Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1618/17.8T8BRG.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: CONTRATO PROMESSA
COMPRA E VENDA PARA CONSUMO
REGIME APLICÁVEL
FALTA DE CONFORMIDADE/DEFEITO DA COISA VENDIDA
DIFICULDADES DE PROVA
FAVORECIMENTO DO CONSUMIDOR (PRESUNÇÕES)
REPARTIÇÃO DO ÓNUS (DE ALEGAÇÃO E) DA PROVA
DIREITOS DO CONSUMIDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Estando o contrato promessa funcional e instrumentalmente ligado ao contrato prometido, o princípio da equiparação consagrado no n.º 1 do art.º 410.º do Código Civil, ao não distinguir, na sua aplicação, entre os requisitos de formação e os efeitos do negócio, leva-nos a aplicar à promessa de venda as regras atinentes à venda de coisa defeituosa ou não conforme.

II - O DL n.º 67/2003, de 08 de Abril (venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas) transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, e alterou a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Lei de defesa do consumidor). Tal diploma, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores (art.º 1º nº 1).

III - Entre as principais inovações introduzidas pelo DL n.º 67/2003, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, face ao regime previsto no Código Civil, temos a adopção expressa da noção de “conformidade com o contrato”, que se presume não verificada sempre que ocorrer algum dos factos aí descritos.

IV - Enquanto no regime geral, consagrado no Código Civil para a venda de coisa defeituosa, compete ao comprador o ónus da prova da existência do defeito da coisa vendida, no regime previsto para a venda de bens de consumo do DL n.º 67/2003, a “falta de conformidade”, nos casos referidos no citado art.º 2º nº 2, presume-se.

V – Face a tal presunção legal, ao comprador compete apenas alegar um dos factos índices aí previstos, passando a competir ao vendedor a prova da conformidade, isto é, de que a coisa não padece da alegada “falta de conformidade” ou defeito, ou que o consumidor tinha conhecimento dessa falta de conformidade ou não podia razoavelmente ignorá-la

VI - Este conceito de falta de conformidade não coincide com o de “vício”, “falta de qualidade” ou “defeito”, antes se inserindo numa “concepção ampla e unitária de não cumprimento”.

VII - Ocorre falta de conformidade entre o que foi negociado, querido pelo autor e prometido pela ré, e o que, na concretização desse contrato, a ora recorrente lhe entregaria, quando, posteriormente à celebração do contrato promessa, o promitente comprador toma conhecimento de que veículo prometido vender sofreu danos de tal modo graves que levaram à considerá-lo “perda total”, cuja reparação incluiu peças que nem sequer são da marca e além disso padece das anomalias que lhe foram detectadas

VIII - Não pode a ré vendedora, aqui recorrente, no âmbito deste diploma (Dec. Lei 67/2003) e da garantia de conformidade prevista no seu art.º 3º, invocar que desconhecia sem culpa a desconformidade, pois o regime previsto neste diploma prevalece sobre as disposições do Código Civil relativas à venda de coisa defeituosa, não tendo assim aplicação o disposto no art.º 914º.

IX - Embora o art.º 4º do DL nº 67/2003 não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, há quem defenda, numa interpretação conforme a Directiva, a prevalência da “reparação/substituição” sobre o par “redução/resolução”, pois a concorrência electiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, por não prescindir de uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé, decorrência do estabelecido no nº 5 desse mesmo normativo.

X - O exercício pelo autor do direito à resolução do contrato, por contraposição a outros direitos que poderia ter accionado em paralelo (reparação ou substituição da coisa ou redução do preço) não traduz abuso de direito, pois só esta opção ou escolha se adequava às circunstâncias concretas do caso.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

P. J. instaurou a presente acção declarativa com processo comum contra X, Unipessoal, Lda., pedindo que:

a) Fosse declarado resolvido o contrato-promessa de compra e venda da viatura da marca M. B., modelo CLK 220 CDI, com a matrícula ..., e, consequentemente, a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 5.052,05€, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, até ao integral pagamento;

ou, subsidiariamente,

b) Fosse anulado, com base em erro/dolo, o contrato-promessa de compra e venda da viatura da marca M. B., modelo CLK 220 CDI, com a matrícula ..., e consequentemente, a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 2.552,05€, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, até ao integral pagamento..

Alegou, em síntese, que celebrou com a ré um contrato promessa de compra e venda, que teve por objecto a viatura da marca M. B., modelo CLK 220 CDI, com a matrícula ..., tendo entregado à ré, a título de sinal, a quantia de €2.500,00. Após a realização de uma verificação técnica à viatura, constatou, que, afinal, a mesma havia sido objecto de reparação na sequência de um sinistro e apresentava as anomalias melhor descritas em 12 da petição inicial, circunstâncias que lhe haviam sido ocultadas pelo legal representante da ré, a quem previamente advertiu que pretendia comprar um veículo em perfeito estado de funcionamento e conservação e que não tivesse sido objecto de qualquer tipo de acidente, pelo que, em face do engano que lhe foi gerado e da circunstância de a viatura não possuir as condições essenciais que o legal representante da ré assegurou, entende que lhe assiste o direito a resolver o contrato e a exigir a entrega do sinal prestado em dobro, por tal resolução proceder de culpa da ré, sendo que tal contrato sempre seria anulável atento o erro-vício da sua vontade.
*
A ré veio apresentar contestação onde, em suma, alegou que desconhecia que a viatura por si prometida vender era acidentada, sendo que, de qualquer forma, nunca afiançou ao autor que não tivesse tido qualquer acidente, encontrando-se a viatura em bom estado de funcionamento.

