Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1123/06.8TBEPS.G1
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONTRATO-PROMESSA
NULIDADE
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Se a parte apela em matéria de facto e em matéria de direito, mas o recurso apenas contém conclusões em matéria de direito, ocorre fundamento de rejeição do recurso em matéria de facto, desde logo ao abrigo do art.º 641º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil.
2. Ainda que se admitisse a existência de conclusões para efeitos do seu aperfeiçoamento (art.º 639º, nº 3, do Código de Processo Civil), a lei do processo não o consente em matéria de facto, sancionando o incumprimento do ónus de impugnação previsto no art.º 640º com a imediata rejeição do recurso.
3. Para que um documento imponha, por si só, decisão diversa, deve ter um valor probatório de tal ordem elevado que os factos que atesta não possam ser destruídos por outras provas; terá que constituir prova irrefutável do facto.
4. Não sendo do conhecimento oficioso, a nulidade do contrato-promessa por preterição das formalidades referida no nº 3 do art.º 410º do Código Civil apenas invocada em sede de recurso, constitui uma questão nova de que a Relação não pode conhecer.
5. Se, quando o promitente-vendedor vendeu o prédio a terceiro já se tinha verificado uma condição resolutiva do contrato-promessa, nele prevista pelas partes, por facto imputável ao promitente-comprador, nada obstava àquela alienação, não podendo este exigir o pagamento do sinal em dobro ao abrigo do art.º 442º, nº 2, do mesmo código.
6. Tendo o tribunal decidido, com trânsito em julgado, no despacho saneador, a parcial absolvição dos RR. da instância, por litispendência, relativamente à questão da existência de verdadeira posse dos demandados quanto ao bem prometido na sequência de traditio, e à questão do seu (eventual) direito de retenção, não pode o tribunal, na sentença, negar a existência de posse e afirmar a existência de uma situação de mera detenção ou posse em nome de outrem, para negar o direito dos AA. (promitentes-compradores) a indemnização por benfeitorias realizadas na coisa prometida, por violação do caso julgado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
M.. e mulher, M.., casados, residentes na Rua.., Barcelos, instauraram ação declarativa comum, sob a forma de processo ordinário, contra K.. e mulher, H.. [1], casados, residentes em .., Dinamarca, e contra E.. [2], casada, residente na Rua..., Barcelos, alegando essencialmente que celebraram com os 1ºs RR. um contrato-promessa pelo qual prometerem comprar e aqueles prometeram vender-lhes um determinado prédio urbano, pelo preço de € 185.000,00, tendo entregado então a quantia de € 35.000,00 e deles tendo recebido, ainda antes da subscrição daquele contrato, as chaves do prédio com vista à execução de obras que tiveram lugar dentro e fora do edifício.
Estranhando o silêncio dos 1ºs RR., os AA. marcaram a escritura pública de compra e venda para 17.2.2005, disso os notificando e informando da disponibilidade para entrega de um cheque para pagamento do preço restante, mas não só não tiveram qualquer resposta, como os destinatários não compareceram no tempo nem no local designados.
Entretanto os AA. continuaram na posse do imóvel, com exclusão de quaisquer outras pessoas, pacificamente, até que, no dia 15.5.2006, os 1ºs RR. arrombaram as portas do edifício e nele entraram à força, aproveitando a ausência dos AA., assim se apossando do prédio, dando, dele, posse à 2ª R., com a qual, nessa mesma data, outorgaram escritura pública de compra e venda do mesmo imóvel por preço idêntico ao contratado com os demandantes, porém, por simulação, não querendo vender e comprar, nem pagar o preço declarado, bem sabendo a 2ª R. da existência do contrato-promessa e da obrigação dos 1ºs RR. de o cumprirem.
Consideram que, por via da sua conduta, os 1ºs RR. faltaram definitivamente ao cumprimento do contrato-promessa, assistindo aos AA. o direito a ser indemnizados pelo valor do sinal, em dobro, ou seja, pela quantia de € 70.000,00 e à retenção do prédio, por serem, dele, possuidores, até ao pagamento daquele crédito e do valor das benfeitorias que nele realizaram no montante de € 38.661,00 e respetivo IVA no montante de € 7.698,81.
Terminam com a dedução do seguinte pedido, ipsis verbis:
«NESTES TERMOS e nos mais de direito deve a presente acção ser julgada procedente e provada e, em consequência, os RR. condenados:
a) A reconhecerem que os AA. têm a posse legítima do prédio identificado no item 1° desta petição;
b) A reconhecerem que os 1°s RR. deixaram de cumprir o contrato-promessa de compra e venda celebrado com os AA. invocado nos itens 1° e 2° desta petição.
c) Os 1°s RR. a restituir aos AA. a quantia de 70.000,00 Euros (setenta mil euros), correspondente à restituição em dobro do sinal recebido;
d) A pagar aos AA. o valor das obras-benfeitorias executadas no prédio prometido vender por eles, no valor de 46.299,81 Euros (quarenta e seis mil, duzentos e noventa e nove euros e oitenta e um cêntimos);
e) E todos os RR., em particular a 2ª R., condenada a reconhecer que assiste aos AA. o direito de retenção sobre o prédio e, por conseguinte, a reconhecer-lhes a sua posse e usufruição pacíficas até ao pagamento dos seus créditos;
f) E, finalmente, os RR. condenados a pagar juros aos AA. à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento;
g) E sempre com custas e o mais que for de lei.»

Citados, os 1ºs e 2ª RR. deduziram contestações em separado.
Os primeiros impugnaram parcialmente os factos e alegaram essencialmente que antes do contrato-promessa aqui em causa, datado de 6 de julho de 2004, haviam celebrado com os AA. um outro contrato-promessa de compra e venda do mesmo imóvel no dia 4 de julho de 2003 que os últimos não cumpriram e que, por isso, os contestantes resolveram.
As mesmas partes subscreveram o segundo contrato-promessa por insistência e persuasão dos AA. que alegaram ter ultrapassado as dificuldades financeiras que os levaram a não cumprir o contrato anterior.
Porém, estabeleceu-se o preço do imóvel no valor de € 185.000,00 e o sinal em € 35.000,00 E, para que não houvesse prejuízo dos AA., os 1ºs RR. anuíram em convalidar o valor de € 25.000,00, pago como sinal no âmbito do primeiro contrato (resolvido) como parte do novo sinal tendo então recebido mais € 10.000,00. O restante do preço (€ 150.000,00) seria pago em duas prestações, sendo a última, uma parte até 10 dias antes do ato da escritura de compra e venda que deveria ter lugar, impreterivelmente, no dia 10 de janeiro de 2005, no Cartório Notarial de Esposende, sem necessidade de notificação de qualquer das partes, e a outra parte naquele ato notarial.
As partes submeteram a promessa a cláusula resolutiva relacionada com os pagamentos prestacionais do preço e comparência dos AA. no referido ato notarial, impreterivelmente, nos tempos acordados.
Como os AA. não cumpriram, os 1ºs RR. resolveram o contrato por carta que enviaram aos AA. datada de 21 de janeiro de 2005.
Nunca houve tradição do bem prometido vender, mas uma mera entrega pelos RR. de um duplicado da chave do edifício aos AA. para que estes, na ausência daqueles na Dinamarca, e por serem promitentes-compradores, pudessem zelar o imóvel. Não lhes era permitido habitá-lo ou nele fazer obras que, aliás, não realizaram, por ter sio o R. a fazê-las, assim como a manutenção da piscina.
Quando os AA. marcaram a data para realização da escritura de compra e venda já o contrato-promessa estava resolvido.
Venderam, efetivamente, o prédio à 2ª R. que pagou o respetivo preço.
Pugnam no sentido de que os AA. sejam condenados como litigantes de má fé por litigarem contra verdade dos factos, sabendo também que a sua pretensão é infundada.
Defendem a improcedência da ação com a sua absolvição do pedido e condenação dos AA. como litigantes de má fé.

