Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1388/17.0T8BCL.G1
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
PRINCÍPIO DA ADESÃO OBRIGATÓRIA
EXCEPÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O art. 71.º do Código de Processo Penal consagra o princípio de adesão obrigatório, ou seja, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos no artigo 72.º, n.º 1 do CPPenal.

II- Segundo a orientação jurisprudencial nesta matéria, compete ao autor a alegação e prova dos fundamentos previstos na lei processual penal que constituem excepções ao princípio de adesão obrigatória”.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

F. L., D. L. e J. L., melhor identificados a fls. 3verso dos autos, instauraram a presente acção contra D. S., Fernando e B. M., alegando que, em co-autoria, praticaram um crime de furto qualificado da residência onde todos habitavam, conjuntamente com A. L.. No competente processo-crime, foram todos condenados, por sentença já transitada em julgado pela prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, conforme documento que juntam. Todavia, nesse processo, apenas A. L. se constituiu assistente e deduziu pedido de indemnização civil, e apenas parte do pedido de indemnização civil formulado por aquele foi julgado procedente, porquanto não dispunha de legitimidade para ser restituído pelos danos patrimoniais de bens pertencentes aos aqui autores, bem como pelos danos não patrimoniais que daí lhes adviessem.

Terminam a petição inicial, pedindo que os réus sejam solidariamente condenados:

1 - À restituição dos bens e valores mencionados no artigo 20º, alíneas a), b), c) e d), da p.i.. Assim,
a) À Autora D. L., os bens mencionados em 20º a) e d), bem como o montante de €1.350,00 e respectivos juros de mora à taxa legal;
b) Ao Autor J. L., os bens mencionados em 20º b) e d), bem como o montante de €40,00 e respectivos juros de mora calculados à taxa legal;
c) À Autora F. L., os bens identificados em 20º c).
2 - Devendo, ainda, a título de danos não patrimoniais, e solidariamente, indemnizar os autores nas seguintes quantias:
a) A Autora D. L.: a quantia de €5.000,00.
b) Ao Autor J. L.: a quantia de €2.500,00.
c) À Autora F. L., atribuída a quantia de €2.500,00.
3 - Em via subsidiária, não procedendo os Réus à entrega dos bens mencionados em 20º a), b) c) e d) da p.i., devem os mesmos ser condenados à entrega do valor dos bens. Assim:
a) A Autora D. L., a quantia de €355,00, pelos bens não entregues.
b) Ao Autor J. L., a quantia de €505,00, pelos bens não entregues.
c) À Autora F. L., a quantia de €245,00, pelos bens não entregues.
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O Réu Fernando não contestou, tendo D. S. e B. M. apresentado contestação.

D. S. contestou nos termos constantes de fls. 52 e ss. dos autos, invocando a ilegitimidade dos autores D. L. e J. L. para a restituição de parte dos bens e depois aceita parte dos factos constantes da sentença criminal, mas não todos e impugna os danos invocados por todos os autores. Termina pedindo que os réus sejam absolvidos do pedido.

Na contestação o Réu B. M. invocou, para além do mais, e a título de excepção, que o que os Autores pretendem é deduzir o pedido de indemnização civil em separado, pela prática do crime de furto qualificado pelo qual os Réus foram condenados no processo-crime n.º 168/15.1GBBCL, decisão essa já transitada em julgado. Ora, o pedido de indemnização fundado na prática de um crime só pode ser deduzido em separado nos termos da lei e considerando o princípio da adesão, os autores já deveriam ter deduzido tal pedido indemnizatório no processo-crime, sendo ainda certo que todos os aqui Autores, naquele processo-crime já depuseram como testemunhas. Há assim um erro na forma do processo que constitui nulidade equiparada à ineptidão da petição inicial e determina a absolvição da instância. Impugna parte dos factos constantes da sentença criminal e o valor dos danos peticionados pelos autores.
Conclui pedindo pela procedência das excepções e que a acção seja julgada improcedente por não provada, com a consequente absolvição dos réus do pedido.
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Os Autores, notificados da contestação do Réu B. M., vieram defender que não há qualquer ineptidão da petição inicial e que não existe qualquer erro na forma do processo.

