Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
119/20.1PBCHV.G1
Relator: MARIA TERESA COIMBRA
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
ESTADO DE EMERGÊNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA DO ART 3º Nº 2 DO DEC. 2-A/2020 DE 20.03
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. A Constituição da República Portuguesa ( CRP) não pode deixar de ser, em qualquer circunstância e, portanto, também em Estado de Emergência, a referência do direito ordinário, a sua matriz, o seu limite.
2. A criação de tipos de ilícitos criminais é, nos termos do art. 165 nº 1 c) da CRP, matéria da reserva relativa da Assembleia da República ( AR), podendo competir também ao Governo, mas apenas com autorização da AR.
3. O Decreto 2-A/2020 de 20.03 ao definir um novo tipo de crime invade a competência legislativa que lhe não cabe, o que determina que o nº 2 do art. 3º do referido Decreto esteja ferido de inconstitucionalidade orgânica.
4. A vida em sociedade não é possível sem o cumprimento pela generalidade dos cidadãos de ordens legítimas emanadas por autoridades policiais. Assim, perante a violação do dever de recolhimento domiciliário, se um cidadão não acatar a ordem de retorno ao domicílio dada por agente da GNR, pode este cominá-lo de que com a sua conduta incorre na prática de um crime de desobediência ( art. 348 nº 1 b) do Código Penal).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No processo especial sumário que, com o nº 119/20.1PBCHV, corre termos no Juízo Local Criminal de Chaves foi decidido (transcrição):

