Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
65/19.1TT8BRG.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
ILÍCITO AMBIENTAL
VEÍCULOS FIM DE VIDA (VFV)
ABSOLVIÇÃO
ARTºS 20º Nº 4 E 24º Nº 2 ALÍNEA G) E Nº 4 DO DL 196/2003 DE 23.08 E 22º Nº 3 ALÍNEA B) DA LEI 50/2006 DE 29.08
NA REDAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI 114/2015 DE 28.08 E Nº 4 DO ART. 20º DO DL 196/2003 DE 23.08.
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/16/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. Entre a eliminação e a reutilização de resíduos de veículos em fim de vida (VFV), a preferência legal – quer da legislação comunitária, quer da nacional que a projeta – vai, inequivocamente e sempre, para a reutilização.

2. Não pratica a contraordenação prevista nos artigos 20º nº 4 e 24º nº 2 alínea g) e nº 4 do DL 196/2003 de 23.08 e 22º nº 3 alínea b) da Lei 50/2006 de 29.08, na redação introduzida pela Lei 114/2015 de 28.08, a empresa que, para efeito de reutilização de peças/componentes de veículo em fim de vida, não o desmantela e despolui no prazo de 15 dias úteis previsto no nº 4 do art. 20º do DL 196/2003 de 23.08..

3. A gravidade de uma infração pode aferir-se sob o ponto de vista objetivo, pela natureza do dano; sob o ponto de vista subjetivo, pelo grau de culpa.

4. A aplicação de uma coima de 12.500 euros como sanção de um comportamento contraordenacional sem gravidade ou de gravidade bagatelar ou insignificante, viola o princípio da proporcionalidade, porque este princípio generalíssimo do direito não vale só para o legislador no momento da opção pela incriminação, mas também para a determinação judicial da sanção.
Decisão Texto Integral:
Juiz Desembargadora Relatora: Maria Teresa Coimbra
Juiz Desembargadora Adjunta: Cândida Martinho

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I.
Por decisão da Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território foi a arguida X, Lda condenada pela prática de infração ao disposto nos artigos 20º nº 4 e 24º nº 2 alínea g) e nº 4 do DL 196/2003 de 23.08, com as alterações introduzidas pelo DL 64/2008 de 08.04 e DL 73/2011 de 17.06 e artigo 22º nº 3 alínea b) da Lei 50/2006 de 29.08, na redação introduzida pela Lei 114/2015 de 28.08, na coima de 16.000€
*
Tendo a arguida impugnado judicialmente a decisão, foi proferida sentença pelo Juízo Local Criminal de Braga que julgou parcialmente procedente o recurso e condenou a arguida na coima de 12.500€ ( doze mil e quinhentos euros ) pela prática da referida infração.
*
Inconformada com tal decisão dela interpôs a arguida recurso concluindo do seguinte modo (transcrição):

1. O art. 20º nº 4 mormente determinar que as operações descritas no Anexo IV ponto 2.1 devam ser realizadas num prazo de 15 dias úteis, veio consagrar, naquele anexo a possibilidade de não serem efetuadas certas operações de despoluição, mantendo-se o combustível (incluindo o GPL), o óleo do motor, o óleo da transmissão, o óleo da caixa de velocidades, o óleo dos sistemas hidráulicos, os líquidos de arrefecimento, o anticongelante, os fluidos dos travões, os fluidos dos sistemas de ar condicionado e quaisquer outros fluidos contidos no VFV, caso sejam necessários para efeitos de reutilização das peças visadas (entendimento a contrario).
2. Da factualidade dada como provada (factos 8 e 9) e da fundamentação que lhe é inerente resulta que o propósito da arguida era, como foi, a venda de componentes do veículo abatido, que permitiria e permitiu a reutilização das peças visadas.
3. A referida norma - Anexo IV, ponto 2.1, terceiro parágrafo - acaba por consagrar uma exceção à despoluição das peças, não fazendo qualquer destrinça entre peças que ficam ou não ficam inutilizadas sem líquidos, antes permitindo ao operador gerir as peças que devem permanecer intocadas por terem procura comercial.
4. Não pode arguida ser condenada por algo que a lei, afinal, permite, na condição claro está, de demonstrar que as peças seriam reutilizadas, o que se julga que ficou demonstrado e provado.
5. Ainda que assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se admite, deveria proceder-se à atenuação especial da coima, reduzindo-se a mesma para metade do seu limite mínimo, na senda do disposto no art. 23º-A da LQCA.
6. Estamos a falar de um único veículo; o não cumprimento do aludido prazo resultou da circunstância da arguida estar em negociações para a venda consumada de peças do VFV; a arguida cumpriu o fim último da boa gestão de VFV, permitindo a reutilização das peças visadas, e já decorreram mais de seis anos sobre a data dos factos, sem que haja noticia do cometimento de infração idêntica após essa data.

