícito, beneficiando desta consumpção o responsável a título laboral. Pode afirmar-se que, nestes casos de concurso de responsabilidades para ressarcimento dos mesmos danos, existe uma pluralidade de responsáveis, a título solidário, sendo um caso de solidariedade imprópria, porquanto o responsável a título laboral pode fazer repercutir no terceiro responsável a totalidade da responsabilidade que lhe cabe.
Em suma: na medida em que concorram uma com a outra a responsabilidade subjectiva do terceiro causador do acidente prevalece sobre a responsabilidade objectiva da entidade patronal, tendo esta um carácter subsidiário ou residual.
Além disso, nenhuma dúvida existe sobre quem deve ser considerado responsável.
Como a este propósito se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2005, relatado por Pires da Rosa, em que também estava em causa saber se na indemnização fixada na instância cível «deve ou não descontar-se a quantia (eventualmente a totalidade) que o mesmo autor já recebeu ou vai receber, seja em prestações futuras seja em capital de remição, no processo do trabalho»:
«Quando se fala de um acidente que é simultaneamente de viação e de trabalho o que deve dizer-se, ab initio, é que a responsabilidade primeira ou primacial é daquele ou daqueles a quem puder ser imputado, a título de culpa ou risco, o acidente de viação.
Quem, ab origine, deve indemnizar as vítimas pelos prejuízos sofridos em resultado do acidente é o lesante, aquele que deu causa ao acidente.
Essa é que é a responsabilidade de 1ª linha.
Alguém, seja quem for, que adiante a indemnização está a cumprir uma obrigação alheia, a obrigação do lesante.
Designadamente estará a cumprir essa obrigação a entidade patronal (ou a sua seguradora) que, por ser também o acidente um acidente de trabalho, paga (adianta) essa indemnização.
A entidade patronal (ou a sua seguradora) que cumpre perante o seu trabalhador uma obrigação assumida, qual seja a de suportar os seus salários enquanto não puder trabalhar e as despesas de assistência, médicas e medicamentosas, ou o capital de remição de uma incapacidade para o trabalho que lhe sobreveio a uma lesão em virtude de um qualquer acidente de viação, só em segunda linha estará a cumprir uma obrigação própria.
A responsabilidade
primeira e matricial, como se disse, é a responsabilidade de quem ao trabalhador provocou a lesão.
O dano do lesado é só um.
Naturalmente um somatório de danos concretos de qualificação diversa – maxime, danos patrimoniais e não patrimoniais – mas só um.
Por assim dizer: não há um dano da viação e um dano do trabalho, mas apenas um dano com origem na viação».

Dito isto, sendo certo que o Autor, enquanto lesado/sinistrado, não pode acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto e que quem deu causa ao acidente, a título de culpa ou risco, é que deve indemnizar o lesado/sinistrado pelos prejuízos sofridos em resultado do acidente, verifica-se que a sentença considerou devidamente esses parâmetros.
Desde logo, como premissa, expressamente considerou, na fundamentação de direito, que «corre termos sob o nº 1092/16.6T8BRG, pelo Juízo do Trabalho de Águeda, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, uma acção judicial onde se discute a medida da indemnização devida pelo acidente em causa relativamente à Seguradora Y, no âmbito do seguro por acidentes de trabalho, tendo a “Companhia de Seguros Y, S.A.” pago os salários relativos à incapacidade total e pensões cuja liquidação obtida é que a consta do artigo 16) [€ 7.087,84 no período compreendido entre Novembro de 2017 e Abril de 2018]».
Nesse enquadramento, considerou-se que «na presente acção o autor não pediu à ré quaisquer verbas passadas a título de assistência médica e medicamentosa e transportes, é possível concluir que só há parcial coincidência nas indemnizações na parte em que a seguradora do trabalho, nas pensões que arbitra desde a alta, pagou parte da perda da capacidade geral de ganho que o dano biológico representa».
Consequentemente, «tendo em conta os pagamentos efectuados pela seguradora de trabalho ao próprio autor, por referência ao dano futuro relativo à incapacidade parcial para o trabalho, para impedir a duplicação, na parte já paga (só aí há duplicação, pois quanto a pagamentos futuros, haverá apenas que cessar os pagamentos da pensão, sendo os acertos de contas a efectuar entre seguradoras), haverá que deduzir as prestações pagas – mas apenas a esse título -, podendo já afirmar-se que tal valor não ultrapassa os € 35.000,00».
Finalmente, «quanto aos valores relativos à incapacidade absoluta, atentos os pagamentos efectuados pela seguradora do trabalho até à alta médica, será devida pela ora ré a diferença entre o salário efectivo e o pago por aquela, nos termos do art. 562º do CC».