a) Condenar o arguido C. J. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, al. a) e do Código Penal e art. 3º, nº 1, al, b) e 2, do Decreto-Lei nº 2-A/2020, de 20 de Março, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros), perfazendo o montante global de € 1800,00 (mil e oitocentos euros);
b) Condenar, ainda, o arguido nas custas do processo, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça, (artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa ao mesmo), e nos demais encargos do processo nos termos do artigo 514.º do CPP.
*
Inconformado com a condenação recorreu o arguido para este tribunal da Relação apresentando no final da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1.ºVem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, por se entender que se impõe a modificação da decisão “a quo”, considerando-se que não resultou provada a prática, pelo Arguido, do crime de desobediência, p.p. no artigo 348.º, n.º 1, al. a), do C.P. e art.º 3.º, n.º 1, al. b) e 2, do D.L. n.º 2-A/2020, de 20.03, (entretanto revogado pelo D.L. nº.2-B/2020 de 02.04, por sua vez revogado pelo D.L.nº.2-C/2020 de 17.04) pelo qual foi condenado.
2.ºI – Normas Jurídico-Penais que o Recorrente considera incorrectamente aplicadas: Artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, em conjugação com o art.º 3.º, n.º 1, al. b) e 2, do DL nº 2-A/2020, de 20-03, (entretanto revogado pelo D.L. nº.2-B/2020 de 02.04, por sua vez revogado pelo D.L.nº.2-C/2020 de 17 de abril ), Despacho de 19.03.2020 da Exma. Delegada Saúde Regional Adjunta do Norte, artigo 1.º, art.º2 nº.2 e art.º 14.º, ambos do C.P., 120.º, n.º 2, al. d), 127.º 168.º, 169.º, 340.º 374.º, 410.º, n.º 2, al. a), b) e c), do C.P.P., 19.º n.º 4 e 8, 27.º e 44.º da C.R.P.
3.ºII – Pontos concretos da matéria de facto que o Recorrente considera incorrectamente julgados: Ponto 3, 4, 8, 9, 10 e 12.
4.ºIII – As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida:
Os documentos, depoimento e factos públicos e notórios que infra se discriminam. Porto - Avenida …. – Tel.: …
5.ºA sentença “a quo” enferma dos vícios previstos no art.º 410 nº 2 al. a), b) e c) do CPPenal. Assim, considera o aqui Recorrente que face à prova produzida, os pontos da matéria de facto dada como provada, supra referidos, deveriam ter sido dados como não provados, sendo:
6.ºRelativamente à matéria dada como provada no ponto 3, considera o aqui arguido que da prova produzida não resulta demonstrada a regularidade da notificação de fls. 8, cujo alcance probatório o aqui Recorrente impugna. No Auto de fls. encontra-se anexada a dita notificação, alegadamente recepcionada via e-mail, pelo autuante, que sequer se encontra devidamente certificada por confronto com o respetivo documento original, mostrando-se mesmo ilegível a identificação do autuante, assim como se a tal acto de notificação assistiu alguma testemunha, conforme exigível ut artigo 168.º do C.P.
7.ºSendo certo que, tal documento poderia ter sido valorado ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (art.º artigo 127º do CPP), embora não equiparável ao do documento original ou autenticado, sempre implicaria a necessária fundamentação nesse sentido, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 2, do C.P.P., sem o que, ocorrenulidade que aqui expressamente se invoca.
8.ºOra, o Tribunal recorrido interpretou aquela notificação como fazendo «fé em juízo», refletindo-se na apreciação probatória como «erro notório na apreciação da prova», com vício de facto previsto no art. 410º, n. 2, al. c) do CPP.
9.ºPelo exposto, o Tribunal “a quo” deveria ter dado como não provado o ponto 3.º dos factos provados, uma vez que não constam dos Autos elementos probatórios suficientes que permitam concluir pelo cumprimento regular da notificação para cumprimento de isolamento profilático. Pandemia e pandemónio não se confundem e o princípio da legalidade não hibernou.
10.ºRelativamente ao ponto 4 reiterando o supra exposto, a simples junção aos autos do documento supra referido não se afigura suficiente para assegurar o cumprimento da notificação e advertência legalmente prevista, o que apenas se lograria através da inquirição da testemunha Autuante, que alegadamente notificou e advertiu o aqui Recorrente da obrigatoriedade de isolamento profilático, a fim de se perceber o alcance da notificação efectuada e o que foi transmitido por este ao aqui Recorrente, isto é, do alcance e âmbito da ordem dada. Neste sentido o Ac. TRP de 11-09-2013, 597/11.0EAPRT-A.P1, Relator: Alves Duarte, in www.dgsi.pt.
11.ºNos Autos quanto a tal matéria constam, exclusivamente, as declarações do Arguido, prestadas em sede de audiência de julgamento.
Assim e no que se refere às declarações do arguido, aos minutos 05:25 “Arguido: Recebemos e se calhar também foi um bocado falta de comunicação, porque a GNR disse que a gente poderia sair para ir às compras.”
12.ºOra aquilo que resulta das declarações do Arguido quanto ao teor daquilo que lhe foi transmitido pelo Sr. Agente autuante, foi que “poderiam ir às compras”. Tal versão não se mostra contraditada por quem seja, nem tão pouco a contradita do Tribunal “a quo”, expressa durante a audiência de julgamento assume qualquer relevância ou valor jurídico.
13.ºO Conceito de isolamento profilático, s.m.o. não passa de um simples conceito, que cumpre concretizar, designadamente especificando em que é que consiste, se são permitidas saídas para aquisição de bens alimentares, deslocações a farmácias, etc, o que não encontra apreciação na sentença “a quo”.
14.ºOra na fundamentação da matéria de facto, o Tribunal “a quo” referencia que “Não cuidaram de saber junto das autoridades, mesmo policial, onde poderiam adquirir bens”.
Tal não corresponde à verdade, como decorre das declarações do arguido, aos minutos 04:00 “Sra. Procuradora: Os senhores tentaram junto da.. das pessoas que moram perto da casa onde vocês arrendaram saber onde é que podiam comprar alimentos? Arguido: A gente falou com a GNR quando eles tiveram la.. Sra. Procuradora: Não, eu estou a perguntar que ali moram. Arguido: Às pessoas não, porque as pessoas.. também não há por ali muitos vizinhos. E a gente não conta..”
