Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
729/19.0T8CHV.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
UNIÃO DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- No âmbito do instituto do enriquecimento sem causa, a deslocação patrimonial só releva na ausência de relação obrigacional, negocial ou legal e, designadamente, tratando-se de prestação sem qualquer finalidade típica tutelada.
II - No caso em apreço, não carecia a autora, para reaver a quantia que saindo do seu património foi enriquecer o património do seu companheiro, de alegar e provar que vivia em união de facto com o enriquecido, e que tal deslocação patrimonial teve em vista a respetiva vida em comum.
III – Efetivamente, o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa não é privativo dos ex-membros da união de facto, sendo que o seu campo de aplicação é bastante amplo, podendo a ele recorrer qualquer pessoa, desde que alegue e prove os requisitos do referido instituto.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

A. C. Instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra F. R., J. L. e A. R., na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J. R., pedindo que sejam condenados a reconhecer a sua união de facto com o falecido J. R., desde Fevereiro de 2011 até à sua morte, e a restituírem-lhe o montante de €50.000,00.

Para tanto, alegou, em síntese, que, a partir de Fevereiro de 2011 e até 2 de Fevereiro de 2018, data da morte de J. R., partilhou cama, mesa e habitação com o falecido, como se de marido e mulher se tratasse, sendo a casa de morada de família a fracção sita na Rua ..., em Chaves. Em Outubro de 2013, o falecido J. R. utilizou a quantia de €50.000,00, que havia sido doada à autora por seus pais, para liquidação do empréstimo contraído na aquisição daquela fracção, com o propósito, querido por ambos, de continuarem a manter a vida em comum e tornarem o imóvel propriedade de ambos. Propósito que deixou de ser possível em razão do óbito de J. R.. O património do falecido J. R. enriqueceu na exacta medida do empobrecimento do património da autora, traduzido naquela deslocação patrimonial de €50.000, quantia que agora pretende lhe seja restituída com base no instituto do enriquecimento sem causa.
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Os réus contestaram, impugnando a factualidade vertida na P.I., alegando que o falecido apenas iniciou o relacionamento com a autora em 2016, em França, não constituindo o apartamento de Chaves a casa de morada de família, sendo que o dinheiro usado na liquidação do empréstimo não pertencia à autora.
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Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador, em que se decidiu pela validade da instância e do processado. Identificou-se o objecto do litígio e elencaram-se os temas da prova.
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Realizou-se audiência de discussão e julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:
Pelo exposto, julgo a acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência, absolvem-se os Réus F. R., J. L. e A. R., na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J. R. dos pedidos formulados pela Autora A. C..
Custas a cargo da Autora (art. 527º, nº 1 e 2 do CPC..
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Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