Por sua vez, a 2ª R., E.., apresentou a contestação de fls. 144 e segs., na qual impugna os factos alegados pelos AA. e que lhe dizem respeito, deduzindo ainda pedido reconvencional, assim como pedido de condenação dos mesmos em multa e indemnização a seu favor, por litigância de má-fé.
Afirma que apenas teve conhecimento dos factos vertidos nos itens 1º e 2º da petição inicial após ter comprado o prédio dos autos e que a respetiva escritura corresponde à vontade real das partes, desconhecendo sequer a existência de qualquer contrato-promessa celebrado entre os AA. e os 1ºs RR. Com essa aquisição, registada no dia 16.5.2006, a contestante entrou logo na posse do imóvel, que passou a habitar até que, em 19.6.2006, dele foi esbulhada em virtude da providência cautelar de restituição provisória da posse requerida pelos AA.
Tendo tratado todas as questões inerentes à aquisição do imóvel através de agência imobiliária, apenas na data da escritura, ou seja em 15.5.2006, conheceu e contactou o 1º R. marido que outorgou também como procurador de sua mulher, que a 2ª R. continua sem conhecer.
Nega a existência do arrogado direito de retenção sobre o imóvel, por o mesmo não existir na posse precária, nem beneficiar o incumpridor, atento o disposto nos art.ºs 442º e 755º, n.º 1, al. f), do Código Civil. Do contrato-promessa celebrado entre os AA. e o 1º R. resultam apenas efeitos obrigacionais, uma vez que ao mesmo não foi conferida eficácia real, beneficiando ainda a 2ª R. da presunção que lhe advém do registo que efetuou da aquisição, nos termos do art.º 7º do Código do Registo Predial.
Em reconvenção, peticiona a condenação dos AA. a pagarem-lhe a quantia global de € 12.440,00, sendo € 2.440,00 a título de danos patrimoniais e € 10.000,00 a título de danos morais, resultando os primeiros do “descaminho” de vários bens que se encontravam nos quartos na sequência do deferimento dos embargos de terceiro e da necessidade que a 2ª R. teve de adquirir roupas para as suas duas filhas, de novo mobiliário para os quartos destas, novas fechaduras para as portas e um sistema de alarme, substituindo ainda o portão da garagem da casa por razões de segurança, sendo que os danos não patrimoniais advêm da experiência traumática sentida por ela e suas duas filhas, que foram forçadas a deixar a casa onde estavam a viver, ficando desalojadas, passando a viver de favor em casa de familiares, sentindo a contestante forte angústia por ter vivido uma semana de sobressalto. Também o seu marido, a trabalhar no Reino Unido, ao saber da descrita situação, ficou bastante consternado, “sofrendo à distância” com o drama desses seus entes queridos.
Os AA. apresentaram réplica, na qual referiram, com relevo, que foram entregues à 2ª R. todos os bens que se encontravam no prédio, sendo que não agiram com má-fé, nem com o intuito de a prejudicar, mas apenas na defesa dos seus legítimos direitos. Concluem como na petição inicial, pugnando ainda pela improcedência do pedido reconvencional.
Foi proferido despacho saneador, onde se negou a admissibilidade do pedido reconvencional e se absolveram os RR. da instância quanto aos pedidos de reconhecimento de posse legítima e do direito de retenção deduzidos pelos AA. nas alíneas a) e e) do seu petitório.
Na condensação, foram selecionados os factos assentes e a base instrutória, que não foi objeto de qualquer reclamação.
Entretanto, verificado o óbito da 2ª R., H.., foi deduzido o incidente de habilitação de herdeiros que constitui o apenso D) dos autos, tendo sido declarado o R. e cônjuge sobrevivo K.. habilitado em substituição daquela.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, a que se seguiu a prolação da sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julga-se a presente acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo os réus K.. e E.. dos pedidos formulados pelos autores M.. e mulher M...
Não se vislumbram indícios de litigância de má-fé.
Custas a cargo dos autores.» (sic)
*
Inconformado, recorreram os AA., CONCLUINDO as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
«a) Ainda hoje o contrato ou contratos-promessa de compra e venda dos autos se encontram incumpridos por parte do Recorrido K..;
b) Se, assim, não se entender, tais contratos foram incumpridos pelos recorridos que se colocaram em impossibilidade de cumprir;
c) Por isso, os Recorridos ou Recorrido terão de ser condenados a pagar o sinal em dobro aos AA.;
d) Deverão serem os RR. condenados a reconhecer que os AA. até ao desapossamento do prédio estiveram na posse legítima e pacífica do prédio expressamente autorizada e entregue por eles;
e) Deverão, também, em consequência disso, serem condenados a reconhecer que os recorrentes executaram no prédio prometido comprar todas as obras;
f) Com efeito a decisão apesar de violadora dos artigos 410°, 442°e 815° n° 1 als. b), c) e d) do Cód. Proc. Civil, fez errada interpretação dos factos e conjugação com a documentação constante dos autos.» (sic)
Culminam a apelação assim:
«NESTES TERMOS deve ser dado provimento ao recurso, condenando o Recorrido a indemnizar os AA. com a restituição do sinal pago, no seu dobro, a pagar aos Recorrentes a indemnização reclamada pela execução das benfeitorias, tudo acrescido de juros legais, desde a citação até efectivo pagamento, …» (sic)
Os RR. apresentaram contra-alegações.
O 1º R. apresentou as seguintes CONCLUSÕES:
«1- O apelante não especifica nas suas aliás, doutas, alegações os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados.
2- O apelante não conclui indicando as divergências sobre o julgamento da matéria de facto, nem tão pouco, indica os meios de prova em que se baseia para infirmar a fixação da matéria de da matéria de facto em causa.
3- O recurso apresentado pelo apelante deve ser liminarmente rejeitado, por violação do disposto no artigo 640º nº 1alínea a) do CPC.» (sic)

A 2ª R. sintetizou as suas contra-alegações, pedindo que se determine:
a) … a rejeição liminar do recurso apresentado, por violação do ónus contido no artigo 640°, n.° 1, alínea a), do CPC, relativo à falta de especificação dos concretos pontos da matéria de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados;
Subsidiariamente, quando assim se não entenda e se admita o recurso,
b) … que o objecto do recurso apresentado se restringe à matéria da indemnização reclamada pela recorrente do recorrido K.., e já não sobre o direito de retenção reclamado sobre o imóvel e cujo reconhecimento era peticionário da recorrida E..;
c) Consequentemente, autorizar desde já o cancelamento do registo da acção que onera o imóvel da recorrida E.. e relativamente ao qual a recorrente já não poderá exercer qualquer direito no futuro, independentemente da decisão a proferir no recurso.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão balizadas pelas conclusões da apelação dos AA, acima transcritas, no âmbito do conteúdo da decisão recorrida (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º, do novo Código de Processo Civil) [3].
Parece estar para apreciar e decidir as seguintes questões:
1. Erro de julgamento em matéria de facto [4];
2. Nulidade do contrato-promessa;
3. Incumprimento do contrato-promessa e sua imputação;
Acaso o incumprimento seja imputável aos 1ºs RR.:
a) a eventual obrigação de restituição do sinal em dobro;
b) a fixação de indemnização reclamada pelos AA. pela execução de benfeitorias no prédio.
4. Cancelamento do registo da ação, pedido pela 2ª R. nas contra-alegações do recurso.
*
III.