NESTES TERMOS,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, proferindo-se douto acórdão que decida pelo arquivamento da contraordenação e, subsidiariamente, pela atenuação especial da coima, reduzindo-se para metade do seu limite mínimo.
*
O recurso foi admitido.
*
O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu pugnando pela manutenção da decisão.
*
Idêntica posição veio a ser defendida pelo Ministério Público junto deste Tribunal da Relação.
*
Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº 2 do CPP.
*
Após os vistos, realizou-se conferência.

II.
Cumpre apreciar e decidir, tendo em conta que em matéria de contraordenações o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista, por conhecer apenas da matéria de direito (artigo 75º nº1 do DL 433/82 de 27.10), sem prejuízo do disposto no nº 2 da referida norma e das questões de conhecimento oficioso.

É a seguinte a matéria de facto fixada em 1ª instância e respetiva motivação (transcrição):

1. No dia 24 de Abril de 2013, pelas 8 horas e 40 minutos, foi levada a cabo, pela GNR de Braga, uma acção de fiscalização às instalações da sociedade X, Lda, sitas na Rua …, freguesia de …, concelho de Braga.
2. Nessa acção de fiscalização, a Equipa da GNR foi acompanhada pelo representante legal da empresa, o Sr. M. P..
3. No decorrer da fiscalização, os agentes da GNR depararam-se com três veículos em fim de vida (VFV), aparcados na zona de recepção de veículos, com o código LER ….
4. Um desses veículos aparcados na zona de recepção, com a matrícula XP, marca Audi, modelo 80, cor cinza, tinha dado entrada nas instalações da arguida X, Lda em 18/03/2013 e não tinha ainda sido alvo das operações de descontaminação descritas no nº 2.1 do Anexo IV do DL n.º 196/2003, de 23 de Agosto, possuindo ainda bateria, óleo dos travões, óleo de motor, óleo de direcção, líquido de arrefecimento.
5. O VFV em questão possui certificado de destruição emitido pela ora arguida em 18/03/2013.
6. A arguida desenvolve a actividade de desmantelamento de automóveis em fim de vida (CAE secundário … – Rev. 3).
7. Ao não realizar as operações previstas no nº 2.1 do anexo IV (operações de despoluição de VFV) no prazo de quinze dias úteis após a recepção do VFV com a matrícula XP, a arguida X, Lda, através do seu legal representante, não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

8. A arguida X Lda não realizou as operações de descontaminação supra mencionadas no prazo legalmente previsto uma vez que tinha a expectativa de vender o motor do veículo com a matrícula XP e o interessado na sua aquisição pretendia testá-lo em funcionamento.
9. A arguida X, Lda acabou por vender o motor, a bateria e outras peças do veículo XP à sociedade Auto Reparadora Y Unipessoal, Lda no dia 29/04/2013.
10. A arguida X, Lda está devidamente licenciada para a gestão de VFV e está inserida no sistema integrado de gestão de VFV, gerido pela ... – Sociedade de Gestão de VFV.
11. No âmbito do processo n.º 944/13.0TBBRG do Tribunal Judicial de Braga foi condenada ao pagamento de uma coima de €15 500,00, pela prática do mesmo tipo de contra-ordenação em causa nos presentes autos.
12. A sociedade X, Lda emprega 20 trabalhadores.
13. Funciona em instalações arrendadas, pagando de renda €3 000,00 mensais.
14. Tem um lucro anual de €200 000,00.
*
Factos Não Provados:

Não se provou que, desde o início da sua actividade em finais de 2009, inícios de 2010, a arguida X, Lda se tivesse preocupado em dar a devida formação aos funcionários adstritos à gestão dos veículos em fim de vida e a dar ordens no que tange, especialmente, ao cumprimento dos prazos de despoluição dos VFV.

Não se provou que sempre que se torna necessário efectuar a despoluição, uma funcionária administrativa da arguida dê ao funcionário responsável uma listagem dos VFV a despoluir com indicação precisa do último dia de prazo de despoluição.

Não se provou que a arguida X Lda tenha um sistema implementado que não permite a ultrapassagem dos prazos de realização das operações de tratamento para despoluição dos VFV.
*
Motivação da decisão de facto:

A convicção do tribunal quanto aos factos provados baseou-se, antes de mais, no depoimento do próprio representante legal da sociedade arguida, M. P., o qual admitiu a não realização das operações de descontaminação do veículo XP no prazo legalmente previsto, justificando-se com a circunstância de existir um interessado no motor do veículo, que queria experimentá-lo, negócio que, de resto, veio a concretizar-se.

Tal versão foi confirmada pelas testemunhas M. S., trabalhador da sociedade arguida e C. S., técnica de higiene e segurança do trabalho na sociedade X, Lda e é, de certa forma, corroborada pela factura de fls 93, tendo-se afigurado credível, pelo que foi dada como provada.

Note-se, de resto, que a justificação avançada em sede de audiência de julgamento constitui uma inflexão na estratégia de defesa da arguida, que, no desenrolar do presente processo, chegou a tentar atribuir a culpa pela infracção ao seu funcionário M. S.. Vejam-se, de resto, neste particular, as pertinentes considerações expendidas na decisão administrativa, com as quais concordamos integralmente, sobretudo, quando aí se aludia às deficientes condições de trabalho proporcionadas pela arguida aos seus funcionários.

Ora, o que se apurou em sede de audiência de julgamento aponta, sim, para uma opção consciente da gerência da arguida na ultrapassagem do prazo de descontaminação do veículo de matrícula XP, opção relacionada com o surgimento de uma oportunidade de negócio.

Já quanto aos factos não provados, os depoimentos do representante legal da sociedade arguida e das duas testemunhas mencionadas não se revestiram de suficiente consistência para dar como provada a mencionada factualidade, tanto mais que a infracção a que se reportam os autos não se revestiu de um carácter ocasional ou isolado, pois a arguida X, Lda já foi condenada precisamente pela mesma contra-ordenação no âmbito do processo n.º 944/13.0TBBRG do Tribunal Judicial de Braga, em sentença, de resto, por nós proferida (infracção praticada em Janeiro de 2011 e respeitante a três VFV).

Em segundo lugar, levou-se em conta o depoimento seguro, preciso e isento do agente da GNR J. M., que procedeu à operação de fiscalização, tendo confirmado os factos nºs 1 a 6 da matéria da matéria de facto dada como provada.

Acrescentou ainda que a não obrigatoriedade da remoção dos fluídos dos VFV desde que os mesmos sejam “necessários para efeitos de reutilização das peças visadas” (Anexo IV, ponto 2.1, terceiro parágrafo, in fine, do DL nº196/2003, de 23/08) nada tem a ver, por exemplo, com o óleo do motor ou dos travões, ou até com o óleo da direcção ou com o líquido de arrefecimento. De resto, caso se pretenda a reutilização do motor e/ou dos travões noutras viaturas, o que é normal é precisamente retirarem-se os óleos dessas peças e colocarem-se novos óleos.