Portanto, a Exma. Juiz a quo desenvolveu a sua decisão com a finalidade evitar a duplicação ou acumulação material de indemnizações pelo mesmo dano. Quanto ao valor das pensões já recebidas pelo Autor da Companhia de Seguros Y, desde logo se ordenou a sua dedução. No que respeita a pagamentos futuros da aludida Y, considerou que «haverá apenas que cessar os pagamentos da pensão, sendo os acertos de contas a efectuar entre seguradoras», o que está em inteira consonância com o regime jurídico que se expôs: a Recorrente, na medida da sua responsabilidade e enquanto seguradora do lesante, está obrigada a indemnizar o Autor, que é uma obrigação própria, definitiva e primacial; o tribunal cível, no que respeita aos danos patrimoniais futuros, fixa a respectiva indemnização segundo os critérios legais aplicáveis, mas com inteira independência do que tenha decidido ou venha a decidir o tribunal do trabalho.

Quanto à conclusão 38ª, na parte não prejudicada pelo que se acaba de apreciar, afigura-se-nos que o valor da indemnização pelo dano biológico se encontra de harmonia com os padrões da jurisprudência dos nossos tribunais superiores para casos análogos. Além disso, a sentença está exaustivamente fundamentada, designadamente no que respeita à questão do recebimento antecipado e de uma só vez do montante indemnizatório.
Em todo o caso, não se trata de fazer complexos cálculos matemáticos, mas apenas de encontrar um valor que seja equitativo e que permita uma aplicação uniforme do direito, atentos os valores normalmente atribuídos pelos tribunais a esse título.
Nessa conformidade concluímos que o valor fixado na sentença recorrida se nos afigura justo, não merecendo ser alterado.

Termos em que improcedem as correspondentes conclusões.
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2.2.2.5. Incorrecção dos cálculos da indemnização por danos patrimoniais futuros
Alega a Recorrente os cálculos do Tribunal a quo, «que o conduziram a uma indemnização por danos patrimoniais futuros de € 198.749,80, esta[m] incorrectos, pois a diferença entre € 221.340,00 e € 25.590,20 é de € 195.749,80 (e não de € 198.749,80) e, mesmo com base no valor da pensão em 2017, as pensões pagas até Janeiro de 2021 ascendem a € 37.330,81 (e não a € 25.590,20)».

Estão em causa os cálculos efectuados pelo Tribunal recorrido no seguinte segmento da sentença:
«Assim, tendo em conta os pagamentos efectuados pela seguradora de trabalho ao próprio autor, por referência ao dano futuro relativo à incapacidade parcial para o trabalho, para impedir a duplicação, na parte já paga (só aí há duplicação, pois quanto a pagamentos futuros, haverá apenas que cessar os pagamentos da pensão, sendo os acertos de contas a efectuar entre seguradoras), haverá que deduzir as prestações pagas – mas apenas a esse título -, podendo já afirmar-se que tal valor não ultrapassa os € 35.000,00 (considerando os € 7.087,87 pagos até Abril de 2018 e fazendo a multiplicação da pensão de € 775,46 pelos meses subsequentes, até Janeiro de 2021, inclusive), donde, não fazendo ainda a dedução imposta pelo risco, o total já liquidado por este dano resulta em € 198.749.80 (221.340,00 – 25.590,20)».