Também aos minutos 05:30 “Sra. Procuradora: Por isso não tiveram o cuidado de saber ali por perto do sítio onde vocês estavam saber se havia algum local onde pudessem fazer compras? Arguido: A gente na altura perguntou à GNR eles disseram que não havia padeiro por perto e não havia.. nós tentamos nos informar.”, versão esta que não foi cotejada por qualquer meio de prova produzido, cuja inquirição o Tribunal “a quo” podia e devia ter promovido, mesmo com o sumário emprestada nos autos. Tal fundamentação afigura-se no mínimo obscura e contraditória, inquinando a sentença com contradição insanável entre os fundamentos, nos termos previstos no artigo 410.º, n.º 2, al. a) do C.P.P.
15.ºPelo exposto considera o aqui Recorrente que o constante do ponto 4, dos factos provados, também deveria ser dado como não provado.
16.ºO mesmo se diga dos pontos 8, 9, e 10, atenta a interdependência e complementaridade entre os mesmos.
Declarou o arguido, aos minutos 05:25 “Recebemos e se calhar também foi um bocado falta de comunicação, porque a GNR disse que a gente poderia sair para ir às compras.”
Mais declarou aos minutos 01:57 “Arguido: Senhor doutor juiz a gente apenas se deslocou para vir às compras, já estava a faltar pão e carne e foi o que a gente fez. A gente também não pode morrer à fome. M. Juiz: Pois não. Mas os senhores não tinham outro sítio para ir às compras? Arguido: A gente não conhece, somos de ..., alugamos ali a casa, a gente não conhece, metemo-nos no carro, viramos à esquerda e fomos andando até encontrar uma coisa aberta.”
17.ºDa prova produzida, s.d.r, não resultou demonstrado que o aqui Recorrente tenha ficado ciente dos deveres e obrigações que sobre si recaiam, designadamente que não pudesse sair da habitação para a aquisição de bens essenciais ou mesmo acompanhar, sem sair da viatura, uma vez que se encontrava a muitos quilómetros da sua residência, isto sem prescindir do invocado vicio de não demonstração da notificação e advertência de que se não cumprisse a ordem incorria na prática do crime de desobediência.” .
18.ºNo que diz respeito ao elemento subjectivo do tipo, este crime é um crime doloso, o mesmo é dizer que, para a sua verificação se exige o dolo, em qualquer das suas modalidades enunciadas no art.º 14.º, do Código Penal (directo, necessário ou eventual).
Ora, in casu, considera o aqui Recorrente que o elemento subjetivo do tipo não foi demonstrado, isto é, os factos dados como provados nos pontos 8, 9 e 10 deveriam ter sido dados como não provados.
19.ºO mesmo se diga do facto constante do ponto 12 dos factos provados, que não se encontra fundamento válido para fazer parte dos factos provados, ainda que estejamos perante um processo de natureza sumária. O Tribunal “a quo” fundou tal conclusão na mera declaração do Arguido, aos minutos 03:00 “M: Juiz: Quanto é que senhor ganha por mês? Arguido: Nós estamos a trabalhar lá e estamos a ganhar 1.500 euros por mês. M. Juiz:
Mas já com os extras? Com o.. horas extras, com os outros valores ou isto é o ordenado base?
Arguido: Isso é o ordenado, eles pagam o alojamento e.. pagam as viagens.”, no seguimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21-12-2007, P. 101/12.2PATNV.E1, Relator: Ana Barata Brito, in www.dgsi.pt.
20.ºAssim, o ponto 12 dos factos provados deveria ter sido dado como não provado.
21.ºCumpre ainda referir que o Tribunal “a quo” valorou o Auto de notícia por detenção, contudo e s.d.r. não o poderia fazer como fez, uma vez que o Autuante A. B. não foi ouvido em sede de Audiência de Julgamento, nem mesmo a testemunha id. no Auto, cujo depoimento foi prescindido. Neste sentido o Acórdão TRP de 11-09-2013, 597/11.0EAPRT-A.P1, Relator: Alves Duarte, in www.dgsi.pt e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28 de Janeiro de 2014, P.467/13.7TBLGS.E1, Relator: João Gomes Sousa, in www.dgsi.pt
22.ºO aqui Recorrente dá aqui por reproduzidos os fundamentos de direito supra referenciados e que permitem desde logo colocar em crise a verificação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo, constantes do artigo 348, n.º 1, al. a), do C.P.P. e que só por si, implicariam a absolvição do Arguido.
23.ºComo é de conhecimento público, e publicitado em todos os meios de comunicação social
– v.g https://www.saudemais.tv/noticia/10652-covid-19-camara-de-chaves-pede-ao- governo-retoma-do-isolamento-profilatico-obrigatorio - o despacho da Exm.ª Delegada de Saúde Regional Adjunta do Norte, de 19.03.2020 como outros proferidos, nas mesmas circunstâncias, foram revogados, a 26 de Março, p.p., pela Direcção Geral de Saúde, por considerar que “as medidas de defesa de saúde pública de âmbito municipal, regional ou nacional” que envolvam “restrições colectivas à circulação de pessoas provenientes do estrangeiro ou de outras regiões” devem passar a ser comunicadas à directora-geral de Saúde, “previa e fundamentadamente”, para “efeitos de coordenação das medidas excepcionais a implementar”.
24.ºNa verdade, tal suspensão e posterior revogação surgiram da recomendação efectivada pela Exma. Sra. Provedora de Justiça, M. L., disponível in http://www.provedor-jus.pt/?idc=68&idi=18247., por respeito pelos mais elementares princípios constitucionalmente previstos, da proporcionalidade e razoabilidade, no seguimento dos artigos 19.º, n.º 4 e 8, 27.º e 44, n.º 2, da CRP, sob pena de inconstitucionalidade.
25.ºPelo exposto, resulta que no caso em apreço, não se pode prefigurar a legalidade formal e substancial do despacho proferido pela Exma. Delegada de Saúde Regional Adjunta do Norte, por se afigurar que não dispunha de competência e legitimidade própria para o efeito, assim como por violar os mais basilares princípios constitucionais vigentes, relativos a direitos, liberdades e garantias individuais, motivo pelo qual foi ordenada a respetiva revogação.
26.ºMais, e em abono da tese expendida, no dia 27.03.2020, facto publico e notório, que se invoca, a Lusa tornou público: “DGS não recomenda isolamento a pessoas vindas dos estrangeiro. A Direção-Geral da Saúde (DGS) não recomenda o isolamento para as pessoas que regressam a Portugal de uma área com transmissão comunitária ativa pelo novo coronavírus, como o norte de Itália, China, Coreia do Sul, Singapura ou Japão. O despacho hoje publicado pela Direção-Geral da Saúde (DGS) considera que "não existe recomendação para evicção escolar ou profissional, ou necessidade de isolamento” para “as crianças, jovens e adultos que regressem de uma área com transmissão comunitária ativa do novo coronavírus, como o Norte de Itália, China, Coreia do Sul, Singapura, Japão ou Irão”. Contudo, a DGS aconselha que, durante os 14 dias seguintes ao regresso a Portugal, as pessoas vigiem a temperatura duas vezes por dia, que estejam atentas ao aparecimento de febre, tosse ou dificuldades respiratórias.”, disponível em https://www.saudemais.tv/noticia/8994-dgs-nao- recomenda-isolamento-a-pessoas-vindas-dos-estrangeiro.