A excepção legalmente prevista prende-se com os casos em que a retirada dos óleos inutiliza a própria peça (v.g. óleo dos amortecedores, óleo da transmissão).

O depoimento da testemunha F. J., consultor da sociedade arguida, pouca importância teve para a descoberta da verdade material, limitando-se essencialmente a confirmar que a sociedade X está inserida no sistema integrado de gestão de VFV, gerido pela ... – Sociedade de Gestão de VFV.

Levaram-se ainda em conta os elementos fotográficos que se encontram juntos aos autos a fls 6, a listagem de fls 7, o certificado de destruição de fls 8, o alvará de licença de fls 57 e ss, o print informático de fls 65 e a factura de fls 93, documentos devidamente analisados em sede de audiência de julgamento.

A conjugação de todos os elementos de prova acima referidos com as mais elementares regras de experiência comum inculca a ideia de que os factos ocorreram da forma como foram dados como provados, não se tendo suscitado ao tribunal a mais pequena dúvida a esse respeito.

Note-se que a prova do elemento subjectivo é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos e das regras de experiência comum. Desta perspectiva, pode certamente dizer-se que a arguida X, Lda, pelo menos, não actuou com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, bem sabendo do carácter proibido da sua conduta.

Na verdade, se existia um interessado na aquisição do motor do veículo em fim de vida de matrícula XP e se tal interessado pretendia ver o motor do veículo em funcionamento, ou o fazia no prazo de 15 dias úteis legalmente previsto ou, não sendo esse o caso, nada mais restava à arguida do que descontaminar a viatura e retirar o motor, podendo expô-lo para venda.

Quanto à situação económica da arguida X, Lda, as declarações do seu representante legal, à falta de outros elementos.

Apreciação do recurso.

São, essencialmente, duas as questões que a recorrente traz à apreciação deste Tribunal:

-A impossibilidade de condenação da arguida pela circunstância de a sua conduta se subsumir à exceção que consta do anexo IV ponto 2.1, 3º § do DL 196/2003 de 23.08;
-Subsidiariamente, a atenuação especial da coima.

A primeira questão em apreciação impõe que se remonte à Diretiva 2000/53/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18.09.2000, relativa a veículos em fim de vida (VFV), que esteve na base da legislação nacional sobre a matéria.

As preocupações ambientais inerentes aos resíduos provenientes de veículos em fim de vida são decorrentes dos vários milhões de toneladas de resíduos a gerir anualmente, mas também da variedade de componentes e substâncias desses mesmos resíduos, alguns perigosos. Assim sendo, a primeira preocupação, aliás, claramente expressa na Diretiva, deverá ser evitar, tanto quanto possível, a formação de resíduos, dando prevalência à sua reutilização e valorização, sempre que possível reintegrando-os até na produção de novos veículos ou, caso ocorra eliminação, que ela se concretize sem danos para o ambiente. Só assim se conseguirá a melhoria do desempenho ambiental de todos os operadores económicos intervenientes no ciclo de vida dos veículos. Isto mesmo vem sendo dito desde a publicação do DL 239/97 de 09.09 e, mais especificamente, desde o DL 196/2003 de 23.08 - sucessivamente alterado pelos DL 178/2006 de 05.09; 64/2008 de 08.04; 98/2010 de 11.08; 73/2011 de 17.06; 1/2012 de 11.01, 114/2013 de 07.08 - até ao atual, que o veio revogar, o DL 152-D/2017 de 11.12.

Dentro deste âmbito e nos termos do artigo 3º do DL ao abrigo do qual a recorrente foi condenada (DL 196/2003 de 23.08) “constituem princípios fundamentais da gestão de veículos e de VFV a prevenção da produção de resíduos provenientes de veículos, particularmente reduzindo a incorporação de substâncias perigosas no seu fabrico, bem como o recurso a sistemas de reutilização, de reciclagem e a outras formas de valorização, com vista a reduzir a quantidade e perigosidade dos resíduos a eliminar.”.

