Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1132/15.6JABRG.G1
Relator: ALDA CASIMIRO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
OMISSÃO DOLO ESPECÍFICO
REJEIÇÃO
ARTº 311º
Nº 3
D)
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Para a acusação se considerar manifestamente infundada nos termos da alínea d) do nº 3 do artº 311º, do CPP, é necessário que os factos, manifestamente não constituam crime, nem o que é imputado nem qualquer outro. Podendo, obviamente, constituir crime diverso de que é imputado na acusação - caso em que, no decurso do julgamento, se procederá como determinam os Artºs 358º e 359 do CPP.

II) No caso dos autos, a conduta imputada na acusação ao arguido, à data da prática dos factos não constituia o crime do artº 240º, nº 2, b), do CP, por omissão do dolo específico, ou qualquer outro ilícito, sendo por isso a acusação manifestamente infundada, nos termos do citado artº 311º do CPP.

III) Daí que tem pleno fundamento a decisão recorrida que rejeitou a acusação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

Relatório

No âmbito da processo com o nº 1132/15.6JABRG que corre termos no Juízo Local Criminal de Barcelos (J2) do Tribunal da Comarca de Braga, na sequência de despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz que rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público,
veio este interpor o presente recurso pedindo que se revogue o despacho recorrido, determinando-se a designação de data para a realização do julgamento.

Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:

I. Conforme se lê do douto despacho judicial acima referido, o Tribunal considerou que da acusação proferida não consta o dolo específico, consubstanciado na actuação do agente com intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar.
II. Ora, salvo melhor entendimento, da leitura da acusação deduzida pelo Ministério Público verifica-se tal dolo específico porquanto alegou-se que com a publicação do vídeo o arguido conotou os refugiados sírios e os que professam a religião muçulmana como pessoas violentas e passíveis de praticar actos terroristas., que o arguido “queria que o vídeo fosse visto por um número indeterminado de pessoas bem sabendo que era o meio adequado para tal” e, por fim, no art. 7º é mencionado que “Actuou, assim, o arguido com o nítido propósito de ofender a honra, a credibilidade, prestígio e a confiança devidos aos nacionais Sírios e bem assim de todos aqueles que professam a religião muçulmana.”
III. Foram violados os artigos 240º, nº 1, al. b) do Código Penal e 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea d), do Código de Processo Penal.
*

O arguido contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido, ainda que sem apresentar conclusões.
*

Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido da procedência do recurso.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
***

Fundamentação

A decisão sob recurso é a seguinte:

O Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum e com a intervenção do tribunal singular contra:

MANUEL, (…) Imputando ao arguido a prática, em autoria material, com dolo directo e na forma consumada, de um crime de discriminação, previsto e punido pelo artigo 240.º, n.º 2, al. b), do Código Penal.
*
Apreciando e decidindo

Dispõe o artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa logo conhecer, acrescentando-se no seu n.º 2, alínea a), que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
De acordo com a alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal a acusação considera-se manifestamente infundada se os factos não constituírem crime.
Ora, na nossa perspectiva, é precisamente essa a situação dos autos, porquanto os factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público, perspectivados de acordo com a lei vigente à data em que terão sido praticados, não constituem crime.

Senão vejamos:

O Ministério Público descreve na acusação os seguintes factos:

1. O arguido é titular de uma página pessoal na rede social facebook, onde usa o nome de perfil “XX”.
2. O perfil do arguido é público podendo ser acedido por todos os inscritos naquela rede social, inclusive por portugueses residentes em Portugal.
3. No dia 10 de Setembro de 2015, no contexto da iminente chegada de refugiados sírios a Portugal para aqui passarem a residir, o arguido publicou na aludida página pessoal, um vídeo, colocando como título “Fazei cuidado Mohamed primo do bin Laden na área … cuidado”.
4. Nesse vídeo o arguido apresenta-se vestido com uma túnica bege comprida, barba comprida, exibindo um objecto de aspecto semelhante a uma metralhadora, dizendo: “Olá povo português. Sou o primeiro sírio a chegar a Portugal e vou-vos avisar, vou foder-vos a todos, trá-tá-tá-tá-tá.”.
5. Com a publicação de tal vídeo, em que envergava vestes comummente associadas a terroristas islâmicos, utilizando um objecto semelhante a uma metralhadora e ao proferir a referida expressão, o arguido conotou os refugiados sírios e os que professam a religião muçulmana como pessoas violentas e passíveis de praticar actos terroristas.
6. O arguido publicou o vídeo na sua página pessoal na rede social facebook, com carácter público e acessível a quem o quiser consultar, querendo que fosse visto por um número indeterminado de pessoas e bem sabendo que era o meio adequado para tal.
7. Actuou, assim, o arguido com o nítido propósito de ofender a honra, a credibilidade, prestígio e a confiança devidos aos nacionais Sírios e bem assim de todos aqueles que professam a religião muçulmana.
8. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei.