Assiste razão à Recorrente, mesmo desconsiderada a alteração ora introduzida ao ponto de facto nº 16, a operação aritmética de subtracção de 25.590,20 a 221.340,00 (valor da «indemnização devida pelo reflexo patrimonial do dano biológico» fixada na sentença) conduz a um resultado de 195.749,80 e não de 198.749,80.
Além disso, em resultado da modificação do ponto nº 16 dos factos provados, está demonstrado que ascende a «€ 7.087,84 o montante recebido a título de pensão (€ 775,46 / mês em 2017 e € 789,42 / mês em 2018) após alta, entre os meses de Novembro de 2017 e Abril de 2018.»
Sendo certo que o montante global pago após a alta e até Abril de 2018 foi de € 7.087,84, sem embargo de nesses meses de 2018 o valor mensal ser de € 789,42 e não de 775,46 como por erro o Tribunal recorrido valorou, na sentença considerou-se que era de € 775,46/mês o valor recebido a título de pensão após Abril de 2018, quando efectivamente tal valor mensal era de € 789,42.
Portanto, o valor global das pensões pagas ao Autor até Janeiro de 2021, inclusive, não é de € 25.590,20 mas sim de € 37.875,22 (€ 7.087,84 + € 789,42 x 39 prestações, considerando 14 pagamentos por ano).
Daí que deduzindo € 37.875,22 a € 221.340,00 obtém-se € 183.464,78, que é o montante em que a Ré deveria ter sido condenada a pagar ao Autor, a título de indemnização devida pelo reflexo patrimonial do dano biológico.
Consequentemente, procede nesta parte a apelação.
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2.2.2.6. Ausência de fixação da proporção da responsabilidade por perdas salariais no período da incapacidade absoluta

Na conclusão 41ª e 42ª, a Recorrente alega que «o tribunal a quo condenou a R. por perdas salariais durante o período de incapacidade absoluta, em valor a liquidar, sem consideração da proporção da sua responsabilidade, pelo que, se não se revogar a condenação, sempre o referido segmento decisório carecerá de correcção, para que fique claro que a R. só responde por metade das referidas perdas».
Efectivamente, no 4º parágrafo do dispositivo da sentença consta que «vai relegado para ulterior liquidação o cálculo da diferença entre o que a seguradora Y pagou ao ora autor no período de incapacidade total para o trabalho (desde o acidente até 30 de Outubro de 2017) e o salário que a sua entidade patronal efectivamente lhe pagaria nesse período».
Sendo verdade que a proporção da responsabilidade da Ré não consta expressamente no segmento acabado de transcrever, também não é menos inequívoco que a responsabilidade da Ré foi fixada na proporção de 60% na sentença e disso não existe a mínima dúvida.
Numa acção de responsabilidade civil em que se discuta a medida da repartição da responsabilidade pelos danos, a determinação quantitativa do valor dos danos por que se responde é precedida da fixação da proporção da responsabilidade. Antes da responsabilidade por concretos danos, apura-se se existe responsabilidade e qual a medida abstracta desta. Depois, na fixação do valor que é objecto de condenação é que se considera a medida da repartição da responsabilidade, sendo que nesse momento a questão é apenas de cálculo matemático (se a proporção da responsabilidade é de 60%, então é responsável por 60% do valor X).
Ora, tendo na parte do cômputo dos danos alguns deles ficado por liquidar, com a consequente necessidade de relegar a sua liquidação para incidente ulterior, é óbvio que todos eles, à semelhança dos já liquidados, estão sujeitos à medida de repartição já determinada.
Por isso, nesta parte, carece de razão a Recorrente, mas no dispositivo deste acórdão, para que não subsistam dúvidas, explicitar-se-á tal ponto.
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2.2.2.7. Relegação para liquidação ulterior do montante indemnizatório a título de ajuda de terceira pessoa

Com base no facto de o Autor estar a receber provisoriamente, no âmbito do processo de acidente de trabalho, da Companhia de Seguros Y (para a qual a entidade patronal transferiu a responsabilidade por acidentes de trabalho), uma prestação mensal para assistência de terceira pessoa (cujo valor era, em 2018, de € 244,28), alega a Recorrente que «o prejuízo indemnizável nos presentes autos corresponde à diferença entre o valor mensal de € 330,00 (fixado pelo tribunal a quo) e o valor da prestação mensal para assistência de terceira pessoa que venha a ser fixado definitivamente nos autos de acidente de trabalho, multiplicada por 12 meses e, depois, por 28 anos, e, por fim, pela percentagem de responsabilidade da R. (mantendo-se, assim, os demais factores da multiplicação usados pelo tribunal a quo)».
Por fim, a Recorrente sustenta que «deverá ser condenada, a título de ajuda de terceira pessoa, em valor a liquidar, em virtude de ainda não ter sido fixada, definitivamente, nos autos de acidente de trabalho a respectiva prestação suplementar mensal».