27.ºOra, se a isso somarmos a redacção introduzida pelo DPR nº.20-A/2020 de 17 de abril, constata-se que, contrariamente ao vertido no DPR nº.14-A/2020 de 18 de março e no DPR nº.17-A/2020 de 02.04, actualmente, verte a al. a) do n.º.4 que fica parcialmente suspenso o exercício dos seguintes direitos: a)Direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional: podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as restrições simétricas ou assimétricas, designadamente em relação a pessoas e grupos etários ou locais de residência, que, sem cariz discriminatório, sejam adequadas…”, precisamente na esteira da recomendação da Sra. provedora da Justiça, ou seja, sem prejuízo da revogação operada pela DGS, é o próprio DPR nº.20- A/2020 de 17 de abril, quem vem afastar tal imposição “tout court” aplicável aos emigrantes, como o arguido Recorrente, salvo se adequadas ou justificadas, o que não sucede com o Recorrente e com referencia ao caso sub-judice, que não pode assim deixar de beneficiar por um lado do principio nullum crime sine legem ( art.º1 do C.P.), ou se assim não se entender o que se admite poo mera hipótese de raciocínio, do beneficio ínsito no nº.2 do artº.2 do C.P:, desaguando em ambas situações na necessária absolvição do Recorrente.
28.ºSem prejuízo de tudo quanto se invocou supra, que implicará a absolvição tout court do Arguido, caso assim não se entenda, o que apenas se admite por hipótese de raciocínio, sempre o mesmo deveria beneficiar do princípio do in dúbio pro reu.
29.ºOra, nos Autos tais dúvidas, face à prova produzida afiguram-se insuperáveis, na perspetiva do aqui Recorrente, designadamente e desde logo no que se refere à regularidade e alcance da notificação constante de fls. 8. Na verdade, atenta a sensibilidade e novidade da questão de fundo, na origem dos presentes Autos, é notória a existência de dúvidas por parte de todos, seja dos cidadãos comuns, seja dos próprios agentes policiais.
Assim pode ler-se in https://www.publico.pt/2020/04/17/sociedade/noticia/duvidas-crime- desobediencia-governo-aconselha-pedagogia-punicao-1912738 “O Governo assume problemas no crime de desobediência…”.
30.ºOra na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal “a quo”, imputa ao Arguido a prática do crime de condução em estado de embriaguez, p.p no artigo 292.º, n.º 1, do C.P., o que configura nulidade, nos termos previstos no artigo 374.º do C.P.., que aqui expressamente se invoca.
31.ºIn casu, o Tribunal “a quo”, entendeu, desproporcionalmente e sem fundamentação, na óptica do aqui Recorrente, fixar-lhe o limite máximo da moldura penal prevista (120 dias), sem atender a todas as circunstâncias que depunham a seu favor:
-O aqui Recorrente motu próprio, vindo do estrangeiro, optou por arrendar uma casa em Ribeira de Pena, assumindo o pagamento dos respetivos custos, quando poderia ter continuado a sua viagem e regressado à sua casa.
- Deslocou-se ao exterior a fim de adquirir bens essenciais, pão e outros alimentos, uma vez que já haviam decorrido 3 dias desde a sua chegada a Portugal e não dispunham, dos mesmos. Disse aos minutos 01:57 “Arguido: Senhor doutor juiz a gente apenas se deslocou para vir às compras, já estava a faltar pão e carne e foi o que a gente fez. A gente também não pode morrer à fome. M. Juiz: Pois não. Mas os senhores não tinham outro sítio para ir às compras? Arguido: A gente não conhece, somos de ..., alugamos ali a casa, a gente não conhece, metemo-nos no carro, viramos à esquerda e fomos andando até encontrar uma coisa aberta.”
-Deslocou-se numa viatura automóvel, apetrechado dos necessários meios de protecção (máscara, luvas e desinfetante). Disse aos minutos 02:20 “…fomos comprar pão, só saíram da viatura com máscara e com luvas.”
-Foi-lhe transmitido pelo agente de autoridade que o poderiam fazer. Aos minutos 05:25 “Arguido: Recebemos e se calhar também foi um bocado falta de comunicação. porque a GNR disse que a gente poderia sair para ir às compras.”
-Não ficou demonstrado nos Autos que o aqui Recorrente padecesse de qualquer doença infecto-contagiosa, designadamente COVI-19 ou estivesse infectado com SARS – Cov2.
-Não ficou ainda demonstrado, que o aqui Recorrente tenha por qualquer meio e forma atentado contra a saúde pública ou particular de quem quer que seja.
32.ºSendo certo que, os fins ou motivos que o determinaram a saída da habitação – que o próprio arrendou de per si e cautelarmente- e consequente deslocação, afiguram-se legítimos e necessários, sendo, na perspetiva do aqui Recorrente, manifestamente desproporcional a medida da pena aplicada, em conjugação com os factos dados como provados e com as regras da experiência comum, tanto mais que, ao nível da prevenção especial se deu como provado que o aqui Recorrente se encontra social, profissional e familiarmente inserido, não detendo antecedentes criminais pela prática do mesmo crime.
33.ºNo que se refere ao quantitativo diário fixado, o mesmo merece igualmente a dissidência do aqui Recorrente, uma vez que se afigura manifestamente desproporcional e revel às regras da experiência comum e normal acontecer, sem que se alcance qualquer fundamentação ou itinerário cognoscitivo que permita alcançar como se definiu tal valor.
34.ºPelo que a manter-se a condenação pelo crime que lhe vem imputado, o que apenas se admite por hipótese académica, sempre deveria ser expressivamente reduzida a pena aplicada, quer no que se refere à medida da pena, que no que se refere ao seu quantitativo diário, para o limite mínimo.
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O recurso foi corretamente recebido.
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A ele respondeu em primeira instância o ministério público, pugnando pela sua improcedência.
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Após a remessa dos autos a este tribunal, idêntica posição voltou a ser assumida pelo ministério público.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP).
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Após os vistos, realizou-se conferência.