É então nesta factualidade que o Ministério Público se sustenta para imputar ao arguido a prática, em autoria material, com dolo directo e na forma consumada, de um crime de discriminação, previsto e punido pelo artigo 240.º, n.º 2, al. b), do Código Penal.
Pergunta-se então se perante os factos constantes da acusação pública será de concluir que o arguido cometeu o ajuizado crime.
Estamos em crer que não e passamos de imediato a explicar porquê.

De acordo com o disposto no artigo 240.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, na redacção vigente à data da prática dos factos imputados ao arguido, cometia o crime previsto no citado normativo quem, em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de comunicação social ou sistema informático destinado à divulgação difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género, nomeadamente através da negação de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade, com a intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar.

Exigia-se assim, para o preenchimento do tipo subjectivo de ilícito, que o agente actuasse com um dolo específico, consubstanciado na intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar.
Ora, da leitura da acusação deduzida pelo Ministério Público verifica-se que a mesma é completamente omissa quanto ao apontado elemento subjectivo do crime em apreço.

Não se ignora que o dolo específico deixou de constar do tipo legal, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 94/2017, de 23.08.
No entanto, a entrada em vigor daquele diploma legal verificou-se em momento posterior ao da ocorrência dos factos pelos quais o arguido se encontra acusado, circunstância que, face ao disposto no artigo 1.º, n.º 1, do Código Penal, inviabiliza a aplicação ao caso concreto desta nova versão do ilícito.

Portanto, face àquela omissão e à inexistência de presunções de dolo no nosso direito penal, ainda que em audiência de julgamento viessem a ser provados todos os factos constantes da acusação, o resultado sempre seria a absolvição do arguido por manifesta insuficiência daqueles para o preenchimento do tipo de ilícito em discussão.

Haverá assim que concluir que os factos descritos na acusação pública não integram todos os elementos típicos de crime imputado ao arguido, previsto e punido pelo artigo 240.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, na redacção vigente à data em que, de acordo com aquela peça processual, os mesmos terão ocorrido.
Nessa medida, impõe-se a rejeição da acusação pública, porque manifestamente infundada.

Consequentemente, ao abrigo do artigo 311º, nº 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar, por ser manifestamente infundada, a acusação pública deduzida nos presentes autos a fls. 177 a 179 contra MANUEL.
***

Apreciando…

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, cumpre averiguar se a acusação deduzida é manifestamente infundada.

Nos termos do nº 1 do art. 311º do Cód. Proc. Penal, “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa logo conhecer”.

E nos termos da alínea a) do nº 2 do mesmo artigo, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha nomeadamente no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.
Ora a acusação considera-se manifestamente infundada quando, para além do mais, os factos não constituírem crime (alínea d) do nº 3 do mesmo art. 311º). Trata-se de uma falta grave (como, aliás todas as outras faltas que constituem as várias alíneas do nº 3 do art. 311º) susceptível de comprometer o êxito da acusação e que obsta a uma apreciação de mérito, justificando a rejeição liminar.

Ou seja, a acusação só poderá considerar-se manifestamente infundada se se verificarem os “vícios estruturais graves” enunciados no nº 3 do citado art. 311º (assim Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, 2009, p. 816), se não for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves – no mesmo sentido Maia Gonçalves (Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., pág. 605), defende que a acusação só pode ser rejeitada quando padeça de deficiências estruturais de tal modo graves “que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade”.

Com efeito, e considerando que a Lei 65/98 de 25.08, ao introduzir o nº 3 ao art. 311º excluiu a possibilidade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária (fazendo caducar o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/93) este fundamento “só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa” (Paulo Pinto de Albuquerque, ob. citada, pág. 816), seja devido a uma insuficiente descrição fáctica, seja porque a conduta imputada ao agente é penalmente irrelevante.

