Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
321/21.9T8VCT.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: DECRETO-LEI 67/2003
DE 8 DE ABRIL
CONSUMIDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
É "consumidor", para os efeitos da alínea a) do artigo 1.º-B do Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, aquele que adquire bens, a quem exerce "com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios", com a finalidade de os utilizar na sua vida privada. E, em virtude desta condicionante, à partida, o "consumidor" será uma pessoa singular.
Na relação contratual que estabelece com o fornecedor, o adquirente apresenta-se totalmente despido das vestes de agente de "uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios" que porventura também exerça; a ratio essendi do negócio jurídico que o aquirente celebra é totalmente estranha ao exercício de tal atividade económica, caso a ela se dedique.
A autora, que é uma sociedade que tem por objeto social a "construção e reparação metalomecânica, com incidência na construção e reparação de Barcos e Navios, possuindo para o efeito um (…) espaço da Doca (…) do porto de mar de Viana do Castelo", não assume a qualidade de consumidor na compra que fez à ré de "painéis de vedação e abraçadeiras" "com o único objetivo de serem colocados a vedar o espaço (…) [dessa] doca (…), que lhe está concessionado para a construção e reparação de barcos e navios".
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I
X Construção e Reparação Metalomecânica Lda., instaurou a presente ação declarativa, que corre termos no Juízo Local Cível de Viana do Castelo, contra Casa P. A. & Filhos S.A., formulado os pedidos de:

"- Ser a R. condenada a proceder á substituição dos painéis de vedação que forneceu à A., retirando os existentes e colocando outros que tenham propriedades, capacidades e resistências adequadas, de modo a vedar a doca Eng. D. P. na Zona Marítima de Viana do Castelo
- Em alternativa, ser a R. condenada a pagar á A. o valor de 10.795,00 euros, acrescido de juros vincendos até efetivo e integral pagamento, correspondente ao valor que a A. lhe pagou pelos painéis de vedação dos presentes autos e suas abraçadeiras, e ao valor do trabalho de substituição dos painéis fornecidos, por novos adequados a vedar a doca Eng. D. P.".
Alegou, em síntese, que adquiriu à ré 135 painéis de vedação e abraçadeiras, pelo preço de 3.489,98 €, com o "objetivo de serem colocados a vedar o espaço da doca Eng. D. P., na zona do Porto de Mar de Viana do Castelo, que lhe está concessionado para a construção e reparação de barcos e navios".
A ré contestou dizendo, antes do mais, que, "tratando-se de compra e venda de coisas móveis defeituosas que, como a autora alega, não realizam o fim a que são destinadas, a denúncia do defeito deve ser efetuada até 30 dias, depois de conhecido o defeito, e dentro de 6 meses após a entrega da coisa - arts. 913.º.-1 e 916.º.-1 e 2 CC", pelo que "caducou, pois, o direito que a autora pretende fazer valer".
A autora respondeu afirmando que adquiriu "os painéis na qualidade de consumidor" e que, "em conformidade com o estabelecido no Decreto-Lei 67/03 de 8 de abril, não se verifica a existência da caducidade do direito invocado".

Foi proferido despacho saneador em que se decidiu que:
"Perante o acima exposto, nos termos previstos nos artigos 576.º, n.º 1 e 3 e 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, julgo procedente a invocada exceção perentória de caducidade e, em consequência, absolvo a Ré A. P. & Filhos, S.A. do pedido."

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida nos autos e efeito devolutivo, findando a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

1- A interposição do presente recurso resulta do facto de a Recorrente discordar, não podendo aceitar, a Decisão de Mérito proferida no Despacho Saneador dos presentes autos, que julgou procedente a exceção perentória deduzida pela R., de caducidade do direito da A. para instaurar a presente ação contra a R., ora recorrida, e em consequência, absolveu esta do pedido formulado pela A.
2 - A ora Recorrente entende que outra deveria ter sido a decisão do douto Tribunal a quo, porquanto considera que a exceção perentória de caducidade invocada pela Recorrida devia ter sido julgada improcedente.
3 - Isto porque, o contrato de compra e venda objeto da presente ação, não deve ser qualificado como um contrato celebrado entre profissionais, a que se aplica a legislação civil, mas sim como um contrato celebrado entre um profissional e uma sociedade comercial que no caso concreto agiu como consumidor, a que se aplica a legislação de proteção do consumidor, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, que aprovou o regime de venda de bens de consumo.
4 - Para decidir, conforme se verifica, a Mma. Juiz a quo, considerou, com relevo na decisão proferida, que a Recorrente não é uma consumidora, referindo para tal "Segundo a A., que é uma sociedade comercial, os produtos fornecidos pela R. foram adquiridos por aquela com o único objetivo de serem colocados a vedar o espaço (…) que lhe está concessionado para a construção e reparação de navios"; Mais refere a Mma Juiz a quo … "Parece-nos, salvo melhor opinião, que sendo a A. uma firma que se dedica à construção e reparação metalomecânica, com incidência na construção e reparação de barcos e navios e destinando-se os painéis adquiridos ao espaço onde a A. exerce a sua atividade profissional esta não pode ser considerada consumidora sendo certo que a aquisição dos aludidos bens não se destinou a um uso não profissional."
5 - Verifica-se assim que a decisão a quo, baseia-se exclusivamente no facto de a Recorrente ser uma sociedade comercial e os painéis de vedação que adquiriu à Recorrida, se destinarem a ser colocados a vedar um espaço que lhe está concessionado, considerando que isto é suficiente para concluir que, na celebração do contrato em apreço, a Recorrente, enquanto empresa que juridicamente é, agiu na qualidade de profissional e, como tal, utilizou os painéis, que adquiriu, na sua atividade profissional.
6 - Em consequência, o Tribunal a quo, erradamente, entendeu, sem mais, que ao contrato celebrado entre a Recorrente e a Recorrida não poderia ser aplicável a legislação de proteção do consumidor, designadamente o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, mas sim as normas constantes do Código Civil;
7 - Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, entendemos que o simples facto de a Recorrente ser uma sociedade comercial e de os painéis de vedação adquiridos à Recorrida se destinarem a vedar um espaço que lhe está concessionado, não é minimamente suficiente, nem adequado, para concluir e decidir que a recorrente, na presente situação, não atuou como consumidora e que não deve ser considerada como tal.
8 - Sendo que, a decisão proferida pelo Tribunal a quo ignorou completamente todos os outros elementos que são fundamentais para considerar a ora Recorrente como consumidora ou não na situação dos presentes autos, os quais se encontram devidamente vertidos nos autos pela Recorrente;
9 - Facto este que foi determinante para que a decisão proferida fosse, como aconteceu, no sentido de erradamente julgar procedente a exceção perentória de caducidade invocada pela Recorrida.
10 - Para se concluir se efetivamente a Recorrente, na situação dos autos, agiu como consumidora é necessário decidir a definição da noção de consumidor e analisar os factos vertidos por esta na PI, quanto a esta matéria, os quais impõe decisão em sentido contrario ao que se verifica na decisão a quo.
11 - Segundo a al. a) do artigo 1.º B, do decreto-lei 67/03 de 8/04, invocado pela Recorrente na sua PI, entende-se por consumidor, aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça carater profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2 da lei 24/96 de 31 de julho.
12 - Assim, temos que para agir como consumidor final é adequado que:
O bem, adquirido não se enquadre no objeto da atividade profissional da adquirente, não podendo ser utilizado no exercício da mesma, como matéria-prima ou outro fim, nem ser comercializado por esta; a aquisição do bem não vise a obtenção de lucro, benefícios para a adquirente e que;
A adquirente, porquanto atua fora do âmbito da sua atividade, contrariamente à vendedora, não tenha competência, conhecimentos, sobre os bens adquiridos, atuando neste negócio, como um mero consumidor, numa posição de fragilidade.