Com efeito, defendem os Autores que apenas numa acção civil podem fazer valer perante os Réus, o instituto do enriquecimento sem causa, como fazem na petição inicial, pelo que, nada os impede de deduzir pedido de indemnização com tal fundamento.
Mais referem que nos termos do art. 72.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal, os danos que os autores sofreram, nomeadamente os de carácter não patrimonial, não eram por si inteiramente conhecidos à data da acusação, pelo que podem deduzir pedido de indemnização civil em separado.
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Proferiu-se decisão que julgou o Tribunal incompetente em razão da matéria por violação do princípio da adesão e, consequentemente, absolveu os Réus da presente instância.
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Inconformados com a sentença, os Autores interpuseram recurso, terminando com as seguintes
Conclusões:

I. O tribunal a quo julgou procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, por violação do princípio da adesão e absolveu os réus da instância.
II. Os recorrentes não concordam com tal decisão porque encontra-se destituída de fundamento legal e factual.
III. O tribunal recorrido errou na aplicação do direito.
IV. O presente recurso visa a apreciação de duas questões estruturantes: por um lado, a ausência de apreciação no caso em mérito do instituto de enriquecimento sem causa, como causa de pedir da ação e, por outro lado, a possibilidade de ser deduzido pedido de indemnização civil em separado, subsistindo fundamento para o efeito.
V. Os recorrentes não se conformam com a decisão recorrida, uma vez que a mesma olvidou o simples facto de ter sido intentada uma ação declarativa de condenação, fundada no enriquecimento ilícito e de terem fundamento para o fazer.
VI. Como também olvidou a existência de fundamento legal para a dedução de pedido de indemnização civil em separado.
VII. Verificam-se os pressupostos de que depende a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa e deveriam ter sido apreciados os autos, atendendo a essa causa de pedir.
VIII. Os recorrentes em requerimento enviado a 23/10/2017 ao exercerem o contraditório ao abrigo do artigo 3.º, n.º3 do CPC referiram expressamente o seguinte: "apenas nesta ação, em termos práticos, podem os autores fazer valer perante os réus o instituto do enriquecimento sem causa, na medida em que, no contexto do processo crime, estava vedado aos autores invocar esta causa de pedir com perfil normativo bastante à convocação do instituto do enriquecimento sem causa."
IX. Explicitaram, igualmente, que "nada impede os autores de deduzirem ação cível peticionando o que peticionam com base no enriquecimento sem causa".
X. Os recorrentes apenas se referiram à possibilidade de, atento o disposto no artigo 72.º, n.º1, d) do CPP, não havendo conhecimento dos danos ou não havendo conhecimento em toda a sua extensão, à data da acusação, poder ser deduzido pedido de indemnização civil em separado.
XI. Pois os danos não patrimoniais sofridos só foram conhecidos posteriormente.
XII. O instituto do enriquecimento sem causa funda-se na ideia de que nenhuma pessoa pode locupletar-se à custa alheia e uma análise singela in casu é bastante para se perceber que os recorridos enriqueceram à custa do património dos recorrentes.
XIII. Consta da douta sentença recorrida o seguinte: "E neste caso, há uma causa invocada para o pedido indemnizatório formulado: a prática de um facto ilícito pelos réus e que se consubstancia na prática do crime de furto qualificado pelo qual já foram condenados por sentença transitada em julgado. Logo a causa de pedir assenta no instituto da responsabilidade civil extracontratual e, como tal, havendo causa, não há fundamento para o alegado enriquecimento sem causa".
XIV. Não se entende o teor da supra citada afirmação.
XV. A Meritíssima Juíza começa por enunciar que a causa do pedido indemnizatório formulado é a prática do facto ilícito pelos recorridos,
XVI. O que se coaduna com a realidade,
XVII. Uma vez que se os recorridos não tivessem furtado os bens dos recorrentes, estes não teriam entrado na sua esfera patrimonial, provocando o enriquecimento daqueles.
XVIII. Mas, de seguida, vem a mesma juíza dizer que "Logo a causa de pedir assenta no instituto da responsabilidade civil extracontratual e, como tal, havendo causa, não há fundamento para o alegado enriquecimento sem causa".
XIX. Existe uma contradição na formulação do pensamento do tribunal recorrido.
XX. Primeiro considera que não há causa, para depois considerar que há causa e ser abusivo o pedido dos recorrentes.
XXI. Não se percebe como é que a responsabilidade civil extracontratual pode servir para justificar a inexistência de fundamento para o alegado enriquecimento sem causa.