«1º Salvo o devido respeito, nos pontos da matéria de facto dada como provada (ponto 4 dos factos dados como provados) e como não provada ( al. a) dos factos dados como não provados) na sentença recorrida e que vêm concretamente referidos e identificados no ponto a) no item III destas motivações de recurso e que aqui se dão integralmente por reproduzidos, o Tribunal “ a quo” não apreciou correctamente toda a prova produzida em audiência, na apreciação da mesma violou as regras da experiência e da lógica de um homem médio suposto pela ordem jurídica, bem como, uma análise crítica da prova produzida e que vem concretamente identificada no ponto a) do item III destas motivações de recurso, que aqui se dá integralmente por reproduzida, assim como o demais aí alegado e que aqui se da também por reproduzido, tudo conjugado com as regras da experiência comum e critérios da lógica impõe decisão diversa, isto é, impõe dar como não provado o que foi dado como provado e vem identificado e dar como provado o que foi dado como não provado e vem referido.
2º Salvo o devido respeito, nos pontos da matéria de facto dada como provada (pontos 17 e 20 dos factos dados como provados) na sentença recorrida e que vêm concretamente referidos e identificados no ponto b) no item III destas motivações de recurso e que aqui se dão integralmente por reproduzidos, o Tribunal “ a quo” não apreciou correctamente toda a prova produzida em audiência, na apreciação da mesma violou as regras da experiência e da lógica de um homem médio suposto pela ordem jurídica, bem como, uma análise crítica da prova produzida e que vem concretamente identificada no ponto b) do item III destas motivações de recurso, que aqui se dá integralmente por reproduzida, assim como o demais ai alegado e que aqui se da também por reproduzido, tudo conjugado com as regras da experiência comum e critérios da lógica impõe decisão diversa, isto é, impõe dar como não provado o que foi dado como provado e vem identificado e dar como provado que a A/apelante foi viver para França em Setembro de 2014.
3º Salvo o devido respeito, nos pontos da matéria de facto dada como não provada (alíneas b) e c) dos factos dados como não provados) na sentença recorrida e que vêm concretamente referidos e identificados no ponto c) do item III destas motivações de recurso e que aqui se dão integralmente por reproduzidos, o Tribunal “ a quo” não apreciou correctamente toda a prova produzida em audiência, na apreciação da mesma violou as regras da experiência e da lógica de um homem médio suposto pela ordem jurídica, bem como, uma análise crítica da prova produzida e que vem concretamente identificada no ponto c) do item III destas motivações de recurso, que aqui se dá integralmente por reproduzida, assim como o demais ai alegado e que aqui também se dá por reproduzido, tudo conjugado com as regras da experiência comum e critérios da lógica impõe decisão diversa, isto é, impõe dar como provado o que foi dado como não provado e vem identificado.
4º Salvo o devido respeito, nos pontos da matéria de facto dada como não provada (alíneas d) e e) dos factos dados como não provados) na sentença recorrida e que vêm concretamente referidos e identificados no ponto d) do item III destas motivações de recurso e que aqui se dão integralmente por reproduzidos, o Tribunal “ a quo” não apreciou correctamente toda a prova produzida em audiência, na apreciação da mesma violou as regras da experiência e da lógica de um homem médio suposto pela ordem jurídica, bem como, uma análise crítica da prova produzida e que vem concretamente identificada no ponto d) do item III destas motivações de recurso, que aqui se dá integralmente por reproduzida, assim como o demais ai alegado e que aqui também se dá por reproduzido, tudo conjugado com as regras da experiência comum e critérios da lógica impõe decisão diversa, isto é, impõe dar como provado o que foi dado como não provado e vem identificado.
5º Salvo o devido respeito, nos pontos da matéria de facto dada como não provada (alínea f) dos factos dados como não provados) na sentença recorrida e que vêm concretamente referidos e identificados no ponto e) do item III destas motivações de recurso e que aqui se dá integralmente por reproduzida, o Tribunal “ a quo” não apreciou correctamente toda a prova produzida em audiência, na apreciação da mesma violou as regras da experiência e da lógica de um homem médio suposto pela ordem jurídica, bem como, uma análise crítica da prova produzida e que vem concretamente identificada no ponto e) do item III destas motivações de recurso, que aqui se dá integralmente por reproduzida, assim como o demais ai alegado e que aqui também se dá por reproduzido, tudo conjugado com as regras da experiência comum e critérios da lógica impõe decisão diversa, isto é, impõe dar como provado o que foi dado como não provado e vem identificado.
6º Salvo o devido respeito, nos pontos da matéria de facto dada como não provada (alíneas g), h), i), j), k) dos factos dados como não provados) na sentença recorrida e que vêm concretamente referidos e identificados no ponto f) do item III destas motivações de recurso e que aqui se dão integralmente por reproduzidos, o Tribunal “ a quo” não apreciou correctamente toda a prova produzida em audiência, na apreciação da mesma violou as regras da experiência e da lógica de um homem médio suposto pela ordem jurídica, bem como, uma análise crítica da prova produzida e que vem concretamente identificada no ponto f) do item III destas motivações de recurso, que aqui se dá integralmente por reproduzida, assim como o demais ai alegado e que aqui também se dá por reproduzido, tudo conjugado com as regras da experiência comum e critérios da lógica impõe decisão diversa, isto é, impõe dar como provado o que foi dado como não provado e vem identificado.
7º A União de facto pressupõe a comunhão de tecto, cama e mesa, um projecto de vida comum, como se fossem casadas, apenas com a diferença de que não o são, pois não estão ligadas pelo vínculo formal do casamento.
8º A circunstância de viverem como se fossem casadas cria uma aparência externa de casamento, em que terceiros podem confiar, o que explica alguns efeitos atribuídos à união de facto. Relações sexuais fortuitas, passageiras, acidentais, não configuram, pois, uma união de facto.
9º Deste modo, o modelo legal da união de facto é o casamento, tem que se admitir que, tal como neste pode haver períodos de separação (ou de falta de coabitação) sem que tal implique a ruptura do casamento, assim deve acontecer na união de facto.
10º A separação de facto, segundo previsão expressa na lei, para poder conduzir à ruptura do casamento, implica não só a falta de comunhão de vida entre os cônjuges, mas também o propósito, pelo menos de um deles, de não a restabelecer (art. 1782 do CC).
11º Os unidos de facto, ao contrário dos casados, não estão juridicamente vinculados ao cumprimento dos deveres conjugais previstos na lei.
12º Assim, continua a existir uma situação de união de facto mesmo que um dos seus membros não seja fiel e mantenha contactos sexuais com outra pessoa.
13º Quer o casamento, quer a união de facto, tem como característica comum a existência de um projecto de vida comum, sendo esse projecto de vida em comum caracterizado por ambos os membros terem em comum a existência de uma intencionalidade, no casamento a intencionalidade de casar, tendo em conta tudo aquilo que o casamento comporta, e na união de facto, a intencionalidade de viver em comunhão plena de vida com outra pessoa, existe, assim, um acordo de vontades de ambos os membros do casal.
14º Assim, para que se possa dizer que cessou a união de facto, não basta constatar a existência de uma separação de facto. Tem que se provar também que existe, da parte de pelo menos um dos unidos de facto, o propósito de não a restabelecer.
15º O facto de os unidos de facto deixarem de dormir na mesma casa, comerem à mesma mesa e viver debaixo do mesmo tecto, tal não basta para se poder concluir pela cessação da união de facto, devendo fazer-se ainda a prova do elemento subjectivo da vontade de, pelo menos um deles, romper com a união de facto.
16º Para que possa falar-se em cessação da união de facto, não basta deixar de haver comunhão de habitação, sendo sempre necessário que um dos membros da união revele vontade de romper com a união.
17º Deste modo, quando um dos membros da união de facto, por razões de ordem profissional tem de passar a residir em localidade distante da residência comum do casal, sem que haja o propósito de qualquer dos membros de por fim à união de facto, esta não termina.
18º Em situações idênticas á que vêm referidas, a falta de coabitação não determina a cessação da união de facto, podendo, quando muito, suspender o prazo que é condição para a união de facto, voltando este a correr logo que as pessoas passem, novamente, a coabitar.
19º Tendo a união de facto como modelo, a analogia com a vida no âmbito do casamento, transporta, tanto quanto entendemos a lei, para esta outra instituição o modelo da relação jurídica pessoal que antes era própria só do casamento.
20º Sabe-se que o distanciamento físico entre os cônjuges não é impeditivo do cumprimento dos deveres conjugais. E sendo assim, não se afigura que haja motivo para considerar que seja impeditivo da união de facto e que esta seja interrompida em casos de domicílio não coincidente, quando este é determinado por razões ponderosas.
21º Dominique Fenouillet, Droit de la famille, Dalloz, 4e édition, 2019, págs. 272 e 274, também diz que “la notion de vie commune intègre, semble-t-il, un élément subjectif, consistant dans la conscience et volonté de vivre avec l’autre” e que “il semble possible, comme dans le mariage, de partager un ‘vie commune’ nonobstant des ‘résidences séparés’ pour raisons professionnelles” [a noção de vida comum integra, parece, um elemento subjectivo, consistente na consciência e vontade de viver com o outro; parece possível, como no casamento, partilhar uma vida em comum não obstante as residências separadas por razões profissionais].
22º Ora, relativamente à A/apelante e o falecido J. R., encontram-se preenchidos todos os pressupostos previstos na lei para a existência da união de facto, porquanto estes viveram durante mais de dois anos em comunhão de tecto, mesa e cama e não se verificam nenhuma das condições previstas no n.º 2 da LUF.
23º A A/apelante e o falecido J. R. viveram em união de facto, isto é, em condições análogas ás dos cônjuges, desde Fevereiro de 2011 até ao decesso deste último, em Fevereiro de 2018, tendo esta união como causa de extinção a morte do referido J. R..
24º Acresce que, por razões profissionais, melhorar a vida do ponto de vista económico e financeiro, o falecido J. R. teve de emigrar para França em início de 2014.
25º A A/apelante, por razões profissionais e para se juntar ao falecido J. R., também emigrou para França, em Setembro de 2014, tendo o falecido J. R. e a A/apelante, a partir da referida data, tal como o vinham fazendo, continuado a viver como marido e mulher se tratassem, até á morte do dito J. R., ocorrida em Fevereiro de 2018.
26º Deste modo, durante o período temporal em que por razões ponderosas estiveram geograficamente afastados, nunca houve por parte de qualquer um dos membros do casal, quer da A/apelante, quer do falecido J. R., qualquer propósito de terminar a vida em comum que vinham mantendo e que continuaram a manter, até á morte do referido J. R..
27º Acresce que, também o relacionamento sexual entre o falecido J. R. e a A. D., também não demonstra o propósito do aludido J. R. de por termo á união de facto que vinha mantendo e que continuou a manter com a A/apelante. O mesmo se diga relativamente á A/apelante.
28º Com efeito, o propósito do falecido J. R., por termo á vida em comum com a A/apelante, além de não ter sido expressamente alegado pelos RR, também ressalta não provado, designadamente, pela continuação de vida em comum com a A, desde 2014 até 2018, data da sua morte, tal como o vinha fazendo anteriormente, tendo, inclusive, o casal composto pela A e pelo falecido J. R. comprado em França um apartamento onde residiam.
29º O dito relacionamento sexual entre o falecido J. R. e a dita A. D., não é mais do que isso mesmo e, essa circunstância, nos termos referidos, não determina a cessação da união de facto que existia e continuou a existir, entre a A e o falecido J. R., porquanto nenhum deles manifestou o propósito e a vontade de por termo á vida em comum que vinham tendo e continuaram a ter, como ressalta demonstrado pelo comportamento de ambos posteriormente.
30º Ora, destes factos não consta o referido elemento subjectivo – o propósito de um deles de não restabelecer a vida em comum.
31º Deste modo, não chegou, pois, a existir uma interrupção da união de facto entre a A/apelante e o falecido J. R. e da situação jurídica que já tinha sido adquirida.
32º Acresce que, pelas razões e fundamentos que vêm aduzidos, fica demonstrado que a A/apelante era proprietária exclusiva do montante de € 50000,00, que depositou na identificada conta bancaria.
33º Esse deposito e deslocação patrimonial foi realizado no pressuposto, entretanto desparecido pela morte do referido J. R., da continuação e subsistência, querido pela A/apelante e pelo falecido J. R., da vida em condições análogas ás dos cônjuges, como propósito de manter a continuidade da vida em comum e o projecto comum de vida.
34º Deste modo, encontram-se verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa, ou seja, o enriquecimento do património do falecido J. R., á custa da A/apelante, inexistindo causa justificativa.
35º Salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo” violou, interpretou ou aplicou incorrectamente, além de outros, o disposto nos artigos 1º, 2º, 8º da Lei nº 7/2001 de 11.05, 342, 473, 1782 do Código Civil e art.º 607 do CPC.