II.
Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
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As matérias que o recorrente traz à apreciação deste tribunal são:

- Errado julgamento da matéria de facto (pontos 3, 4, 8, 9, 10 e 12);
- Vícios do artigo 410º, nº 2 alíneas a), b) e c) do CPP;
- Não verificação do crime de desobediência;
- Violação dos artigos 19º, 4 e 8, 27º, 44, nº 2 da Constituição da República Portuguesa;
- In dubio pro reo;
- Medida concreta da pena.
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É a seguinte a matéria de facto fixada em 1ª instância e respetiva fundamentação.

A. Factos provados:

Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão a proferir, os factos seguintes:

1) O arguido, acompanhado de três indivíduos, no dia - de Março de 2020, entrou em Portugal, através da fronteira de Vilar Formoso, vindo da Bélgica.
2) Dirigiu-se, acompanhado dos outros indivíduos, para …, Vila Pouca de Aguiar, onde arrendou uma casa, na Rua …, Ribeira de Pena.
3) Nesse mesmo dia, 22 de Março de 2020, o arguido foi notificado pela GNR de Ribeira de Pena, para cumprir obrigatoriamente o isolamento profiláctico, pelo período de 14 dias, a contar do dia 22 de Março de 2020, por ter regressado da Bélgica, ordem essa emanada pela Autoridade de Saúde Regional Adjunta do Norte.
4) Foi igualmente notificado e advertido de que se não cumprisse a ordem incorria na prática do crime de desobediência.
5) No dia 25 de Março de 2020, pelas 15h40, o arguido, acompanhado de três indivíduos, circulava no veiculo automóvel de marca Dacia, Lodgy, matricula ZV, na Av. …, em Chaves.
6) Encontravam-se os agentes da P.S.P. de Chaves, em missão de fiscalização quando deram ordem de paragem ao veículo onde seguia.
7) Verificaram que o arguido estava obrigado a cumprir o isolamento profiláctico e que o prazo que lhe havia sido determinado ainda não tinha terminado.
8) Não obstante ter ficado ciente dos deveres e obrigações que sobre si recaíam face à ordem que lhe foi dada, o arguido não os observou, tendo saído da residência e se dirigido à cidade de Chaves, antes de terminar o prazo que lhe havia sido determinado.
9) O arguido sabia que não podia sair de casa, pois encontrava-se em confinamento obrigatório no domicílio, determinado pela Autoridade de Saúde e que ao fazê-lo incorria na prática de um crime de desobediência, por desrespeitar e não acatar essa ordem.
10) O arguido agiu livre voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e mesmo assim não se absteve de a concretizar.
11) O arguido é carpinteiro de construção civil na empresa de duas das pessoas que o acompanhavam,.
12) Aufere um vencimento mensal de 1500,00€, a que acresce casa, bem como as deslocações a Portugal que ficam por conta da empresa.
13) Em Portugal, vive com a esposa e um filho de 11 anos de idade.
14) A esposa não trabalha.
15) Vive em casa própria.
16) Nada consta no certificado de registo criminal do arguido.
*
B. Factos não provados:

Inexistem factos não provados.
*
C. Fundamentação da convicção do tribunal

A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria nos termos do art.º 127.º do Código de Processo Penal, da prova produzida e/ou examinada em audiência de julgamento, designadamente e no essencial, com base nos documentos juntos aos autos, em conjugação com as declarações do arguido.
No que se refere à matéria de facto referente à infracção criminal imputada ao arguido, designadamente a dada por provada sob os números 1) a 10), o Tribunal atendeu à regular notificação de fls. 8 e, sobretudo, às declarações confessórias, na sua quase totalidade, do arguido, confirmando os factos de que estava acusado, com excepção da parte em que refere que quis incumprir a ordem que lhe foi emanada pela autoridade de saúde, pois que apenas quis ir às compras de bens essenciais.

Ora, nesta parte não confessada, não se atribuiu qualquer credibilidade à versão apresentada pelo arguido, sobretudo pela contradição existente nas suas declarações e por força das regras da experiência comum e do normal suceder das coisas.

Senão vejamos.

Pese embora o arguido tenha explicado que veio ele e mais quatro pessoas para Portugal, por estarem a apertar as regras de emergência na Bélgica, mostrou- se ciente da necessidade de isolamento profiláctico para o que arrendaram uma casa em Ribeira de Pena, na verdade não conseguiu dar qualquer explicação plausível para a sua presença, na companhia de três desses indivíduos, em Chaves, ou seja, a pelo menos 55 km de distância daquela localidade.
Não colhe a versão de que vieram a Chaves por necessidade de adquirir bens essenciais, pois que bem sabiam que para suprir essa necessidade poderiam tê-lo feito em Ribeira de Pena, localidade onde residem temporariamente, ou até em Vila Pouca de Aguiar, em menor distância.
Não se pode crer que os habitantes da vila de Ribeira de Pena não existam padarias ou estabelecimentos comerciais de venda de bens essenciais, como carne, pois que não há notícia de que os habitantes de tal localidade se tenham que deslocar para o exterior para o fazerem.
Também não se explica o porquê de o arguido se fazer acompanhar de três pessoas para o efeito, quando uma só pessoa o pode e deve fazer, evitando grande aglomeração de pessoas em espaços públicos e de atendimento pessoal, como supermercados, minimercados, etc.
Bem sabia o arguido que não poderia aproveitar esse motivo para passear por Chaves, como bem e expressamente referiu dizendo que “veio espairecer e dar uma volta”, sendo que eles também estavam com a mesma obrigação, tendo sido notificados da mesma forma pela autoridade policial competente.
Não cuidaram de saber junto das autoridades, mesmo policial, e dos demais habitantes dos locais onde poderiam adquiri bens de consumo em Ribeira de Pena ou nas suas imediações, o que poderiam e deveriam ter feito, atentas as suas circunstâncias e limitações.
Por força dos mesmos meios de prova e da forma como actuou o arguido, nenhuma dúvida ressumou de que não obstante ter ficado ciente dos deveres e obrigações que sobre si recaíam face à ordem que lhe foi dada, o arguido não os observou, tendo saído da residência e se dirigido à cidade de Chaves, antes do decurso do prazo que lhe havia sido determinado. Também que o arguido sabia que não podia sair de casa, pois encontrava-se em confinamento obrigatório no domicílio, determinado pela Autoridade de Saúde e que ao fazê-lo incorria na prática de um crime de desobediência, por desrespeitar e não acatar essa ordem, agindo livre voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e mesmo assim não se abstendo de a concretizar.
Relativamente à matéria de facto sobre a situação económica, social e familiar do arguido, dada como provada sob os números 11) a 15), nas declarações por ele a esse propósito prestadas, cujas declarações se nos afiguraram, neste particular, coerentes e, por isso mesmo, merecedoras de total credibilidade, não abaladas por qualquer outro meio de prova, atenta a natureza sumária dos autos.
No que concerne à ausência de antecedentes criminais, facto provado sob o número 16), o mesmo foi apurado com referência ao teor do Certificado de Registo
Criminal junto aos autos.
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Apreciação do recurso

Questão prévia: na sentença recorrida, a folhas 30 dos autos, é referida a moldura abstrata da pena aplicável ao crime de condução em estado de embriaguez. Trata-se de um manifesto lapso, uma vez que nestes autos está apenas em causa a prática de um crime de desobediência.