Entende-se por falta de causa justificativa para o enriquecimento a inexistência de um facto, de um fundamento, de um motivo que justifique o incremento patrimonial de determinada pessoa.
Sei atendendo a uma situação concreta, não se consegue determinar como adveio o enriquecimento não há causa justificativa.
"O enriquecimento carecerá de causa justificativa sempre que o direito não o aprove ou consinta, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida, isto é, que legitime o enriquecimento". - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02-11-2010/ processo 1867 j08.0TBVIS.C1.
Dado, porém, que a lei não define tal conceito e dada a natureza diversa da fonte de que pode emergir, tal significa que o enriquecimento injusto terá sempre que ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados. - idem.

No caso houve um enriquecimento dos recorridos à custa do património dos recorrentes, sem que se verifique qualquer causa justificativa.
Todos os pressupostos encontram-se preenchidos: existe um enriquecimento dos recorridos, esse enriquecimento não tem causa justificativa e, por último, foi obtido à custa do património dos recorrentes.

Consta ainda da douta sentença recorrida que "Quanto à alegada causa de pedir assente no enriquecimento sem causa, como se vê do art. 72.º do Código de Processo Penal, a mesma não é fundamento para a dedução do pedido de indemnização civil em separado".

Pese embora o poder discricionário do juiz, não pode o tribunal a quo preterir, sem qualquer motivação, o prosseguimento da ação com base no enriquecimento sem causa,
Porquanto todos os requisitos legais estão verificados que esse prosseguimento ocorra.
o enriquecimento sem causa pode não ser fundamento para a dedução do pedido de indemnização civil em separado, mas é fundamento para uma ação civil.

Na petição inicial os recorrentes apresentaram a factualidade necessária a estimular os pressupostos do enriquecimento sem causa, o que não poderiam ter feito no processo crime.
Só nesta ação é que, em termos práticos, podiam os recorrentes fazer valer perante os recorridos o instituto do enriquecimento sem causa,

No contexto do processo crime, estava vedado aos recorrentes invocar esta causa de pedir com o perfil normativo bastante à convocação do instituto do enriquecimento sem causa.
Não poderia o tribunal recorrido ter olvidado a apreciação do processo em mérito, sem fundamento ou/ melhor dizendo, com os fundamentos inverosímeis que apresentou.

A considerar-se como se considerou na douta sentença recorrida que os recorrentes deveriam ter lançado mão do instituto da responsabilidade civil extracontratual sempre se dirá o seguinte:

A Doutrina e Jurisprudência divergem quando à aplicação subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa.
Segundo Júlio Gomes a subsidiariedade exprime muita desconfiança perante o instituto do enriquecimento sem causa.

Do mesmo modo considera que a subsidiariedade consagrada pelo nosso Código Civil não é a solução mais adequada e apenas numa situação deverá o enriquecimento sem causa ceder perante outros institutos, que será a hipótese em que o outro instituto permita atingir o resultado idêntico ao permitido pelo enriquecimento sem causa e quando o mesmo não seja mais oneroso.

Assim, este autor não considera que o recurso alternativo ao enriquecimento sem causa gere uma visão de incerteza. - cfr. Júlio Gomes, "O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa" / págs. 415 e seguintes.
Não se vê razão para que o lesado não possa optar pelo recurso ao enriquecimento sem causa em vez da responsabilidade civil, desde que para tal demonstre a existência de um enriquecimento, a ausência de justificação do enriquecimento e que o enriquecimento foi obtido à sua custa.
É mais fácil para o lesado provar os requisitos do instituto do enriquecimento sem causa do que os requisitos da responsabilidade civil.
Exigir que os Recorrentes esgotassem todas as vias possíveis antes de recorrerem a uma ação com base no enriquecimento sem causa é manifestamente excessivo e onera em demasia a pessoa empobrecida.

