Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
801/14.2GBGMR.G1
Relator: MANUELA PAUPÉRIO
Descritores: AMEAÇA
MAL FUTURO
ACUSAÇÃO
RECEBIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Constitui elemento do ilícito de ameaça, o anúncio, por qualquer meio, de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro cuja concretização depende apenas da sua vontade.
II) Verifica-se esse elemento quando alguém profere em tom sério e convicto as expressões "eu vou foder-vos a todos, eu tenho uma arma no carro, vou busca-la e vou matar-vos a todos, causando nos visados medo e perturbação e fazendo-os temer pelas suas vidas.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

· Relatório
Nestes autos de processo comum com o número acima identificado que se encontravam a correr termos pela Instância Local da Secção Criminal de Guimarães, Comarca de Braga (J2) foi rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido João M..

Inconformado com esta decisão dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, fazendo com os argumentos que constam de folhas 62 a 70 que agora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos e que sintetiza nas conclusões seguintes: (transcrição)

«1) Na sequência da acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido João M. pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 153.°n.°1 e 155.° n.° 1 ai. a), ambos do Código Penal, o Mmo. Juiz à quo, entendendo que a mesma era manifestamente infundada uma vez que os factos nela descritos não constituem crime, nos termos do artigo 311°, n.° 2, ai. a) e n.° 3 al. d) do CPP, rejeitou-a e determinou o arquivamento dos autos.
2) No despacho de que ora se recorre, o Mmo Juiz considerou que os factos descritos na acusação não configuram um crime de ameaça, porquanto no entendimento do mesmo estamos perante um mal iminente e não futuro.
3) Ora, com o devido respeito, entendemos que os factos descritos na acusação configuram a prática pelo arguido de um crime de ameaça, comportando todos os elementos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena e que preenchem todos os elementos do respectivo tipo, designadamente, o de estarmos perante um mal futuro.
4) Das expressões proferidas pelo arguido nas circunstâncias descritas na acusação - que aqui se dão como reproduzidas - não se infere que se esteja perante um acto de violência iminente, uma vez que da análise das mesmas apenas se extrai como imediata e iminente a intenção de o arguido produzir medo no ofendido e de perturbar a sua paz individual;
5) O homem médio comum, se confrontado com os factos em análise, sentiria medo, nesse momento e no futuro, e veria prejudicada a sua liberdade de movimentos e a sua paz individual, ou seja, os factos indiciariamente praticados pelo arguído são adequados a provocar medo, inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
6) Os factos descritos na acusação integram apenas um crime de ameaça e não a “tentativa de execução do respectivo acto violento” (ou, dito de outro modo, a tentativa de homicídio).
7) Acresce que, mesmo a considerar-se que estaríamos perante um mal iminente, não poderia o Mmo Juiz à quo rejeitar a acusação como fez.
8) Com efeito, são diversos os acórdãos que consideram o mal iminente ainda susceptível de configurar a prática de um crime de ameaça, porque futuro.
9) Assim, sendo controversa a questão jurídica em análise o Mmo Juiz à quo não poderia com base na mesma, tomando logo partido por uma das várias posições defendidas pela jurisprudência, rejeitar a acusação, considerando-a manifestamente infundada.
10) Tal posição apenas poderia ser tomada em julgamento, momento em que lhe é pedido que faça tal ponderação.
11) Uma decisão de rejeição de uma acusação apenas pode incidir sobre as situações em que os factos constantes da mesma não constituem crime de forma inequívoca.
12) Concluíndo, testa dizer que a acusação deduzida nos autos contém todos os elementos típicos (objectivos e subjectivos) do crime de ameaça p. e p. e p. pelos artigos 153°, n°s 1, e 155.° n°1 aI. a) do Código Penal imputado ao arguido;
13) Em conformidade com o explanado, discorda-se inteiramente com o despacho recorrido, que violou, designadamente, o disposto nos art.° 153°, n°s 1, e 155.° n.°1 ai. a) do Código Penal e o artigo 311°, n.° 2, ai. a) e n.° 3, ai. d), do do Código de Processo Penal.»

Na 1ª instância não houve resposta ao recurso interposto.
Neste tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, nos termos que constam de folhas 96 a 98 dos autos, concluindo pelo provimento do recurso.

Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código de Processo Penal, nada veio a ser acrescentado no processo.
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

· Fundamentação

Tem o seguinte teor a decisão recorrida: (transcrição)
«1. O Ministério Público deduziu acusação contra João M., imputando-lhe a prática de factos que entende serem susceptíveis de integrar um crime de ameaça p. e p. pelos art.º 153º e 155º, nº 1, al. a) do C.P..
2. Nos termos do disposto no art.º 311º, n.º 2, al. a) do C.P.P., se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
Para efeitos do disposto naquele preceito, considera-se a acusação manifestamente infundada se, entre outras circunstâncias, os factos nela descritos não constituírem crime ( art.º 311º, n.º 3, al. d ) do C.P.P. ).
3. Isto posto, vejamos os factos cuja prática é imputada ao arguido.
Concretamente, o Ministério Público alega, além do mais, que no dia 20/12/2014, o arguido dirigindo-se a Carla V. e Elisabete A., disse “eu vou foder-vos a todos, eu tenho uma arma no carro, vou buscá-la e vou matar-vos a todos.
Estes, os factos que o Ministério Público entende serem suficientes para integrar a prática do ilícito criminal que imputa ao arguido.
4. Cumpre apreciar:
Segundo resulta da respectiva previsão típica, “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.” (itálico nosso)
A ameaça é um crime contra a liberdade pessoal (Título I, Cap. V, da parte especial do Cód. Penal). O bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção “As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade.”
Para que se preencha o tipo objectivo de ilícito, é necessário que o agente use um qualquer expediente adequado a provocar no sujeito passivo medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação.
Deixou por isso o crime de ameaça, após a Revisão de 1995, de ser um crime de resultado e de dano, passando a crime de mera acção e de perigo. Não é aceitável que alguém possa ser colocado em posição que afecte a sua capacidade de autodeterminação por receio de um mal que alguém lhe prometeu.
É também necessário o carácter futuro do mal anunciado, porque se a ameaça é iminente então estaremos perante a tentativa ou início de execução do crime, e a liberdade de determinação nunca chega a ser afectada. “Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois, que nesse caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal” – C. Conimbricense, Tomo I, pág. 343. (sublinhado nosso)
É ainda necessário que a ocorrência do mal futuro dependa da vontade do agente, ou seja, que o mal possa resultar da actuação deste.
Para se estabelecer a diferença entre o que pode ser uma verdadeira ameaça ou um simples aviso ou advertência é necessário buscar um critério seguro, e para isso não podemos deixar de seguir o defendido pelo Ac. da Relação do Porto, proc. nº 0346292, de 14/07/2004, www.dgsi.pt ”O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do «homem comum»); individual, no sentido de que devem revelar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçado”
Do ponto de vista dos elementos subjectivos, há que atender que o crime é doloso. Assim, o agente tem de agir com a consciência da adequação da ameaça para provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
Como supra se aludiu para que se preencham os pressupostos objectivos, necessário se torna que a ameaça seja futura.
In casu, a nosso ver, a ameaça efectuada pelo arguido às ofendidas foi iminente, porquanto o mal que aquela dizia pretender fazer era presente – vou buscar a arma ao carro.
Neste sentido, vide, além de outros, os seguintes acórdãos:
Ac. RP. nº 0645320, 20/12/2006, www.dgsi.pt: Não comete o crime de ameaça o agente que, empunhando uma espingarda caçadeira na direcção do ofendido diz a este: "anda cá para baixo, que te quero matar". (negrito nosso)
(…) O arguido foi condenado como autor material de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, nºs 1 e 2 do C. Penal, porque: - no dia 13 de Agosto de 2005, a hora não concretamente apurada, mas cerca das 21h00, …- empunhou uma arma em direcção ao ofendido e disse “anda para baixo que te quero matar”,
(…) Isto porque sendo o crime de ameaça “um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de acção) … a conduta típica deve gerar insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante
E isso não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar no momento, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente” – acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-11-2004, processo 0414654. (negrito nosso)
Ac. R.P. nº0712156, 28/11/2007, in www.dgsi.pt:
“Não se preenche o crime de ameaça se o mal anunciado é iminente”
“O mal ameaçado tem de ser futuro. Isso significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal” – cfr. Autor, obra e local citado.
Neste sentido também se tem pronunciado esta Relação, sublinhando a distinção entre a ameaça de um mal futuro e a ameaça de um mal eminente.
- Sendo o crime de ameaça “um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de acção) … a conduta típica deve gerar insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante. E isso não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar no momento, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente” – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17-11-2004, processo 0414654, citado no Acórdão de 20-12-2006, proferido no processo 0645320;
- “Ora, para que se dê por preenchido o tipo objectivo do crime de ameaça, é necessário, desde logo, que o mal ameaçado seja futuro. O mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal”. – Acórdão do Tribunal d Relação do Porto, de 25-01-2006, proferido no processo 0544124.
Ac. R.P. nº 0614091, 22/11/2006, in www.dgsi.pt:
“Não preenche o tipo objectivo do crime de ameaça a expressão " eu dou-lhe na cara, ponho-o lá fora à bofetada”.
Torna-se, pois, necessário que a ameaça anuncie um mal futuro que, objectiva e subjectivamente, seja idóneo a provocar medo ou inquietação na pessoa do ameaçado e que a sua concretização apareça como apenas dependente da vontade do agente que a profere (cfr. acs. desta Relação de 25-01-2006 e 21-06-2006, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. nº 0544124 e 0612040).
É precisamente esta característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que serve de critério para distinguir a acção como crime de ameaça da tentativa de execução do respectivo acto violento (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. p. 343).
Assim, haverá crime de ameaça quando alguém diz: “quando te apanhar (momento futuro), vou dar-te uns socos” (anúncio de um mal para a integridade física). Que se distingue do acto intimidatório de execução imediata de ofensa à integridade física quando alguém diz: “ou sais, ou levas já um soco”. Na primeira hipótese, ocorre o anúncio de um mal futuro, limitador da liberdade individual da pessoa ameaçada. Na segunda hipótese ocorre o anúncio de um mal actual, contra a ofensa à integridade física, que começa e acaba ali: ou porque é executado de imediato, integrando o crime de ofensa à integridade física, ou porque o agente ameaçador desiste de o executar, sem que o mal anunciado se projecte na liberdade de decisão e de acção futura da pessoa visada.
Ac. R.P. nº 0544124, 25/01/2006, in www.dgsi.pt:
“Se, numa situação de confronto entre duas pessoas, uma diz à outra: "eu mato-te", não se está perante um anúncio de mal futuro, indispensável à verificação do crime de ameaça.”
“Ora, para que se dê por preenchido o tipo objectivo do crime de ameaça, é necessário, desde logo, que o mal ameaçado seja futuro. O mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal.
«Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: ”vou-te matar já”. Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa [cf. Art. 22.º-2 c)]» [Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, p. 348].
No contexto dos factos provados, a expressão proferida pela recorrente traduz um mal iminente e, por isso, conforma um “acto de execução” do crime de que, afinal, a recorrente “desistiu”, não prosseguindo na sua execução.”
Ac. TRG. nº 930/11.4GAFAF.G1, 09-09-2013, in www.dgsi.pt “É elemento constitutivo do crime de ameaça, o anúncio, por qualquer meio, de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro, dependente da vontade do autor.
II – Não se verifica esse requisito quando alguém, após ter dito a outrem, “ponha-se lá para fora, senão eu mato-te”, agarra o pescoço visado e lhe desfere vários murros, porque tal comportamento não se projeta no futuro. O mal anunciado não aparece em termos de ocorrer no futuro, sendo antes iminente e atual.” (negrito nosso)
Em termos muito simplistas a diferença está entre a ameaça presente que é concretizada ou não nesse período, e de uma maneira ou de outra extingue-se, ou se é futura, mantém-se no tempo comprimindo a liberdade pessoal do visado. Só esta é punível.
Por isso entendemos que os factos descritos na acusação pública não integram a prática de qualquer ilícito criminal, nos termos do disposto no art.º 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do C.P.P..
Face ao exposto, decide-se, rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido, por manifestamente infundada e determino, o arquivamento dos autos após trânsito.