Assim, dever-se-à considerar não escrita a referência que na sentença recorrida é feita ao crime de condução em estado de embriaguez ( art. 380 nº 1 b) e 2 do CPP).
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De entre as várias questões trazidas pelo recorrente à apreciação deste tribunal, uma delas precede a apreciação das demais, qual seja a que se refere à violação de preceitos constitucionais. De facto a Constituição não pode deixar de ser, em qualquer circunstância, a referência do direito ordinário, a sua matriz, o seu limite. E nem a circunstância de os factos em apreço terem ocorrido num período excecional da vida do País permite que sejam postergados os princípios que regem a vida e a intervenção do ius puniendi em sociedade, v.g, o princípio da legalidade e os corolários nele ínsitos, como são os princípios do Estado de direito e o princípio democrático, cujo exponente máximo se encontra no art.º 165.º da Constituição da República Portuguesa. E assim é porque sendo “o direito penal aquele ramo de direito que mais perigosamente põe em cheque as liberdades individuais dos cidadãos, estamos em presença do domínio por excelência em que se exige a intervenção do órgão que mais diretamente represente o povo, a Assembleia da República, no processo de criação do direito” (cfr. Francisco Borges in O Direito de Desobediência à luz da Constituição, Almedina, 2011, 19.)
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de desobediência p.p. art.º 348.º nº 1 al. a) do Código Penal e arts.º 3.º nº 1 al. b) e 2 do Dec. 2-A/2020 de 20/03.
Este último diploma, na sua génese e no que respeita ao crime de desobediência, não respeita a Constituição por violar a reserva relativa de competência da Assembleia da República, razão pela qual se impõe a sua análise, dadas as consequências que terá na solução a dar ao presente recurso.

Vejamos.

Dispõe o art.º 348 do Código Penal sob a epígrafe “Desobediência” que:

1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondentecominação.
2 - (…)


Por outro lado, no Dec. 2-A/2020 de 20/03 do Governo, que procede à execução da declaração do estado de emergência decretado pelo Presidente da República ( Dec. PR 14-A/2020 de 18/03), ficou a constar, no art.º 3º, com a epígrafe “Confinamento obrigatório” que:

1 - Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respetivo domicílio:
a) Os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-Cov2;
b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa.
2 - A violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos no número anterior, constitui crime de desobediência.

É, pois, com base nesta norma que o recorrente foi punido.
E, foi, porque tendo regressado da Bélgica, em 22/03/2020, foi notificado pela GNR de Vila Real, que lhe entregou a Determinação da Delegada de Saúde Regional Adjunta do Norte ( fls. 8 e 9) de que deveria “cumprir obrigatoriamente o isolamento profilático pelo período de catorze (14) dias a contar da data da chegada a Portugal, em 22/03/2020” e que “o não acatamento da presente ordem fá-lo incorrer na prática do crime de desobediência do nº 2 do artigo 3º do Decreto 2-A/2020 de 20.3”.
Portanto, com a entrada em vigor do Decreto 2-A/2020 de 20.03 foi criado um crime de desobediência específico e foi por este crime que o recorrente foi punido.
Ocorre que a criação de tipos de ilícitos criminais é matéria da reserva relativa da Assembleia da República, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 165º da CRP.

Efetivamente a CRP no artigo 165º dispõe que: 1- É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:

a) (…)
b) Direitos, liberdades e garantias;
c) Definições de crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos, bem como processo criminal.
(…)
Assim sendo não há dúvida de que a criação de novos crimes compete à AR em primeira linha, podendo também competir ao Governo, mas apenas com autorização da AR. E não é o facto de o tipo de ilícito previsto no artigo 3º do Dec. 2-A/2020 não ter moldura penal própria - uma vez que remete para o crime de desobediência previsto no artigo 348º do Código Penal – que afasta este entendimento, já que no tipo de ilícito previsto no referido Decreto está objetivada a realidade que a lei passou a punir como crime de desobediência ( que, no que para agora interessa, é a violação do confinamento por parte dos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado vigilância ativa).

Poder-se-ia questionar este entendimento com o argumento de que estando o País em estado de emergência, como estava, - decretado pelo Presidente da República na sequência da Resolução da Assembleia da República 15-A/2020 que autorizou a declaração de estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, abrangendo todo o território nacional, - passava a ser inexigível observar os preceitos constitucionais, tal como se mostram definidos.
Ocorre que é a própria Constituição que impede o afrouxamento das exigências quanto ao cumprimento das regras de competência de cada um dos órgãos de soberania, ao estatuir no artigo 19º, nº 7 que “a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e do governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares”.
É certo que no nº 8 do mesmo artigo 19º é dito que a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência confere às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional, mas tal não colide com a exigência de cada órgão de soberania manter a sua competência própria intangível, mesmo em estado de emergência.
Ora, não há dúvida que, também em estado de emergência a qualificação de um determinado comportamento como crime, continua a ser da competência da Assembleia da República, salvo autorização ao governo.

É verdade que no Decreto 2-A/2020 de 20.03 ficou expresso que as medidas nele previstas o foram ao abrigo da alínea g) do artigo 199º da Constituição, mas tal não basta.

Dispõe a referida norma com a epígrafe “Competência administrativa” que:

Compete ao Governo, no exercício de funções administrativas

(…)
g) Praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas.