Portanto, não se pode decidir, como se decidiu, excluir, à partida, o instituto do enriquecimento sem causa com fundamento na sua subsidiariedade,
Já que só no caso concreto é que se pode determinar a sua aplicabilidade, atendendo às particularidades da situação que permitam o preenchimento dos pressupostos.
Os recorrentes também tinham fundamento para deduzir o pedido de indemnização civil em separado, já que, ao tempo da acusação, alguns dos danos ainda não eram conhecidos ou não eram conhecidos em toda a sua extensão.
Ao tempo da acusação era impossível determinar a extensão dos danos patrimoniais, tanto mais que, os mesmos se prolongaram no tempo e Só, atualmente, se consegue perceber a verdadeira dimensão dos mesmos.
O desenrolar do próprio processo crime criou uma exposição dos recorrentes, o que gerou comentários das pessoas que os conheciam, gerou boatos na freguesia,
XLIX.Tal situação causou nos recorrentes um sentimento de isolamento, prejudicando-os no decurso do seu quotidiano,
L.E a situação não era, nem nunca poderia ser conhecida ao tempo da acusação.
LI.Ora, com o terminus do processo crime, os comentários alheios acentuaram-se, o que causou ainda mais transtorno e problemas aos recorrentes,
LI I. Pois os mesmos foram invadidos por um sentimento de impunidade e de injustiça.
LIlI.Danos esses que só puderam ser quantificados aquando da ação cível intentada.
L1V.Tal situação também constitui motivo para a dedução do pedido cível em separado.
LV.Os recorrentes poderiam, igualmente, alicerçar o seu pedido de indemnização civil em separado na alínea i) do CPP.
LVI.Pois, os recorrentes F. L. e J. L. não foram notificados de que poderiam deduzir pedido de indemnização civil e quais as formalidades a adotar.
LVII.Os recorrentes supra citados poderiam sempre lançar mão do pedido de indemnização civil em separado,
LVIII.Porquanto nunca tiverem conhecimento nem foram, sequer, informados de que poderiam deduzir um pedido de indemnização.
L1X. Por tudo isto, a decisão nos presentes autos não se pode manter nos termos em que foi proferida, devendo V/exas. Venerandos Desembargadores decidir pela sua revogação e consequente substituição por outra que acautele os direitos dos recorrentes.
*
Contra-alegou o Recorrido, concluindo que:

A) De acordo com o disposto no artigo 474° do Código Civil "não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outros meios de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento";
B) Trata-se de uma regra de acordo com a qual, o empobrecido só pode socorrer-se das regras do enriquecimento sem causa quando a lei não faculte aos empobrecidos outros meios de reação;
C) Como referem Pires de Lima e Antunes Varela "in" Código Civil Anotado, 2a edição, os dois institutos (responsabilidade civil e enriquecimento sem causa) podem concorrer na qualificação da mesma situação, parcialmente nos casos de intromissão em bens ou direitos alheios;
D) Todavia, se a intromissão gera um enriquecimento para o intrometido e ao mesmo tempo um dano para o lesado, só na falta de um dano reparável é que o lesado poderá fazer uso da restituição por enriquecimento;
E) No caso em apreço, resulta evidente que os pedidos formulados pelos Apelantes visam a reparação ou reposição do valor dos bens furtados pelo Apelados, ato pelo qual já foram julgado e condenados criminalmente;
F) Sendo que, para ressarcimento desses prejuízos, a lei faculta-lhes um meio de serem indemnizados por esses prejuízos, meio este (pedido de indemnização civil) que os Apelantes podiam e deviam ter utilizado no processo penal;
G) Não o tendo feito, não podem agora, face ao princípio da adesão e face à natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, vir deduzir em separado um pedido indemnizatório;
H) Com efeito impunha-se, nos termos do art. 71° do Código de Processo Penal, que tal pedido de indemnização, fundado na prática de um crime, tivesse sido deduzido no processo penal respetivo;
I) Tal princípio da adesão obrigatória do processo civil ao processo penal, significa, que, por parte do lesado, para demandar os responsáveis com base num ilícito penal, o mesmo tem de recorrer aos autos criminais, só o podendo fazer em separado e noutro foro, nos casos excecionais previstos no art. 72° do CPP;
J) OS Apelantes invocam ainda o preceituado no art. 72.°, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal, ou seja, que deduziram o pedido em separado porque não havia conhecimento dos danos ou estes não eram conhecidos em toda a sua extensão;
K) Porém, na sua petição inicial, os AA não alegaram nenhum facto suscetível de integrar a situação que agora invocam, ou seja, de que os danos ainda não eram conhecidos ou pelo menos não o eram em toda a sua extensão;
L) Tal situação, a verificar-se, configuraria uma exceção ao princípio da adesão incumbindo à parte que dela quer tirar proveito a alegação dos pertinentes factos;
M) Assim por força do disposto no art.º 342° n.º 1 e 3 do CC sobre os AA. recaía o ónus de alegar e provar que se encontravam numa das situações em que, excecionalmente, a lei processual penal contempla a dedução em separado de pedido cível fundado em crime;
N) A verdade é que, não tendo os AA alegado na petição inicial factos que permitissem aferir da possibilidade de dedução em separado do pedido de indemnização cível, ao abrigo do artigo 72. º, n. ° 1, al. d) do Código de Processo Penal, não podem fazê-lo agora em sede de recurso.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II- Delimitação do Objecto do Recurso