Importa então conhecer:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí enunciadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar.
No caso vertente a questão a decidir é a de saber se poderia o senhor juiz rejeitar a acusação deduzida contra o arguido, ou melhor, se acusação deduzida era manifestamente infundada e, como tal passível, de ser, como foi, rejeitada.
Vejamos.
Preceitua o artigo 311º do Código de Processo Penal que:
«1 — Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 — Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respetivamente.
3 — Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.»

Decorre então, deste preceito legal, que o juiz pode, caso verifique que a acusação é manifestamente infundada, rejeitá-la. Então o dissenso está em que o senhor juiz a quo considerou manifestamente infundada a acusação que o Ministério Público entende não o ser e conter todos os elementos objetivos e subjetivos essenciais para imputar ao arguido o cometimento de dois crimes de ameaças.
Atentemos então no teor da acusação (apenas a parte atinente aos factos após a devida e completa identificação do arguido):
No dia 20 de dezembro de 2014, pelas 11h00, no interior da Pastelaria …,) o arguido dirigindo-se a Carla V. e Elisabete M., disse. “eu vou foder-vos a todos, eu tenho uma arma no carro, vou busca-la e vou matar-vos a todos”.
Tais expressões proferidas em tom sério e convicto, causando a Carla V. e Elisabete M. medo e perturbação, temendo pelas suas vidas
Com a atuação descrita em a) o arguido pretendeu transmitir a Carla V. e Elisabete M. que estava na disposição de atentar contra as suas vidas em momento que escolhesse, com o intuito, concretizado, de as deixar com medo e perturbadas.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo proibida a sua conduta»
Ora porque entendeu o senhor juiz a quo que os factos descritos não configuravam a prática de um crime de ameaça? Porque deles não emerge, propalado pelo arguido, o anúncio de um mal futuro, como entende ter de ser, porque requisito do tipo legal, antes a verbalização de um mal a consumar no momento. Para tanto cita jurisprudência como suporte do seu entendimento.
Mas cremos que não é no entendimento dos requisitos legais do tipo de crime que está a questão.
Atentemos n que se encontra preceituado no artigo 153º do Código Penal: “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
E vejamos agora, socorrendo-nos do que a propósito nos diz Taipa de Carvalho In “Comentário Conimbricense do Código Penal – parte especial”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 342. qual o bem jurídico protegido pela incriminação: « O bem jurídico protegido pelo artigo 153.º é a liberdade de decisão e de acção. “As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ofendido, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade”
São, assim, elementos deste tipo legal de crime, i) a ameaça da prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor; ii) que seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima, e, por fim iii) o dolo.
A ameaça tem se consubstanciar num anúncio de um mal contra pessoas ou bens.
Não suscita qualquer dúvida e todos aceitam que, para haver crime de ameaça, o mal (anunciado) tem de ser futuro. Não importa porém que haja uma clara concretização do tempo no qual se pretende concretizar esse mal, bastando que não seja presente (ou passado) e, não menos importante, importa ainda que a concretização (desse mal futuro) dependa da vontade do agente. A ameaça tem ainda de ser proferida em termos tais que se mostrem adequados a provocar medo ou inquietação, ou a prejudicar a liberdade de determinação do(s) visado(s).
Ora parece que não há, do ponto de vista de caraterização do tipo legal, significativas divergências entre o que consta da decisão agora em recurso e o que alega o recorrente. O que os distingue é o modo como interpretam o que consta plasmado na acusação,
Assim o senhor juiz a quo entendeu que as expressões proferidas pelo arguido não configuravam a ameaça com um mal futuro mas algo que o arguido se propunha consumar no momento.
Não cremos que lhe assista razão.
Façamos então a exegese da expressão no contexto e no lugar em que foi proferida, tal como da acusação consta; «eu vou foder-vos a todos, eu tenho uma arma no carro, vou busca-la e vou matar-vos a todos». Nada mais. Assim dito, só os tempos verbais usados, próprios da linguagem oral, coloquial e pouco cuidada, inculca a ideia de começo de execução. Tudo o mais se entende ser o pronunciamento de uma intenção de um mal que se propunha executar num momento ulterior, logo futuro.
Como pode entender-se ser presente a ação que se consubstancia na afirmação de “vou buscar a arma ao carro e mato-vos”. O futuro é momento que não se está vivendo, que irá acontecer, aquele que se segue ao presente, não havendo, para tal, delimitação temporal; não é futuro apenas o amanhã mas o momento seguinte ao presente (ao agora).