Mais alegou que efectuou a resolução do contrato promessa uma vez que o autor não procedeu ao pagamento do remanescente do preço devido no prazo que lhe foi estipulado, tendo a contestante perdido o interesse na venda do veículo.
*
Findos os articulados, foi proferido o despacho saneador e fixado o valor da causa.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Proferiu-se sentença em que se decidiu:

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a acção, reconhecendo a resolução do contrato promessa referido em E) da factualidade assente e, consequentemente, condeno a ré X, Unipessoal, Lda., a proceder ao pagamento ao autor P. J. da quantia de 2.500,00€, acrescida dos juros de mora, à taxa legal em vigor em cada momento, a contar desde 12/11/2016 e até integral pagamento, absolvendo a ré de tudo o demais peticionado pelo autor.
Custas pelo autor e pela ré na proporção do respectivo decaimento (cfr. art. 527.º, n.ºs
1 e 2, do CPC).
*
Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem por objecto a Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou parcialmente procedente o pedido do Autor, aqui Recorrido, reconhecendo a resolução do contrato promessa de compra e venda com fundamento na desconformidade do bem e condenando a Ré, aqui Recorrente, ao pagamento da "quantia de 2.50o,OO€, acrescida dos juros de mora, à taxa legal em vigor em cada momento, a contar desde 12/11/2016 e até integral pagamento "
II. A Recorrente entende que a prova produzida não permite dar como assente determinados factos que integram a matéria de facto provada, assim como o Tribunal a quo não valora factualidade dada como não provada. Por força da errónea apreciação da matéria de facto, o enquadramento jurídico e respectiva interpretação das normas terá, necessariamente, que ser revisto.
III. No que diz respeito à matéria de facto assente pelo Tribunal a quo, a Recorrente entende que os pontos H) e I) dos factos provados deverão ser alterados, passando a ter a seguinte redacção: "H) Na sequência da verificação técnica do mencionado veiculo, as conclusões foram as seguintes:

- As blindagens interiores junto às caves de roda não estão deficientemente montadas, estão sem folgas e devidamente apertadas; - O colector de admissão de ar do motor não tem fuga; - Os apoios do motor não apresentam qualquer problema; - Os pneus estavam bastante novos. ",o (1) A viatura refenda em D) foi interveniente num sinistro tendo sido sujeita a reparação. "
IV. A Recorrente considera ainda que deverá ser aditado um novo facto à matéria factual provada com o seguinte teor: 'Na sequência do check-up efectuado a pedido da Ré, a direcção da viatura foi alinhada. "
V. No que diz respeito à matéria de facto dada como não provada, além de o Tribunal a quo não ter extraído as devidas consequências do ponto 1 da douta sentença recorrida, também um novo ponto deverá fazer-se constar: ':4 viatura apresentava as seguintes características: - Vários componentes da dianteira foram substituídos no decorrer da reparação anteriormente mencionada, tais como faróis e estrutura de suporte dos mesmos, radiadores, pára-choques dianteiro, guarda-lamas, etc.; - Os radiadores de refrigeração do motor, de ar de sobrealimentação e condensador do sistema de ar condicionado instalados não são peças originais M. B."
VI. As referidas alterações e aditamentos à matéria de facto devem-se ao teor do relatório da avaliação solicitada pela Recorrente que é corroborando pelo depoimento, coerente e conciso, da testemunha A. S. e reforçado pelos testemunhos dos Srs. J. C. e F. P.. Paralelamente, o relatório pericial atesta as referidas provas como, simultaneamente, descredibiliza o relatório da averiguação solicitada pelo Recorrido.
VII. Acontece que, o douto Tribunal recorrido não apreciou devidamente a prova, assim como não lhe conferiu uma valoração equilibrada e objectiva e ainda desconsiderou em absoluto o relatório pericial culminando com uma insatisfatória ponderação conjunta de toda a prova produzida.
VIII. Primeiramente, o Tribunal a quo confere maior importância ao relatório apresentado pelo Recorrido, valorando-o em detrimento do relatório da Recorrente quando, à partida, ambos deveriam ter o mesmo grau de credibilidade e igual dose de uma eventual subjectividade. Significa que, embora o Tribunal aprecie livremente a prova, neste caso fê-lo de forma infundada e influenciado por juízos pessoais, ao invés de se orientar por critérios objectivos.
IX. Para além disso, mediante relatórios contraditórios, o Tribunal deveria apoiar-se na restante prova produzida, nomeadamente a prova testemunhal que fragiliza o relatório do Recorrido e, principalmente, na prova pericial que vem atestar a inexistência de anomalias, sendo somente inconclusiva quanto a duas características (substituição de componentes e peças não originais da marca).
X. As transcrições dos depoimentos das testemunhas são ilustrativas que o veículo apresentava todas as características consideradas normais, não tendo sido detectadas anomalias ou um funcionamento deficitário; também atestam que o veículo, embora tivesse cerca de oito anos à data da celebração do contrato e bastante utilização, estava bem conservado e sem historial de apresentar problemas ou sinais de um funcionamento anormal.
XI. Posto que, a Recorrente não vislumbra razões para as conclusões retiradas pelo Tribunal recorrido, principalmente, a desconsideração da perícia que poderia e deveria ter funcionado com elemento elucidativo das conclusões a extrair dos dois relatórios de avaliação da viatura que apresentavam versões opostas. Além disso, não asseguravam o mesmo nível de isenção e imparcialidade como é próprio da perícia, desde logo, por ser efectuada por um perito indiferente às partes.
XII. Elucidativo do processo de apreciação da prova e, subsequente, formulação da convicção do Tribunal a Recorrente invoca a seguinte Jurisprudência: Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de Janeiro de 2018, no processo 2825116.6T8STR-B.El, relator Florbela Moreira Lança, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Março de 2010, no processo 949/05.4TBOVR¬A.L1-8, relator Bruto da Costa e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30 de Julho de 2015, no processo 63113.9TBOLR.Cl, relator Isabel Silva, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
XIII. Assim, partindo da correcta apreciação, valoração e formação da convicção quanto aos factos que servem de base à decisão de direito, terá que se concluir pela inexistência de desconformidades, à luz do artigo 2º do regime de venda de bens de consumo, aprovado pelo DL n.º 67/2003, de 08 de Abril, do veículo automóvel prometido.
XIV. Provando-se que o veículo não apresentava as anomalias alegadas pelo Recorrido, não tendo sido afastada a dúvida quanto à substituição de componentes da dianteira e ao facto de algumas peças não serem originais da marca e bem sabendo o Recorrido das características do veículo (usado, do ano 2008 e com cerca de 160000 quilómetros), não existem factos que densifiquem o conceito 'falta das qualidades habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor razoavelmente pode esperar' .
XV. A circunstância do veículo ter sido objecto de um acidente não poderá relevar na aferição da conformidade ou desconformidade: não ficou provado que o Recorrido informou que esta era uma qualidade essencial; não se provou que a Recorrente omitiu esse facto (pois também o desconhecia) ou assegurou características que, na realidade, o veículo não tinha; decorre da experiência comum que o consumidor ao pretender adquirir um veículo usado está ciente de que a probabilidade de comprar uma viatura que já tenha tido intervenção num acidente é claramente maior do que vir a acontecer o oposto.
XVI. Naturalmente que não tendo sido detectadas quaisquer anomalias, não existindo um historial que revele problemas, encontrando-se o veículo em bom estado de conservação e funcionalidade, é por demais evidente que a presunção não é preenchida na parte relativa à falta de desempenho habitual que seria expectável para o consumidor normal que pretende adquirir um veículo usado, com aproximadamente 160 000 quilómetros (dr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Novembro de 2015, no processo l391l2.0TVLSB.Ll.Sl, relator Oliveira Vasconcelos e, interpretado a contrario, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de Dezembro de 2016, no processo l6381l1.6TBACB.Cl, relator Maria Domingas Simões, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
XVII. É o que resulta da conjugação da prova produzida e da sua valoração, especialmente o relatório da verificação efectuada a pedido da Recorrente em conjugação com o depoimento da Testemunha A. S., o relatório pericial e ainda os depoimentos das Testemunhas J. C. e F. P..
XVIII. Desta feita, o Recorrido não demonstrou os factos que preenchem a presunção consagrada no artigo 2º n.º 2 alínea d) do regime de venda de bens de consumo, pelo que o Tribunal a quo não poderia ter concluído pela desconformidade (nesse sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Março de 2014, no processo 7831l1.2TBMGR.Cl.Sl, relator Moreira Alves, disponível em www.dgsi.pt).
XIX. Posto que, a resolução do contrato promessa de compra e venda operada pelo Recorrido não deveria ter sido reconhecida pela douta sentença recorrida por carecer de qualquer fundamento, uma vez que ao Recorrido não lhe assistia nenhum dos direitos consagrados no regime de venda de bens de consumo.
XX. Por conseguinte, a dita resolução não poderia produzir quaisquer efeitos, sendo certo que o contrato promessa só foi legitimamente resolvido pela Recorrente com fundamento no disposto no artigo 808º do Código Civil ex vi artigo 432º n.º 1 também do Código Civil, visto que o Recorrido não cumpriu com a prestação de pagamento do restante valor acordado mesmo tendo sido interpelado para o efeito.
XXI. Em suma, a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a pretensão do Recorrido reconhecendo a inexistência de defeitos do bem objecto do contrato promessa e, consequentemente, não condenando a Recorrente na restituição daquilo que foi prestado, por força do disposto no artigo 442º n.º 2, primeira parte, do Código Civil.
XXII. Caso assim não se entenda, por mera cautela de patrocínio, independentemente da posição adoptada quanto à consagração ou não de uma hierarquização do exercício dos direitos do consumidor, os defeitos mencionados no relatório de avaliação solicitado pelo Recorrido não legitimam a resolução por manifesta desproporcionalidade dos seus efeitos colocando a Recorrente numa posição injustificadamente gravosa.
XXIII. Mesmo considerando que não há hierarquização, como defende o Tribunal a quo, o exercício do direito terá sempre que ser resultado da, apelidada pela doutrina, “eticização da escolha” (invocando esta tese, a título exemplificativo, vide. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01 de Março de 2016, no processo 1684/08.7TBCBR.Cl, relator Jorge Arcanjo; os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17 de Dezembro de 2015, no processo 1473111.1YXLSB.L1-2, relator Ondina Carmo Alves e de 06 de Julho de 2017, no processo 899117.1 YRLSB-8, relator Ilídio Martins, todos disponíveis em www.dgsi.pt). XXIV. Na modesta opinião da Recorrente, o douto Tribunal recorrido andou mal ao não conformar o exercício do direito de resolução como uma situação de abuso de direito por violar do princípio da boa-fé, pelo que não deveria ter reconhecido como legítima a resolução do contrato promessa pelo Recorrido.
XXV. Isto porque, o Recorrido ao constatar que o veículo era acidentado sendo que a sua intenção era adquirir um veículo usado, mas sem intervenção em acidentes (o que nunca exteriorizou), poderia ter solicitado a substituição por outro com as características pretendidas e respeitando esse requisito ou optar pela redução do preço, de forma a aproximar-se ao valor que considerava como justo.
XXVI. Ainda que a redução do preço não se afigurasse totalmente satisfatória para o Recorrido a substituição, por um lado, realizaria em absoluto os seus interesses já que a Recorrente teria várias opções dentro dos critérios do Recorrido e trabalha quase em exclusivo com a marca do veículo em questão; por outro, não seria demasiado onerosa para a Recorrida que conseguia, assim, realizar o negócio perspectivado.
XXVII. Nesse sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Abril de 2014, no processo 2491I1lo5YXLSB.L1-6, relator Ana de Azeredo Coelho e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05 de Maio de 2015, no processo 1725112.3TBRG.G l.S 1, relator João Camilo, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, se requer a V/ Exas. que admitam o presente recurso e, em consequência, seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a pretensão do Autor, aqui Recorrido, por o bem objecto do contrato promessa de compra e venda ser conforme ao contratado e, por conseguinte, inexistirem fundamentos para a resolução do contrato
Subsidiariamente,

Deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a pretensão do Autor, aqui Recorrido, por a resolução do contrato promessa de compra e venda consubstanciar uma situação de abuso de direito em violação do princípio da boa-fé, fazendo assim Vossas Excelências a inteira e habitual JUSTIÇA!
*
O apelado apresentou contra-alegações.
*
O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).