São os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal a quo com interesse para a decisão da causa [5]:
- Da matéria dada como assente no Despacho Saneador:
a) Por escrito datado de 6 de Julho de 2004, com fotocópia junta de fls. 16 a 19 do apenso B, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, K.. e mulher, H.., declararam nomeadamente, por aposição da sua assinatura, prometer vender um prédio urbano, sito em Alapela, freguesia de Fonte Boa, concelho de Esposende, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .., e inscrito no matriz sob o art. .. urbano, pelo preço de €185.000,00, a M.., que no mesmo acto declarou, também por aposição da sua assinatura, prometer comprar tal prédio, pelo mesmo preço.
b) Em tal escrito constava nomeadamente: “SEXTA: Fica expressamente consignado que a presente promessa fica subordinada às condições resolutivas seguintes: ALÍNEA A) Ao pagamento, pelo segundo outorgante aos primeiros outorgantes, nos termos estipulados na alínea a) da cláusula quarta do presente contrato, da quantia de €15.000 (quinze mil euros), no dia 31 de Julho de 2004; ALÍNEA B) À comparência pelo segundo outorgante no dia designado para a realização da escritura pública de compra e venda - 10 de Janeiro de 2005 pelas 15 horas, no Cartório Notarial de Esposende, e bem assim, ao pagamento, naquela data, pelo segundo outorgante aos primeiros outorgantes, da quantia remanescente, no valor de €135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros) nos termos estipulados na alínea b) da cláusula quarta do presente contrato. SÉTIMA: Se não se verificarem, por culpa imputável ao segundo outorgante (o autor marido), em 31 de Julho de 2004 e em 10 de Janeiro de 2005, as condições cumulativas e sucessivas estipuladas supra, nos precisos termos em que se encontram exaradas, considera-se este contrato automaticamente resolvido, por incumprimento contratual definitivo do segundo outorgante, fazendo os primeiros outorgantes suas as quantias recebidas a título de sinal, nos termos do art. 442º do Código Civil, obrigando-se expressamente o segundo outorgante a não demandar, judicialmente, os primeiros outorgantes para obter efeito, do seu incumprimento, que não o ora estipulado contratualmente”.
c) Na mesma data, e em conformidade com o constante de tal escrito, o autor marido entregou aos réus K.. e H.. € 35.000,00.
d) Por escritura pública de 15 de Maio de 2006, exarada de fls. 39 a 40, do livro de escrituras n.º 303-E, do Cartório Notarial de Esposende, com fotocópia de certidão junta de fls. 165 a 168, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, K.. por si e em representação de H.., declarou nomeadamente vender a E.. o prédio descrito em a), pelo preço de €185.000,00, tendo esta declarado, no mesmo acto, aceitar tal venda por tal preço.
e) Em 31 de Julho de 2004, os autores pagaram aos réus K..e H.. o montante de €15.000,00 mencionado na cláusula sexta transcrita em b).
f) Até 10 de Janeiro de 2005, os autores não pagaram aos réus K..e H.. o valor remanescente de €135.000,00 referido na cláusula sétima transcrita em b).
g) Em 21 de Janeiro de 2005 os autores não compareceram nem se fizeram representar no Cartório Notarial de Esposende.
h) Os réus K.. e H.. fizeram remeter aos autores, que o receberam, o escrito junto a fls. 127, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
i) A ré E.. é titular da última inscrição de aquisição respeitante ao prédio descrito em a), datada de 16 de Maio de 2006, inscrição G5 - Ap. 02/20060516. –
Da resposta aos quesitos que integram a base instrutória:
j) Logo após a data constante do escrito referido em o), os réus K.. e mulher, H.., entregaram as chaves do prédio aí descrito ao autor M.. que passou a habitá-lo intermitentemente, designadamente aos fins de semana e dias festivos, nele guardando veículos automóveis, recebendo amigos e visitas, realizando festas, e aí colocando móveis, o que fez de forma ininterrupta e à vista de toda a gente.
l) Em 27 de Janeiro de 2005, os autores fizeram enviar por correio registado aos réus K..e H.., que o receberam, um escrito no qual comunicavam a realização da escritura de compra e venda a que se reporta o escrito referido em a) para o dia 17 de Fevereiro de 2005, pelas 11.00 horas, no Cartório Notarial de Esposende, data em que lhes seria entregue um cheque visado com a totalidade do preço ainda em falta.
m) No dia 17 de Fevereiro de 2005, às 11.00, os réus K.. e H.. não compareceram no Cartório Notarial de Esposende, nem aí se fizeram representar, nem fizeram chegar ao autor, que aí esteve, qualquer explicação.
n) Na sequência do descrito em j), os autores executaram no prédio descrito em a) as seguintes obras:
i. limpeza da área de logradouro com escavação de entulhos existentes com utilização de martelo pneumático;
ii. remoção dos produtos escavados, assim como o seu carregamento, limpeza e transporte ou depósito com recurso a meios mecânicos;
iii. fornecimento e aplicação de sistema de rega na parte relvada, composto por 4 aspersores e o programador, cujo custo estimado ascendeu € 1.000,00, acrescido de IVA;
iv. jardinagem nas orlas juntos às paredes de delimitação da propriedade com plantas e incorporação de mão de obra, cujo custo estimado ascendeu € 200,00, acrescido de IVA;
v. fornecimento e aplicação de relva na parte lateral à piscina incluindo mão de obra, cujo custo estimado ascendeu € 900,00, acrescido de IVA;
vi. fornecimento e aplicação na base de fundo da piscina, cujo custo estimado ascendeu € 300,00, acrescido de IVA;
vii. colocação da orla em mármore na parte superior e lateral da piscina e seu acabamento, cujo custo estimado de colocação (mármore não incluído) ascendeu € 150,00, acrescido de IVA;
viii. aplicação de tela de vedação nas faces interiores da piscina, cujo custo estimado ascendeu € 1.500,00, acrescido de IVA;
ix. pintura de quatro portas exteriores a tinta de esmalte precedida de isolantes de madeira, cujo custo estimado ascendeu € 200,00, acrescido de IVA;
x. aplicação de cortinados interiores, cujo custo estimado ascendeu € 750,00, acrescido de IVA;
xi. alargamento do caminho de acesso com demolição do muro existente e remoção das alvenarias de pedra e entulhos a depósito com recurso a meios mecânicos, cujo custo estimado ascendeu € 1.500,00, acrescido de IVA;
xii. construção de muro de vedação constituído por blocos de argamassa com 0,20 m de espessura, apresentando-se rebocado numa das faces, com 40,5 metros de comprimento e a altura média de 1,5 metros, incluindo fundação em betão simples, cujo custo estimado ascendeu € 2.000,00, acrescido de IVA; e
xiii. aplicação de um tubo colocado na via pública para drenar o terreno, colocado entre a zona do Posto de Transformação e a sarjeta existente na via pública, cujo custo estimado ascendeu € 1.550,00, acrescido de IVA.
o) Por escrito datado de 04 de Julho de 2003, denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, constante de fls. 106 e 107, cujo teor se dá por reproduzido, o autor M.. declarou obrigar-se “a expensas suas fazer transportar da casa objecto desta transacção para a morada a indicar pelos primeiros outorgantes vendedores [os réus K.. e H..], sita na Dinamarca, os móveis constituídos por
1. Uma pia em pedra, com as dimensões de 0,85 X 1.50 X 0,60 e
2. Quatro caixas, com as dimensões de 0,45 X 0,60 X 0,40 cada uma e bem assim diversos adornos, louças, livros etc. Obrigação esta que deverá ser concretizada no prazo de 30 dias, a contar desta data”, transporte esse que foi realizado e importou um custo de € 650,00.
p) Por carta registada com aviso de recepção datada de 27 de Janeiro de 2005, enviada pelo autor ao réu K.. e que por este foi recebida, o autor referiu, além do mais, que: “concordei com a sua advogada, que a escritura podia ser celebrada no dia 21 de Janeiro, contra pagamento total, por cheque visado.”
IV.
Ab initio est ordiendum.
1. Erro de julgamento em matéria de facto
Nos termos do art.º 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (al. a));
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (al. b)) e
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al. c)).
Segundo o nº 2, al. a), ainda do art.º 640º, “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Em bom rigor, o cumprimento destes ónus deve ser satisfeito quer nas alegações propriamente ditas, quer nas respetivas conclusões. Naquelas, porque devem explanar todos os fundamentos do recurso, (art.º 639º, nº 1)[6] ; nas conclusões, porque, sendo uma síntese, um resumo, delas e nada mais do que isso, são elas que delimitam o objeto da apelação (art.º 635º, nº 4).