A questão decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se o tribunal é competente para apreciar o pedido de indemnização, deduzido em separado, do processo penal.
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III—FUNDAMENTAÇÃO

Com relevo para a decisão sobre se ocorre a violação do princípio da adesão consta dos autos que:

1. Correu termos no Juízo Local Criminal de Barcelos–Juiz 2, o processo-crime n.º 168/15.1GBBCL.
2.O processo referido em 1) iniciou-se com a queixa apresentada por A. L. em 19.02.2015.
3. Com a queixa referida em 2), A. L. apresentou uma «relação anexa de objectos furtados», conforme melhor descritos a fls. 91 a 94 destes autos.
4.Nesse processo, a aqui Autora, D. L., foi ouvida, na qualidade de ofendida, em 24.03.2015, data em que o órgão de polícia criminal, a notificou de que podia deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do art. 75.º e ss. do Código de Processo Penal, tudo conforme fls. 104 a 106 dos autos.
5.A acusação contra os arguidos, aqui Réus, foi proferida em 18.03.2016.
6. Nesse mesmo processo, A. L. constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil no valor total de €.5.345,00, sendo a quantia de €.2.845,00 a título de danos patrimoniais e €.2500,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros até efectivo e integral pagamento, nos termos de fls. 107 a 110 dos autos.
7. Os aqui Autores F. L. e J. L., no processo-crime n.º 168/15.1GBBCL, não foram notificados nos termos do art. 75.º e ss. do Código de Processo Penal.
8. Todos os aqui Autores depuseram como testemunhas na audiência de julgamento ocorrida no processo-crime n.º 168/15.1GBBCL (fls. 115 a 127).
9. Por sentença proferida em 04.11.2016, já transitada em julgado, os aqui Réus D. S., Fernando e B. M. foram condenados pela prática, em co-autoria em 19.02.2015, de um crime de furto qualificado nos termos dos arts. 13.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º 3.ª proposição, 202.º, al. f) – ii), 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, al. e) todos do Código Penal, numa pena de um ano e seis meses de prisão, para cada um, substituída pela pena de 480 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, tudo conforme fls. 11v a 30 dos autos.
10.O pedido de indemnização civil referido em 6) foi julgado parcialmente procedente e os aí arguidos (aqui réus) foram condenados no pagamento solidário a A. L. do valor total de €.1050,00, sendo a quantia de €.700,00 a título de danos não patrimoniais e €350,00 a título de danos patrimoniais, ambas acrescidas dos competentes juros de mora.
11. J. L. nasceu a 22.10.1997.
12. A presente acção deu entrada em juízo em 02.06.2017.
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IV-DIREITO

A única questão a resolver reside em saber se, ao deduzirem pedido cível contra os Réus, separadamente da acção penal, os Autores violaram o princípio de adesão obrigatório previsto no artigo 71.º do C.P.Penal.

Com fundamento na prática de factos que integram um crime de furto qualificado, pelos quais os Réus foram condenados no respectivo processo criminal, os Autores pedem que sejam condenados, nesta instância cível, a restituir-lhes os bens e quantias monetárias apoderadas por aqueles e a pagar-lhes uma compensação pelos danos não patrimoniais sofridos.

O art. 71.º do Código de Processo Penal consagra o princípio de adesão obrigatório, ou seja, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

Como refere Germano Marques da Silva (1) é a consagração do processo de adesão, no sistema de dependência, sistema que se contrapõe ao sistema de alternatividade, segundo o qual o pedido de indemnização civil pode ser proposto ou directamente no processo penal ou em acção civil autónoma.

Em separado, é admissível a dedução de pedido de indemnização civil nas situações elencadas no artigo 72.º, n.º 1 do C.P.Penal :

a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;
b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;
c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;
d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;
e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 3 do artigo 82.º;
f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido;
g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular;
h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;
i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º.
Da leitura da petição inicial não resulta a alegação de qualquer um dos casos que permitem deduzir o pedido de indemnização civil, em separado.