As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A) Factos julgados provados na sentença recorrida:

A) A Ré é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio, importação, exportação, manutenção e reparação de veículos automóveis, motociclos, barcos, motas de água, máquinas e equipamentos industriais, suas peças e acessórios, consultoria para os negócios e a gestão, apresentando-se como um estabelecimento comercial especializado em veículos automóveis da marca M. B..
B) Em Setembro de 2016, o Autor deslocou-se ao estabelecimento comercial da Ré, sito na Rua … Braga, com o intuito de adquirir um automóvel ligeiro de passageiros da marca M. B..
C) No mencionado estabelecimento encontravam-se diversas viaturas, que lhe foram apresentados por M. A., sócio-gerente da Ré.
D) Tendo sido informado quanto às características essenciais que o automóvel a adquirir pelo Autor deveria possuir, o sócio-gerente da Ré apresentou-lhe uma viatura da marca M. B., modelo CLK 220 CDI, com a matrícula ..., com 157978 km.
E) Em 10 de Setembro de 2016, o Autor celebrou com a Ré um contrato-promessa de compra e venda tendo em vista a aquisição da viatura referida em D), pelo preço de 23.000,00 €.
F) A título de sinal, o Autor entregou à Ré o cheque n.º …, da Caixa ..., no valor de 2.500,00 € (cfr. o doc. n.º 3 e 4).
G) O Autor solicitou à C. – Comércio de Automóveis, S.A., concessionário e oficina autorizada da marca M. B., que procedesse à verificação técnica do mencionado veículo.
H) Na sequência de tal verificação, em 26 de Outubro de 2016, os técnicos da oficina de Guimarães da C. elaboraram um relatório da verificação efectuada à mencionada viatura, cujas conclusões foram as seguintes:

.-A zona dianteira da viatura foi alvo de reparação de um sinistro, que tudo indica ter causado danos extensos na viatura, ou até perda total;
.- Vários componentes da dianteira foram substituídos no decorrer da reparação anteriormente mencionada, tais como faróis e estrutura de suporte dos mesmos, radiadores, pára-choques dianteiro, guarda-lamas, etc.;
.- Os radiadores de refrigeração do motor, de ar de sobrealimentação e condensador do sistema de ar condicionado instalados não são peças originais M. B.;
.- As blindagens inferiores junto às caves de roda estão deficientemente montadas; .- O colector de admissão de ar do motor tem fuga;
.- Os apoios do motor apresentam elevado desgaste;
.- A direcção da viatura está desalinhada.
I) A viatura referida em D) foi interveniente num sinistro com as características e consequências referidas em H).
J) O autor enviou à ré, que a recebeu em 12/11/2016, a carta que consta de fls. 11 verso e 12, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
K) A ré enviou ao autor as cartas que constam de fls. 69 e 71, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
L) A ré desconhecia a ocorrência do acidente referido em H) e I)..

B) Factos julgados não provados:

1. Desde o primeiro contacto com o sócio-gerente da Ré, o Autor deixou bem claro que pretendia adquirir uma viatura usada de selecção, em perfeito estado de funcionamento e conservação e que não tivesse sido objecto de qualquer tipo de acidente de viação.
2. O sócio-gerente da Ré transmitiu ao Autor que a viatura referida em D) preenchia todos esses requisitos e ocultou o acidente referido em H) e I).
3. O contrato referido em E) foi celebrado após o Autor ter sido convencido pelo sócio-gerente da Ré de que a mencionada viatura se encontrava em perfeito estado e que nunca havia estado envolvida em acidentes de viação.
4. O Autor impôs como condição para a concretização do negócio prometido, a realização de uma verificação técnica à viatura em uma oficina autorizada da marca M. B..

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A apelante impugna a decisão da matéria de facto na parte em que julgou provada a materialidade contante dos ponto H) e I).

Nestes provou-se:

H) Na sequência de tal verificação, em 26 de Outubro de 2016, os técnicos da oficina de Guimarães da C. elaboraram um relatório da verificação efectuada à mencionada viatura, cujas conclusões foram as seguintes:
.-A zona dianteira da viatura foi alvo de reparação de um sinistro, que tudo indica ter causado danos extensos na viatura, ou até perda total;
.- Vários componentes da dianteira foram substituídos no decorrer da reparação anteriormente mencionada, tais como faróis e estrutura de suporte dos mesmos, radiadores, pára-choques dianteiro, guarda-lamas, etc.;
.- Os radiadores de refrigeração do motor, de ar de sobrealimentação e condensador do sistema de ar condicionado instalados não são peças originais M. B.;
.- As blindagens inferiores junto às caves de roda estão deficientemente montadas; .- O colector de admissão de ar do motor tem fuga;
.- Os apoios do motor apresentam elevado desgaste;
.- A direcção da viatura está desalinhada.
I) A viatura referida em D) foi interveniente num sinistro com as características e consequências referidas em H).

Pugna para que antes se julgue provado:

"H) Na sequência da verificação técnica do mencionado veiculo, as conclusões foram as seguintes:

- As blindagens interiores junto às caves de roda não estão deficientemente montadas, estão sem folgas e devidamente apertadas;
- O colector de admissão de ar do motor não tem fuga;
- Os apoios do motor não apresentam qualquer problema;
- Os pneus estavam bastante novos. ",
I) A viatura referida em D) foi interveniente num sinistro tendo sido sujeita a reparação. "
A Recorrente pretende ainda que seja aditado um novo facto ao elenco dos factos provados, com o seguinte teor:
'Na sequência do check-up efectuado a pedido da ré, a direcção da viatura foi alinhada."

Pugna ainda, se bem interpretamos a conclusão V, pelo aditamento à matéria de facto não provada dos seguintes pontos:

– A viatura apresentava as seguintes características: - Vários componentes da dianteira foram substituídos no decorrer da reparação anteriormente mencionada, tais como faróis e estrutura de suporte dos mesmos, radiadores, pára-choques dianteiro, guarda-lamas, etc.;
– Os radiadores de refrigeração do motor, de ar de sobrealimentação e condensador do sistema de ar condicionado instalados não são peças originais M. B."

Assenta esta sua impugnação e pretensão, nos seguintes meios de prova:

– Relatório da avaliação solicitada pela recorrente
– Depoimentos das testemunhas A. S., J. C. e F. P..