Termos em que nestes e nos mais de direito que V.exas doutamente suprirão, concedendo provimento ao presente recurso, julgando-o procedente e revogando a sentença recorrida.»
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Os réus apresentaram contra-alegações.
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O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).

As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que assim se sintetizam:

a) Reapreciação da prova no tocante aos factos impugnados.
b) Em face da proposta alteração decidir se se verificam os pressupostos do enriquecimento sem causa e consequente obrigação dos réus restituírem à autora a quantia de €50.000.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A) Factos julgados provados na sentença recorrida:

1. A Autora nasceu a - de Setembro de 1987, sendo solteira e filha de J. G. e de M. P..
2. J. R. nasceu a - de Fevereiro de 1981, é filho de L. C. e de F. R., tendo falecido, em França, no estado de solteiro e sem descendentes, em 02 de Fevereiro de 2018, em 59, rue …, onde teve a sua última residência.
3. Sucederam, como herdeiros do falecido J. R., a sua mãe, F. R., e os seus irmãos J. L. e A. R..
4. Em data não concretamente apurada, Autora e J. R. conheceram-se e mantiveram uma relação de namoro.
5. Por contrato de compra e venda, com mútuo e hipoteca, outorgado na Conservatória do Registo Predial ..., em 18 de Abril de 2008, o falecido J. R. e L. M., adquiriram em compropriedade, em partes iguais, a fracção autónoma correspondente à letra “O”, T-2 duplex, correspondente ao segundo e terceiro andares centro, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta da..., lote 19, freguesia de ..., concelho de Chaves, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Chaves, sob o artigo ... e descrita na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia de ..., sob o n.º .../20070926-O.
6. A referida fracção autónoma foi adquirida por J. R. e L. M., através de um mútuo concedido pela Caixa .., no valor de 100.000,00 (cem mil euros), tendo os referidos J. R. e L. M. constituído hipoteca sobre a identificada fracção autónoma, a favor da Caixa .., para garantia do capital mutuado, dos juros até à taxa anual de 8,246%, acrescida de uma sobretaxa de 4% ao ano, em caso de mora e a título de cláusula penal, as despesas extrajudiciais emergentes deste contrato fixadas, para o efeito de registo em 4000,00€ perfazendo o montante máximo do capital e acessórios de 140.730,00€.
7. Por escritura pública de compra e venda, outorgada em 13 de Janeiro de 2011, no Cartório Notarial da Notária, A. R., sito na Avenida ..., Edifício ..., o falecido J. R. comprou a L. M., pelo preço de 34.140,00€, metade indivisa, correspondente à quota parte que L. M. era dona e legítima proprietária, na fracção autónoma correspondente à letra “O”, identificado no ponto 5.
8. Em 13.01.2011, a fracção autónoma referida continuava onerada com a hipoteca a favor da Caixa .., S.A. registada na Conservatória do Registo Predial, pela apresentação sete, de dezoito de Abril de dois mil e oito, encontrando-se ainda por pagar parte do mútuo contraído pelo falecido J. R. junto da Caixa ...
9. A Autora, em 25 de Janeiro de 2013, depositou, na conta bancária n.º ............57, da Caixa ..., o montante de 30.000,00€.
10. Em 11 de Setembro de 2013, a Autora depositou, na mesma conta bancária n.º ............57, da Caixa ..., o montante de 20.000,00€.
11. A conta bancária n.º ............57, da Caixa ..., é titulada pelo falecido J. R. desde 25.01.2013 e também pela Autora desde 03.08.2016.
12. Em meados de Outubro de 2013, o falecido J. R. procedeu ao pagamento e liquidação integral do remanescente em dívida, referente ao mútuo que havia contraído junto da Caixa .. para aquisição da fracção autónoma descrita no ponto 5, transferindo o montante de 50.0000,00€ da conta nº ............57, da Caixa ..., para a conta bancária n.º ...............54, da Caixa ...
13. O imóvel descrito no ponto 5 não foi tornado propriedade comum de falecido e Autora.
14. J. R. esteve a trabalhar nos Estados Unidos da América e na Suíça.
15. No ano de 2013, constituiu, em Portugal, uma sociedade por quotas com o Sr. C. N., denominada “Electro Auto ... Lda.”, com sede na Rua ... n.º .., freguesia da ..., Concelho de Chaves.
16. No início do ano de 2014, J. R. foi viver para França, trabalhando na área automóvel como electricista e auferindo um salário mensal de 3.161,95€.
17. Desde Maio de 2014, J. R. manteve, em França, um relacionamento com A. D., tendo vivido juntos na casa de A. D., sita na .. Rue …, relação que terminou em Maio de 2015.
18. Pela Ap. 2/20140612, foi registada a alteração da sociedade referida em 15 para Sociedade Unipessoal por Quotas, com a firma Electro Auto C. N. Unipessoal, Lda., sendo seu único sócio C. N. e tendo o falecido J. R. renunciado à gerência.
19. No Verão de 2015, em Montalegre, houve um confronto entre A. D., o falecido J. R. e a Autora.
20. A Autora foi viver para França no ano de 2015, tendo trabalhado até 31.07.2014, como terapeuta da fala, para a X – Saúde e Serviços, Lda, prestando serviços na Unidade de Cuidados Continuados Integrados.
21. Autora e o falecido J. R. adquiriram, no ano de 2016, com recurso a crédito bancário, um apartamento, em França.
22. J. R. era proprietário de um apartamento, uma garagem, um carro da marca BMW, que se encontravam já pagos na totalidade, dispunha de valores monetários em contas bancárias e tinha anteriormente, adquirido uma mota e outros veículos automóveis.
23. O falecido J. R., pouco dias antes da sua morte, falou com o Sr. C. N. para lhe arranjar trabalho em Portugal, por pretender regressar ao país.
24. No dia do funeral de J. R., em 14.02.2018, a Autora não falou nem se apresentou como sua namorada ou companheira aos familiares do falecido.
25. Nesse dia, a Autora procedeu à transferência da totalidade do dinheiro existente na conta bancária com o número .............57, da Caixa ..., para uma outra só sua, no valor de 27.136,02€.
26. O falecido J. R. não mantinha contactos regulares com a sua família, estando de relações cortadas com o seu irmão e a sua mãe».

B Factos julgados não provados

«a) Autora e J. R. conheceram-se e namoraram durante o ano de 2010.
b) A partir de Fevereiro de 2011 até 2 de Fevereiro de 2018, data do decesso de J. R., Autora e o referido J. R., de forma ininterrupta, contínua e permanente, viveram como se de marido e mulher se tratassem, partilhando a mesma mesa, cama e habitação, em exclusividade de ambos, respeitando-se, comunicando, conversando, assistindo-se mutuamente na doença e na saúde, cooperando e auxiliando-se mutuamente, mantendo um relacionamento íntimo e sexual e confeccionando e realizando em conjunto refeições, na mesma mesa e sob o mesmo tecto.
c) No hiato temporal referido em b), Autora e J. R. provinham, em conjunto, pelo sustento de ambos, provendo e pagando em conjunto todas as despesas necessárias à existência e sobrevivência de ambos, nomeadamente, alimentos, vestuário, despesas de saúde, médicas, água, luz, telefone e todas as demais necessárias à sua existência comum.
d) Autora e J. R. viveram como se de marido e mulher se tratassem, no apartamento, sito na Rua ..., n.º .., Quinta da..., … Chaves, identificado no nº 5 dos factos provados.
e) No apartamento referido em d), Autora e o falecido J. R., como se de marido e mulher se tratassem, comiam na mesma mesa, dormindo na mesma cama, recebendo amigos e familiares, correspondência, guardando os respectivos pertences e bens e pagando em conjunto todas as despesas referentes ao mesmo.
f) A Autora e o falecido pretendiam manter e continuar a viver como se de marido e mulher se tratassem na fracção referida em d).
g) Os depósitos efectuados pela A. na conta bancária nº ............57, da Caixa ..., das quantias de 30.000,00€ e 20.000,00€, foram realizados para pagamento e liquidação do remanescente em dívida do valor do mútuo contraído pelo falecido J. R..
h) O falecido J. R. procedeu ao pagamento da dívida remanescente, referente ao mútuo por si contraído, junto da Caixa .., com o propósito de ambos, Autora e falecido, continuarem e manterem a vida de casal e por forma a que o dito imóvel se tornasse propriedade comum da Autora e do falecido J. R..
i) O pagamento e liquidação do montante de 50.000,00€, correspondente ao remanescente em dívida do valor do mútuo, foi realizado com dinheiro que havia sido doado e entregue à Autora, pelos seus pais, sendo sua pertença exclusiva.
j) O falecido J. R., por não dispor de meios económico-financeiros suficientes para liquidar o referido mútuo e considerando que ele e a Autora viviam em condições análogas às dos cônjuges, pretendendo manter essa vida, pediu à Autora e esta autorizou, em face do propósito de ambos de continuação e subsistência dessa vida de casal e com o propósito de tornar o dito imóvel comum à Autora e ao falecido J. R., a utilização desse dinheiro, pertença exclusiva da Autora, para proceder ao pagamento e liquidação integral do remanescente em dívida do valor do mútuo por ele contraído.
k) A autorização da Autora, para o falecido J. R. utilizar o montante de 50.000,00€ para pagamento integral do remanescente em dívida do referido mútuo, foi concedida apenas no pressuposto da continuação e subsistência, querida por ambos, Autora e J. R., dessa vida de casal e de que o dito imóvel, posteriormente, se tornasse propriedade comum de ambos.
l) O falecido J. R. trabalhou desde os seus 16 anos, estudando durante o dia e exercendo funções de barmen à noite.
m) Frequentou o serviço militar, foi fuzileiro, seguindo, em 2002 e 2003, para os Estados Unidos da América.
n) O falecido J. R. esteve nos anos de 2012 e 2013 na Suíça, onde auferia um salário mensal de 4.000,00€.
o) Em 2013, J. R. manteve um relacionamento com sua vizinha J. C., onde era visto por quem aí residia, chegando o seu irmão J. L. a cruzar-se, diariamente, com eles.
p) Há algum tempo que J. R. vinha manifestando um mau estar na sua relação com a Autora, tendo confessado isso mesmo à sua irmã A. R..
q) No fim de semana anterior à sua morte, no dia em que o rio Sena transbordou, J. R., em conversa via Messenger, com a amiga A. D., disse-lhe que se encontrava solteiro e que havia acabado a relação com a Autora.
r) O falecido J. R., dias antes de se suicidar, saiu de casa e pernoitou, durante quatro dias, na residência da madrinha de L. M..
s) O falecido J. R. escreveu uma mensagem, a Sandra Monteiro, onde menciona que, se lhe acontecesse alguma coisa, queria que tivessem conhecimento de que o pai da Autora lhe devia dinheiro, para lhe poderem exigir o pagamento.
t) O falecido J. R. verbalizou a A. T. que iria regressar a Portugal.
u) A irmã A. R. era muito próxima do irmão, mantendo contactos regulares com ele e confidenciando acerca da sua vida privada.»

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A apelante impugna a decisão da matéria de facto, relativamente aos factos provado sob os nºs 4, 17 e 20, e aos não provados das alíneas A) a K), da sentença.
De acordo com os meios de prova, que indica de forma precisa, pretende, no tocante ao nº 4 dos factos provados, a sua alteração, passando a integrar como provada a matéria da al. a) dos não provados. Relativamente à matéria dos nºs 17 e 20 dos factos provados, que o primeiro seja julgado não provado e se altere a redacção do segundo no sentido de que a autora/apelante foi viver para França em Setembro de 2014. Mais pugna no sentido de se julgar provada toda a matéria das alíneas A) a K) do elenco dos factos não provados da sentença.
Apreciando.
Ouvimos as declarações de parte e todos os depoimentos prestados em audiência, bem como analisamos todos os documentos juntos aos autos.

Sob o nº 4 do elenco dos factos provados da sentença, julgou-se provado que:

– Em data não concretamente apurada, Autora e J. R. conheceram-se e mantiveram uma relação de namoro.

Pugna a apelante para que se julgue provado a matéria da al. a), ou seja:
«a) Autora e J. R. conheceram-se e namoraram durante o ano de 2010.»

Para tanto, convoca os seguintes meios de prova:
- As declarações de parte da autora/apelante, e os depoimentos das testemunhas M. L., M. A., J. G. e J. M..
Ouvidos os depoimentos destas testemunhas, convencemo-nos que a autora e o J. R. iniciaram um relacionamento amoroso em finais de 2010. Em Janeiro de 2011 a autora apresentou-o à família como namorado e começaram a viver juntos em Fevereiro de 2011.
Note-se que estes depoimentos não nos suscitaram dúvidas, as testemunhas demonstraram ter conhecimento de causa, depuseram de forma natural e espontânea e com pormenores incompatíveis com um depoimento “fabricado ou ensaiado”.

Consequentemente, em face da extensa prova produzida sobre esta questão e cuja credibilidade não pode ser objectivamente rebatida, julgamos provado que:
– A autora e o falecido J. R. conheceram-se em 2010 e iniciaram uma relação de namoro no final desse ano.
Sob os nºs 17 e 20 julgou-se provado:
– (17) Desde Maio de 2014, J. R. manteve, em França, um relacionamento com A. D., tendo vivido juntos na casa de A. D., sita na .. Rue … Paris, relação que terminou em Maio de 2015.
– (20). A Autora foi viver para França no ano de 2015, tendo trabalhado até 31.07.2014, como terapeuta da fala, para a X – Saúde e Serviços, Lda, prestando serviços na Unidade de Cuidados Continuados Integrados.
Pugna a autora no sentido deste Tribunal julgar não provada a matéria do n.º17 e provado, relativamente ao nº 20, que a autora/apelante foi viver para França em Setembro de 2014.

Para tanto convoca os seguintes meios de prova:

- O documento de fls 129, 129 verso e 130;
- O documento de fls 133 e 134 (declaração da entidade empregadora da A);
- O documento de fls 145 a 147 (reserva de viagem);
- O documento de fls 136, 136 verso a 138 (contrato de arrendamento);
- O documento de fls 140 a 141 verso;
- O documento de fls 142 verso a 144;
- As declarações de parte da autora e os depoimentos das testemunhas M. L., M. A., C. P. e J. G..
Para a prova da versão levada aos factos provados na sentença e de acordo com a respectiva motivação, relevou sobremaneira o depoimento da dita A. D. e a descredibilização das declarações de parte da autora e depoimentos das testemunhas que arrolou.
O depoimento de A. D. não nos mereceu grande credibilidade, muito menos nos convenceu da veracidade do facto nº 17.
Do seu depoimento ficou-nos apenas a convicção de que o falecido J. R., quando foi trabalhar para França (ver folha de pagamentos e antiguidade aí reportada a 3.2.2014) – aliás de comum acordo com a autora, que se lhe seguiria, pois iria ficar sem trabalho em Portugal (depoimento de várias testemunhas, nomeadamente de J. G.) – durante o tempo que aí permaneceu sozinho, conheceu a testemunha via Facebook e teve um relacionamento casual ou temporário, de natureza sexual, com a testemunha A. D., e nada mais do que isso.
Efectivamente, a autora vai ter com o falecido J. R. a França quando fica desempregada (documento junto aos autos prova que ficou desempregada em final de Julho 2014), logo após as férias, ou seja em Setembro de 2014, arranjando trabalho em França em 15/9/2014 (contrato junto aos autos).
A autora e o J. R. vieram juntos passar o Natal de 2014 a Portugal (ver bilhetes de avião emitidos em conjunto pela Ryanair, com partida de Paris em 18/12/2014 e regresso em 28/12/2014).
Natal que passaram com a família da autora, como todos os Natais desde 2012 até 2017, ano do último Natal em vida do J. R. (depoimentos das testemunhas arroladas pela autora, em especial de C. G.).
Não é razoável, nem crível, que a autora e o falecido J. R. tivessem adquirido os bilhetes de avião em conjunto e viajado juntos para passar o Natal com a família da autora e, simultaneamente, o J. R. estivesse a viver com a testemunha A. D., como esta quis fazer crer.
Por isso mesmo, a dita testemunha não passou de uma “amiga” ou um “affair”, que, como a própria reconheceu, nasceu no “Facebook”, quando o J. R. se encontrava sozinho em França, sem consequências, isto é, não constituindo qualquer interrupção na vida do casal formado pela autora e o falecido J. R..
Aliás, esta testemunha mentiu claramente ao afirmar que viveu juntamente com o falecido J. R. até Abril de 2015, pois nessa altura está documentalmente provado que o J. R. e a autora já tinham arrendado uma casa em conjunto – não têm recibos da casa anterior, mas têm o contrato de arrendamento da segunda habitação, celebrado pelos dois em 7.2.2015.

Por tudo isto e face à abundante e convincente prova testemunhal de sentido contrário e aos documentos juntos aos autos, o facto nº 17 deve ser eliminado, por não provado. Por seu turno o nº 20 deve ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:

(20). A Autora trabalhou, até 31.07.2014, como terapeuta da fala, para a X – Saúde e Serviços, Lda. e foi viver para França em Setembro de 2014.
Alterando-se desta forma a redacção do nº 20 dos factos provados.

Na sentença recorrida julgou-se não provada a seguinte matéria:

b) A partir de Fevereiro de 2011 até 2 de Fevereiro de 2018, data do decesso de J. R., Autora e o referido J. R., de forma ininterrupta, contínua e permanente, viveram como se de marido e mulher se tratassem, partilhando a mesma mesa, cama e habitação, em exclusividade de ambos, respeitando-se, comunicando, conversando, assistindo-se mutuamente na doença e na saúde, cooperando e auxiliando-se mutuamente, mantendo um relacionamento íntimo e sexual e confeccionando e realizando em conjunto refeições, na mesma mesa e sob o mesmo tecto.
c) No hiato temporal referido em b), Autora e J. R. provinham, em conjunto, pelo sustento de ambos, provendo e pagando em conjunto todas as despesas necessárias à existência e sobrevivência de ambos, nomeadamente, alimentos, vestuário, despesas de saúde, médicas, água, luz, telefone e todas as demais necessárias à sua existência comum.

A apelante pretende ver revertida tal decisão, com base nos seguintes meios de prova:

Declarações de parte de A. C. e depoimentos das testemunhas M. L., M. A., C. P., J. G., J. M..
- Os documentos de fls. 104, 105 e 106 (facturas da água)
- O documento de fls 100 a 103 (contrato de comodato);
- O documento de fls 145 a 147 (viagem área de 2014);
- Os documentos de fls 18 e 99 (talões de deposito);
- O documento de fls 136 a 138 (contrato de arrendamento);
- O documento de fls 139 a 139 verso (facturas luz);
- O documento de fls 142 a 144 (apólice de seguro);
- O documento de fls 140 a 141 verso;
- A reserva e confirmação de uma viagem área realizada pela A e o falecido J. R., na companhia aérea easyJet.com, com partida de Paris, no dia 22 de Dezembro de 2015 e destino ao Porto e com partida do Porto, no dia 6 de Janeiro de 2016 e destino a Paris, a fls… dos autos.
Sobre a vida em conjunto da autora com o falecido J. R., depuseram as indicadas testemunhas, de forma que se nos afigura credível.
A circunstância de, em 2011, quando a autora celebrou o seu contrato de trabalho com X – Saúde e Serviços, Lda. ter fornecido a morada de Montalegre (casa de seus pais) ou ser essa a morada que forneceu para outros fins, nomeadamente no Banco, não basta para afastar toda a demais prova produzida. É consabido que para esses efeitos se fornece a morada constante do cartão de cidadão e pode, como é normal acontecer, não ter procedido à sua alteração.
A testemunha M. A., em Fevereiro de 2011, a convite da autora, foi ao apartamento onde esta morava com o J. R., sito em Chaves e, a partir daí, foi muitas mais vezes, em especial quando começou a namorar com um amigo do J. R., pois, como residia em Montalegre e não tinha casa em Chaves, ficava no apartamento deles, que soube descrever em pormenor. Teve assim conhecimento directo da vida que autora e J. R. faziam, como um casal (dormiam juntos, partilhavam as refeições e as despesas, iam às compras juntos, etc). É certo que não sabia das contas bancárias da autora, mas de estranhar seria se o soubesse. Continuou a encontrar-se com a autora e o J. R., quando estes vinham a Portugal de férias, quer em Chaves, quer em Montalegre. Convidaram-na a ir a França, ver a casa que entretanto tinham comprado e visitou-os em França em Maio de 2017. Sempre, durante este período que vai de 2011 a 2018 (data da morte do J. R.) os viu e considerou como um casal. Disse que o J. R. lhe chegou a dizer que a família dele era a A. C. e os pais da A. C.. Nunca falava da família dele, não tinha relação com eles, tanto que, quando a testemunha foi dar a notícia da morte do J. R. à respectiva mãe, esta nem sabia onde o filho estava. Foi a A. C. que tratou de tudo relativamente ao funeral, embora a família dele se tenha deslocado a França nessa altura.
A testemunha M. L., também amiga da autora e depois de ambos, igualmente asseverou que a autora e o J. R. viviam como marido e mulher.
A testemunha C. G., tio da autora, referiu que a família passava o Natal junta e, desde 2012 até ao Natal de 2017 (último do J. R.) a autora e o J. R. também passavam o Natal com a família da autora. Assim como todos os anos vinham a Montalegre, a casa da testemunha, para a matança do porco e para o merendeiro que a família fazia em Agosto. Sempre se apresentando como um casal (“iam a casa do meu irmão, dormiam juntos”).
A testemunha J. G., pai da autora depôs no mesmo sentido. Já conhecia o J. R. desde data anterior ao namoro, por ser electricista na oficina de um senhor que também se chamava J. R.. Foi várias vezes a casa deles em França (2015, 2016, 2017 e 2018).

Pelo exposto não nos restam dúvidas da veracidade dos factos das alíneas b) e c) que assim se julgam provados.

A apelante impugna igualmente a decisão da 1ª instância em julgar não provada a seguinte matéria:

d) Autora e J. R. viveram como se de marido e mulher se tratassem, no apartamento, sito na Rua ..., n.º .., Quinta da..., Chaves, identificado no nº 5 dos factos provados.
e) No apartamento referido em d), Autora e o falecido J. R., como se de marido e mulher se tratassem, comiam na mesma mesa, dormindo na mesma cama, recebendo amigos e familiares, correspondência, guardando os respectivos pertences e bens e pagando em conjunto todas as despesas referentes ao mesmo.

Para tanto indica os seguintes meios de prova:

- As declarações de parte da autora e os depoimentos das testemunhas M. L., M. A., C. P. e J. G..
- O documento de fls 104 e 105 dos autos (facturas e recibos de água).
Sobre esta matéria já acima nos pronunciamos, nomeadamente quando descrevemos parcialmente, e exemplificativamente, o depoimento da M. A., sendo evidente que, pelas mesmas razões, entendemos que esta factualidade está suficientemente demonstrada e portanto, provada.
Vem também impugnada a decisão de julgar não provada a seguinte matéria:
f) A Autora e o falecido pretendiam manter e continuar a viver como se de marido e mulher se tratassem na fracção referida em d).

Para tanto, convoca a apelante os seguintes meios de prova:
- As declarações de parte da autora e os depoimentos das testemunhas M. L., M. A., C. P. e J. G..
- Os documentos de fls. 104, 105 e 106 (facturas da água)
- O documento de fls 100 a 103 (contrato de comodato);
- O documento de fls 145 a 147 (viagem área de 2014);
- Os documentos de fls 18 e 99 (talões de deposito);
- O documento de fls 136 a 138 (contrato de arrendamento);
- O documento de fls 139 a 139 verso (facturas luz);
- O documento de fls 142 a 144 ( apólice de seguro);
- O documento de fls 140 a 141 verso;
- A reserva e confirmação de uma viagem área realizada pela A e o falecido J. R., na companhia aérea easyJet.com, com partida de Paris, no dia 22 de Dezembro de 2015 e destino ao Porto e com partida do Porto, no dia 6 de Janeiro de 2016 e destino a Paris, a fls… dos autos.
A fracção referida em d) é o apartamento do J. R. em Chaves, onde o casal residiu até se mudar para França.
As testemunhas referiram que sempre que vinham a Portugal e faziam-no com regularidade, o casal ia para o apartamento de Chaves, sem prejuízo de visitar a família da A. C., em Montalegre, e lá pernoitar.
Assim, quando em Portugal, era esse o centro de vida do casal.
Apesar de já estar há cerca de 4 anos em França, o J. R. não alienou a fracção de que era único proprietário. Nenhuma testemunha referiu que a tencionasse vender, apesar de estar em França e aí ter adquirido outro apartamento em comum com a autora.
Por isso, pode inferir-se, face à situação de cariz temporário que os levou para França (dificuldades económicas e falta de emprego) e à manutenção do apartamento de Chaves, pela prova desta matéria.

Decidindo-se assim julgar provada a matéria desta alínea f) da sentença.
Por último, a apelante impugna a decisão de julgar não provados os seguintes factos:
g) Os depósitos efectuados pela A. na conta bancária nº ............57, da Caixa ..., das quantias de 30.000,00€ e 20.000,00€, foram realizados para pagamento e liquidação do remanescente em dívida do valor do mútuo contraído pelo falecido J. R..
h) O falecido J. R. procedeu ao pagamento da dívida remanescente, referente ao mútuo por si contraído, junto da Caixa .., com o propósito de ambos, Autora e falecido, continuarem e manterem a vida de casal e por forma a que o dito imóvel se tornasse propriedade comum da Autora e do falecido J. R..
i) O pagamento e liquidação do montante de 50.000,00€, correspondente ao remanescente em dívida do valor do mútuo, foi realizado com dinheiro que havia sido doado e entregue à Autora, pelos seus pais, sendo sua pertença exclusiva.
j) O falecido J. R., por não dispor de meios económico-financeiros suficientes para liquidar o referido mútuo e considerando que ele e a Autora viviam em condições análogas às dos cônjuges, pretendendo manter essa vida, pediu à Autora e esta autorizou, em face do propósito de ambos de continuação e subsistência dessa vida de casal e com o propósito de tornar o dito imóvel comum à Autora e ao falecido J. R., a utilização desse dinheiro, pertença exclusiva da Autora, para proceder ao pagamento e liquidação integral do remanescente em dívida do valor do mútuo por ele contraído.
k) A autorização da Autora, para o falecido J. R. utilizar o montante de 50.000,00€ para pagamento integral do remanescente em dívida do referido mútuo, foi concedida apenas no pressuposto da continuação e subsistência, querida por ambos, Autora e J. R., dessa vida de casal e de que o dito imóvel, posteriormente, se tornasse propriedade comum de ambos.

Pretende reverter tal decisão com base nos seguintes meios de prova:
- Declarações de parte da autora e os depoimentos das testemunhas M. L., M. A., C. P. e J. G. -
- Depoimento da testemunha R. V., prestado na sessão da audiência de discussão e julgamento de 2 de Junho de 2020.
- Documentos de fls. 18 e 99 (talões de deposito);
- Declarações de IRS e notas de liquidação, relativas aos anos de 2011, 2012 e 2013 e referentes ao falecido J. R., e as declarações de IRC, relativas aos anos de 2013 e 2014, referentes á sociedade “Electro Auto ... Lda.”, constantes de fls. 150 a 231 dos autos.
Esta matéria resulta para nós evidente. Basta para tanto atentar nos factos provados sob os nºs 9, 10, 11 e 12.

O pai da autora, testemunha J. G., explicou que deu essas quantias, primeiro €30.000 e depois €20.000, à filha, aqui autora, tal como havia dado ao outro filho, quando este casara, para os ajudar no início da vida.
Com o dinheiro a autora podia fazer o que quisesse.
Ela comunicou-lhe como o ia utilizar: – serviria para o J. R. liquidar o mútuo que contraíra junto da Caixa ..., para aquisição do apartamento de Chaves, onde ambos viviam e que posteriormente passaria a ser dos dois.
As referidas quantias foram depositadas numa conta da Caixa ... em 25 de Janeiro e 11 de Setembro de 2013, conta essa apenas titulada pelo J. R. (só passa a ser co-titulada pela autora em 2016, altura em que adquirem outra casa em França, também com recurso a crédito bancário).
Em Outubro de 2013 o J. R. transfere da sua conta na Caixa ... para a Caixa ... a referida quantia, liquidando integralmente a dívida que tinha para com a Caixa ..., nesse exacto valor, relativa ao mútuo com hipoteca que contraíra para aquisição do apartamento de Chaves. Isto é, logo no mês seguinte a ter na sua conta a quantia de €50.000, que a autora lhe depositara e lhe fora doada pelo pai.
Estes factos, e todo o circunstancialismo já analisado relativo à vida do casal, são suficientes para se poder concluir os restantes.
É verdade que o J. R. nunca chegou a formalizar a aquisição por parte da autora de metade indivisa do apartamento, mas é preciso ter em conta que tal implicaria a celebração de uma escritura pública e suportar as respectivas despesas, bem como o imposto de selo e despesas com o registo, sendo que nessa altura já tinham suportado a despesa com a liquidação do mútuo e provavelmente com o cancelamento da hipoteca. Estávamos no final de 2013 e sabemos que, por dificuldades económicas, o J. R. emigra para França escassos meses depois. É assim normal que, entretanto, com a aquisição de uma outra casa em França, tenham adiado o que antes projectaram.
Pelo exposto também para nós esta matéria se considera provada.
*
Na procedência parcial das conclusões do apelante, a matéria de facto que julgamos assente é a seguinte:

1. A Autora nasceu a - de Setembro de 1987, sendo solteira e filha de J. G. e de M. P..
2. J. R. nasceu a - de Fevereiro de 1981, é filho de L. C. e de F. R., tendo falecido, em França, no estado de solteiro e sem descendentes, em 02 de Fevereiro de 2018, em .., rue …, onde teve a sua última residência.
3. Sucederam, como herdeiros do falecido J. R., a sua mãe, F. R., e os seus irmãos J. L. e A. R..
4. A autora e o falecido J. R. conheceram-se em 2010 e iniciaram uma relação de namoro no final desse ano.
4.A. A partir de Fevereiro de 2011 até 2 de Fevereiro de 2018, data do decesso de J. R., a autora e o referido J. R., viveram como se de marido e mulher se tratasse, partilhando a mesma mesa, cama e habitação, respeitando-se, comunicando, conversando, assistindo-se mutuamente na doença e na saúde, cooperando e auxiliando-se mutuamente, mantendo um relacionamento íntimo e sexual e confeccionando e realizando em conjunto refeições, na mesma mesa e sob o mesmo tecto.
4.B. Neste hiato temporal, a autora e o J. R. proviam, em conjunto, pelo sustento de ambos, pagando em conjunto todas as despesas necessárias à existência e sobrevivência de ambos, nomeadamente, alimentos, vestuário, despesas de saúde, médicas, água, luz, telefone e todas as demais necessárias à sua existência comum.
5. Por contrato de compra e venda, com mútuo e hipoteca, outorgado na Conservatória do Registo Predial ..., em 18 de Abril de 2008, o falecido J. R. e L. M., adquiriram em compropriedade, em partes iguais, a fracção autónoma correspondente à letra “O”, T-2 duplex, correspondente ao segundo e terceiro andares centro, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Quinta da..., lote .., freguesia de ..., concelho de Chaves, inscrita na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Chaves, sob o artigo ... e descrita na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia de ..., sob o n.º .../20070926-O.
6. A referida fracção autónoma foi adquirida por J. R. e L. M., através de um mútuo concedido pela Caixa .., no valor de 100.000,00 (cem mil euros), tendo os referidos J. R. e L. M. constituído hipoteca sobre a identificada fracção autónoma, a favor da Caixa .., para garantia do capital mutuado, dos juros até à taxa anual de 8,246%, acrescida de uma sobretaxa de 4% ao ano, em caso de mora e a título de cláusula penal, as despesas extrajudiciais emergentes deste contrato fixadas, para o efeito de registo em 4000,00€ perfazendo o montante máximo do capital e acessórios de 140.730,00€.
7. Por escritura pública de compra e venda, outorgada em 13 de Janeiro de 2011, no Cartório Notarial da Notária, A. R., sito na Avenida ..., Edifício ..., o falecido J. R. comprou a L. M., pelo preço de 34.140,00€, metade indivisa, correspondente à quota-parte de que L. M. era dona e legítima proprietária, na fracção autónoma correspondente à letra “O”, identificado no ponto 5.
8. Em 13.01.2011, a fracção autónoma referida continuava onerada com a hipoteca a favor da Caixa .., S.A. registada na Conservatória do Registo Predial, pela apresentação sete, de dezoito de Abril de dois mil e oito, encontrando-se ainda por pagar parte do mútuo contraído pelo falecido J. R. junto da Caixa ...
9. A Autora, em 25 de Janeiro de 2013, depositou, na conta bancária n.º ............57, da Caixa ..., o montante de €30.000,00.
10. Em 11 de Setembro de 2013, a Autora depositou, na mesma conta bancária n.º ............57, da Caixa ..., o montante de €20.000,00.
11. A conta bancária n.º ............57, da Caixa ..., era titulada pelo falecido J. R. desde 25.01.2013 e também pela Autora a partir de 03.08.2016.
12. Em meados de Outubro de 2013, o falecido J. R. procedeu ao pagamento e liquidação integral do remanescente em dívida, referente ao mútuo que havia contraído junto da Caixa .. para aquisição da fracção autónoma descrita no ponto 5, transferindo o montante de €50.0000,00 da conta nº ............57, da Caixa ..., para a conta bancária n.º ...............54, da Caixa ...
12.A. Os depósitos efectuados pela autora na conta bancária nº ............57, da Caixa ..., das quantias de €30.000,00 e €20.000,00, foram realizados para pagamento e liquidação do remanescente em dívida do valor do mútuo contraído pelo falecido J. R..
12.B. O falecido J. R. procedeu ao pagamento da dívida remanescente, referente ao mútuo por si contraído, junto da Caixa .., com o propósito de ambos, autora e falecido, continuarem e manterem a vida de casal e por forma a que o dito imóvel se tornasse propriedade comum da autora e do falecido J. R..
12.C O pagamento e liquidação do montante de €50.000,00, correspondente ao remanescente em dívida do valor do mútuo, foi realizado com dinheiro que havia sido doado e entregue à autora, pelos seus pais, sendo sua pertença exclusiva.
12.C. O falecido J. R., por não dispor de meios económico-financeiros suficientes para liquidar o referido mútuo e considerando que ele e a autora viviam em condições análogas às dos cônjuges, pretendendo manter essa vida, pediu à autora e esta autorizou, em face do propósito de ambos de continuação e subsistência dessa vida de casal e com o propósito de tornar o dito imóvel comum à autora e ao falecido J. R., a utilização desse dinheiro, pertença exclusiva da autora, para proceder ao pagamento e liquidação integral do remanescente em dívida do valor do mútuo por ele contraído.
12.D. A autorização da autora, para o falecido J. R. utilizar o montante de €50.000,00 para pagamento integral do remanescente em dívida do referido mútuo, foi concedida apenas no pressuposto da continuação e subsistência, querida por ambos, autora e J. R., dessa vida de casal e de que o dito imóvel, posteriormente, se tornasse propriedade comum de ambos.
13. O imóvel descrito no ponto 5 não foi tornado propriedade comum do falecido J. R. e autora.
13.A. Autora e J. R. viveram, como se de marido e mulher se tratasse, no apartamento, sito na Rua ..., n.º .., Quinta da..., Chaves, identificado em 5.
13.B. No apartamento referido em d), a autora e o falecido J. R., como se de marido e mulher se tratasse, comiam na mesma mesa, dormindo na mesma cama, recebendo amigos e familiares, correspondência, guardando os respectivos pertences e bens e pagando em conjunto todas as despesas referentes ao mesmo.
13.C. A autora e o falecido pretendiam manter e continuar a viver como se de marido e mulher se tratasse na fracção referida em d).
14. O J. R. esteve a trabalhar nos Estados Unidos da América e na Suíça.
15. No ano de 2013, constituiu, em Portugal, uma sociedade por quotas com o Sr. C. N., denominada “Electro Auto ... Lda.”, com sede na Rua ... n.º .., freguesia da ..., Concelho de Chaves.
16. No início do ano de 2014, J. R. foi viver para França, trabalhando na área automóvel, como electricista, e auferindo um salário mensal de 3.161,95€.
17. Eliminado.
18. Pela Ap. 2/20140612, foi registada a alteração da sociedade referida em 15 para Sociedade Unipessoal por Quotas, com a firma Electro Auto C. N. Unipessoal, Lda., sendo seu único sócio C. N. e tendo o falecido J. R. renunciado à gerência.
19. No Verão de 2015, em Montalegre, houve um confronto entre A. D., o falecido J. R. e a autora.
20. A autora trabalhou, até 31.07.2014, como terapeuta da fala, para a X – Saúde e Serviços, Lda, prestando serviços na Unidade de Cuidados Continuados Integrados e foi viver e trabalhar para França em Setembro de 2014.
21. A Autora e o falecido J. R. adquiriram, no ano de 2016, com recurso a crédito bancário, um apartamento, em França.
22. J. R. era proprietário de um apartamento, uma garagem, um carro da marca BMW, que se encontravam já pagos na totalidade, dispunha de valores monetários em contas bancárias e tinha anteriormente, adquirido uma mota e outros veículos automóveis.
23. O falecido J. R., pouco dias antes da sua morte, falou com o Sr. C. N. para lhe arranjar trabalho em Portugal, por pretender regressar ao país.
24. No dia do funeral de J. R., em 14.02.2018, a autora não falou nem se apresentou como sua namorada ou companheira aos familiares do falecido.
25. Nesse dia, a autora procedeu à transferência da totalidade do dinheiro existente na conta bancária com o número .............57, da Caixa ..., para uma outra só sua, no valor de 27.136,02€.
26. O falecido J. R. não mantinha contactos regulares com a sua família, estando de relações cortadas com o seu irmão e a sua mãe»

B) APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS

A autora pretende reaver a quantia em dinheiro (€50.000), que, em 2013, depositou na conta do seu então companheiro, J. R., e que este, com o consentimento da autora, utilizou para liquidar a dívida que então detinha para com a Caixa .., relativa a um mútuo que tal instituição bancária lhe concedera, anos antes, para a aquisição de um apartamento, apartamento esse onde desde 2011 ambos residiam, como marido e mulher.
Formula tal pedido com base no instituto do enriquecimento sem causa.

Estabelece o art.º 473º do CC:
1 - Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.

Atento o disposto neste normativo, são requisitos do enriquecimento sem causa:
a) O enriquecimento de alguém.
b) O consequente empobrecimento de outrem
c) A falta de causa justificativa do enriquecimento

O enriquecimento pode consistir num aumento do activo, numa diminuição do passivo ou ainda numa diminuição de despesas ou encargos.
O empobrecimento consistirá, inversamente numa diminuição do activo ou num aumento do passivo.
Como decorre da 2ª premissa acima enunciada, o empobrecimento e o enriquecimento têm de estar correlacionados (ver Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed. 1979, pags. 331 e segs.).
Só releva, para efeitos deste instituto, regulado nos artºs 473º a 482º do CC, o enriquecimento/empobrecimento, que não tiverem causa.

Sobre a questão, escrevem P. de Lima e A. Varela (“C. Civil, Anotado, I, 4ª ed., 454 e ss.), que:

– “Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa;
– “Se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa”.
Tendo a obrigação de restituir a sua origem no facto jurídico do enriquecimento, pressupõe, aquela, que este careça de causa justificativa.
Assim, a causa da deslocação patrimonial só releva na ausência de relação obrigacional, negocial ou legal e, designadamente, tratando-se de prestação sem qualquer finalidade típica tutelada.

No caso em apreço provou-se que ocorreu uma deslocação do património da autora para o património do réu, com o consequente empobrecimento daquela e enriquecimento deste e na mesma exacta medida.
Não carecia a autora, para reaver a referida quantia com base no enriquecimento sem causa, de alegar e provar que vivia em união de facto com o enriquecido, neste caso o falecido J. R. e que tal deslocação patrimonial teve em vista a respectiva vida em comum, no pressuposto de que, posteriormente, aquele apartamento seria dos dois.

Efectivamente, como bem se refere no acórdão desta Relação de 11.10.2018 (proc. 5392/17.0T8BRG.G1), publicado em dgsi.pt (1):

“(…) o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa não é privativo dos ex-membros da união de facto, sendo que o seu campo de aplicação é bastante amplo, podendo a ele recorrer, por exemplo, as pessoas que vivam em mera economia comum (artigo 2º da Lei nº 6/2001, de 11 de Maio) ou até no que respeita à situação dos ex-namorados (sem prejuízo do regime próprio consagrado no artigo 1594º do Código Civil), em que um adquiriu bens com a comparticipação do outro.
Faz-se esta ressalva, uma vez que não é admissível partir do princípio de que, afastada a existência de união de facto, excluída ficaria a possibilidade de actuação do instituto do enriquecimento sem causa, entendimento que não tem base jurídica. (sublinhado nosso)
Independentemente de não ter existido união de facto, à Autora sempre assiste a faculdade de demandar o Réu para exigir a sua pretensa contribuição monetária para a aquisição de dois imóveis.”

Necessário é, que se verifiquem os já referidos requisitos do enriquecimento sem causa.
Assim, em nosso entender, mesmo que a autora não lograsse provar que viveu em união de facto com o falecido (em suma, toda a matéria de facto que acabamos de aditar aos factos provados) e tivesse apenas existido uma relação de namoro (“à moda antiga”) com o J. R., não deixaria de poder exigir a restituição da quantia, que, em 2013, depositou na conta à ordem que aquele possuía na Caixa ..., de que só ele era titular e que aquele transferiu para a Caixa ..., em proveito próprio e exclusivo, utilizando-a para pagamento e liquidação do remanescente em dívida do valor do mútuo, que contraíra junto daquela entidade bancária, para aquisição do apartamento de que era proprietário.
Consequentemente, mesmo sem alteração da matéria de facto provada na sentença, sempre a presente acção procederia, como veremos.
Contudo, a autora também logrou provar que vivia em união de facto com o J. R..
Efectivamente o Regime de Protecção das Uniões de Facto (Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio e sucessivas alterações) estabelece no seu art.º 1º nº 2 que “a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
Da factualidade provada resulta que a autora e o J. R., pelo menos desde Fevereiro de 2011 e até à morte deste, em 2018, viveram como cônjuges, partilhando casa, mesa, cama, despesas e carro, viajando juntos, celebrando em conjunto contratos e adquirindo em conjunto uma habitação em França. Como tal se apresentavam perante terceiros, nomeadamente perante os amigos e a família da autora, com quem passavam o Natal, etc.
Os poucos meses em que estiveram separados, em razão do J. R. ter ido trabalhar para França e a autora só ter ido para lá uns meses depois, são irrelevantes. Isso também sucede com os cônjuges, quando um emigra, ou, como no caso, um deles vai primeiro.
Provado também está o enriquecimento do património do J. R., à custa do património da autora e a medida desse enriquecimento.
Assim como a ausência de causa justificativa, uma vez que inexiste qualquer relação obrigacional, negocial ou legal que justifique tal deslocação patrimonial, e a prestação (montante transferido pela autora para a conta do J. R.), não tinha qualquer finalidade típica tutelada.
Ocorreu apenas no pressuposto, entretanto desparecido com a morte do referido J. R., da continuação da vida em condições análogas ás dos cônjuges, como propósito de manter a continuidade da vida em comum e o projecto comum de vida.
Deve assim o património do J. R., no caso os seus herdeiros e pelas forças da herança, como previsto no art.º 2071º do CC, restituir à autora a quantia com que injustificadamente se enriqueceu, correspondente a €50.000.
Pelo exposto, na procedência total das conclusões da apelante, impõe-se revogar a sentença recorrida e julgar a acção procedente.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o presente recurso, revogando a sentença recorrida e, em sua substituição, julgam a acção totalmente procedente, condenando os réus F. R., J. L. e A. R., na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de J. R.:

a) A reconhecer que a autora e o falecido J. R. viveram em comunhão de tecto, cama e mesa, isto é, em união de facto, em condições análogas às dos cônjuges, desde Fevereiro de 2011 até á data da morte do referido J. R..
b) A, pelas forças da herança, restituírem á autora o montante de € 50 000,00 (cinquenta mil euros).
Custas pelos apelados.
Guimarães, 11-02-2021

Eva Almeida
António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte

1 - http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/7d7af3f7f6b87514802583370037fb63?OpenDocument