Como escreve Cardona Ferreira [7], sem dissentir da generalidade da doutrina e da jurisprudência, a regra é apenas ser conhecido, em sede de recurso, o que o recorrente inserir nas suas conclusões, salvo questões de conhecimento oficioso não cobertas pelo caso julgado. A. Abrantes Geraldes[8] , interpretando também o referido art.º 635º, nº 4, e citando jurisprudência, esclarece que, podendo a restrição do objeto do recurso ser expressa ou tácita, esta última forma ocorre em resultado da falta de correspondência entre a motivação e as alegações, isto é, quando, apesar da maior amplitude decorrente do requerimento de interposição do recurso, o recorrente restrinja o seu âmbito através das questões que identifica nas conclusões. Inversamente, devem ser desatendidas as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação.
Comecemos então por verificar se os recorrentes cumpriram o referido ónus de impugnação do recurso em matéria de facto nas conclusões do recurso.
Desde já se adianta que a resposta só pode ser negativa.
Feita, acima, a transcrição das seis alíneas daquelas conclusões (por isso não as reproduzimos de novo), delas resulta, à evidência, a absoluta falta de apelo à correção de qualquer erro de julgamento em matéria de facto. Não se cita ali, tão-pouco, qualquer facto provado ou não provado, não se revela a mínima divergência naquela sede de julgamento, nem nela se propõe qualquer alteração. Limitam-se as conclusões a propor uma solução jurídica diferente da que foi adotada na sentença recorrida, defendendo que o incumprimento do contrato-promessa é imputável ao recorrido e que, por isso, terá de ser condenado a pagar aos AA. o sinal em dobro, assim como a indemnização reclamada pela realização das benfeitorias; tudo isto sem que ali se proponha qualquer modificação da matéria de facto provada ou não provada.
Portanto, faltam, em absoluto, as conclusões do recurso de impugnação da decisão em matéria de facto, o que poderá ser entendido como causa da sua imediata rejeição ao abrigo do art.º 641º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil. Pese embora se trate de um único recurso, o legislador distingue o recurso em matéria de facto do recurso em matéria de direito, não podendo confundir-se, de modo algum, o que sejam as conclusões de um e as conclusões do outro, tudo se passando, em substância, como se de dois recursos ou, pelo menos, dois fundamentos de recurso perfeitamente delimitados entre si se trate. Desde logo, até porque têm um regime de admissibilidade diferente em vários aspetos, relevando agora o do aperfeiçoamento das conclusões das alegações. E se nada se conclui em matéria de facto, não vemos o que possa ser aperfeiçoado nas conclusões que, simplesmente, não existem, sendo pressuposto do seu aperfeiçoamento que sejam deficientes, obscuras, complexas ou que nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o nº 2, al.s a), b) e c) do art.º art.º 639º do Código de Processo Civil (cf. respetivo nº 3).
Deve mesmo entender-se, mais uma vez reforçada a regra da diferenciação substancial em matéria de admissibilidade do recurso em matéria de facto e recurso em matéria de direito, que aquele não admite despacho de aperfeiçoamento das respetivas conclusões das alegações, previamente à sua rejeição. Ou seja, que não lhe é aplicável o disposto no nº 3 do citado art.º 639º.
Assim se tem considerado[9], em primeiro lugar, porque é a própria lei que refere que a rejeição deve ser imediata, ou seja, próxima, sem algo de permeio; em segundo lugar, porque quando a lei do processo, sob o art.º 639º, nº 3, prevê, em sede de recurso, o dever funcional de prolação de despacho de aperfeiçoamento, fá-lo apenas relativamente às conclusões deficientes, obscuras, complexas ou quando nelas não se tenha procedido às especificações a que alude o anterior nº 2, respeitando tais requisitos apenas a matéria de direito. E como já observámos, a possibilidade de aperfeiçoamento nem sequer respeita às alegações propriamente ditas.
Se assim não fosse, estaríamos a contrariar todo o sentido e o espírito do circunstancialismo jurídico que orientou os novos termos da admissibilidade do recurso em matéria de facto e o próprio art.º 640º, que lhes dá corpo ao prever a imediata rejeição do recurso --- portanto, sem possibilidade de aperfeiçoamento --- nas situações em que falte cumprir algum dos ónus de impugnação a que se refere o art.º 640º do Código de Processo Civil.
Note-se que os recorrentes nem sequer remetem para os fundamentos das alegações.
Em todo o caso, ainda que se entendesse que a admissão do recurso se bastaria com a impugnação da matéria de facto nas alegações propriamente ditas, deve dizer-se que nem aí os apelantes cumpriram devidamente os ónus de impugnação referidos no citado art.º 640º.
Aparentemente, dão cumprimento ao requisito da al. c) do nº 1 daquele preceito legal, indicando, em cinco alíneas (a) a e)), o que dizem ser factos que pretendem que sejam dados como provados.
Porém, a al. a), cujo teor é “os AA. Recorrentes estiveram na posse legitimada pelo RR. K.. e mulher (expressamente e por escrito entregar) sobre o prédio prometido comprar pelos AA.”, é conclusiva e encerra apenas matéria de direito com relevância direta na solução do caso, sendo, por isso, insuscetível de prova; as al.s d) e e) contêm igualmente e apenas matéria de direito, como se segue:
“d) O pedido de retenção invocado só não procede, porque os Recorridos K.., já não ser o proprietário ou possuidor, conforme resultou compro variamente da audiência de julgamento.
e) A decisão é violadora dos artigos 410° n.ºs l, 2, 442°, 801°, 802°, 805° e 1263° al b). 1273° a 1275° do Cód Civil.”
Só as al.s b) e c) das alegações respeitam a matéria de facto.
Todavia, os AA. só teriam dado real cumprimento ao disposto na al. a) do nº 1 do art.º 640º se tivessem indicado os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados; isto é, se, por referência expressa e discriminada a quesitos da base instrutória ou a artigos dos articulados, tivessem identificado a existência (a alegação) e a localização daqueles pontos da matéria, assim cumprindo o seu dever de colaboração com o tribunal. Não o fizeram.
Quanto ao requisito da indicação dos meios probatórios que consideram relevantes para o devido julgamento da matéria de facto (al b) do nº 1 daquela norma adjetiva), limitam-se os apelantes a referir: “Ora, em face da conjugação dos documentos juntos aos autos, do depoimento dos AA.-Recorrentes e Recorrido R. K..., não pode deixar de haver dúvidas ou outra interpretação que não seja o Tribunal dar como provado o seguinte: …”. Antes, porém, transcrevem alguns depoimentos ou passagens de depoimentos sem que se compreenda bem com que fito o fazem. Dizem assim: “Vamos ver o que nos diz a prova e a convicção que ressalta quer do depoimento dos AA., das declarações do R. K.., quer da adenda ao contrato promessa de 4.7.2003:”, fazendo seguir depois as referidas transcrições.
Ora, o nº 2 al a), ainda do art.º 640º citado, é muito claro: “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;”.
Os recorrentes não indicam as passagens da gravação, e a sua transcrição não passa de uma mera faculdade. Não o fizeram nas conclusões, como em bom rigor deveria ter feito, mas também não o fizeram nas alegações propriamente ditas.
E se, para nós, a remissão que efetuassem das conclusões para as alegações não constituiria obstáculo ao conhecimento do recurso, a verdade é que nem nas alegações se mostra cumprido o referido ónus de impugnação, sendo a referida al. a) do nº 2 do art.º 640º muito clara, quer ao exigir exatidão na indicação das passagens da gravação, quer ao cominar a sua falta com a rejeição do recurso na respetiva parte.
Para além de facultativa, a transcrição de algumas passagens da gravação, não dispensa o esforço da Relação quanto à sua confirmação, havendo sempre a necessidade de as situar na gravação e de conhecer, por isso, com exatidão os tempos a que respeitam. Aliás, a audição das gravações é a melhor forma possível de que a Relação dispõe para se aproximar da imediação da prova e das vantagens do julgamento em 1ª instância.