Embora nem sequer localize a que folhas dos autos se encontra o “relatório de avaliação solicitada pela recorrente”, ou concretize a que é que se refere (com a contestação juntou apenas factura de um serviço de “check up” efectuado em 3.11.2016 pela M. B. - C. Lda., relativamente ao alinhamento da direcção), concedemos que se refira à perícia efectuada nos autos requerida pelo recorrido e não pela recorrente.

Relativamente às testemunhas, nas conclusões remete para o corpo das alegações, onde transcreve as passagens desses depoimentos que, em seu entender, conduziriam à decisão pretendida, indicando ainda, ao minuto, as passagens da gravação.

Concluímos assim que, não tem razão o recorrido ao pugnar, nas suas contra-alegações, pela rejeição integral do recurso relativo à matéria de facto, pois se mostra minimamente cumprido o ónus imposto pelo art.º 640º do CPC ao apelante que impugne a decisão da matéria de facto. Isto sem prejuízo de essa rejeição poder ocorrer casuisticamente, relativamente à impugnação de algum facto em que não tenha sido observado o disposto no art.º 640º do CPC.

Posto isto, apreciemos ponto por ponto a referida impugnação.

No tocante à alínea H) dos factos provados pretende apelante que se julgue provado:

– Na sequência da verificação técnica do mencionado veiculo, as conclusões foram as seguintes:
- As blindagens interiores junto às caves de roda não estão deficientemente montadas, estão sem folgas e devidamente apertadas;
- O colector de admissão de ar do motor não tem fuga;
- Os apoios do motor não apresentam qualquer problema;
- Os pneus estavam bastante novos. ",
Isto é, o que a apelante pretende é que se julgue não provada a matéria da alínea H).

Concedendo que o ónus da prova da conformidade impende sobre a recorrente e que por isso poderia ter interesse na prova do facto negativo, sempre diremos que não há fundamento para proceder à pretendida alteração, porquanto a nossa convicção coincide com a do Tribunal “a quo”.

Efectivamente, o que se deu como provado sob a al. H) corresponde exactamente ao relatório de uma verificação extrajudicial realizada na M. B. (no caso a concessionária), através dos seus serviços, cujo relatório datado de 26.10.2016 (junto a fls. 11 dos processo físico), vem assinado pelo responsável do serviço pós venda, A. N., engenheiro mecânico, da C. (M. B.) o qual depôs como testemunha, corroborando e explicitando, o que do mesmo consta.

Nem a deficitária perícia realizada nos autos, nem o vago depoimento de A. S. (basta atentar nas suas respostas transcritas no corpo das alegações), põem validamente em causa as conclusões desse relatório, vertido na al. g) dos factos provados.

Muito menos os depoimentos do Sr. J. C., pessoa que vendeu o veículo à aqui recorrente e de F. P., seu familiar, ambos com possível interesse no desfecho desta acção e sem os conhecimentos e meios técnicos que o Eng. Mecânico da M. B. (C.) possui e tinha à sua disposição.

É certo que, no caso em apreço, como atrás referimos, foi realizada prova pericial nos autos, cujo relatório se mostra junto a fls. 164 e segs. do processo físico. Contudo, em nosso entender, pelas suas manifestas insuficiências, tal perícia em nada contribuiu para a descoberta da verdade, levando até a privilegiar as conclusões da verificação técnica efectuada na M. B. (C.), pois o próprio perito admite que a marca estaria em melhores condições para a efectuar.

Neste sentido, o perito, logo no início do seu relatório, afirma: “(…) No entanto a avaliação de molde a responder aos quesitos teria de ser bastante profunda, incluindo desmontagem de vários componentes da frente do automóvel e a avaliação do código dos componentes, se estes existirem (…). Esta avaliação teria de ser efectuada por pessoal habituado a intervencionar veículos da marca e com acesso à base de dados da marca (…). Por outro lado, se a reparação tiver sido efectuada com cuidado, será difícil avaliar-se se houve ou não intervenção ao nível do chassis e até que ponto essa intervenção se deu, pois o trabalho de bate-chapa e de pintura poderá esconder esses indícios”.

Prosseguindo nesse mesmo relatório, constatamos que o perito não respondeu a certos quesitos (a, b e c), por ser necessária desmontagem e acesso à base de dados da M. B., e responde aos restantes (d, e, f e g) de forma superficial, a olho, como o próprio admite nos esclarecimentos a fls. 170.

Pelo exposto, mantemos a redacção da alínea H), por corresponder à prova produzida, que nos convenceu.

No tocante à alínea I) dos factos provados a apelante propõe uma subtil alteração da sua redacção que deixaria de fora a natureza do acidente que a viatura sofreu e em que o autor, bem ou mal, oportunamente se decidirá, se funda para não querer celebrar o contrato prometido.

Ora, a prova do facto vertido na alínea I) resulta da documentação, junta aos autos pela seguradora “A.”, na qual consta que o veículo em questão “interveio num sinistro, tendo sofrido danos avultados” que levaram a Seguradora a considerar “inviável a sua reparação”, indemnizando o proprietário o qual ficou na posse do salvado, situação que foi comunicada ao IMTT, à PJ e à Conservatória do Registo Automóvel, conforme documentos junto aos autos fls. 105 e verso e 106 do processo físico, e do relatório da “DualPeri”, relativo à peritagem então efectuada, com reportagem fotográfica, constante a págs. 746 a 780 do processo electrónico e 78 a 103 do processo físico, onde se conclui pela “perda total”. Bem como da carta enviada pela “A.” ao então proprietário do veículo, datada de 31-10.2010, a págs. 104 do processo físico.
É claro que se poderia acrescentar à redacção do facto da al. I), que a viatura foi reparada, mas isso é ponto assente, não é objecto de litígio.

Quanto ao pretendido aditamento de que “'Na sequência do check-up efectuado a pedido da ré, a direcção da viatura foi alinhada”, não indica a ré onde alegou tal facto.
Ora, considerando o ónus que lhe é imposto pelo art.º 640º nº 1 do CPC e considerando que se trata de um aditamento, isto é, trata-se de facto que não consta do elenco dos factos provados e não provados, competia à apelante especificar com exactidão, por remissão para o artigo, em princípio da contestação, onde o mesmo foi alegado. Certo mesmo é que não é a este Tribunal da Relação que compete procurá-lo entre os 102 artigos da sua contestação.