O Governo antes de a invocar teve o cuidado de em jeito de preâmbulo referir que a “situação excecional que se vive e a proliferação de casos registados de contágio de Covid-19 exige a aplicação de medidas extraordinárias e de caráter urgente de restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita com direitos de circulação e às liberdades económicas, em articulação com as autoridades europeias, com vista a prevenir a transmissão do vírus.
(…) urge adotar as medidas que são essenciais para propositadamente, restringir determinados direitos para salvar o bem maior que é a saúde pública e a vida de todos os portugueses.
(…) Estas medidas devem ser tomadas com respeito pelos limites constitucionais e legais, o que significa que devem, por um lado, limitar-se ao estritamente necessário e, por outro, que os seus efeitos devem cessar assim que retomada a normalidade”.
Se as considerações expostas ajudam a perceber a preocupação em conter a propagação do vírus, não podem fazer esquecer o respeito devido pelos fundamentos democráticos da sociedade, porque “a democracia não poderá ser suspensa”, o certo é que a criação de um novo tipo de crime vai, obviamente, muito para além da competência administrativa invocada para a regulamentação do estado de emergência, pelo que não há dúvida de que o Decreto 20-A/2020 ao definir um novo tipo de crime, invade a competência legislativa que lhe não compete e que só competiria se tivesse sido prevista por uma lei de autorização legislativa. É também nisto que consiste o princípio do Estado do direito democrático estabelecido no artigo 2º da CRP.
Acresce que olhando o teor da Resolução da Assembleia da República 15-A/2020 de 18/03 que autorizou o Presidente da República a declarar o estado de emergência, não se retira dela que contenha uma autorização para que o Governo pudesse criar um novo tipo de crime. Não basta estatuir que ficam parcialmente suspensos alguns direitos, nomeadamente o direito de deslocação, para daí retirar sem mais a aceitação de que a suspensão de direitos implica automaticamente a criminalização das condutas.

Vejamos agora a questão por outro prisma.

A lei 44/86 de 30-9, que regula o regime do estado de sítio e do estado de emergência, no seu artigo 7º prevê que “a violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência”.
Trata-se de um crime de desobediência que não é praticável pelos cidadãos em geral, mas tão só por titulares de cargos políticos. ( Não se ignora que, por exemplo, André Lamas Leite in “ Desobediência em tempos de cólera”- Revista do Ministério Público- Nº Especial Covid-19: 2020, pág. 15 e ss defende entendimento contrário, mas sem a consideração do que foi decidido pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias aquando da 2ª alteração à lei 44/86 de 30.09, a que faremos referência infra). De facto, se atentarmos na redação original do referido artigo 7º (com a epígrafe Crimes de responsabilidade) constatamos que aí é estabelecido que a violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quando à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de responsabilidade”. Foi a lei orgânica 1/2012 de 11/05 que alterou a designação de crime da responsabilidade para crime de desobediência, mas tal traduziu-se não num alargamento quanto a possíveis autores do ilícito, mas a uma mera atualização de referências e conceitos legais (cfr Parecer sobre o projeto de lei nº 146/XII/1ª da Comissão de Defesa Nacional e Nota Técnica da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, referidos por Alexandre Au-Yong Oliveira in Estado de emergência – Covid 19, Implicações na Justiça (Jurisdição Penal e Processual Penal, 440– salientando o que consta em especial da p. 5 (e não 8, como é dito por mero lapso) do Parecer e p.4 da Nota Técnica, com data de 08/02/2012). Refere, ainda, o mesmo autor que se fosse possível a interpretação ampla segundo a qual o legislador, com a remissão para o crime de desobediência prevista no artigo 7º, pretendia “abarcar de forma geral e abstrata, a violação de todos os atos de execução do estado de exceção, independentemente da forma que assumissem e da respetiva importância” tal seria “tanto mais grave no presente estado de emergência, quanto nos Decretos emanados pelo Presidente da República e na Resolução da Assembleia preveem inclusivamente, a suspensão do direito de resistência.
E acrescenta com razão: Neste contexto, se esta interpretação fosse correta seriamos como que devolvidos a um Estado manifestamente autoritário, sendo exigível ao cidadão comum uma obediência cega a qualquer ato de execução emitido por um qualquer agente administrativo (sem qualquer ponderação de proporcionalidade e do caso concreto), o que não nos parece, de todo, que tenha sido a intenção do legislador, nem quando elaborou (ou alterou) o RESEE, nem quando decretou o presente estado de emergência, nem sequer do atual governo quando regulamentou a sua execução.”.
Impõe-se, pois, a conclusão de que o Governo não se mostrava habilitado a definir matéria criminal, como o fez no nº 2 do artigo 3º do Decreto 2-A/2020 de 20 de março.
E assim sendo, como norma ferida de inconstitucionalidade orgânica que está, é inválida pelo que nela não pode sustentar-se a condenação do recorrente.