Mais, como se pode ler no Acórdão do T.R.P. de 11.07.2012 (proc. nº 1087/11.6PCMTS.P1) – e aqui subscrevemos – “é, no entanto, necessário, nesta fase processual de triagem, que os factos descritos não constituam inequivocamente crime, não bastando que assim seja entendido por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência”.

Sublinhe-se que este juízo (de manifesta improcedência) tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja” (Acórdão do T.R.C. de 12.07.2011, proc. nº 66/11.8GAACB.C1) – no mesmo sentido veja-se ainda o recente Acórdão do T.R.P. de 21.10.2015 (proc. nº 658/14.3GAVFR.P1).

Também na doutrina, Vinício Ribeiro (Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 644), afirma que o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na alínea d) do nº 3 se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime.

Assim, para a acusação se considerar manifestamente infundada nos termos da alínea d) do nº 3 do art. 311º do Cód. Proc. Penal, é necessário que os factos, manifestamente, não constituam crime, nem o que é imputado nem qualquer outro. Podendo, obviamente, constituir crime diverso do que é imputado na acusação – caso em que, no decurso do julgamento, se procederá como determinam os arts. 358º e 359º do Cód. Proc. Penal.

No caso concreto, decidiu-se no despacho recorrido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público e que imputava ao arguido MANUEL a prática do crime previsto no art. 240º, nº 2, alínea b), do Cód. Penal, porque os factos imputados não constituiriam o crime previsto naquela norma, considerando a redacção vigente à data da prática dos factos imputados ao arguido e em face do dolo específico exigido.

Os factos imputados terão ocorrido no dia 10 de Setembro de 2015.

Nessa data, de acordo com a redacção introduzida pela Lei 19/2013 de 21.02, era punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos quem, em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de comunicação social ou sistema informático destinado à divulgação difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género, nomeadamente através da negação de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade, com a intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar.

Exigia-se, assim – e como bem refere o despacho recorrido – um dolo específico: a intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar (dolo específico que deixou de ser exigível após as alterações introduzidas pela Lei 94/2017, de 23.08).
Ora, compulsada a acusação, verificamos que após a descrição dos factos o Ministério Público afirma:

5. Com a publicação de tal vídeo, em que envergava vestes comummente associadas a terroristas islâmicos, utilizando um objecto semelhante a uma metralhadora e ao proferir a referida expressão, o arguido conotou os refugiados sírios e os que professam a religião muçulmana como pessoas violentas e passíveis de praticar actos terroristas.
6. O arguido publicou o vídeo na sua página pessoal na rede social facebook, com carácter público e acessível a quem o quiser consultar, querendo que fosse visto por um número indeterminado de pessoas e bem sabendo que era o meio adequado para tal.
7. Actuou, assim, o arguido com o nítido propósito de ofender a honra, a credibilidade, prestígio e a confiança devidos aos nacionais Sírios e bem assim de todos aqueles que professam a religião muçulmana.
8. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei.

Analisada a imputação, não vemos onde é que o Ministério Público acusa o arguido de ter intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa, ou de a encorajar. Para tal, não basta ao Ministério Público afirmar que o arguido queria que o vídeo que publicou “fosse visto por um número indeterminado de pessoas” e que agiu com o “propósito de ofender a honra, a credibilidade, prestígio e a confiança devidos aos nacionais Sírios e bem assim de todos aqueles que professam a religião muçulmana”, tinha que ter dito também que o arguido, para além de ter agido com o propósito de ofender a honra, a credibilidade, prestígio e a confiança devidos aos nacionais Sírios e bem assim de todos aqueles que professam a religião muçulmana, tinha agido ainda com o propósito de fazer com que todos os que vissem o referido vídeo excluíssem, ou sentissem vontade de excluir, os nacionais Sírios e todos os que professam a religião muçulmana da vida na sociedade portuguesa (ou expressão equivalente). E não o fez.

Ou seja, a conduta imputada na acusação ao arguido, à data da prática dos factos não constituía crime, sendo por isso a acusação manifestamente infundada nos termos do art. 311º, nº 3, alínea d), do Cód. Proc. Penal, pelo que bem decidiu o Mmo. Juiz a quo quando a rejeitou.
***

Decisão

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmam o despacho recorrido.
Sem custas dada a qualidade do Recorrente.
Guimarães, 18.06.2018
(processado e revisto pela relatora)


(Alda Tomé Casimiro)
(Fernando Pina)