Pelo exposto nesta parte o recurso é rejeitado

Por último pugna a recorrente pelo aditamento à matéria de facto não provada do seguinte:

– A viatura apresentava as seguintes características: - Vários componentes da dianteira foram substituídos no decorrer da reparação anteriormente mencionada, tais como faróis e estrutura de suporte dos mesmos, radiadores, pára-choques dianteiro, guarda-lamas, etc.;
– Os radiadores de refrigeração do motor, de ar de sobrealimentação e condensador do sistema de ar condicionado instalados não são peças originais M. B."

Mais uma vez a apelante nem sequer indica o artigo da petição ou da contestação onde tais factos foram alegados.

Acresce que a impugnação da decisão da matéria de facto não serve para aditar factos que não se provaram. Efectivamente a sentença funda-se nos factos provados. Os factos não provados não são fundamento fáctico da sentença.

A impugnação da matéria de facto visa alterar a decisão proferida quanto aos factos provados e não provados, e, eventualmente, a ter sido omitida qualquer questão de facto com interesse para a decisão da causa, constando dos autos os necessários meios probatórios, requerer ao Tribunal de recurso que se substitua ao Tribunal “a quo” julgando-os provados.

Consequentemente não cabe a este Tribunal, por carecer em absoluto de interesse, proceder a qualquer aditamento à matéria de facto não provada.
*
Mantém-se assim inalterada a matéria de facto julgada provada na sentença recorrida, que agora se tem por assente.
*
B) DA APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS

B.1. Do direito do autor à resolução do contrato

O autor invocou a existência de vícios na coisa prometida comprar, que lhe determinaram a perda de interesse na celebração do contrato definitivo, pelo que o litígio passou a centrar-se ao nível da obrigação de vender coisa sem vícios.

Tal deslocação é admitida, uma vez que, como se pode ler no Ac. do STJ de 03- 06-2003 (processo 03A1284), acessível em www.dgsi.pt: “Estando o contrato-promessa funcionalmente ligado ao contrato prometido, relativamente ao qual se apresenta com função instrumental, o princípio da equiparação consagrado no n.º 1 do art.º 410.º, deve submetê-lo à mesma disciplina, pois que não se vêem motivos que, por sua razão de ser, o excluam. Goza o comprador do direito à anulação e à convalescença do contrato, como direito ao exacto cumprimento, mediante a eliminação dos ónus ou limitações.”.
Em idêntico sentido se pronunciou o STJ a 29-6-2010 (processo 258/2002.G1.S1), acessível em www.dgsi.pt, onde se pode ler: “O art.º 410º nº 1 estabelece que ao contrato-promessa são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa. Estabelece-se aqui o princípio da equiparação, afastando-se as regras relativas à forma e as que pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa. Para o presente caso, interessa-nos esta segunda excepção a tal princípio de equiparação. Como o estabelecido no art.º 410º nº 1 “não distingue, na sua aplicação, entre os requisitos de formação e os efeitos do negócio, são aplicáveis à promessa de venda, com as necessárias adaptações, as regras que na compra e venda se referem à determinação e a redução do preço, à venda de bens alheios, de coisa defeituosa, de bens onerados etc.”.

Pelo exposto, nos termos do art.º 410.º, n.º 1 do CC e porque este não distingue entre os requisitos de formação e os efeitos do negócio, face ao dito princípio da equiparação, deve aplicar-se à situação vertente as regras atinentes à venda de coisa defeituosa.

O cumprimento defeituoso da prestação, nos termos sobreditos, constitui ainda motivo razoável para a perda de interesse na celebração do contrato prometido.

Posto é que, no caso em apreço, se verifiquem os defeitos ou desconformidades que permitiriam resolver o contrato prometido.

Na petição inicial o autor conclui, em sede de direito, que o cumprimento do contrato promessa se tornou impossível, impossibilidade essa que imputa à ré, porque o veículo não possui as características essenciais que o legal representante da ré havia assegurado ao autor possuir. Tinha assim direito a resolver o contrato e à restituição em dobro do sinal pago.

Subsidiariamente invocou ainda o seu direito à anulação do contrato com base em erro provocado por dolo da ré (art.º 254º nº 1 do CC).

Não foi esse o caminho percorrido na sentença, porquanto se entendeu que, embora assistindo ao autor o direito de resolver o contrato nos termos do art.º 4º do Dec. Lei n.º 67/2003, porque o carro prometido vender era de facto defeituoso na acepção do art.º 2.º, n.º 1, do citado diploma legal, padecendo de vício que não era susceptível de reparação, já não lhe assiste o direito à devolução do sinal em dobro pois que, “a resolução operada pelo autor com base nos eventuais defeitos da coisa prometida vender (com fundamento na violação das obrigações que derivariam para a ré da celebração do contrato definitivo) não pode ser considerada justificativa da pretendida restituição em dobro do sinal prestado, “pena” que está estipulada apenas para os casos de incumprimento das obrigações emergentes do contrato promessa”.

O autor conformou-se com o decidido, pois apenas a ré recorreu, pelo que, em sede do presente recurso, no que à aplicação do direito aos factos tange, cumpre apenas apreciar as questões colocadas pela ré.

Em primeira linha sustenta a recorrente que “o recorrido não demonstrou os factos que preenchem a presunção consagrada no artigo 2º n.º 2 alínea d) do regime de venda de bens de consumo, pelo que o Tribunal a quo não poderia ter concluído pela desconformidade (nesse sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Março de 2014, no processo 7831l1.2TBMGR.Cl.Sl, relator Moreira Alves, disponível em www.dgsi.pt)”.

Apreciando.

A par do regime previsto no Código Civil para a venda de coisa defeituosa ou sem as qualidades asseguradas pelo vendedor (artºs 913º a 922º) surgiu, ainda no século passado, nova legislação de protecção do consumidor, que ampliou os meios de defesa do comprador/consumidor.