Por outro lado, as operações de desmantelamento e fragmentação dos VFV deverão ser realizadas num curto espaço de tempo – que não ultrapasse os 15 dias úteis (artigo 20º nº 4), após a receção dos VFV – e obedecer aos requisitos legalmente previstos de tratamento e despoluição dos VFV (ponto 2.1 do anexo IV): vg a remoção do combustível, do óleo do motor, do óleo da transmissão, do óleo da caixa de velocidades, do óleo dos sistemas hidráulicos, dos líquidos de arrefecimento, do anticongelante, do fluído dos travões, dos fluídos dos sistemas de ar condicionado e quaisquer outros fluídos contidos no VFV, a menos que sejam necessários para efeito de reutilização das peças visadas.
Entende a recorrente que é precisamente nesta exceção que se enquadra a sua conduta, razão pela qual não poderia ser punida.

Vejamos então.

Resulta da matéria de facto fixada, além do mais e no que para a decisão interessa, que:

-A arguida desenvolve a atividade de desmantelamento de automóveis em fim de vida (facto 6).
-Um dos veículos aparcado na zona de receção, com a matrícula XP, de marca Audi, modelo 80, tinha dado entrada nas instalações da recorrente em 18/03/2013 e não tinha sido alvo das operações de descontaminação descritas no nº 2.1 do anexo IV do DL 196/2003 de 23.08, possuindo, ainda, bateria, óleo dos travões, óleo do motor, óleo da direção, líquido de arrefecimento (facto 4).
-A arguida X, Lda não realizou as operações de descontaminação supra mencionadas no prazo legalmente previsto uma vez que tinha a expectativa de vender o motor do veículo com a matrícula XP e o interessado na sua aquisição pretendia testá-lo em funcionamento (facto 8).
-A arguida X, Lda acabou por vender o motor, a bateria e outras peças do veículo XP à sociedade Auto Reparadora Y Unipessoal, Lda, no dia 29.04.2013 (facto 9).

É, pois, a partir desta factualidade que terá de aferir-se se a condenação da recorrente deve ser mantida.

Entendeu o tribunal a quo, à semelhança do entendimento expresso – como disse - pelo agente da GNR que procedeu à fiscalização – que “a não obrigatoriedade de remoção de fluídos dos VFV desde que os mesmos sejam “necessários para efeito de reutilização das peças visadas” (anexo IV, ponto 2.1, terceiro parágrafo, in fine, do DL 196/2003 de 23.08) nada tem a ver com o óleo do motor ou dos travões, ou até com o óleo de alimentação ou com o líquido de arrefecimento. A excepção prevista prende-se com os casos em que a retirada de óleos inutiliza a própria peça (vg., óleo dos amortecedores, óleo da transmissão)”.

Ora, antes de mais, a lei fala em “reutilização das peças visadas”, nada dizendo sobre se essa reutilização se deve fazer com os fluídos existentes no veículo ou com outros, retirados que sejam aqueles. Isto é, da lei não se deduz a diferença no tratamento dos óleos/líquidos dos veículos referida pelo tribunal a quo.

Depois, não deverá esquecer-se que a preferência legal vai, inequivocamente e sempre, para a reutilização. Portanto, entre a eliminação de um componente de um VFV e a sua reutilização, é a esta que o operador deverá dar preferência.

Depois há ainda que atentar na circunstância de o ponto 2.1 do anexo IV dizer respeito às operações de tratamento para despoluição dos VFV, isto é, ao que se torna necessário levar a cabo, caso ocorra o desmantelamento e fragmentação dos VFV, sempre sem esquecer que as operações de desmantelamento devem ser efetuadas por forma a garantir a reutilização e a valorização dos componentes (artigo 20º nº 2 do citado diploma).