A propósito, é pertinente chamar a atenção para o que escreveu A. Abrantes Geraldes [10]: “… as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida, …”.
Já numa sua obra anterior [11], o citado autor dava conta destes níveis de exigência, por referência ao então vigente regime de recursos emergente da alteração preconizada pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de agosto, ao art.º 685º-B do Código de Processo Civil então em vigor.
Esta exigência de rigor é considerada também por outros autores. [12]
No recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.2014 [13] escreveu-se o seguinte: «Esta exigência visa permitir que, nomeadamente nos depoimentos longos, se possa encontrar fácil e rapidamente “as passagens da gravação em que se funda” a impugnação de forma a, num primeiro momento, se avaliar se tais “passagens” são, por si só, idóneas a delas se extrair conclusão diversa da extraída pelo tribunal a quo, sem prejuízo de, em caso afirmativo, depois ter que se ir para além desses trechos, pois só assim se poderá formular um juízo definitivo. E ao obrigar o recorrente a, neste aspecto, melhor fundamentar o seu recurso, evita-se o uso abusivo e injustificado da faculdade de impugnar a decisão relativa à matéria de facto.

Ora, exigindo-se no n° 2 daquele normativo que à impugnação se proceda com a “exacta indicação dos trechos da gravação com referência ao que tenha ficado assinalado em acta”(Abrantes Geraldes, obra citada, ed. 2013, 126), é manifesto que com a simples enunciação dos depoimentos por referência à mera identificação de quem os prestou, a sinalização deles apenas por referência ao início e termo de seu registo ou o excerto transcrito de alguns desses depoimentos desacompanhados da exacta passagem da respectiva gravação, se não dá cumprimento ao particular ónus imposto à Recorrente nesse domínio».
A inexistência de conclusões da apelação quanto ao recurso em matéria de facto também não permite que se leve em linha de conta, só por si, o teor invocado da adenda ao contrato-promessa anteriormente celebrado, em 4 de julho de 2003, contrato este que terá sido resolvido pelos 1ºs RR., com os efeitos previstos no art.º 433º e 434º do Código Civil.
Para que um documento imponha, por si só, decisão diversa, deve ter um valor probatório de tal ordem elevado que os factos que atesta não possam ser destruídos por outras provas, terá que constituir prova irrefutável do facto.
Este fundamento, atualmente previsto no art.º 662º, nº 1, do Código de Processo Civil [14], está, como se sabe, relacionado com o valor legal da prova, exigindo-se que a força probatória dos elementos coligidos no processo não possa ser afastada pela prova produzida em julgamento. A alteração de factos só é admissível quando haja no processo um meio de prova plena, resultante de documento, confissão ou acordo das partes, e esse meio de prova plena diga respeito a determinado facto sobre o qual o Tribunal também se pronunciou em sentido divergente. Como ensina o Prof. Alberto dos Reis [15], “se estiver junto aos autos documento que faça de prova plena ou cabal de determinado facto e o juiz, na sentença, tiver admitido facto oposto, com base na decisão do tribunal colectivo, incumbe à Relação fazer prevalecer a força probatória do documento”. Será, assim, de alterar o facto se o juiz tiver desprezado a força probatória de um documento não impugnado nos termos legais.
É de considerar a séria probabilidade daquele documento ter sido constituído por AA. e 1ºs RR., como adenda ao contrato-promessa anteriormente celebrado e já resolvido pelos referidos RR.
Mais releva que tal documento não foi alheio à decisão do tribunal que, sob a al. j), deu como provado, em sintonia com ele, que “logo após a data constante do escrito referido em o) [16], os réus K.. e mulher, H.., entregaram as chaves do prédio aí descrito ao autor M.. que passou a habitá-lo intermitentemente, designadamente aos fins de semana e dias festivos, nele guardando veículos automóveis, recebendo amigos e visitas, realizando festas, e aí colocando móveis, o que fez de forma ininterrupta e à vista de toda a gente”, no que o terá ponderado outras provas, sem as quais não poderia esta Relação modificar a decisão da matéria de facto.
Por si só, aquela adenda não permitiria ir mais longe na decisão da matéria de facto do que foi o tribunal a quo na citada al. j). Sem ponderar outras provas, jamais a Relação poderia também fazer acrescer-lhes outra matéria de facto que, aliás, os AA. nem sequer especificam por referência à base instrutória ou aos articulados da ação, como tendo sido alegada. Não fazem, aliás, qualquer referência à dita al. j) da sentença, designadamente no sentido de propor a sua modificação, com seria adequado fazer à luz do art.º 640º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil.
Decorre de tudo quanto ficou exposto, e em síntese, que, ainda que se admitisse a possibilidade de os apelantes beneficiarem do direito a aperfeiçoar as conclusões do recurso em função das suas alegações em matéria de facto --- no que não se concede --- sempre se reafirmaria que nem ali (nas alegações) foi (rigorosamente) cumprido o ónus de impugnação previsto nas al.s a) e b) do nº 1 e 1ª parte da al. a) do nº 2 do art.º 640º.
Rejeita-se, pois, por incumprimento do ónus de impugnação especificada previsto no art.º 640º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, a apelação dos AA. na parte em que se impugna a decisão em matéria de facto.
Improcede a primeira questão do recurso.
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2. Nulidade do contrato-promessa
Os AA. invocam nas suas alegações a nulidade do contrato-promessa por falta de reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respetiva licença de utilização ou de construção, como impõe o nº 3 do art.º 410º do Código Civil.
Para além dos recorrentes não terem suscitado a questão nas conclusões da apelação, como competia [17], aquela nulidade é uma questão nova no recurso e não é do conhecimento oficioso por se entender que é uma invalidade mista [18], dependente de arguição dos contraentes por não estarem em causa interesses gerais da sociedade e do comércio jurídico, mas interesses particulares e individuais daqueles interessados [19].
Como é sabido, no modelo de revisão ou reponderação, como é o acolhido pelo nosso Direito, salvo as questões de conhecimento oficioso ainda não conhecidas com trânsito em julgado, o tribunal de recurso apenas pode conhecer de questões suscitadas e tratadas pelo tribunal recorrido; por regra, não conhece de questões novas.
Os recursos justificam-se para que um tribunal hierarquicamente superior reaprecie uma questão já vista pelo tribunal hierarquicamente inferior. Trata-se de uma reponderação de questões de facto ou de direito já conhecidas pelo tribunal a quo, assim se garantindo ao cidadão um duplo grau de apreciação jurisdicional. [20]
A jurisprudência tem repetido uniformemente e desde o início da vigência do Código de Processo Civil de 1939 que os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova. Não podem ser suscitadas questões novas nos recursos, questões que o tribunal recorrido não pudesse e não devesse ter apreciado.
Com efeito, não se conhece da questão da nulidade agora trazida pelos apelantes.
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3. Incumprimento do contrato-promessa e sua imputação
Suscitada esta questão, no seu tratamento, a Relação, tal como a 1ª instância, é livre no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Todavia, havemos de atender, em princípio, apenas aos factos provados na ação e, como tal, constantes da sentença recorrida.
Os AA. defendem que o contrato ou contratos-promessa não foram cumpridos pelos 1ºs RR. K.. e mulher, H.., que se colocaram na impossibilidade de os cumprir por terem vendido o prédio objeto dos mesmos à 2ª R., E...
Dos factos provados resulta a celebração de um contrato-promessa entre os AA. e os 1ºs RR., com data de 6 de julho de 2004, pelo preço de € 185.000,00. É apenas o cumprimento desse contrato que se discute, nos termos da petição inicial, onde se pede, sob a al. b) e sem alusão a qualquer outro contrato-promessa, a condenação dos RR. “a reconhecerem que os 1ºs RR. deixaram de cumprir o contrato-promessa de compra e venda celebrado com os AA. invocado nos itens 1º e 2º desta petição”, referindo-se estes artigos exclusivamente ao “contrato particular escrito, celebrado em 6 de Julho de 2004… pelo preço acordado de 185.000,0 0Euros…”.