Concretamente, com fundamento na prática do crime de furto, os Autores pretendem a restituição dos bens e quantias monetárias que entraram ilicitamente na esfera jurídica dos Réus e o pagamento de uma compensação por danos não patrimoniais que já eram conhecidos no processo crime.
Os Autores continuam a defender que a causa de pedir assenta no enriquecimento sem causa, não lhes assistindo, salvo o devido respeito, qualquer razão.

Para além de não constituir fundamento elencado na referida norma, pressuposto do pedido de indemnização civil em separado, afigura-se-nos evidente que existe uma causa (prática de factos ilícitos) para o enriquecimento imputado aos Réus.

Existindo uma causa do invocado enriquecimento dos Réus, não se enquadra no artigo 473.º, n.º 1do Código Civil segundo o qual aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
Argumentam os Recorrentes que os danos não patrimoniais não eram conhecidos, na totalidade, no processo criminal.

No entanto, como acertadamente se sublinha na decisão impugnada, os alegados danos não patrimoniais prendem-se com a exposição a que os autores foram sujeitos pela prática do furto, e comentários alheios, o que levou a um isolamento dos autores e os prejudicou no descanso e lazer. Quanto aos autores D. L. e J. L. a perturbação reflectiu-se ainda nos estudos dos mesmos e principalmente na autora D. L. que se culpabiliza pelos acontecimentos e se mostra receosa quanto a novos relacionamentos (isto porque o réu D. S. foi seu namorado e foi por si que teve acesso à residência dos autores). Também a autora F. L. sofreu danos porque teve de apoiar todo o restante agregado familiar.

E acompanhamos, sobre esta questão, o entendimento exposto no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.02.2013 (2): o facto de a vítima de um crime ainda sentir sentimentos de angústia passados dois anos sobre os factos não constitui um dano novo que lhe permita deduzir pedido de indemnização cível em separado do processo penal ao abrigo do artigo 72º nº1 d) do CPP.
Em suma, os danos não patrimoniais alegados pelos Autores na petição já existiam no decurso do processo criminal cuja pendência tiveram necessariamente conhecimento.

No que concerne à falta de informação sobre a possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou de notificação para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º, fundamento previsto no art.º 72.º, n.º i) do C.P.Penal, os Autores não alegaram, como lhes competia nos termos do art. 342.º, n.º 1 do CC., esses factos essenciais.

Com efeito, segundo a orientação jurisprudencial nesta matéria, compete ao autor a alegação e prova dos fundamentos previstos na lei processual penal que constituem excepções ao princípio de adesão obrigatória. (3)

Acresce que a Autora D. L. foi ouvida, na qualidade de ofendida, em 24.03.2015, data em que o órgão de polícia criminal a notificou de que podia deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do art. 75.º e ss. do Código de Processo Penal.

Relativamente aos Autores que não foram notificados para deduzir pedido de indemnização civil, cumpre ainda esclarecer que nos casos em que a autoridade judiciária não tiver informado o lesado dessa possibilidade, este pode manifestar no processo, face ao preceituado no artigo 75.º, n.º 2 do CPPenal, até ao encerramento do inquérito, o propósito de o fazer.
Ora, nos termos do art. 77.º, n.º 2 do CPP, só o lesado que tiver manifestado esse propósito, o que não ocorreu, é que deve ser notificado da acusação ou do despacho de pronúncia para, querendo, deduzir, em requerimento articulado, o pedido de indemnização civil. (4)

Concluindo, perante as alegações constantes da petição inicial e inexistência de qualquer fundamento legal que permita a dedução do pedido cível em separado, conclui-se que o tribunal civil é incompetente para decidir a pretensão dos Autores, alicerçada na prática de um crime, razão pela qual a douta decisão deve ser confirmada.
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V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso dos Autores, confirmando, em consequência, a decisão impugnada.
Custas pelos Recorrentes.
Notifique e registe.
Guimarães, 07 de Junho de 2018

(Anabela Andrade Miranda Tenreiro)
(Fernando Fernandes Freitas)
(Alexandra Rolim Mendes)


1. Curso de Processo Penal, vol. I, Verbo, 1993, pág. 80.
2. Disponível em www.dgsi.pt
3. V. Acs. Rel.Coimbra de 24.04.2007 e 03.02.2010 e Ac. Rel. Lisboa de 21/02/2013, disponíveis em www.dgsi.pt.
4. V.neste sentido, Ac. Rel.Coimbra de 24/07/2007 disponível em www.dgsi.pt.