Assim sendo, tendo-se provado que a recorrente pretendia vender - como vendeu - o motor, a bateria e outros componentes, que o adquirente pretendia testá-los no próprio veículo, e que, portanto, nessa medida, era necessário mantê-los no veículo “para efeito de reutilização das peças visadas” e sendo a reutilização o principal objetivo da lei, sendo que, para a atingir – na situação em concreto – foi necessário ultrapassar o prazo de 15 dias úteis, previsto no artigo 20º nº 4 do DL 196/2003 de 23.08, - afigura-se correta, a pretensão da recorrente de integração da conduta na exceção legal que permite que não se leve a efeito as operações de despoluição dos VFV, vg., remoção dos óleos, quando sejam necessários para reutilização das peças visadas.

Esta conclusão afasta, portanto, o entendimento de que a recorrente praticou a contraordenação que lhe foi imputada, donde resulta dever ser eliminado o ponto 7 da matéria de facto, o que, ao abrigo do disposto no art. 75 nº 2 a) do RGCC, se determina.

Mas mesmo que este entendimento não estivesse correto, à mesma conclusão se chegaria por força da aplicação do princípio da proporcionalidade à situação em concreto.

O ilícito de mera ordenação social é caracterizado pelo legislador através de um critério formal (artigo 1º do RGCC) nos termos do qual constitui ilícito de mera ordenação social aquele que é cominado com uma coima, portanto, insuscetível de conversão em sanção privativa de liberdade. Apesar desta basilar diferença relativamente ao direito penal, tal como neste, também o direito de mera ordenação social está sujeito a determinados princípios, vg o princípio da legalidade (artigo 2º do RGCC) (só a lei pode distinguir a atividade delituosa, da atividade legítima) que tem como como corolário o princípio da tipicidade (a lei é que diz o que é ilícito), o princípio da culpabilidade (toda a sanção contraordenacional tem como suporte uma culpa concreta, dolosa ou negligente, isto é, intencional ou descuidada), o princípio da não retroatividade da lei (artigo 3º do RGCC) e, para o que agora nos interessa, o princípio da proporcionalidade.

Este princípio, generalíssimo do direito a propósito do qual muitas querelas doutrinárias surgiram e se digladiaram ( Cfr. a notável tese de Vitalino Canas “O princípio da proibição do excesso: em especial, na conformação e no controlo de atos legislativos”- Univ. Lisboa, 24) não resultou, nem dependeu de um ato de vontade do legislador, ou de um momento de inspiração criativa de um aplicador do direito, mas sim da necessidade de responder ao apelo da ideia de justiça, sobretudo após a segunda grande guerra, embora as suas raízes sejam muito anteriores.

O princípio da proporcionalidade, - ou doutrinalmente também apelidável da temperança, do justo equilíbrio, da ponderação, ou da proibição de excesso - na vertente que agora nos interessa é, então, um dos princípios gerais do direito inerentes ao Estado de Direito. E, repise-se, tal como no direito penal, também no direito das contraordenações deve tentar encontrar-se “o justo equilíbrio entre os interesses em conflito, obrigando o legislador, os juízes e demais operadores do direito a ponderar os interesses em conflito para em função dos valores subjacentes e os fins perseguidos os resolver segundo medida adequada.” (Cfr G. Marques da Silva in Direito Penal Português, Parte Geral, I, 75).

E, como o mesmo autor deixa claro, o princípio da proporcionalidade vale não só para o legislador no momento da opção pela incriminação (Cfr Ac TC 187/91 publicado no DR II nº 146/2001 de 26.06.2001), mas também para a determinação judicial da sanção, na medida em que não há dois factos concretos iguais, embora o possam ser nos seus elementos essenciais previstos na lei (ob. cit, 77).

Ora, tais considerações são, pois, transponíveis para o direito contraordenacional. Este direito, surgido do movimento descriminalizador dos anos 70, começou por afirmar-se como um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal, com o objetivo de reservar este ramo do direito para a tutela dos valores ético-sociais fundamentais, expurgando-o da tutela do sancionamento de condutas axiologicamente neutras, ou sem a mesma ressonância ética, ou ainda, utilizando a expressão de Yeschek/Weigend, de condutas que não atingem o socialmente insuportável.

Mas ao nível das contraordenações cedo se verificou a tendência contrária, isto é, a expansão severa do ilícito contraordenacional aos mais diversos setores da vida em sociedade.