Apesar da promessa de compra e venda, que obrigava reciprocamente os AA. e os 1ºs RR. ao seu cumprimento, resulta da al. d) dos factos provados que “por escritura pública de 15 de Maio de 2006, exarada de fls. 39 a 40, do livro de escrituras n.° 303-E, do Cartório Notarial de Esposende, com fotocópia de certidão junta de fls. 165 a 168, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, K.. por si e em representação de H.. declarou nomeadamente vender a E.. o prédio descrito em a), pelo preço de €185.000,00, tendo esta declarado, no mesmo acto, aceitar tal venda por tal preço”. Ou seja, os 1ºs RR. venderam à 2ª R. o prédio que tinham prometido vender ao A. marido.
Todo o contrato-promessa, para uma e outra parte, assenta num conjunto de circunstâncias sem as quais não teria sido realizado ou não teria sido realizado nos termos em que o foi. Através do contrato e das cláusulas acordadas, as partes estabelecem quais os interesses, de uma e de outra, que vão prevalecer e quais os que serão sacrificados, de uma forma que, tendencialmente, equilibra os sacrifícios de interesses de cada uma delas com as vantagens que vai receber por força do contrato.
Com vista a assegurar a correta satisfação dos interesses dos contratantes, impõe a lei civil que os contratos sejam negociados (art.º 227º, nº 1, do Código Civil), integrados (art.º 239º, do Código Civil), alterados (art.º 437º, do Código Civil) e cumpridos (art.º 762º, nº 2 do Código Civil) de harmonia com os ditames da boa fé, sendo ainda certo que, se estes forem violados de modo manifesto, podem vir a tornar ilegítimo o exercício do direito assegurado contratualmente (art.º 334º do Código Civil). A ideia de procedimento de boa fé está ligada a fidelidade, lealdade, honestidade e confiança no cumprimento dos negócios jurídicos e impõe às partes, quer nas negociações preliminares, quer na formulação das cláusulas definitivas, quer no cumprimento das obrigações (quer em relação ao devedor, quer em relação ao credor), que ajam sem embuste, nem dolo, para que os interesses de todas elas tenham a equilibrada solução prevista por cada uma delas e subjacente ao contrato.
Vendido o bem a terceiro, a questão é saber a quem é imputável o incumprimento.
Para os AA., aquela venda do imóvel à 2ª R. inviabilizou o cumprimento da promessa, já que a esta não foi atribuída eficácia real. Por tal ato jurídico, o cumprimento ter-se-á tornado impossível por causa imputável aos 1ºs RR. promitentes-vendedores e, assim, o tribunal, nos termos dos art.ºs 801º, nºs 1 e 2, 441º e 442º do Código Civil, deveria ter considerado haver incumprimento definitivo, por impossibilidade, da obrigação assumida pelos 1ºs RR. e a estes imputável a título de culpa e deveria ter resolvido o contrato, condenando-os, designadamente, na restituição do valor do sinal, em dobro, acrescido de juros de mora legais desde a citação.
Na responsabilidade contratual, a determinação da culpa afere-se pela diligência de um bom pai de família, através do recurso aos deveres de diligência exigíveis do homem comum, do "homo prudens", sem apelo a critérios normativos, legais (cf. nº 2 do citado art.º 799º que remete para a regra da responsabilidade civil prevista no nº 2 do art.º 487º, do Código Civil)[21] .
Estando o contrato-promessa submetido ao regime legal aplicável à generalidade dos contratos, o devedor que não cumpre uma obrigação incorre numa presunção de culpa já que o nº 1 do art.º 799º do Código Civil estabelece que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua.
Só o contraente fiel (o que cumpriu ou se oferece para cumprir) tem legitimidade resolutiva, ou seja, só ele pode resolver o contrato com base no incumprimento da contraparte, como emerge dos art.ºs 801º, nº 2 e 802º, nº 1, do Código Civil; nunca o contraente faltoso, sendo ilegítima ou ilegal, pois, a resolução declarada pelo próprio inadimplente [22].
Dispõe o nº 1 do art.º 808º do Código Civil, que “se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação”. A perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente (nº 2 daquele preceito legal).
O direito a ver resolvido o contrato, previsto nos art.ºs 432º e seg.s do Código Civil, é um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento que é “o facto do incumprimento ou a situação de inadimplência”. Daí que inexista direito de resolução sem o “juízo de inadimplemento” [23].
A mora --- que traduz, não uma falta definitiva de realização da prestação debitória, mas um simples retardamento ou dilação no cumprimento da obrigação --- apenas constituirá o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor. O devedor só se pode considerar constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada em tempo devido (art.º 804º, nº 2, do Código Civil) e fica, como tal constituído depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (art.º 805º, nº 1, da mesma lei civil).
O citado art.º 808º pressupõe a existência de uma situação de mora que se transforma ou converte em incumprimento definitivo, mediante, desde logo, a perda (subsequente à mora) do interesse do credor, apreciada objetivamente.
Para constituir fundamento de resolução do contrato e poder servir de justificação à reposição do sinal em dobro, o incumprimento culposo, equiparável à impossibilidade da prestação imputável ao devedor, tem de ser definitivo [24]. Só na hipótese de inadimplemento definitivo se justifica a resolução do contrato, com os efeitos previstos no nº 2 do art.º 442º do Código Civil, designadamente a sanção da perda do sinal ou da restituição do sinal em dobro .[25]
Como tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência, o incumprimento definitivo pode revelar-se por diversos meios:
1- A impossibilidade da prestação, por destruição da coisa ou pela sua alienação a terceiro, sem qualquer reserva (art.º 801º do Código Civil);
2- Pelo decurso de prazo fixado contratualmente como absoluto ou improrrogável, o que equivale àquela perda de interesse;
3- Pela recusa perentória do devedor em cumprir, comunicada ao credor, não se justificando então a necessidade de nova interpelação ou de fixação de prazo suplementar[26] ; ou ainda
4- A perda do interesse do credor na prestação, em consequência de mora do devedor ou a sua inexecução dentro do prazo razoável que lhe for fixado por aquele (interpelação admonitória - art.º 808º, nº 1, do Código Civil).
Assim, não há qualquer dúvida de que a venda a terceiro do bem objeto da promessa constitui fundamento de resolução contratual por gerar impossibilidade do seu cumprimento.
Todavia, importa saber se na data dessa alienação que, no caso, ocorreu no dia 15 de maio de 2006, o contrato-promessa se deveria considerar já validamente resolvido.
As partes consignaram expressamente no contrato a seguinte condição resolutiva:
“a) … pagamento, pelo segundo outorgante aos primeiros outorgantes, nos termos estipulados na alínea a) da cláusula quarta do presente contrato, da quantia de €15.000 (quinze mil euros), no dia 31 de Julho de 2004”;
“b) … comparência pelo segundo outorgante no dia designado para a realização da escritura pública de compra e venda -10 de Janeiro de 2005 pelas 15 horas, no Cartório Notarial de Esposende, e bem assim, ao pagamento, naquela data, pelo segundo outorgante aos primeiros outorgantes, da quantia remanescente, no valor de €135.000,00 … nos termos estipulados na alínea b) da cláusula quarta do presente contrato.”
E, preenchendo a referida cláusula resolutiva (art.º 270º do Código Civil), no uso da sua liberdade contratual, fizeram constar que “se não se verificarem, por culpa imputável ao segundo outorgante (o autor marido), em 31 de Julho de 2004 e em 10 de Janeiro de 2005, as condições cumulativas e sucessivas estipuladas supra, nos precisos termos em que se encontram exaradas, considera-se este contrato automaticamente resolvido, por incumprimento contratual definitivo do segundo outorgante, fazendo os primeiros outorgantes suas as quantias recebidas a título de sinal, nos termos do art. 442° do Código Civil, ...”.
Os AA. pagaram aos 1ºs RR. a referia quantia de € 15.000,00 no referido dia 31.7.2004, no devido tempo, mas, chegado o dia 10 de janeiro de 2005, não pagaram o remanescente, ou seja, a quantia de € 135.000,00.