Assim, a Lei de Defesa do Consumidor (Lei 24/96 de 31/7), no seu art.º 12º, estabelecia, na versão original: “- O consumidor a quem seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dele tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato”.

Consagrando-se em tal diploma, expressamente, que “o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos”, quando anteriormente se entendia que apenas teria direito à indemnização pelos danos patrimoniais, discutindo-se ainda se apenas pelo interesse contratual negativo ou também pelo positivo.

Já neste século, na sequência de várias directivas europeias de protecção dos direitos do consumidor, a disciplina da compra e venda, mormente no que tange aos defeitos da coisa vendida, foi objecto de intervenção legislativa, que, a par do Código Civil, prevê e regula a questão que ora nos ocupa.

Assim, o DL n.º 67/2003, de 08 de Abril (venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas) transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, e alterou a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Lei de defesa do consumidor).

Tal diploma, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores (art.º 1º nº 1).

Define-se como “consumidor” aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho. E como “vendedor “ qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional – [artº 1ºB, als. a) e c), já com as alterações introduzidas pelo citado Decreto-Lei n.º 84/2008].

Face aos factos provados o contrato prometido cai na alçada de tais diplomas, visto que o comprador, aqui autor, é um consumidor (o automóvel seria destinado a um uso não profissional) e a vendedora, aqui ré, é uma sociedade que exerce a actividade de venda de veículos automóveis.

Entre as principais inovações introduzidas pelo DL n.º 67/2003 na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, face ao regime previsto no Código Civil, há que referir a adopção expressa da noção de “conformidade com o contrato”, que se presume não verificada sempre que ocorrer algum dos factos aí descritos.

Assim, o art.º 2º nº2 do citado Decreto-Lei estabelece a presunção de falta de conformidade entre os bens de consumo entregues e o contrato, nos seguintes casos:

a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

Ressalvando-se aqueles em que “no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor”.

Como refere Ana Catarina Mota da Silva, in “Responsabilidade do Produtor pela Conformidade do Bem” (1), “a Directiva podia ser transposta de duas formas:

através de alterações ao Código Civil e, para as relações com os consumidores, à Lei da Defesa do Consumidor, a chamada “solução grande”, ou a transposição num diploma avulso, com o âmbito subjetivo e objetivo da Diretiva, que iria conviver lado a lado com o regime civil geral, a “solução pequena”. O legislador, optou por um diploma avulso (DL 67/2003), que, constituindo lei especial, prevalece sobre a lei geral, devendo aplicar-se em primeira linha o seu regime, só nos socorrendo das regras próprias sobre a compra e venda que com aquele não conflituem e dos princípios gerais das obrigações subsidiariamente (ver também acórdãos desta Relação de 05.6.2014 (1725/12.3TBBRG.G1) e de 22.10.2015 (193/13.7TBFAF.G1) in dgsi.pt.

Enquanto no regime geral, consagrado no Código Civil para a venda de coisa defeituosa, compete ao comprador (autor) o ónus da prova da existência do defeito da coisa vendida, no regime previsto para a venda de bens de consumo do DL n.º 67/2003, a “falta de conformidade”, nos casos referidos no citado art.º 2º nº 2, esta presume-se (presunção legal – art.º 350º do CC).

Assim, compete tão-somente ao comprador/autor alegar um dos factos índices aí previstos para que se presuma a falta de conformidade, invertendo-se o ónus da prova, passando a competir ao vendedor a prova da conformidade, isto é, de que a coisa não padece da alegada “falta de conformidade” ou defeito. Ou então que o consumidor tinha conhecimento dessa falta de conformidade ou não podia razoavelmente ignorá-la

Presunção que vale não só para as faltas de conformidade verificadas no momento do contrato, mas também posteriormente, uma vez que o art.º 3º estabelece que “as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade”.

Este conceito de falta de conformidade não coincide o de “vício”, “falta de qualidade” ou “defeito”, antes se inserindo numa “concepção ampla e unitária de não cumprimento” (2).

Ora, no caso em apreço, o autor estava disposto a adquirir um veículo automóvel de marca M. B., deslocou-se ao estabelecimento comercial da ré, que se apresenta como especializada na comercialização de veículos desta marca –facto da al. a) – onde o sócio gerente da ré lhe mostrou um veículo dessa marca, modelo CLK 220 CDI, com a matrícula ..., com 157.978 km, informando-o das características essenciais desse veículo ­– factos das alíneas c) e d) – tendo acertado os termos do negócio e para esse efeito celebrado contrato promessa. A venda seria efectuada pelo preço de €23.000, entregando o autor logo no acto da celebração da promessa a quantia de €2.500.

Com conhecimento da recorrente, o recorrido solicitou à C. - Comércio de Automóveis, S.A., concessionária e oficina autorizada da marca M. B., que procedesse à verificação técnica do mencionado veículo e na sequência dessa verificação, além das diversas anomalias elencadas em H) dos factos provados, constatou-se que o veículo tinha sido objecto de uma intervenção profunda em consequência de sinistro que lhe provocou danos extensos ou até perda total, como depois se veio a constatar ter efectivamente ocorrido em 2010.

Além disso, os radiadores de refrigeração do motor, de ar, de sobrealimentação e condensador do sistema de ar condicionado, nele instalados, não são peças originais M. B.; as blindagens inferiores junto às caves de roda estão deficientemente montadas; o colector de admissão de ar do motor tem fuga; os apoios do motor apresentam elevado desgaste; a direcção da viatura está desalinhada.

Estabelece o já citado art.º 2º nº 2 al. d):

– Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se (d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

Quem está disposto a pagar €23.000 por um veículo usado com cerca de 8 anos, espera que esse veículo tenha um histórico impecável e se encontre, apesar do seu uso e normal desgaste, em perfeitas condições.

É natural e razoável que o consumidor perca a confiança no desempenho futuro de um veículo que sofreu danos de tal modo graves que foi considerado perda total, cuja reparação incluiu peças que nem sequer são da marca e além disso padece das anomalias que lhe foram detectadas.

Como se refere na sentença recorrida:

“(…) o veículo em causa não apresentava de facto as qualidades habituais dos bens do mesmo tipo e que o autor, como consumidor, poderia razoavelmente esperar em face das circunstâncias do negócio que realizava, não sendo de esperar que a troco de tão elevada quantia como aquela que o autor se dispôs a entregar à ré (23.000,00€) fosse desta receber em troca um veículo “salvado”, tanto mais porque se decidiu a comprar um veículo em estabelecimento especializado. (…) afigura-se-nos que seria expectativa legítima de qualquer consumidor colocado na posição do autor receber um carro íntegro e sem intervenção em acidentes que lhe tivessem determinado a perda total, pelo que se conclui que o carro prometido vender era de facto defeituoso na acepção do art. 2.º, n.º 1, do D.L. n.º 67/2003, padecendo de vício que não era susceptível de reparação, pelo que ao autor assistia o direito de exigir a sua substituição, a redução adequada do preço ou a resolução do contrato, nos termos do art. 4.º, n.º 1, do citado diploma, sem que a ré lhe pudesse opor, como excepção, a falta de conhecimento do aludido “defeito”.

Concluímos assim, contrariamente ao defendido pela apelante, que os factos provados preenchem a presunção consagrada no artigo 2º n.º 2 alínea d) do regime de venda de bens de consumo, ocorrendo falta de conformidade entre o que foi negociado, querido pelo autor e prometido pela ré, e o que, na concretização desse contrato, a ora recorrente lhe entregaria.

Não pode a ré vendedora, aqui recorrente, no âmbito deste diploma (Dec. Lei 67/2003) e da garantia de conformidade prevista no seu art.º 3º, invocar que desconhecia sem culpa a desconformidade, pois, como vimos, o regime previsto neste diploma prevalece sobre as disposições do Código Civil relativas à venda de coisa defeituosa, não tendo assim aplicação o disposto no art.º 914º.

Ao autor, aqui apelado assiste o direito à resolução do contrato – justificado em face da factualidade provada, donde emerge claramente a perda de interesse do comprador naquele veículo com tal passado e anomalias.

B.2 Para a hipótese de assim entendermos, invoca a apelante, subsidiariamente o abuso de direito.

Neste sentido alega, que “independentemente da posição adoptada quanto à consagração ou não de uma hierarquização do exercício dos direitos do consumidor, os defeitos mencionados no relatório de avaliação solicitado pelo recorrido não legitimam a resolução por manifesta desproporcionalidade dos seus efeitos colocando a recorrente numa posição injustificadamente gravosa”. E que o exercício do direito de resolução neste caso traduz uma situação de abuso de direito por violar do princípio da boa-fé.

Ora, sendo certo que se trata de questão nova, que antes não foi colocada pela apelante, nem abordada na sentença, reconhecemos que sendo o abuso de direito do conhecimento oficioso do Tribunal, nos compete apreciá-la.

A jurisprudência dos acórdãos que a recorrente cita, nomeadamente a do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01 de Março de 2016, prolatado no processo nº 1684/08.7TBCBR.Cl, relator Jorge Arcanjo, não conduz a tal conclusão no caso sub judice.
É certo que Calvão da Silva, em Venda de Bens de Consumo, 3ª ed., págs. 82 e 86, defende que, embora o art.º 4º do DL nº 67/2003 não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor numa interpretação conforme a Directiva, a prevalência da “reparação/substituição” sobre o par “redução/resolução”, pois a concorrência electiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, por não prescindir de uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé, sendo que o art.4º nº5 do diploma citado recorre à cláusula do abuso de direito.

Efectivamente o nº 5 do art.º 4º do citado diploma legal estabelece:

– “O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais”.

O art.º 334º do CC diz-nos que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

A apelante não concretiza os factos em que se funda para considerar abusivo o exercício pelo autor do direito de resolver o contrato, que lhe é conferido pelo nº1 do art.º 4º do já citado Dec. Lei 67/2003.

Não se vislumbra como é que o exercício pelo autor do direito à resolução do contrato, por contraposição a outros direitos que poderia ter accionado em paralelo (reparação ou substituição da coisa e redução do preço) traduzam “manifesta desproporcionalidade dos seus efeitos colocando a recorrente numa posição injustificadamente gravosa”.

Efectivamente basta atentar nas cartas que se dão por reproduzidas nos factos provados da alínea K) e L), para verificar que a autora em 28.10.2016, se limitou a interpelar o autor para cumprir no prazo máximo de 8 dias (fls. 69 do processo físico) e em 11.11.2016 – um dia após a carta do autor a resolver o contrato – a própria ré lhe comunicou a resolução do contrato por incumprimento (fls. 71 do processo físico).

Não demonstrou a ré ora recorrente qualquer interesse na manutenção do contrato, isto é, em qualquer outra das soluções que o art.º 4º nº 1 faculta ao consumidor


Por outro lado, no caso em apreço, a reparação das anomalias que o veículo apresentava não seria suficiente para que o veículo ficasse conforme ao contrato, uma vez que, mesmo substituindo as peças que não eram da marca e reparando as anomalias – algo que aliás a ré não se propôs fazer – o veículo não deixaria de ser um veículo que sofrera danos profundos, que o levara a ser considerado perda total e à natural e expectável desconfiança no seu futuro desempenho por parte de quem se propunha adquiri-lo.

Do mesmo modo não era exigível ao autor que adquirisse um veículo com tal passado, ainda que com uma redução de preço, se não era isso que pretendia. Efectivamente é normal que quem utiliza um veículo tenha confiança no seu desempenho, porque é a sua segurança e daqueles que transporta que está em causa.

Como atrás referimos, em face da factualidade provada, tem plena justificação a perda de interesse do comprador naquele veículo com tal passado e anomalias.

Não há assim uma disfuncionalidade do exercício do direito à resolução, porquanto só este se conformava com as circunstâncias concretas do caso.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação pela apelante.

Guimarães, 31-01-2019

Eva Almeida
Maria Amália Santos
Ana Cristina Duarte

1.https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/23729/1/Ana%20Catarina%20Mota%20da%20Silva.pdf
2. Nosso acórdão de 26.01.2017 (processo nº 1446/15.5T8CHV.G1) in dgsi.pt