Um dos setores onde mais acentuada e compreensivelmente se faz sentir a tutela sancionatória do Estado é o do Ambiente.

Desde a Lei de Bases do Ambiente, aprovada pela Lei 11/87 de 07.04, encontramos a discussão sobre se a tutela sancionatória devia ser penal ou contraordenacional, mas com a aprovação da LQCA (Lei 50/2006 de 29.08) foi decisivamente estabelecido o quadro de referência no domínio do direito sancionatório em matéria de ambiente, sendo que, atualmente, o ilícito de mera ordenação social é o ilícito regra em matéria de ambiente.

E é de tal forma severa a punição dos ilícitos ambientais em matéria de contraordenações, que há quem chame a atenção para a “desproporção entre a brandura dos crimes contra o ambiente, tal como decorre dos artigos 278º e 279º do CP, em comparação com a dureza das contraordenações e respetivo montante, por comparação com os montantes do RGCO” (Cfr Carla Amado Gomes in As contraordenações ambientais no quadro da Lei 50/2006 de 29.08, considerações gerais e observações tópicas in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Telles, vol. I obra coletiva, Almedina, Coimbra, 2012, pag 462, citada no parecer 11/2013 da PGR publicado no DR nº 178/2013 Série II de 16.09.2013), o que levou a que já fosse suscitada a inconstitucionalidade de algumas normas por violação do princípio da proporcionalidade.

Como diz Inês Ferreira Leite in Autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional – Coleção de Formação Contínua, 2013-2014, CEJ, 48, a vinculação do legislador ao princípio da proporcionalidade no âmbito sancionatório integra várias exigências, v.g. cumprimento dos critérios da restrição de direitos, liberdades e garantias (proporcionalidade em sentido amplo), adequação da gravidade da sanção à gravidade da infração (proporcionalidade em sentido estrito) e, em conjugação com o princípio da legalidade, a previsão de margens de determinação concreta da sanção suficientemente flexíveis para adaptar a sanção à gravidade do caso concreto, mas não tão amplas que não confiram um mínimo de vinculatividade do julgador à lei.

A gravidade da infração pode aferir-se, numa visão objetiva, pela natureza do dano provocado; sob um ponto de vista subjetivo pelo grau da culpabilidade.

Olhando para o caso concreto constata-se que, como é dito na decisão recorrida, nenhum dano ambiental efetivo foi provocado. O que ocorreu foi a ultrapassagem, não significativa, de um prazo, relativamente a um único veículo, motivado pela expectativa – que se concretizou - de venda do motor do veículo e da pretensão do adquirente de o testar em funcionamento. A gravidade da infração, quer pelo grau de culpa, quer pelo dano ( no caso inexistente) é, pois, insignificante. Portanto, mesmo que não operasse a integração da conduta na exceção a que atrás se fez referência, sempre seria forçoso concluir que se trataria de um comportamento contraordenacional bagatelar, e nessa medida, carecido de dignidade contraordenacional. De facto, se atentarmos na imagem global do facto, ele fica aquém do limiar mínimo da dignidade contraordenacional. Trata-se de uma conduta sem relevância, que não justifica o afastamento do princípio da insignificância (ou princípio bagatelar), o qual, nas palavras de F Dias in Direito Penal – Parte Geral – Tomo I, 624, assume o caráter de um princípio regulativo com especial incidência em matéria de punibilidade.
Assim sendo, não se justificando qualquer punição, a aplicação de uma coima de 12.500,00€ seria sempre claramente violadora do princípio da proporcionalidade.
Portanto, também, por esta via, deveria ter sido sentenciado o arquivamento dos autos.

O recurso procede, pois, integralmente.
*
III.
DECISÃO

Em face do exposto acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto e, em consequência, revogar a sentença recorrida e absolver a recorrente X, Lda da prática da contraordenação que lhe foi imputada.

Sem custas.
*
Notifique
Guimarães, 16 de setembro de 2019

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho