Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1167/20.7T8VNF-C.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Relativamente à determinação do valor considerado razoável para garantir o sustento minimamente digno do devedor o legislador apenas estabeleceu no artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE que tal valor não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional, ou seja, estabeleceu um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objetivo.
II- Já quanto ao limite mínimo da exclusão, o legislador prevê apenas um conceito indeterminado ou aberto, traduzido naquilo que é razoavelmente necessário ao sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, critério este a densificar e a ponderar casuisticamente em função do caso concreto, conforme as particularidades da situação do devedor.
III- A análise do regime legal aplicável à delimitação dos rendimentos que integram o rendimento disponível do devedor e respetivas exclusões no âmbito do direito da insolvência implicam que se deva atender ao salário mínimo nacional, correspondente ao valor da retribuição mínima mensal garantida, tal como introduzida pelo Decreto-Lei n.º 217/74, de 27-05, sucessivamente atualizada (a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12-02) enquanto referência razoável e adequada à definição do mínimo necessário a assegurar o sustento condigno dos devedores nos 12 meses do ano.
IV- Os subsídios de férias e de natal são incontestavelmente rendimentos provenientes do trabalho que devem estar sujeitos à cessão, enquadrando-se pela sua natureza, no rendimento disponível previsto no artigo 239.º, n.º 3, do CIRE, devendo incluir-se na entrega ao fiduciário independentemente do período a que se reportam.
V- Questão distinta é a de saber se, em concreto, tal rendimento excede ou não o rendimento indisponível fixado ao devedor/insolvente, atendendo às exclusões previstas no artigo 239.º, n.º 3, b), subalínea i), do CIRE, ou seja, se o montante de tais subsídios de férias e de natal a receber pelo devedor, englobados no rendimento total deste, ultrapassam ou não objetivamente o valor fixado como montante necessário ao sustento digno do insolvente nos 12 meses do ano.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

C. M., apresentou-se à insolvência em 16-02-2020, alegando encontrar-se impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Requereu a exoneração do passivo restante, predispondo-se a ceder todos os montantes que venha a auferir e que sejam superiores a dois salários mínimos nacionais.
Por sentença datada de 19-02-2020, às 11 h, foi declarada a insolvência do requerente e, além do mais, nomeado o administrador da insolvência (AI).
O AI apresentou relatório nos termos do artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o qual não mereceu oposição por parte dos credores. Juntou lista provisória de credores, pronunciando-se em sentido favorável ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante e ao valor indicado pelo requerente quanto ao montante dos rendimentos de que poderá dispor.
A 18-05-2020 foi proferido despacho inicial de admissão do pedido de exoneração do passivo restante no qual foi nomeado fiduciário o AI já designado, mais determinando o prosseguimento dos autos para liquidação e fixando «o rendimento da cessão ao Fiduciário no valor que exceda um salário mínimo nacional, contado 12 vezes por ano, a que acrescerá o montante despendido com a sua mãe, nos termos do disposto no art.º 1874 CC, desde que documentalmente comprovado, e enquanto tal obrigação perdurar».

Inconformado, veio o insolvente interpor recurso do despacho proferido a 18-05-2020 relativamente ao segmento que determinou o valor do rendimento disponível do insolvente a ceder ao fiduciário, terminando as respetivas alegações com as seguintes Conclusões (que se transcrevem):

«A. O Recorrente discorda da decisão do Tribunal a quo que fixou “o rendimento de cessão no valor que exceda um salário minino nacional, contado 12 vezes por ano, a que acrescerá o montante despendido com a sua mãe, nos termos do disposto no artº. 1874 CC, desde que documentalmente comprovado, e enquanto tal obrigação perdurar.” porquanto, se considera totalmente desajustado que o insolvente tenha de proceder à cessão de todos os valores que excedam 1 (um) salário mínimo nacional, bem como se considera que deverá ser considerado para o cômputo anual dos rendimento 14 (catorze) meses e não apenas os 12 (doze) tal como é sustentado no despacho recorrido.
B. Na verdade, as despesas que o Recorrente tem de suportar consigo próprio (cifram-se nos €716,84 – Setecentos e Dezasseis Euros e Oitenta e Quatro Cêntimos, mensais), são superiores ao valor fixado pelo Tribunal a quo como sustento minimamente digno do Recorrente (€ 635,00 –Seiscentos e Trinta e Cinco Euros).
C. Porém importa atender que todas as despesas que o Recorrente apresentou aquando da sua apresentação à insolvencia fazem parte da matéria de facto dada com assente, não contestada, tendo as mesmas sido inclusivamente secundadas pelo Exmo Senhor Administrador de Insolvência aquando da apresentação do Relatório a que alude o Artigo 155º do CIRE.
D. Assim, com a renda da casa despende invariável e mensalmente a quantia de € 278,08 – Duzentos e Setenta e Oito Euros e Oito Cêntimos, à qual acresce ainda o valor de € 20,00 – Vinte Euros a título de condomínio - conforme DOC. 7 oportunamente junto aquando da apresentação de insolvência para o qual se remete.
E. A água da habitação tem habitualmente um custo mensal de € 10,10 – Dez Euros e Dez Cêntimos, conforme DOC. 10 oportunamente junto aquando da apresentação de insolvência para o qual se remete;
F. Em eletricidade e gás, despende cerca de € 55,00 – Cinquenta e Cinco Euros Mensais, conforme DOC. 9 oportunamente junto aquando da apresentação de insolvência para o qual se remete;
G. No que tange a serviços de telecomunicações custeia cerca de € 65,00 – Sessenta e Cinco Euros, conforme DOC. 11 oportunamente junto aquando da apresentação de insolvência para o qual se remete;
H. No que concerne à alimentação o valor alocado cifra-se nos € 250,00 – Duzentos e Cinquenta Euros;
I. Despesas medicamentosas e com lentes intraoculares € 35,00 – Trinta e Cinco Euros, conforme DOC. 5 oportunamente junto aquando da apresentação de insolvência para o qual se remete;
J. Relativamente a despesas com os resíduos urbanos € 11,00 – Onze Euros, trimestralmente;
K. Pelo que, tudo considerado, comprovadamente o ora Recorrente despende mensalmente pelo menos a quantia de € 716.84 – Setecentos e Dezasseis Euros e Oitenta e Quatro Cêntimos!!!
L. Concomitantemente ficou demonstrado que, sendo o devedor filho único e cuidador (exclusivo) da sua progenitora que padece de inúmeras comorbilidades, viu-se forçado a contratar os serviços de uma IPSS – Centro Social de ... para a prestação dos serviços especializados de que esta necessita sendo que apenas para este fim são absorvidos cerca de 65 % da totalidade dos rendimentos daquela.
M. A evidente debilidade física que a progenitora do devedor evidência implica a assunção de despesas com fraldas e resguardos para colchões que mensalmente se computam na quantia de cerca € 140,00 Cento e Quarenta Euros, às quais acrescem naturalmente as medicamentosas de que carece e que se cifram nos cerca de € 20,00 – Vinte Euros.
N. Pois bem, considerando que a progenitora do Insolvente aufere € 513,00 – Quinhentos e Treze Euros, de pensão de reforma, e comprovadamente despende € 476,00 – Quatrocentos e Setenta e Seis Euros, sendo que para este cômputo não foram consideradas as suas naturais despesas de alimentação, vestuário, água, eletricidade, residios, higiene e médicas que, conforme facilmente se alcança são suportadas pelo insolvente, com o recurso aos seus rendimentos, porquanto a exígua verba remanescente de € 37,00 – Trinta e Sete Euros é manifestamente insuficiente para o sustento minimente digno de quem quer que seja.
O. Na verdade, e considerando a realidade inserta nos autos, se entende que o Recorrente forneceu elementos suficientes e idóneos, para em concreto, e de uma forma objetivável, por in crise a razoabilidade do critério acolhido na decisão recorrida e que deveria ser outra que considerasse como indispensável ao sustento minimamente digno do recorrente o valor correspondente a 2 (dois) Salários Mínimos Nacionais (SMN), até porque a exclusão a que alude o Artigo 239º nº. 3 al. b) subal. i) do CIRE tem que ver com aquele montante que seja razoavelmente necessário às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam em concreto ao Recorrente fazendo eco da denominada “clausula do razoável” e do “principio da proibição do excesso”.
P. A este propósito atente-se ainda que a utilização de conceitos abertos e de grande amplitude interpretativa empregues por parte do legislador aquando da feitura da norma supra citada impõe, necessariamente, um juízo de ponderação casuística por parte do julgador relativamente ao montante a fixar, que, salvo o devido respeito, nos presentes autos não ocorreu, motivo pelo qual se sustenta que o Tribunal a quo violou o disposto no Artigo 239º nº. 3 al. b) subal. i) do CIRE, que aqui expressamente se invoca.
Q. Ademais, as despesas que o Recorrente apresentou e comprovou não se mostram descabidas ou desproporcionais à vivencia digna, sendo manifesto que não lhe poderá ser imposta uma cessão de rendimento disponível em que apenas seja salvaguardado 1 (um) Salário Mínimo Nacional (SMN), acrescida das despesas suportadas com a sua mãe, dado que resulta totalmente claro que as mesmas se revelam manifestamente insuficientes para as despesas mensais a que se encontra adstrito.
R. Aquando da apresentação do Relatório a que alude o Artigo 155º do CIRE, o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência, pugnou pela exclusão de 2 (dois) Salários Mínimos Nacionais, porquanto a situação em particular em que se encontra o Insolvente assim o impõe – “ (…) devido às despesas apresentadas entendemos que deve ser o valor referido pelo insolvente.” – in Pág. 7 do Relatório para efeitos do Artigo 155º do CIRE, Capitulo – Exoneração do Passivo Restante.
S. De referir que o peticionado na presente alegação não nos parece inconciliável com o regime jurídico da exoneração do passivo restante, até porque, conforme ensina o Prof. Paulo Mota Pinto, enquanto o devedor não estiver exonerado, o seu acesso ao crédito está limitado, pelo que os credores terão “interesse em que o devedor peça uma exoneração do passivo restante, caso não lhe seja possível pagar, até para voltar a ter incentivo para o exercício de uma atividade profissional, e para poder voltar recorrer ao crédito.”, Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo restante: Fundamento e Constitucionalidade” in III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015 Exoneração do Passivo Restante.
T. Nesta conformidade e salvo o devido respeito por opinião contrária, se sustenta que o entendimento constante do douto despacho recorrido que determinou a cessão naqueles moldes é perfeitamente desajustado com a casuística do caso concreto, e nessa medida injusto e desequilibrado porquanto não foi convenientemente enquadrada a particular situação do Recorrente, e por maioria de razão da sua progenitora, tendo sido feito uma errónea interpretação do disposto no Artigo 239º nº. 3 al. b) subal. i) do CIRE, devendo ser revogado o despacho por um outro em que se fixe um rendimento excluído da cessão que permita assegurar o seu sustento digno, bem como da sua progenitora, que se entende ser, no caso em apreço, como adequado o correspondente a 2 (dois) Salário Mínimos Nacionais (SMN).
U. O Recorrente não se pode conformar do mesmo modo que o seu rendimento global anual considerado para efeitos de cessão seja dividido por 12 (doze) quando a remuneração de todos os trabalhadores, é calculada tendo em consideração 14 (catorze) meses no ano.
V. Assim, e enquadrando, a norma aqui sub judice, o Artigo 239º do CIRE, estabelece dois limites a que o julgador se encontra adstrito quando fixa o montante que o devedor vai passar a ceder ao fiduciário. O primeiro desses limites refere-se ao limite máximo, bem definido e com critérios objetivos para a exclusão do rendimento disponível, e que se consubstancia em 3 (três) salários mínimos nacionais. Por sua vez, o segundo desses limites não obedece a critérios objetivos sendo que a materialização desse valor passa pelo preenchimento do juiz daquilo que entenda razoavelmente necessário para o sustento minimamente condigno do devedor em concreto e do seu agregado familiar.
W. Pois bem, aqui chegados importa ainda referir que a Remuneração Mensal Mínima Garantida (RMMG) é tida como a remuneração básica estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, e concebida como patamar mínimo, não podendo ser reduzida seja por que motivo for.
X. Com efeito, e considerando que a Remuneração Mensal Mínima Garantida (RMMG) é auferida 14 (catorze) vezes no ano, torna-se premente concluir que o seu valor anual é constituído por aquele montante considerado 14 (catorze) vezes – multiplicado por 14 (catorze) – conforme decorre dos Artigos 263 e 264º nº. 1 e 2 do Código do Trabalho, e, portanto, o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do insolvente não deverá ser inferior à remuneração mínima anual. Interpretação que é confirmada pelo próprio conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual (RMNA, a que alude o Artigo 3º do Decreto-Lei 158/2006, de 8 de agosto, que define “o valor da retribuição mínima mensal garantida (RMMG), a que se refere o n.º 1 do artigo 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses”. Na verdade, os subsídios de Férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho e não extras para umas férias ou um Natal melhorados. A retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14, pelo que o Salário Mínimo Nacional corresponde àquela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12.
Y. A corrente pela qual pugna o Recorrente é aquela que tem sido maioritariamente sufragada nos Tribunais Superiores, conforme Ac. Relação do Porto, de 22-05-2019, Proc. 1756/16.4T8STS-D.P1, Ac. Relação de Lisboa de 27/02/2018, Proc. 1809/17.1T8BRR.L1-7, Ac. Relação de Lisboa de 13/03/2018, Proc. 92/17.3T8LSBB. L1, Ac. Relação de Lisboa de 24/04/2018, Proc. 3553/16.8TABRR-E.L, disponíveis in www.dgsi.pt.
Z. Por fim e concluído, se entende que o despacho recorrido enferma de uma manifesta violação do Artigo 59º nº. 2 da Constituição da Républica Portuguesa, porquanto sustenta que o valor excluído da cessão é o correspondente ao valor anual auferido, dividido por 12 (doze) quando o próprio Estado entende que o valor considerado como mínimo para a vivencia com dignidade é dividido por 14 (catorze).
AA. Destarte, se entende que o despacho ora sub judice deverá ser alterado por um outro que considere que a Retribuição Mínima Mensal Garantida é constituída pelo sustento minimamente condigno do devedor, aferido em concreto e que no caso dos presentes autos se deverá fixar em 2 (duas) RMMG, considerado ainda as 14 (catorze) remunerações, sob pena de o ora Recorrente se sujeitar a ter de subsistir com um montante inferior àquele que o próprio Estado entende ser o valor considerado como mínimo para a vivencia com dignidade, em clara violação ao disposto no Artigo 59º nº. 2 da Constituição da Republica Portuguesa, que aqui expressamente se invoca.

TERMOS EM QUE,
E no que V.ª s. Ex.ªs superiormente suprirão, deve revogar-se o despacho recorrido, e, em consequência, ser o mesmo substituído por um outro que fixe o valor sujeito a cessão todo o rendimento do Recorrente que exceder 2 (duas) Retribuições Mínimas Mensais Garantidas, contado 14 (catorze) vezes no ano como sendo o montante em concreto suficiente para assegurar a subsistência minimamente digna do Recorrente e bem assim da sua progenitora que se encontra totalmente dependente de si; e Assim se fará a habitual e ALMEJADA JUSTIÇA».
Não consta que tenha sido apresentada resposta.
O recurso foi então admitido como apelação, com subida imediata, subida imediata, em separado, e efeito meramente devolutivo.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - está em causa na presente apelação aferir qual o valor que deve ser excluído do rendimento disponível para efeitos de cessão de rendimentos do insolvente em benefício dos credores a operar durante o período fixado, concretamente se é de revogar o despacho recorrido, na parte em que fixou o rendimento disponível para cessão ao Fiduciário no valor que exceda um salário mínimo nacional, contado 12 vezes por ano, a que acrescerá o montante despendido com a sua mãe, nos termos do disposto no art.º 1874 CC, desde que documentalmente comprovado, e enquanto tal obrigação perdurar.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos que foram alegados pelo recorrente no âmbito do requerimento inicial (não impugnados ou provados documentalmente) e os que decorrem do relatório apresentado pelo AI, elaborado nos termos do artigo 155.º do CIRE, com interesse para o objeto do presente recurso:
1.1.1. O requerente casou com M. M., em - de Junho de 1980, encontrando-se separados de facto há já 20 anos, fazendo vidas autónomas entre si.
1.1.2. O requerente trabalha no Município de … desde os 18 anos exercendo funções de Fiscal Municipal e auferindo o vencimento líquido mensal de € 965,00.
1.1.3 Vive em casa arrendada e despende a título de renda o montante mensal de € 278,08.
1.1.4. O requerente suporta despesas mensais relativas a condomínio da habitação, no valor de €20.
1.1.5. O requerente tem custos mensais com a respetiva alimentação no valor de €250 mensais.
1.1.6. O requerente tem despesas mensais com consumos de eletricidade e gás no valor de € 55 mensais.
1.1.7. O requerente tem despesas mensais com consumos de água na sua habitação no valor de € 10,10 mensais.
1.1.8. O requerente suporta despesas mensais com despesas medicamentosas e lentes intraoculares no valor de € 35.
1.1.9. O requerente é atualmente o cuidador da sua progenitora, M. J., que se encontra a seu cargo, ministrando-lhe todos os cuidados de saúde necessários, em face da sua idade avançada, e das inúmeras comorbilidades que lhe foram sendo diagnosticadas.
1.1.10. Para além de lhe ter sido diagnosticada patologia osteoarticular generalizada a progenitora do requerente padece ainda de uma patologia do foro cardiovascular e de diabetes mellitus.
1.1.11. O estado de saúde da progenitora do requerente implica um custo mensal de cerca de € 100 em fraldas e € 40 em resguardos para colchão.
1.1.12. A que acrescem despesas médicas e medicamentosas que se cifram, mensalmente em cerca de € 20.
1.1.13. E custos com os serviços de uma IPSS – Centro Solidariedade de ... - para lhe ministrar os mais básicos cuidados de saúde, dado que o requerente não se encontra habilitado para o cumprimento de tal desiderato, no valor de €316 mensais.
1.1.14. A progenitora do requerente aufere € 513 mensais de pensão de reforma.
1.1.15. O requerente suporta trimestralmente despesas relativas a custos com resíduos urbanos no valor de €11.
1.1.16. Da lista provisória de credores apresentada pelo AI fazem parte créditos no montante global de € 44.379,50 decorrentes de operações bancárias, na qual se fez constar: 1 - Banco …, S.A., a que corresponde o montante relacionado ou contabilizado de € 24.734,07; 2. - Banco ..., S.A. Sucursal em Portugal, a que a que corresponde o montante relacionado ou contabilizado de € 2.259,23; 3 - Banco ..., S.A. Sucursal em Portugal, a que corresponde o montante relacionado ou contabilizado de € 8.391,93; 4 - X Portugal, Lda, a que corresponde o montante relacionado ou contabilizado de € 8.994,27.
1.1.17. Do inventário apresentado pelo AI relativo aos bens e direitos integrados na massa insolvente fazem parte as seguintes verbas: «Verba n.º 1 - Quinhão hereditário do insolvente na herança por óbito de V. M., seu pai, do seguinte imóvel, a avaliar: a) Fração autónoma, designada pela letra “B”, destinada a habitação, correspondente ao primeiro andar, n.º 3-A, com 56m2 e logradouro com 129,16m2, que faz parte integrante do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, n.º … Barcelos, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n…. e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …- B, com o valor patrimonial de € 25.570,00; Verba n.º 2 - Viatura automóvel, marca Renault, modelo Clio, com a matrícula MT, a avaliar».

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

Pretende o recorrente com o presente recurso, a revogação da decisão recorrida, defendendo para o efeito, no essencial, o seguinte: i) em face dos seus rendimentos e das suas despesas, que incluem as que tem de suportar consigo próprio e bem assim com a sua progenitora que se encontra totalmente dependente de si e da qual o apelante é o exclusivo cuidador deve proceder-se à elevação do rendimento isento de cessão para o valor correspondente a 2 retribuições mínimas mensais garantidas (RMMG) sendo este o montante em concreto suficiente para assegurar a subsistência minimamente digna do recorrente e bem assim da sua progenitora; ii) no rendimento a excluir da cessão ao fiduciário deve atender-se ao salário mínimo nacional, contado 14 vezes no ano, porquanto, segundo alega, a retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12 do mesmo modo que a remuneração de todos os trabalhadores é calculada tendo em consideração 14 meses no ano, quando a decisão que fixou o rendimento indisponível do insolvente/devedor teve por base o salário mínimo nacional, contado 12 vezes por ano.
No caso vertente, estamos perante uma insolvência requerida pelo próprio devedor, na qual foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo mesmo, implicando que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência o respetivo rendimento disponível, abrangendo todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, se considera cedido ao fiduciário. Mais se observa que o despacho recorrido fixou o rendimento disponível para cessão ao Fiduciário no valor que exceda um salário mínimo nacional, contado 12 vezes por ano, a que acrescerá o montante despendido com a sua mãe, nos termos do disposto no art.º 1874 CC, desde que documentalmente comprovado, e enquanto tal obrigação perdurar.
A justificação para o inovador instituto da Exoneração do Passivo Restante, tal como previsto no Título XII, Capítulo I, do CIRE consta desde logo do preâmbulo do diploma que o aprovou, o DL n.º 53/2004, de 18-03, quando destaca o respetivo regime no âmbito do tratamento dispensado às pessoas singulares, procurando com o mesmo conjugar «o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica».
Trata-se da consagração do denominado princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, e que se traduz na atribuição da possibilidade ao devedor pessoa singular de se exonerar «dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste».
Porém, o aludido princípio fundamental do ressarcimento dos credores impõe que a efetiva concessão do benefício de exoneração dos créditos sobre a insolvência esteja dependente do cumprimento pelo devedor de diversos deveres que lhe são impostos, supondo, assim, que «após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica».

No caso em apreciação, mostra-se indiscutível que o ora recorrente ficou adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no artigo 239.º, nºs. 2 e 4 do CIRE, entre as quais figura a de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão [artigo 239.º, n.º4, al. c), do CIRE], no âmbito da obrigação já enunciada de, nos cinco anos posteriores ao encerramento do processo, ceder o seu rendimento disponível ao fiduciário designado pelo tribunal, a quem incumbe afetar o montante recebido ao pagamento dos credores, ao pagamento das custas, da remuneração já vencidas, despesas efetuadas, e aos reembolsos devidos ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça (artigos 239.º, n.º 2, e 241.º do CIRE).

O artigo 239.º, n.º 3, do CIRE enuncia expressamente os rendimentos que integram o rendimento disponível, esclarecendo para o efeito que «Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor».

Neste domínio, cumpre destacar que o preceito é claro no sentido de determinar que «integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor (…)», delimitando o âmbito dos rendimentos que integram o rendimento disponível por exclusão, ou seja, em resultado da conjugação do corpo do respectivo n.º 3 com as suas alíneas a) e b) e subalíneas i), ii), e iii). Deste modo, “no período da cessão, considera-se cedido ao fiduciário o rendimento disponível que o devedor venha a auferir. E isto apesar de a massa insolvente só abranger, em regra, «o património do devedor à data da declaração de insolvência» e «os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo» (art. 46.º, 1). A cessão abrange todos os rendimentos que o devedor receba, seja a que título for, apenas se excluindo os que são indicados no artigo 239.º, n.º 3 do CIRE”(1).
Caracterizando a figura jurídica da cessão do rendimento disponível, reconhece Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (2) que «existe aqui uma efetiva cessão de bens ou de créditos futuros, determinada por decisão judicial, o que implica que sejam aplicados neste caso os arts. 577º e ss. do CC» (3), referindo, em conformidade, que «os rendimentos que o insolvente venha a adquirir transferem-se, no momento da sua aquisição, para o fiduciário, independentemente do consentimento dos devedores desses rendimentos (art. 577º,º 1, CC), transmitindo-se igualmente as garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art. 582º, nº1, CC)», para depois concluir: «A cessão do rendimento disponível abrange todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, não se estando, portanto, apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo antes abrangidos quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim, se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, nº 2, dado que a cessão do rendimento disponível constitui uma hipótese legalmente prevista».

Deste modo, e tal como referem ainda Luís A. Carvalho Fernandes/ João Labareda (4), em anotação ao artigo 239.º do CIRE, «[s]egundo o n.º 3, constituem rendimento disponível os rendimentos que advenham ao devedor após o despacho inicial, qualquer que seja a sua fonte, que não estejam excluídos nos termos das als. a) e b) desta norma», mais esclarecendo que as exclusões referidas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do referido preceito assumem mais de uma modalidade, tendo fundamentos diferentes:
Assim, quanto à al. b), «há que distinguir.
As exclusões previstas nas suas subals. i) e ii) decorrem da chamada função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular. Em qualquer delas, embora em planos diferentes, está em causa essa função.
(…)
Quanto à subal. iii) da al. b), prevê-se nela a exclusão da parte dos rendimentos do devedor «razoavelmente necessária» para satisfazer outras despesas que o juiz expressamente ressalve. Esta ressalva depende de requerimento do devedor, podendo constar, desde logo, do despacho inicial ou de outra decisão posterior. Na falta de critério específico, a determinação do valor dos rendimentos excluídos da cessão é deixada ao prudente arbítrio do juiz».
Tal como salienta Alexandre de Soveral Martins (5), a propósito das situações previstas do artigo 239.º, n.º3, b), ii) e iii), o devedor «que pretenda contrair novas obrigações ou que tenha de fazer face a novas despesas deve utilizar esta via, uma vez que o fiduciário irá afetar o rendimento disponível nos termos do art. 241.º,1.O fiduciário tem, por exemplo, a seu cargo distribuir o remanescente pelos credores da insolvência (art. 241.º, 1, d)), não lhe cabendo efetuar pagamentos de novos créditos».
Conforme decorre do despacho recorrido, o Tribunal a quo recorreu à exclusão prevista na alínea b), iii), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE para contemplar de forma autónoma o montante despendido pelo recorrente «com a sua mãe, nos termos do disposto no art.º 1874 CC, desde que documentalmente comprovado, e enquanto tal obrigação perdurar». Porém, nesta parte não acompanhamos a decisão recorrida pois consideramos que as despesas em causa devem integrar-se na previsibilidade do artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, atenta a particular natureza da obrigação de alimentos entre pais e filhos, decorrente do dever de assistência mútuo previsto no artigo 1874.ºdo Código Civil, bem como do dever de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar, e uma vez demonstrado nos autos que o requerente é atualmente o cuidador da sua progenitora, M. J., que se encontra a seu cargo, ministrando-lhe todos os cuidados de saúde necessários, em face da sua idade avançada, e das inúmeras comorbilidades que lhe foram sendo diagnosticadas.

Por conseguinte, importa revogar a decisão recorrida, na parte em que contemplou de forma autónoma o montante despendido pelo recorrente «com a sua mãe, nos termos do disposto no art.º 1874 CC, desde que documentalmente comprovado, e enquanto tal obrigação perdurar», passando a questão inerente ao montante despendido com tais despesas a incidir de forma direta sobre a análise de qual o valor que deve ser excluído do rendimento disponível para efeitos de cessão de rendimentos do insolvente em benefício dos credores por ser razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar assim permitindo consubstanciar quais os rendimentos que integram, em concreto, as exclusões previstas no citado artigo 239.º, n.º 3, b), subalínea i), do CIRE, o que, aliás, decorre das conclusões formuladas pelo recorrente.
Passando então à questão da quantificação e fixação do valor considerado razoável para garantir o sustento minimamente digno do devedor, importa constatar que o legislador apenas estabeleceu no artigo 239.º, n.º 3, al. b), i), do CIRE que tal valor não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional, ou seja, estabeleceu um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objetivo. Já relativamente ao limite mínimo da exclusão, o legislador prevê apenas um conceito indeterminado ou aberto, traduzido naquilo que é razoavelmente necessário ao sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, critério este a densificar e a ponderar casuisticamente em função do caso concreto, conforme as particularidades da situação do devedor, tal como tem vindo a ser reiteradamente afirmado pela jurisprudência e pela doutrina (6).
Neste domínio, deve ainda ponderar-se que no instituto da exoneração do passivo restante está em causa determinar o estritamente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, e não necessariamente manter o nível de vida que tinham antes da declaração de insolvência posto que tal instituto não assenta na desresponsabilização do devedor, antes implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos (7).

No que concerne ao critério-base de referência para a determinação do limite mínimo do que se deve entender por «o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar», consabido que o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente necessária indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, nada impede que, em determinada situação concreta, o montante equivalente ao do salário mínimo nacional possa corresponder a tal limite (8).
Tal como salienta o Ac. TRG de 14-01-2016 (9), «O legislador não estabeleceu qualquer critério de correspondência directa entre as despesas do devedor e agregado familiar e o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, ou seja, não existe uma razão directa entre a medida deste e o peso daquelas; caso contrário, não faria sentido a fixação de um limite máximo e, por isso, o cálculo do razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado não constitui uma decorrência aritmética directa das despesas do devedor e agregado familiar.
O valor a fixar terá de levar em consideração as particularidades de cada caso, devendo ponderar-se, por um lado, que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas e de percepção de receitas de molde a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, por outro lado, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana (artºs 1º, 59º, nº. 2, al. a) e 63º, nºs 1 e 3 da CRP), assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar.
Em toda a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores se faz notar, aliás em consonância com a jurisprudência constitucional (vide acórdão do TC nº. 177/2002, com força obrigatória geral, publicado no D. R., 1ª série-A, nº. 150, de 2/07/2004), de que são reflexo as alterações introduzidas ao artº. 824º do CPC pelo DL 38/2003 de 8/3, que o salário mínimo nacional será um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado como essencial para garantir um mínimo de subsistência condigna, cabendo ao Tribunal fazer uma apreciação casuística das situações submetidas a escrutínio».

No caso em apreço, os rendimentos auferidos pelo insolvente (apurou-se que o insolvente aufere o vencimento líquido mensal de € 965,00) são superiores ao valor da remuneração mínima mensal garantida (RMMG), vulgarmente conhecida por salário mínimo nacional, com referência à presente data ou à do despacho recorrido, já que tal prestação ascende atualmente a €635,00 (10), verificando-se que o despacho recorrido fixou em 1 salário mínimo nacional, contado 12 vezes por ano, o montante relativo às exclusões previstas na alínea b), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
Como se viu, o recorrente discorda do montante fixado pelo Tribunal a quo como rendimento indisponível, sustentando, no essencial, que tal montante é inferior às despesas que o recorrente tem de suportar mensalmente consigo próprio, as quais ascendem pelo menos à quantia mensal de €716,84, que foram consideradas assentes.
Alega ainda que a tais despesas acrescem as despesas de alimentação, vestuário, água, eletricidade, resíduos, higiene, médicas e medicamentosas (entre outras) relativas à sua progenitora, as quais são suportadas por este com recurso aos seus rendimentos dado que há uma impossibilidade de o fazer relativamente aos rendimentos daquela porquanto são manifestamente insuficientes para o sustento minimamente condigno, o que, alega, resulta à evidência da confrontação dos rendimentos daquela com as despesas que comprovadamente esta tem de suportar para continuar a subsistir.

No caso, provou-se, a propósito, o seguinte: - o requerente é atualmente o cuidador da sua progenitora, M. J., que se encontra a seu cargo, ministrando-lhe todos os cuidados de saúde necessários, em face da sua idade avançada, e das inúmeras comorbilidades que lhe foram sendo diagnosticadas; - para além de lhe ter sido diagnosticada patologia osteoarticular generalizada a progenitora do requerente padece ainda de uma patologia do foro cardiovascular e de diabetes mellitus; - o estado de saúde da progenitora do requerente implica um custo mensal de cerca de € 100 em fraldas e € 40 em resguardos para colchão; - a que acrescem despesas médicas e medicamentosas que se cifram, mensalmente em cerca de € 20; - e custos com os serviços de uma IPSS – Centro Solidariedade de ... - para lhe ministrar os mais básicos cuidados de saúde, dado que o requerente não se encontra habilitado para o cumprimento de tal desiderato, no valor de €316 mensais.
Invoca ainda o recorrente outras despesas correntes próprias, que não especifica concretamente mas que justifica à luz de critérios do homem médio e de acordo com o padrão de vida próprio do recorrente, como sejam consultas médicas dentárias, avarias de bens de que disponha, subscrição de seguros, calçado e vestuário.
Atendendo ao valor concretamente apurado das despesas que o recorrente tem de suportar mensalmente consigo próprio, as quais ascendem pelo menos à quantia mensal de €716,84, ponderando o quadro familiar, social e económico do recorrente, sem esquecer a previsível necessidade de incorrer mensalmente noutras despesas correntes próprias, à luz de critérios de critérios de normalidade e razoabilidade social, mas também que como se viu o no instituto da exoneração do passivo restante não assenta na desresponsabilização do devedor - antes implica empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos -, julgamos que o valor fixado como razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do próprio devedor, atendendo exclusivamente ao seu sustento, deve ser aumentado de 1/5, atingindo-se deste modo, um montante mensal correspondente a €762,00 mensais (€635+ €127) como montante necessário para o seu sustento.
Tal valor não comtempla o montante correspondente a outras despesas que devem integrar-se na previsibilidade do artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, atenta a particular natureza da obrigação de alimentos entre pais e filhos, decorrente do dever de assistência, bem como do dever de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar, e uma vez demonstrado nos autos que o requerente é atualmente o cuidador da sua progenitora, M. J., que se encontra a seu cargo, ministrando-lhe todos os cuidados de saúde necessários, em face da sua idade avançada, e das inúmeras comorbilidades que lhe foram sendo diagnosticadas.
Neste domínio, temos que as despesas consideradas provadas relativamente à progenitora ascendem ao valor mensal de € 476,00. No que concerne à previsível necessidade de incorrer mensalmente noutras despesas correntes necessárias à subsistência desta, não se apurou, nem foi alegado, o concreto valor das mesmas, limitando-se o recorrente a alegar a sua existência, sustentando que as mesmas são suportadas com recurso aos seus rendimentos dado que há uma impossibilidade de o fazer relativamente aos rendimentos da progenitora os quais são manifestamente insuficientes para o sustento minimamente condigno, o que alega resultar da confrontação dos rendimentos daquela com as despesas que comprovadamente esta tem de suportar para continuar a subsistir.
Admite-se a existência de outras despesas atinentes à progenitora, designadamente com alimentação, vestuário, higiene, à luz de critérios de critérios de normalidade e razoabilidade social. Aceita-se, ainda, que parte de tais despesas sejam suportadas pelo requerente, atendendo ao valor dos rendimentos auferidos pela progenitora e ao valor das despesas consideradas provadas relativamente a esta.
Contudo, julgamos que nada justifica, à luz dos factos apurados, que à quantia mensal correspondente a €762,00 já julgada adequada como montante necessário para o sustento do devedor se acrescente o valor correspondente a €508 para fazer face a outras despesas correntes necessárias à subsistência da progenitora, de molde a perfazer o montante proposto pelo requerente como rendimento isento de cessão (concretamente o valor de € 1.270,00 correspondente a 2 RMMG), ainda que se justifique aumentar ligeiramente o valor do rendimento indisponível a que alude a subalínea i) da al. b) do n.º 3 do artigo 239.º, do CIRE, de forma a garantir de forma mais efetiva o estritamente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, concretamente ainda parte das despesas atinentes à satisfação das necessidades básicas essenciais da sua progenitora que se encontra totalmente dependente de si e da qual o apelante é o exclusivo cuidador sem deixar de acautelar os legítimos interesses dos credores do requerente. Com efeito, encontra-se devidamente provado nos autos que a progenitora do requerente aufere como rendimento próprio o montante mensal de € 513 de pensão de reforma. Ora, não sendo este rendimento afetado pela obrigação de entrega ao fiduciário, posto que não se trata de um rendimento do próprio devedor, mostra-se o mesmo capaz de assegurar parte substancial das despesas da progenitora do requerente.
Ora, residindo o traço característico da concessão do benefício da exoneração do passivo restante ao devedor insolvente na conciliação entre o ressarcimento dos credores e a garantia do mínimo necessário ao sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, revela-se imperativo o já anteriormente aludido empenho e sacrifício do devedor no sentido de que deve comprimir ao máximo as suas despesas, reduzindo-as ao estritamente necessário, em contrapartida do sacrifício imposto aos credores na satisfação dos seus créditos, por forma a se encontrar um equilíbrio entre dois interesses contrapostos.
Tudo ponderado, justifica-se aumentar o valor fixado para o sustento minimamente digno do devedor/insolvente e do seu agregado familiar, revelando-se adequado subir esse limite de 1 para 1,5 (uma vez e meia) o valor da remuneração mínima mensal garantida (RMMG), vulgarmente conhecida por salário mínimo nacional, ascendendo assim a € 952,50 o valor global a fixar nos termos e para os efeitos do citado artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, em substituição do valor fixado na sentença recorrida correspondente a um salário mínimo nacional, o que implica a alteração da decisão da 1.ª instância no sentido de prever aquela subida do valor retido, bem como a sua revogação na parte em que contemplou de forma autónoma o montante despendido pelo recorrente «com a sua mãe, nos termos do disposto no art.º 1874 CC, desde que documentalmente comprovado, e enquanto tal obrigação perdurar».
Resta apreciar se no rendimento a excluir da cessão ao fiduciário deve atender-se ao salário mínimo nacional, contado 14 vezes no ano, tal como sustenta o recorrente ao alegar que a retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12 do mesmo modo que a remuneração de todos os trabalhadores é calculada tendo em consideração 14 meses no ano, quando a decisão que fixou o rendimento indisponível do insolvente/devedor teve por base o salário mínimo nacional, contado 12 vezes por ano.
O recorrente parece não pôr em causa que o valor da remuneração mínima mensal garantida (RMMG), vulgarmente conhecida por salário mínimo nacional, com referência à presente data ou à do despacho recorrido (a qual ascende atualmente a €635,00) deve constituir o referencial a considerar no âmbito da definição, em termos quantitativos, do rendimento a excluir da cessão ao fiduciário, tido como o necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, nos termos e para os efeitos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE. Defende, porém, o entendimento de que ao devedor deve ser conferida a possibilidade de reter o valor correspondente ao rendimento indisponível 14 vezes ao ano, ou seja, a reter o montante fixado a dobrar aquando do pagamento dos subsídios de férias e de natal.
Liminarmente se dirá que relativamente a esta questão não assiste razão ao apelante.

Não desconhecendo que a questão de os subsídios de férias e de natal englobarem ou não o rendimento disponível a entregar ao fiduciário não é pacífica na jurisprudência dos tribunais superiores, orientando-se mesmo alguns acórdãos no sentido de que o mínimo necessário ao sustento do devedor não deverá ser inferior à remuneração mínima nacional anual dividida por doze (sendo aquela correspondente à retribuição mínima mensal garantida multiplicada por catorze) (11), entendemos que a análise do regime legal aplicável à delimitação dos rendimentos que integram o rendimento disponível do devedor e respetivas exclusões no âmbito do direito insolvencial (12) implicam que se deva atender ao salário mínimo nacional, correspondente ao valor da retribuição mínima mensal garantida, tal como introduzida pelo Decreto-Lei n.º 217/74, de 27-05, sucessivamente atualizada ( a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12-02) enquanto referência razoável e adequada à definição do mínimo necessário a assegurar o sustento condigno dos devedores nos 12 meses do ano.
Com efeito, a referência ao salário mínimo nacional baseia-se, como se viu, no entendimento que o Tribunal Constitucional tem firmado no sentido de consubstanciar uma remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades decorrentes da sobrevivência digna do trabalhador, tal como resulta do antes referenciado Acórdão n.º 177/2002 (13), de 23-04, ao salientar que «o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo». Nesse mesmo aresto, o Tribunal Constitucional considerou ainda que «a existência de outras referências possíveis não invalida que o Tribunal Constitucional possa considerar, como considera, que o valor do salário mínimo constitui referência adequada aos valores em jogo, nenhum obstáculo resultando da consideração de que representa a garantia de uma «retribuição mínima pelo trabalho desenvolvido» e que «tem subjacente um princípio de justiça, não sendo considerado como prestação de carácter assistencialista».
Como se afirmou no Acórdão n.º 318/99 e resulta da análise dos sucessivos diplomas relativos à criação e às diversas actualizações introduzidas no respectivo montante, ao fixar o regime do salário mínimo nacional, o legislador teve presente a intenção de garantir «a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador» (Acórdão n.º 318/99).
Assim resulta, claramente, do Decreto-Lei n.º 217/74, de 27 de Maio, que o introduziu no direito português».
A este propósito refere o Ac. do STJ de 2-02-2016 (14): «consideramos que, em regra, o SMN é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna.
Da conjugação dos nºs 1 e 3 do art. 738º do Código de Processo Civil, decorre que são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer regalia social, “ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”. A impenhorabilidade desses rendimentos “tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional”.
Não se vislumbra critério equitativo que afaste a ponderação da aplicação da norma processual civil, respeitante à impenhorabilidade ao rendimento disponível, que deve ser deixado ao insolvente requerente da exoneração, para lhe assegurar uma vivência com um mínimo de dignidade».
Em idêntico sentido salienta o Ac. TRC de 16-10-2018 (15) « o regime da penhora de vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação, que vigora no processo de execução, constitui uma indicação quanto ao que o legislador considera necessário para garantir o mínimo indispensável à vida do executado e do seu agregado familiar, podendo tal indicação ser transposta para a decisão a proferir em cumprimento da subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE», para depois concluir que «a variação, em cada mês, do montante dos rendimentos do devedor não implica a alteração do âmbito da exclusão ditada pela subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE; a modificação do âmbito dessa exclusão justifica-se quando haja alteração do que é necessário para o sustento minimamente digno do devedor. Assim, não tem amparo no CIRE a pretensão do devedor no sentido de, nos meses em que recebe subsídio de férias e subsídio de Natal, autonomizar estas prestações, em relação à pensão de reforma, para efeitos da aplicação da exclusão prevista na subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º».
Deste modo, importa atender ao que se refere de forma eloquente no Ac. TRP de 23-09-2019 (16), em moldes que julgamos de sufragar inteiramente: «o valor do salário mínimo nacional enquanto equivalente ao sustento minimamente digno é uma referência e é uma referência mensal: o salário mínimo nacional, esse valor de referência, em sede de CIRE, não se confunde com o crédito do trabalhador subordinado.
As fórmulas de cálculo do valor hora ou do rendimento anual, utilizáveis, desde logo, no direito laboral (para efeitos vários como por exemplo o cálculo das horas extraordinárias ou da indemnização por acidente de trabalho) não têm qualquer sentido operacional para o valor mensal que se considerou ser a referência operativa para a ponderação do mínimo de dignidade de sustento do devedor.
(…) o salário mínimo nacional, enquanto referência ou padrão mínimo para a estipulação – pelo tribunal e olhando às particularidades de cada caso concreto - do (mínimo) rendimento indisponível do devedor, ou seja, não sujeito a cessão ao fiduciário (artigo 239, n.º 2 e n.º 3, alínea b), ii) do CIRE) é o salário mínimo nacional mensal, legalmente fixado, e não o equivalente a um duodécimo da multiplicação por 14 daquele valor.
Sustentar-se o contrário, e sabendo-se que os subsídios de natal e férias são pagos apenas, legal e habitualmente, duas vezes em cada ano (desde logo atendendo à finalidade dos mesmos) equivaleria a reconhecer-se, algo contraditoriamente, que o devedor ficaria com um rendimento indisponível abaixo do mínimo (de sustento digno) durante a maioria dos meses.
(…) o salário mínimo nacional, sempre que utilizado como referência e como equivalente ao mínimo de subsistência é, tão-só mas relevantemente, um valor, um montante, uma quantidade.
E, por sua vez, os subsídios de férias e de natal (como os prémios de produtividade, as ajudas de custo quando ultrapassam o valor das despesas tidas pelo trabalhador, as comissões e outras atribuições patrimoniais) são “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”, incluídos ou não na cessão (239, n.º 3 e n.º 3, alínea b) i). Incluídos ou excluídos em razão da quantidade, não da qualidade, pois esta, em todos aqueles casos é a qualidade de “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”.
Que assim é - ou para que melhor se entenda que é assim -, basta substituir o conceito pela quantidade, pelo valor que em dado momento representa o salário mínimo».
Também o Ac. do TRL de 22-03-2018 (17) alude ao salário mínimo nacional como «o valor da retribuição mínima mensal garantida e não o valor desta multiplicado por 14 meses e dividido por doze.
(…)
Isto porque não são só os interesses dos devedores que têm de ser tomados em consideração, quer na questão genérica da impenhorabilidade quer na concreta da fixação do rendimento indisponível, mas também os dos credores cujo mínimo de subsistência também pode estar em causa (basta pensar na hipótese de o credor ser um trabalhador e de o seu crédito ser pelo trabalho prestado, retribuído, por exemplo, com o SMN, ou de o credor ser uma empresa com trabalhadores nestas condições).
Ressalve-se que não se está a discutir a questão da natureza do subsídio de Natal e de férias, para efeitos de retribuição ou do direito de trabalho, mas a considerar o SMN apenas para efeitos de penhorabilidade ou de rendimento indisponível».
Por conseguinte, é por demais evidente que o entendimento sufragado, ao atender ao salário mínimo nacional, correspondente ao valor da retribuição mínima mensal garantida, tal como introduzida pelo Decreto-Lei n.º 217/74, de 27-05, sucessivamente atualizada (a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12-02) enquanto referência razoável e adequada à definição do mínimo necessário a assegurar o sustento condigno do devedor nos 12 meses do ano, não representa qualquer restrição inadmissível do direito do requerente à remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna, não se constatando que a interpretação antes sustentada seja atentatória das disposições legais e constitucionais invocadas pelo recorrente, designadamente do disposto nos artigos 239.º, n.º 3, al. b), i), do CIRE e 59.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Como se viu, apenas a exclusão prevista na alínea a), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE configura uma verdadeira norma de exclusão de rendimentos, «no sentido de que afasta do rendimento disponível certa categoria de rendimentos do devedor» (18), ou seja, atendendo à natureza dos rendimentos ou correspondentes acréscimos patrimoniais.

No caso, não estando os subsídios de férias e de natal abrangidos pela exclusão prevista na alínea a), do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, são incontestavelmente rendimentos provenientes do trabalho que devem estar sujeitos à cessão, enquadrando-se pela sua natureza, no rendimento disponível previsto no artigo 239.º, n.º 3, do CIRE, devendo incluir-se na entrega ao fiduciário (19) independentemente do período a que se reportam.
Questão distinta é a de saber se, em concreto, tal rendimento excede ou não o rendimento indisponível fixado ao devedor/insolvente, atendendo às exclusões previstas na artigo 239.º, n.º 3, b), subalínea i), do CIRE, ou seja, se o montante de tais subsídios de férias e de natal a receber pelo devedor, englobados no rendimento total deste, ultrapassam ou não objetivamente um salário nacional e meio do valor da remuneração mínima mensal garantida (RMMG) já fixado como montante necessário ao sustento digno do insolvente nos 12 meses do ano, ascendendo assim a € 952,50 (€635+ €317,50) a reter doze vezes ao ano (20). Assim, tal como salienta no referido Ac. TRP de 24-03-2020, «os valores recebidos a título de subsídios de férias e de Natal devem ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassem o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar».
Neste domínio, importa considerar o que ficou consignado a propósito do rendimento do devedor, ora recorrente, o sentido de ascenderem ao vencimento mensal líquido de € 965 auferido no exercício das funções de Fiscal Municipal.
Deste modo, considerando a natureza periódica/mensal dos rendimentos auferidos pelo recorrente e o valor dos mesmos, facilmente se conclui que a exclusão mensal determinada não abrange a totalidade do rendimento mensal auferido pelo insolvente, ou seja, o devedor/insolvente aufere, no caso em apreciação, rendimentos mensais superiores ao seu rendimento indisponível.
Daqui resulta a existência de rendimento mensal disponível, verificando-se, por isso, todos os pressupostos da cessão dos rendimentos do trabalho a receber pelo devedor a título de subsídios de natal e de férias.
Nestes termos, improcedem, nesta parte, as conclusões do apelante.
Pelo exposto, cumpre julgar parcialmente procedente a apelação.

Síntese conclusiva:

I - Relativamente à determinação do valor considerado razoável para garantir o sustento minimamente digno do devedor o legislador apenas estabeleceu no artigo 239.º, n.º 3, al. b), i) do CIRE que tal valor não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional, ou seja, estabeleceu um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objetivo.
II - Já quanto ao limite mínimo da exclusão, o legislador prevê apenas um conceito indeterminado ou aberto, traduzido naquilo que é razoavelmente necessário ao sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, critério este a densificar e a ponderar casuisticamente em função do caso concreto, conforme as particularidades da situação do devedor.
III - A análise do regime legal aplicável à delimitação dos rendimentos que integram o rendimento disponível do devedor e respetivas exclusões no âmbito do direito da insolvência implicam que se deva atender ao salário mínimo nacional, correspondente ao valor da retribuição mínima mensal garantida, tal como introduzida pelo Decreto-Lei n.º 217/74, de 27-05, sucessivamente atualizada (a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12-02) enquanto referência razoável e adequada à definição do mínimo necessário a assegurar o sustento condigno dos devedores nos 12 meses do ano.
IV - Os subsídios de férias e de natal são incontestavelmente rendimentos provenientes do trabalho que devem estar sujeitos à cessão, enquadrando-se pela sua natureza, no rendimento disponível previsto no artigo 239.º, n.º 3, do CIRE, devendo incluir-se na entrega ao fiduciário independentemente do período a que se reportam.
V - Questão distinta é a de saber se, em concreto, tal rendimento excede ou não o rendimento indisponível fixado ao devedor/insolvente, atendendo às exclusões previstas no artigo 239.º, n.º 3, b), subalínea i), do CIRE, ou seja, se o montante de tais subsídios de férias e de natal a receber pelo devedor, englobados no rendimento total deste, ultrapassam ou não objetivamente o valor fixado como montante necessário ao sustento digno do insolvente nos 12 meses do ano.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, alteram a decisão recorrida, fixando no montante correspondente a 1,5 (uma vez e meia) o valor da remuneração mínima mensal garantida (RMMG), vulgarmente conhecida por salário mínimo nacional, tal como introduzida pelo Decreto-Lei n.º 217/74, de 27-05, sucessivamente atualizada e a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12-02, a que corresponde atualmente a € 952,50 (635€ + €317,50), a reter doze vezes ao ano, o montante a excluir do rendimento disponível do insolvente, devendo este entregar ao fiduciário, no período da cessão, a parte dos rendimentos por si auferidos que exceder tal valor, revogando, no mais, a referida decisão.
Custas pela massa insolvente (artigos 303.º e 304.º do CIRE).
Guimarães, 17 de setembro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)


1. Cfr. Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 600.
2. Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão Direito da Insolvência, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 345
3. Quanto à natureza da cessão do rendimento disponível, também Luís A. Carvalho Fernandes/ João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Lisboa, QUID JURIS, 2015, p. 860 entendem existir uma cessão cuja fonte só pode ser a lei, ainda que na dependência de despacho judicial
4. Cf. Luís A. Carvalho Fernandes/ João Labareda, ob. cit., pgs. 858-859
5. Cf. Alexandre de Soveral Martins, Ob. cit. p. 601.
6. Neste sentido, cfr., por todos, os Acs. TRG de 15-05-2012 (relatora: Ana Cristina Duarte), p. 3264/11.0TBGMR-D.G1; TRL de 4-12-2011 (relatora: Ana Resende) p. 1359/09TBAMD.L1-7, acessíveis em www.dgsi.pt.
7. Cfr. Ac. TRG de 15-05-2014 (relatora: Purificação Carvalho) p. 3456/13.8TBGMR-C.G1, disponível em www.dgsi.pt.
8. Cfr. o Ac. TRG de 3-05-2011 (relatora: Rosa Tching) p. 4073/10.0TBGMR-A.G1, disponível em www.dgsi.pt.
9. Relatora: Maria Cristina Cerdeira, p. 218/10.8TBMNC.G1, disponível em www.dgsi.pt.
10. Nos termos do artigo 2.º do Dec. Lei n.º 167/2019, de 21-11, diploma que atualiza o valor da retribuição mínima mensal garantida a partir de 1 de janeiro de 2020, «O valor da retribuição mínima mensal garantida a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, é de (euro) 635».
11. Neste sentido, cf. os Acs. TRP de 22-05-209 (relatora: Maria Cecília Agante) p. 1756/16.4T8STS-D.P1; TRL de 27-02-2018 (relatora: Higina Castelo), p. 1809/17.1T8BRR.L1-7, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
12. Patente na necessidade de se encontrar um equilíbrio entre os interesses tendencialmente contrapostos dos credores dos insolventes e destes últimos, ainda que delimitados pela necessidade de garantir aos requerentes da exoneração a manutenção de um nível de subsistência digno.
13. Relatora: Maria dos Prazeres Beleza; p. n.º 546/01, publicado no DR, n.º 150/2002, Série I-A de 2002-07-02.
14. Relator: Fonseca Ramos, revista n.º 3562/14.1T8GMR.G1.S1, 6.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
15. Relator: Emídio Santos, p. 1282/18.7T8LRA-C.C1, disponível em www.dgsi.pt.
16. Relator: José Eusébio Almeida; p. 324/19.3T8AMT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
17. Relator: Pedro Martins; p. 24815/15.6T8LSB-2disponível em www.dgsi.pt.
18. Cfr. Ac. TRC de 28-03-2017 (relator: Emidio Francisco Santos), p. 178/10.5TBNZR.C1, disponível em www.dgsi.pt.
19. No sentido do entendimento que sufragamos, cfr., entre outros, os Acs. TRP de 24-03-2020 (relatora: Lina Castro Baptista) p. 971/17.8T8STS.P1; TRG de 23-05-2019 (relator: António Sobrinho), p. 4211/18.4T8VNF.G1; TRG de 17-12-2018 (relator: Pedro Damião e Cunha), p. 2984/18.3T8GMR.G1; TRG de 17-05-2018 (relator: António Barroca Penha), p. 4074/17.7T8GMR.G1; TRP de 7-05-2018 (relator: Augusto de Carvalho), p. 3728/13.1TBGDM.P1; TRG de 12-07-2016 (relatora: Francisca Micaela Vieira), p. 4591/15.3T8VNF.G1; TRG de 26-11-2015 (relatora: Amália Santos), p. 3550/14.8T8GMR.G1; TRG de 26-03-2015 (relatora: Helena Melo), p. 952/14.3TBGMR.G1; TRC de 13-05-2014 (Relator: Luís Filipe Cravo), p. 1734/10.7TBFIG-G.C1; TRG de 14-02-2013 (Relator: José Rainho), p. 3267/12.8TBGMR-C.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
20. Pronunciando-se no sentido de que os quantitativos relativos aos subsídios de natal e de férias, tal como outras prestações retributivas auferidas pelo devedor, integram ou não o rendimento indisponível consoante se contenham no ou excedam o valor fixado como indisponível, ou seja, apenas farão parte do rendimento indisponível se o valor dos subsídios, englobados no rendimento global deste, não ultrapassem objetivamente o montante fixado como o montante necessário ao sustento digno da insolvente, cfr. os referidos Acs. TRG de 23-05-2019 e TRP de 23-09-2019.