Está demonstrado que o Autor, desde o sinistro, está dependente de terceira pessoa para as tarefas elementares e básicas do dia-a-dia, pelo menos duas horas por dia, e que no futuro continuará a necessitar de tal ajuda.
Trata-se de um dano patrimonial autónomo que resulta da verificação do evento lesivo e a própria Recorrente, e bem, não põe em causa que o Recorrido tenha direito a obter a respectiva reparação.
O que a Recorrente pretende, em rigor, é que apenas seja condenada no montante correspondente à diferença entre o valor mensal fixado pelo Tribunal a quo e o valor da prestação mensal que vier a ser fixado definitivamente nos autos de acidente de trabalho.
Na sua lógica argumentativa, a Recorrente apenas é responsável pela parte que não vier a ser paga pela seguradora da entidade patronal no âmbito do processo de acidente de trabalho.
Portanto, configura a sua responsabilidade civil como residual da responsabilidade da seguradora da entidade patronal no âmbito do acidente de trabalho.

Pelas razões que já expusemos em 2.2.2.4., quando o acidente é simultaneamente de viação e de trabalho, a responsabilidade que incide sobre o responsável civil pelo evento danoso prevalece sobre a responsabilidade objectiva da entidade patronal do lesado. Quem dá causa ao acidente, a título de culpa ou risco, é que deve indemnizar o lesado/sinistrado pelos prejuízos sofridos em resultado do acidente.
A responsabilidade da Recorrente pelos danos produzidos no evento que obriga à reparação não é limitada face ao que venha a ser decidido no processo de acidente de trabalho. É a seguradora para a qual foi transferida a responsabilidade por acidentes de trabalho que tem direito ao reembolso do que houver desembolsado na parte em que represente uma duplicação indemnizatória ou à desoneração quanto aos montantes pagos pelo responsável civil. O decidido no pleito civil é que tem reflexos na definição da medida da responsabilidade da seguradora da entidade patronal, pois esta só responde na parte em que o responsável civil não tenha sido condenado a indemnizar danos, ou seja, é uma responsabilidade subsidiária e complementar. É também uma responsabilidade transitória, dado o apontado direito de a seguradora exercer o direito ao reembolso contra o próprio sinistrado, caso este tenha recebido indemnização que represente duplicação da que lhe tinha sido outorgada em consequência do acidente laboral, de demandar o responsável civil se o lesado não o houver feito e, finalmente, de repercutir sobre o responsável civil ou a respectiva seguradora aquilo que, a título de responsável objectivo e subsidiário, pelo acidente laboral, tenha pago ao sinistrado.
Portanto, sendo certo que a indemnização relativa à necessidade de ajuda de terceira pessoa foi apurada por referência à data da sentença e nessa medida nenhuma duplicação indemnizatória ocorreu, carece de justificação relegar para liquidação ulterior a fixação do respectivo montante indemnizatório, com a finalidade de lhe deduzir o valor que eventualmente, a esse título, venha a ser fixado no processo de acidente de trabalho, pois, a Recorrente não tem direito à apontada dedução.
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2.2.2.8. Inexistência do direito de reembolso do Autor das despesas com as necessidades referidas no nº 45 dos factos provados

A tese sustentada pela Recorrente é a seguinte: como as despesas com as necessidades referidas no nº 45 dos factos provados, têm vindo a ser pagas pela Companhia de Seguros Y, no âmbito dos autos de acidente de trabalho, situação que se manterá ao longo da vida do Autor, «as referidas despesas não constituem um prejuízo para este e, por isso, não merecem a tutela do direito civil».
Salvo o devido respeito, tal tese jurídica não tem qualquer apoio legal, como já demonstramos em 2.2.2.4.
Em conformidade com o disposto no artigo 483º, nº 1, do CCiv., a Recorrente, em virtude do contrato de seguro, está obrigada «a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação», na proporção da sua responsabilidade, ou seja, reconstituindo a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º do CCiv.).
Se ocorreu o evento lesivo e este causou um dano patrimonial, ainda que futuro (art. 564º, nº 2, do CCiv.), o responsável civil está obrigado a indemnizar esse dano.
Inexiste qualquer disposição que estabeleça que o responsável civil não responde por valores que o lesado futuramente suportará por, em virtude das lesões e das respectivas sequelas, carecer «de ajudas medicamentosas (analgésicos e medicação para a disfunção eréctil), tratamentos médicos regulares (consultas regulares de ortopedia, fisiatria, psiquiatria e urologia) para avaliar a necessidade de novos tratamentos farmacológicos, médicos ou cirúrgicos; de ajudas técnicas (um par de canadianas com braço articulado e botas ortopédicas com compensação à direita)». Pelo contrário, trata-se de um dano futuro, perfeitamente previsível e carecido de ser indemnizado.
E não é por essas despesas serem susceptíveis de eventualmente vir a ser pagas pela seguradora da entidade patronal no âmbito do processo de acidente de trabalho que se vai aqui, antecipadamente, declarar que não constituem um prejuízo para o Autor e que não tem direito ao seu ressarcimento no processo cível. Isto pela singela razão de que no nosso ordenamento jurídico estar estabelecida a prevalência da responsabilidade que incide sobre o responsável civil pelo evento danoso sobre a responsabilidade objectiva da entidade patronal do lesado.
Como já salientamos e aqui relembramos, num acidente simultaneamente de viação e de trabalho, a responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, pelo que a responsabilidade da seguradora da entidade patronal tem carácter subsidiário ou transitório. Quem deu causa ao acidente é que deve indemnizar o lesado/sinistrado pelos prejuízos sofridos em resultado do acidente.
Não pode é fazer-se uma inversão da aludida ordem de prevalência da responsabilidade: o responsável civil não indemniza o lesado/sinistrado apenas pelos prejuízos sofridos em resultado do acidente que não sejam suportados pela seguradora da entidade patronal. Quem se pode desonerar, nos termos que já explicitamos em 2.2.2.4., da obrigação de pagar ao lesado/sinistrado é precisamente a seguradora da entidade patronal e não a seguradora do responsável civil.
Em suma, a Ré é responsável, na proporção da sua responsabilidade, pela indemnização do dano com as despesas destinadas a suprir as necessidades referidas no ponto nº 45 dos factos provados.
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2.2.2.9. Incorrecção do total indemnizatório fixado na sentença

Na conclusão 51ª das suas alegações, a Ré alegou que, «ainda que se acolhesse os critérios que orientaram o tribunal a quo nas operações de liquidação das parcelas indemnizatórias, bem como os valores destas parcelas, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, o cálculo da indemnização total estaria incorrecto, pois as três parcelas indemnizatórias líquidas, nos valores de € 200.000,00 (danos não patrimoniais), € 198.749,80 (danos patrimoniais futuros) e € 110.880,00 (ajuda de terceira pessoa) somam € 509.629,80 (e não € 530.989,80), sendo que 60% (percentagem de responsabilidade atribuída pelo tribunal a quo à R.) desse valor é € 305.777,88, pelo que o valor da condenação da R. seria esse (e não € 318.581,88)».
Efectivamente verificava-se o apontado lapso material de cálculo.
Sucede que, atenta a correcção já efectuada em 2.2.2.5., a modificação do ponto nº 16 dos factos provados e alteração do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, as parcelas indemnizatórias já líquidas são de € 150.000,00 (danos não patrimoniais), € 183.464,78 (dano futuro relativo ao reflexo patrimonial do dano biológico) e € 110.880,00 (ajuda de terceira pessoa), pelo que somam € 444.344,78, sendo que 60% (percentagem de responsabilidade da Ré) desse valor é € 266.606,86.

Pelo exposto, procede a apelação quanto a esta questão.
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2.3. Sumário

1 – Demonstrando-se que ambos os condutores conduziam os seus veículos sobre o eixo da via, invadindo a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito contrário ao seu, tais comportamentos devem ser considerados como causais e concorrentes para a produção do acidente, havendo nexo causal entre a ocorrência de uma violação ao Código da Estrada e o acidente.
2 – Tendo a colisão ocorrido entre um motociclo e um veículo ligeiro, não tem necessariamente de ser considerada igual a medida da contribuição da culpa de cada um dos condutores, com recurso ao disposto no artigo 506º, nº 2, do Código Civil, uma vez que para efeito de graduação de culpas releva o grau de exigibilidade de cuidado, para o que concorre o tipo de veículo que se conduz.
3 – Os danos não patrimoniais, por natureza insusceptíveis de avaliação em dinheiro devido a não atingirem bens integrantes do património do lesado, incidem sobre bens como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom-nome, a reputação e a beleza, da afectação dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação.
4 – O montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser fixado pelo tribunal com recurso à equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494º do Código Civil, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos.
5 – Na concreta determinação do quantitativo da compensação, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo e procurar alcançar uma aplicação tendencialmente uniformizadora – ainda que evolutiva – do direito, devem ser considerados os padrões indemnizatórios geralmente adoptados pela jurisprudência em casos análogos.
6 – É adequada, segundo um juízo de equidade, a fixação da indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 150.00,00 a lesado de 45 anos de idade que sofreu fracturas na perna direita, várias intervenções cirúrgicas, dores físicas quantificáveis como de grau 7, numa escala de 1 a 7, dano estético de grau 6, repercussão das sequelas nas actividades desportivas e de lazer de grau 7, disfunção eréctil com um prejuízo sexual de grau 5, impossibilidade de marcha autónoma sem recurso a duas canadianas, dependência de terceira pessoa durante 2 horas por dia para a realização de tarefas elementares do dia-a-dia, défice funcional temporário total de 964 dias acrescido de 82 dias resultantes de uma recaída, défice permanente da integridade física e psíquica de 60 pontos, e actual e futura carência de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares e ajudas técnicas.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
3.1. Julgar improcedente a apelação do Autor;
3.2. Julgar parcialmente procedente a apelação da Ré e, em consequência, condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 266.606,86 (duzentos e sessenta e seis mil, seiscentos e seis euros e oitenta e seis cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa legal aplicável aos juros civis, sobre a quantia de € 200.078,86 contados da data da sentença, e sobre a quantia de € 66.528,00 a contar da citação, sempre até integral pagamento, mantendo-se no mais a sentença.
3.2.1. Explicita-se que na parte relegada na sentença para ulterior liquidação, a responsabilidade da Ré cinge-se a 60% dos montantes globais que venham a ser apurados.
As custas da apelação do Autor serão suportadas por este, sem prejuízo do apoio judiciário.
Custas da apelação da Ré na proporção do decaimento.
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Guimarães, 27.05.2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)



1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs. 67/68.
3. Todos os destaques e sublinhados são da nossa autoria.
4. CPC online, versão de Abril de 2021, pág. 9, anotação nº 14 ao artigo 5º.
5. Disponível em www.dgsi.pt, como todos os demais que aqui se citam sem indicação de diferente fonte.
6. Em que um mero contacto, dito “toque”, implica em regra uma queda do condutor, com todas as consequências pessoais daí advenientes.
7. Deve considerar-se preponderante a jurisprudência do STJ, dada a sua natureza.
8. Não publicado, no qual o ora relator foi 2º adjunto.
9. Ac. do STJ de 11.12.2012, proferido no processo nº 40/08.1TBMMV.C1.S1 (Lopes do Rego), disponível em www.dgsi.pt. Em idêntico sentido o Ac. do STJ de 21.04.2016, proferido no processo 4680/07.8TBVLG.P1.S1 (António Silva Gonçalves), entre muitos outros, todos acessíveis em www.dgsi.pt.