Consentida a alteração da data marcada para a escritura do contrato definitivo para o dia 21 de janeiro seguinte, nem por isso tal data perdeu a improrrogabilidade que caraterizou, no contrato, a sua fixação, sendo que nem nessa data os AA. compareceram ou se fizeram representar no local designado para o efeito ou pagaram o preço restante (€ 135.000,00).
Tal conduta dos AA. motivou a remessa da carta, junta a fl.s 127 dos autos, pelo 1º R. marido ao A. marido nesse mesmo dia 21 de janeiro de 2005, declarando resolvido o contrato-promessa celebrado no dia 6 de julho de 2004, pedindo a restituição das chaves do prédio e o próprio prédio, devoluto de pessoas e bens e que, à luz da cláusula resolutiva constante do contrato-promessa, não poderia ter causado qualquer surpresa aos AA., mas antes a reação mais provável e consentânea com os termos do contrato.
O contrato ficou, assim, resolvido, por manifesto incumprimento dos AA. que não pagaram a quantia devida e não compareceram na data acordada como termo improrrogável para pagamento e realização da escritura pública de compra e venda, e não justificaram tais faltas. O R. marido resolveu o contrato em conformidade com que nele ficara estipulado.
É certo que os AA., no dia 27 de janeiro de 2005, ainda notificaram os RR. de uma nova data para a realização daquela escritura, mas então já o contrato estava resolvido por culpa deles próprios. E, resolvido que estava, nada impedia os 1ºs RR. de, posteriormente, no dia 15 de maio de 2006, mais de um ano volvido, venderem o prédio a um terceiro, a 2ª R.
a) Como bem se refere na sentença recorrida, “…verificando-se o incumprimento definitivo e sendo este imputável aos autores, carece desde logo de fundamento o pedido formulado pelos mesmos da restituição do sinal em dobro, dando antes lugar à perda do sinal que prestaram aos réus Keld e Emma[27], como censura da inadimplência dos autores, nos termos do art. 442º, nº 2 do CC.
Essa consequência – a perda de sinal – é, conforme já se aludiu, a prescrita na primeira parte do art. 442º, nº 2 do CC, quando o incumprimento do contrato promessa provém da esfera jurídica de quem o prestou. No caso, a perda do sinal em questão, a favor do réu Keld, constituiu um efeito típico do incumprimento definitivo da obrigação a cargo dos promitentes compradores, em razão da condição resolutiva convencionada pelas partes”.
Decaem assim os AA. quanto a este ponto, não lhes assistindo o direito à restituição do sinal em dobro.

b) Pretendem ainda os AA. recorrentes o pagamento da indemnização reclamada na ação pelo valor das benfeitorias que realizaram no prédio, por deverem ser considerados verdadeiros e legítimos possuidores do prédio até ao seu desapossamento, posse essa pacífica e autorizada.
O tribunal recorrido considerou, na sentença, a posse dos AA. precária e negou-lhes a indemnização.
Está provado que após a data do primeiro contrato-promessa, datado de 4.7.2003, os réus K.. e mulher, H.., entregaram as chaves do prédio aí descrito ao A. M.. que passou a habitá-lo de modo intermitente, designadamente aos fins de semana e dias festivos, nele guardando veículos automóveis, recebendo amigos e visitas, realizando festas, e aí colocando móveis, o que fez de forma ininterrupta e à vista de toda a gente. Nessa sequência, os AA. executaram várias obras no prédio.
A sentença negou o direito dos AA. a indemnização por benfeitorias realizadas por os considerar meros detentores do bem objeto da promessa.
Quanto a este ponto, o recurso estriba-se na defesa da existência de uma situação de posse, e não de mera detenção, por via da adição de factos provados que os apelantes, no entanto, não lograram obter.
A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respetivo negócio.
O contrato-promessa de compra e venda não é suscetível de transferir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, designadamente aquando da celebração do contrato-promessa, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.
Excecionalmente, são de admitir situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche todos os requisitos de uma verdadeira posse.
Seguindo doutrina e jurisprudência maioritária [28], refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.9.2008 [29] que havendo sido paga já a totalidade do preço ou não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício do direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais atos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real. O promitente-comprador atua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse.
No caso em análise, provou-se apenas que os promitentes-vendedores, logo após a celebração do primeiro contrato-promessa, de 4.7.2003, entregaram ao A. marido as chaves do prédio prometido vender que passou a habitá-lo de forma intermitente, embora ininterruptamente e à vista de toda a gente.
Fazendo os AA. radicar o pedido de indemnização por benfeitorias numa alegada situação de posse do prédio (e não de mera detenção) e sendo essa uma condição sine qua non da atribuição da indemnização ao abrigo do art.º 1273º do Código Civil, é fundamental apurar a qualidade em que os AA. realizaram as benfeitorias: se o fizeram como detentores ou como possuidores.
Na sentença recorrida, negou-se-lhes o direito por se ter considerado que agiram como possuidores precários, em nome alheio, dos próprios RR.
A questão é complexa. Mesmo admitindo que os 1ºs RR. transmitiram para os AA. a simples detenção do imóvel e não a sua posse nos termos do art.º 1263º, al. b), do Código Civil --- caso em que não se torna desnecessário analisar o apossamento, como sucederia se não estivesse provado como ou a que título se iniciou a detenção da parcela [30], nem recorrer à presunção segundo a qual, “em caso de dúvida, (se) presume que o possuidor possui em nome próprio, ou, usando os termos legais, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto – cf. nº 2 do art.º 1252º C.C.” [31] ---, a questão não fica ultrapassada porque poderá ainda discutir-se uma (eventual) inversão do título da posse (al. d) daquele preceito legal e art.º 1265º do mesmo código), em razão da realização das obras de grande visibilidade no prédio, com eventual conhecimento dos proprietários. [32]
Não podemos, no entanto, ir tão longe e prosseguir na análise desta questão.
No despacho saneador, proferido no dia 4 de outubro de 2007, todos os RR. foram absolvidos da instância, por litispendência, “quanto aos pedidos de reconhecimento de posse legítima e direito de retenção deduzidos pelos AA. nas al.s a) e e) do seu petitório”, nos termos dos art.ºs 493º, nº 2, 494º, al. i) e 495º do Código de Processo Civil então vigente.
Desta decisão não foi interposto recurso e transitou em julgado.
Assentando o pedido de indemnização por benfeitorias na prévia comprovação de uma real situação de posse dos AA., ao abrigo do art.º 1273º do Código Civil, dele não podemos conhecer aqui por, quanto a esse pedido, terem sido os RR. absolvidos desta instância processual.
E se há litispendência quanto à questão da existência de posse, não podia o tribunal a quo discutir na sentença a sua existência e concluir por uma situação de simples detenção, por assim violar a reconhecida exceção perentória da litispendência e a declarada absolvição da instância. Com efeito, não podia também deixar de sobrestar na matéria das benfeitorias, impondo-se, nessa parte, a revogação da decisão.
O mesmo acontece com o pedido de condenação dos RR. no reconhecimento do direito de retenção dos AA. sobre o prédio enquanto não forem pagos dos seus créditos (pedido identificado em e) da petição inicial). Mas, ainda que assim não fosse [33], nas conclusões recursórias, os AA. não suscitaram a questão do direito de retenção, restringindo a apelação às questões da restituição do sinal pago, no seu dobro, e do pagamento da indemnização relativa às benfeitorias realizadas, pedindo a condenação “do recorrido”, ou seja, do R. sobrevivo, H.., em conformidade.
Por conseguinte, sempre a decisão absolutória proferida em 1ª instância teria transitado em julgado relativamente à 2ª R. e, em todo o caso, quanto à questão do direito de retenção sobre o prédio, não podendo tais efeitos ser prejudicados pela presente decisão (proibição da reformatio in pejus).