De facto o senhor juiz citou acórdãos que concluíram pelo não cometimento deste tipo de crime, mas, salvo o devido respeito, que é muito, não atentou bem na diferença existente entre as situações citadas e aquela que se encontra plasmada na acusação que veio a rejeitar.
É completamente diversa, da situação em apreço, a de empunhar uma espingarda caçadeira na direção de uma pessoa e dizer-lhe “ anda cá para baixo que te quero matar” (situação analisada no citado acórdão da RP nº 0645320 de 20/12/2006), desde logo porque o mal que se pretende cometer não depende da vontade do agente; só se concretizará se o visado aceder a descer, situação diversa daquela que na acusação se plasmou, pois fica no alvedrio do agente ir buscar a arma para matar as pessoas visadas. É ainda diametralmente diferente alguém dizer “eu dou-lhe na cara e ponho-o lá fora à bofetada” (situação que vem descrita no acórdão da RP nº 0614091 de 22/11/2006, igualmente citado). Aqui claramente se anuncia a intenção de agredir não havendo dilação temporal – ainda que diminuta - entre a prolação de uma intenção e o momento da sua concretização. Não agrediu naquele momento porque não quis. É manifesto que aqui não é qualquer crime de ameaça.
Mas a situação em preço tal como se encontra descrita na acusação é coisa diversa; o arguido dirige-se às ofendidas dizendo que as vai “foder”, que vai buscar uma arma que tem no carro e que as vai matar. Ora há, sem qualquer dúvida, uma clara intenção do arguido de anunciar às ofendidas o seu propósito de lhes infligir um mal (com a prática de um crime) que é necessariamente futuro porque a sua concretização dependeria então de o arguido sair do estabelecimento onde se encontrava, dirigir-se ao seu carro e voltar com a arma que dizia ali guardar. Este tipo de pronunciamento mostra-se perfeitamente adequado a causar-lhes medo e perturbação, sendo certo que a concretização da intenção propalada dependia apenas da vontade do arguido.
Ademais, como se sabe, existem muitas outras decisões que concluem de modo diverso daquele que estamos seguindo Ver entre outros : Ac. RP 21/6/06, proc. nº 0612040 ( Jorge França)
Comete o crime de ameaça p. e p. pelo art. 153º,1 CP, o arguido que, dirigindo-se à ex-mulher, em frente do edifício onde esta residia, a aborda inesperadamente, segurando por alguns momentos a porta do veículo, impedindo-a assim de a fechar, enquanto lhe diz, em tom sério, que queria resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”, por tal conduta integrar ameaça com mal futuro.
. Isto é, há quem seja menos estrito no modo como tem de ser feito anúncio do mal e se centre mais (e a nosso ver melhor) na verdadeira intenção subjacente ao comportamento do arguido, posição que merece o nosso acolhimento. Importa pouco o modo como se diz as coisas, sendo essencial, para a caraterização da conduta como criminosa, aquilatar do que a determina; se alguém diz a outro “ eu mato-te” sem demonstrar qualquer outra intenção que não seja ameaçá-la de morte, sem nunca pretender matá-lo não se poderá dizer que está a anunciar a intenção de matar, que se trata apenas do anúncio de uma tentativa de cometimento do crime de homicídio, porque não pode haver tentativa relativamente a um crime que não se quis nunca cometer.
Aplicando estes princípios ao caso em apreço, não há dúvidas que, face ao circunstancialismo fáctico descrito na acusação pública, estamos perante um crime de ameaças, previsto e punido pelo art. 153º, nºs 1 e 2, do CP, por se encontrar deviamente descritos factos dos quais emerge o anúncio de que o agente pretende infligir às ofendidas um mal que constitua crime (pretendia matá-las), que esse anúncio provocou medo e perturbação nas ofendidas que temeram pelas suas vidas encontrando-se igualmente plasmado que o arguido atuou com dolo.
Segundo o critério objetivo-individual da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação, não há dúvida que nas circunstâncias descritas, e tendo em conta a perspetiva do homem comum, ou seja, da pessoa adulta e normal, a atuação do arguido constitui um comportamento suscetível de intimidar ou amedrontar qualquer pessoa.
Do exposto resulta que a acusação pública contém todos os elementos objetivos e subjetivo típicos do crime previsto no artigo 153º, n número 1 do Código Penal e porque o mal anunciado era o de causar a morte estamos caídos no âmbito da previsão da ameaça agravada, porque é feita com o pronunciamento do cometimento de um crime punível com pena de prisão superior a três anos.
Por tudo o que se vem de dizer emerge, sem necessidade de mais considerações, a conclusão de que a acusação deduzida não pode ser considerada manifestamente infundada, no conceito que é dado pelo artigo 311º, nº3, al. c), do CPP, razão pela qual não pode ser rejeitada.

III) Decisão:

Acordam os juízes deste Tribunal das Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e consequentemente, determinando o recebimento da acusação proferida contra o arguido João M., seguindo-se os ulteriores termos processuais.


Sem tributação.
(elaborado pela relatora e revisto por ambas as subscritoras)

11 de janeiro de 2016
Maria Manuela Paupério
Maria Isabel Cerqueira