Mas mesmo que assim se não entendesse há ainda um outro ponto de vista a ter em conta.
O recorrente foi notificado ( Fls. 8 e 9 ) de que por ter “regressado da Bélgica devia cumprir obrigatoriamente o isolamento profilático pelo período de 14 dias a contar da data da chegada a Portugal”. A notificação foi emitida na “sequência da determinação da Senhora Delegada de Saúde Regional Adjunta do Norte, de 19/03/2020, cuja cópia lhe foi entregue”.
A este propósito pronunciou-se em 24.03.2020 a Senhora Provedora de Justiça quando ao ter conhecimento de Determinações de autoridades de saúde, como a que deu origem aos presentes autos ( fls. 9), enviou à Senhora Diretora Geral de Saúde um ofício ( acessível na página do Provedor de Justiça) chamando a atenção para o facto de “ os poderes e competências conferidos pelo nosso direito às autoridades de saúde, só podem ser legitimamente exercidos quando observados os limites que se lhes impõem. Aliás, tais limites vêm rigorosamente identificados nos instrumentos legais(…).São eles os limites que decorrem da Constituição e da lei(…) os limites que decorrem da necessária distinção entre o direito aplicável em situação de normalidade constitucional e o direito aplicável em situação – como é aquela que agora vivemos – de estado de emergência ou de exceção constitucional (…).
E mais à frente, depois de questionar tais Determinações sob o ponto de vista formal, veio a dizer: “ Por outro lado, e sob o ponto de vista substancial, se dúvidas sempre haveria mesmo em tempos de regularidade e de normalidade, sobre a adequação, necessidade e proporcionalidade das medidas tomadas, em tempos de exceção tais dúvidas tornam-se a meu ver ainda mais prementes.
Determinaram as autoridades de saúde que, na área territorial da sua responsabilidade, permanecessem em isolamento profilático durante o período de 14 dias todos os cidadãos que regressassem do estrangeiro.(…). É, porém, duvidoso que o critério simples do regresso do estrangeiro – sem quaisquer outras exigências – seja só por si fundamento adequado para prosseguir a finalidade que se visa atingir. Mas mais duvidoso é ainda que a um tal critério cego (…) se junte o critério de se ser cidadão, presume-se que nacional. Fica por explicar a razoabilidade e, portanto, a adequação e necessidade da medida: só os cidadãos portugueses serão potenciais focos de contágio, pelo simples facto de regressarem do estrangeiro? (…) Importa não esquecer que é em tempos como estes que nos devemos manter especialmente fieis à ideia de proporcionalidade na afetação dos direitos e liberdades fundamentais. (…)
Na sequência desta chamada de atenção, a Diretora Geral de Saúde veio a revogar as recomendações de isolamento profilático determinadas pelas decisões das autoridades de saúde regionais, entre as quais a que deu origem aos presentes autos, passando as orientações a ter de ser emanadas centralizadamente pela própria DGS.
Portanto, a Determinação alegadamente violada que deu origem a estes autos, foi abolida, deixando, portanto, de ser válida e também ela de sustentar a condenação do recorrente.

Mas não podendo, portanto, também por esta via, ser o recorrente punido nos termos do nº 2 do artigo 3º do Decreto 2-A/2020 de 20/03, nem por isso a questão se pode considerar esgotada, uma vez que se impõe saber se o poderia ser ao abrigo do artigo 348º do Código Penal, isto é, se na ausência de uma disposição legal que cominasse no caso a punição por desobediência, a autoridade policial poderia fazer a correspondente cominação (artigo 348º, nº 1, alínea b) do CP).
É incontroverso que a vida em sociedade exige o cumprimento pela generalidade dos cidadãos de ordens legítimas que sejam dadas pelas autoridades policiais.
De facto, o crime de desobediência visa garantir aquilo a que comummente se chama a “autonomia intencional do Estado” a qual fica posta em causa quando ocorre desobediência aos comandos legítimos emanados das autoridades que representam em diversas áreas do Estado, o próprio Estado. Portanto o que justifica a previsão do crime é “ a defesa do Estado de direito que não pode permitir que as decisões do poder democrático e conformes ao direito na sua globalidade, não sejam, na sua generalidade, cumpridas pelos seus destinatários, sob pena de a autoridade atribuída pela Constituição se diluir na arbitrariedade e na negação do direito” (Cfr. Francisco Borges in O Crime de Desobediência à luz da Constituição- Almedina, 2011,66).
O tipo legal exige que a ordem ou mandado legítimo seja emitido por autoridade ou funcionário competente, não restando dúvida de que a GNR, enquanto força de segurança, poderia emitir ou fazer executar uma ordem de recolhimento no caso de violação de obrigação legitimamente imposta ( art. 348 nº 1 b) do CP), evidentemente numa atuação sempre balizada pelos princípios que regem a intervenção penal, o da necessidade da pena e da proporcionalidade da intervenção penal, mas sempre sem esquecer que a vida em sociedade não é possível sem o cumprimento por parte dos cidadãos das ordens legítimas emanadas por autoridades policiais.
Isto é, havendo um dever geral de recolhimento decorrente da declaração de estado de emergência ( art 5º do Dec 2-A/2020 ) e tendo o recorrente violado tal obrigatoriedade, não há dúvida de que a GNR poderia, caso o recorrente persistisse na conduta, isto é, caso não acatasse a ordem de regressar ao domicílio, cominá-lo com a prática de crime de desobediência, desde que previamente advertido de que a sua conduta o faria incorrer na prática de tal crime.
Ocorre que não resulta dos autos que tal tenha acontecido. Da matéria de facto apurada não resulta que o agente da GNR tenha advertido o recorrente de que se persistisse em não retornar ao domicílio incorreria na prática de um crime de desobediência, antes considerou que o simples facto de o recorrente estar ausente do domicílio, só por si já constituía crime de desobediência, ao abrigo do nº 2 do artigo 3º do Dec. 2-A/2020, o que, pelo que ficou dito, não é admissível.

Tanto basta para que dada a realidade acabada de expor estivesse o tribunal a quo impedido de condenar o arguido pela prática do crime de desobediência, e o esteja também este tribunal ad quem, tornando-se, deste modo, inútil a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.
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III.
DECISÃO.

Em face do exposto decidem os juízes da secção penal do tribunal da Relação de Guimarães julgar procedente o recurso interposto e, consequentemente:

- Determinam que se considere não escrita a referência que na sentença recorrida é feita ao crime de condução em estado de embriaguez;
- Revogam a sentença recorrida e absolvem o recorrente C. J. da prática do crime de desobediência por que havia sido condenado.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 09 de novembro de 2020

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho (voto a decisão ).