Contudo, como dissemos, a solução passa pelo prévio reconhecimento da violação da decisão proferida no despacho saneador que, com trânsito em julgado, absolveu os RR. da instância relativamente ao pedido de reconhecimento do direito de retenção. Daí que também estivesse vedado ao tribunal conhecer deste pedido, por ofensa ao caso julgado, devendo, nessa medida, oficiosamente, revogar-se a decisão sentenciada.
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4. Cancelamento do registo da ação
A 2ª R., nas suas contra-alegações, pede que se autorize desde já o cancelamento do registo da ação que onera o imóvel por ela adquirido, por se dever considerar que, quanto a ele, os recorrentes já não poderão exercer qualquer direito no futuro, independentemente da decisão a proferir no recurso.
Este pedido da 2ª R. não é questão que possa ser trazida a este recurso, mas apenas à 1ª instância, porque, sendo uma questão nova e suscitada por um recorrido, nada influencia ou interfere na sorte da apelação.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Se a parte apela em matéria de facto e em matéria de direito, mas o recurso apenas contém conclusões em matéria de direito, ocorre fundamento de rejeição do recurso em matéria de facto, desde logo ao abrigo do art.º 641º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil.
2. Ainda que se admitisse a existência de conclusões para efeitos do seu aperfeiçoamento (art.º 639º, nº 3, do Código de Processo Civil), a lei do processo não o consente em matéria de facto, sancionando o incumprimento do ónus de impugnação previsto no art.º 640º com a imediata rejeição do recurso.
3. Para que um documento imponha, por si só, decisão diversa, deve ter um valor probatório de tal ordem elevado que os factos que atesta não possam ser destruídos por outras provas; terá que constituir prova irrefutável do facto.
4. Não sendo do conhecimento oficioso, a nulidade do contrato-promessa por preterição das formalidades referida no nº 3 do art.º 410º do Código Civil apenas invocada em sede de recurso, constitui uma questão nova de que a Relação não pode conhecer.
5. Se, quando o promitente-vendedor vendeu o prédio a terceiro já se tinha verificado uma condição resolutiva do contrato-promessa, nele prevista pelas partes, por facto imputável ao promitente-comprador, nada obstava àquela alienação, não podendo este exigir o pagamento do sinal em dobro ao abrigo do art.º 442º, nº 2, do mesmo código.
6. Tendo o tribunal decidido, com trânsito em julgado, no despacho saneador, a parcial absolvição dos RR. da instância, por litispendência, relativamente à questão da existência de verdadeira posse dos demandados quanto ao bem prometido na sequência de traditio, e à questão do seu (eventual) direito de retenção, não pode o tribunal, na sentença, negar a existência de posse e afirmar a existência de uma situação de mera detenção ou posse em nome de outrem, para negar o direito dos AA. (promitentes-compradores) a indemnização por benfeitorias realizadas na coisa prometida, por violação do caso julgado.
V.
Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente. Todavia, por respeito ao caso julgado formado na decisão proferida no despacho saneador, de absolvição dos RR. da instância relativamente aos pedidos a) e e) da petição inicial, reduz-se agora, oficiosamente, a absolvição dos RR. do pedido para os pedidos identificados sob as al.s b), c), d) e f) da petição inicial.
Custas pelos AA. apelantes.
Guimarães, 19 de fevereiro de 2015
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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[1] Adiante 1ºs RR.
[2] Adiante 2ª R.
[3] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho.
[4] Embora, na verdade, das conclusões não resulte colocada qualquer questão relativa à decisão em matéria de facto. Adiante discutiremos a admissibilidade do recurso.
[5] Por transcrição.
[6] Por isso, as conclusões nada podem acrescentar às alegações.
[7] Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra, 4ª edição, 2007, pág. 104.
[8] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 85.
[9] Lopes do Rego, Código de Processo Civil anotado, 2ª edição, vol. I, pág. 585. No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p.s 127 e 128, e Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pág. 181, nota 357.
[10] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129.
[11] Recurso em Processo Civil – Novo Regime, 2ª edição revista e atualizada, pág.s 146 e 147.
[12]José Lebre de Freitas, Rui Pinto e João Redinha, Código de Processo Civil Anotado, 2ª edição, vol. III, pág. 61.
[13] Proc. nº 100482/10.6YPRT.G1, inédito, ao menos por enquanto, e que recaiu sobre uma decisão proferida nesta Relação de Guimarães.
[14] No anterior Código de Processo Civil estava previsto no art.º 712º, nº 1, al. b).
[15] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 472.
[16] 4.7.2003.
[17] Como vimos já, é ali que se define o objeto do recurso.
[18] Também designada pelos autores como anulabilidade atípica ou anómala
[19] Entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7.4.1992, BMJ 416/589 e de 14.3.2002 e de 28.2.2008, proc.08A081, in www.dgsi.pt.
[20] Na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.7.2007 e da Relação de Coimbra de 14.12.2006, cujo sumário se transcreve em Abílio Neto, Código de Processo Civil anot. 21ª edição, pág. 1002.
[21] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 2004, in www.dgsi.pt.
[22] Cf. Brandão Proença, in “A resolução do Contrato no Direito Civil”, 1982, pág. 161.
[23] Cf. Baptista Machado, “Pressupostos de Resolução por incumprimento”, in «Obra Dispersa», vol. I, 1991, pág.s 129/131.
[24] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 2004 e de 7 de Março de 2006, in www.dgsi.pt.
[25] Neste sentido, A. Varela, in Das Obrigações em Geral, I, 9ª ed., pág.s 354 e seg.s e II, 7ª ed., pág. 124; Calvão da Silva, in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, ed. de 1995, pág. 297 e, entre muitos outros, os ac.s do STJ, de 27.9.2001, 8.2.2000, 27.4.1999, 10.12.1997 e 21.5.98, CJ/STJ, Ano IX (2001), T. III, 46, 2000, T. I, 72, 1999, T. II, 60, 1997, T. III, 164 e BMJ, 477-460.
[26] Cf. A. Varela, in R.L.J., 121º, pág. 223 e acórdão do STJ de 24/10/1995, Colectânea de Jurisprudência do Sup., T. III, pág. 78.
[27] Quis dizer-se Elle.
[28]Antunes varela, R.L.J. Ano 124º- 348 ; Vaz Serra, R.L.J. Ano 109º-314 e Ano 114º-20, Calvão da Silva, BMJ nº 349-86, nota 55, bem como o acórdão do S.T.J. de 26.5.94, Col. Ac. S.T.J., II, 2º, pág. 118; Ac. S.T.J. de 19.11.96, III, 3º,pág. 96; Ac. S.T.J. de 11.3.99, Col. Ac. S.T.J., VII, 1º, pág. 137; Ac. S.T.J. de 23.5.06, Col. Ac. S.T.J., XIV, 2º, pág. 97.
[29] Proc. 08A1988, in www.dgsi.pt.
[30]Cfr. acórdão de 25 de setembro de 2010, proc. 392/03.0TBCNF.P1.S1, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.10.2013, proc. 420/06.7TVLSB.L1.S2, ambos publicados em www.dgsi.pt.
[31] Cf. acórdão deste Supremo Tribunal de 24 de junho de 2010, proc. nº 106/06.2TBFCR.C1.S1, in www.dgsi.pt, proc. nº 106/06.2TBFCR.C1.S1.
[32] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de junho de 2010, proc. nº 106/06.2TBFCR.C1.S1, de 25 de setembro de 2010, proc. 392/03.0TBCNF.P1.S1, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.10.2013, proc. 420/06.7TVLSB.L1.S2, publicados em www.dgsi.pt.
[33] O objeto do recurso não coincide necessariamente como objeto da ação. No recurso, o recorrente pode restringir o seu objeto a qualquer das decisões distintas que a sentença contiver e, ainda, nas conclusões, pode restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso (art.º 635, nº 2 e 4, do Código de Processo Civil). É ao recorrente que compete delimitar o âmbito decisório de que recorre. Esta temática é emanação do princípio dispositivo e dos princípios da preclusão e da auto-responsabilidade das partes.