Ora, na presente situação temos que:
13 - A Recorrente "É uma firma que se dedica á construção e reparação metalomecânica, com incidência na construção e reparação de barcos e navios …" (conforme descrito no artigo 1 da PI); não utiliza painéis de vedação no exercício da sua atividade., nem sequer seria possível utilizar.
14 - "Contrariamente à R., não exerce atividade de compra e venda de materiais…" (artigo 67.º da PI, primeira parte), sucedendo que a aquisição dos painéis, objeto dos presentes autos, não se enquadra de modo algum no âmbito da sua atividade profissional.
15 - Não usou os painéis de vedação adquiridos no exercício da sua atividade, destinando-os a uso não profissional, nunca visando sequer a obtenção de qualquer benefício com os mesmos., mas apenas a sua utilização para vedar um espaço que lhe está afeto (artigo 69.º da PI)
16 - Quanto ao facto de a Recorrente, conforme descrito na PI, colocar os painéis a vedar o espaço da doca Eng. D. P. que lhe está concessionada, além do suprarreferido, verifica-se que a colocação dos painéis, também não tem qualquer importância para a Recorrente, mesmo ao nível da sua organização e funcionamento.
17 - A Recorrente tinha exatamente a mesma organização e funcionamento que tem, se não tivesse adquirido os painéis dos autos.
18 - A recorrente, ao adquirir os painéis, como aconteceu, atuou fora do âmbito da sua competência e do objeto da sua atividade, não tendo conhecimento, nem preparação técnica para saber se a vedação era ou não adequada para o fim a que se destinava, não percebendo nada de painéis de vedação, nomeadamente quanto à sua capacidade de resistência para a proteção marítima, sendo relativamente aos painéis de vedação totalmente leiga, agindo numa posição de fragilidade, confiando na ora Recorrida, como qualquer consumidor.
19 - Facto este que foi fundamental para a Recorrente adquirir à Recorrida os painéis de vedação objeto dos presentes autos.
20 - Este desconhecimento e fragilidade da Recorrida, quanto aos painéis de vedação dos presentes autos, estão devidamente demonstrados em vários artigos da PI e documentos juntos com esta, nomeadamente artigo 7.º, 19.º, 20.º, 22.º, 38.º, não restando dúvidas que a recorrente atuou, no presente negócio, de forma totalmente como leiga, como um cidadão comum, sem perceber nada de painéis, confiando totalmente no que a R. lhe disse, como qualquer consumidor.
21 - Sobre esta matéria o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/06/2013 (processo 2154/12.4TBALM-AL1.7, (disponível in www.dgsi.pt) refere expressamente: "Casuisticamente, pode-se estender a proteção devida ao consumidor, a determinada entidade que exerça de forma profissional uma certa atividade económica, visando obter benefícios, desde que não sendo idêntica ao outro contraente, nem tendo em vista dar um destino empresarial aos bens ou serviços adquiridos, atue fora do âmbito da sua especialidade, competência própria ou objeto específico da sua atividade, não dispondo, assim, de preparação técnica, por a utilização do bem adquirido se encontrar fora do domínio da sua especialidade, de modo a que se mostre em relação ao bem que adquiriu, tão leiga como um consumidor".
22 - Ou seja, este Acórdão refere expressamente que nestas situações deve-se estender a proteção devida ao consumidor, à empresa adquirente de determinado bem, que exerça de forma profissional uma atividade económica.
23 - Situação esta que se verifica e, por esse motivo, aplica se nos presentes autos, devendo assim, contrariamente ao decidido na sentença a quo, considerar-se e decidir-se que a Recorrente, na situação dos presentes autos, atuou como consumidora e como tal, deve beneficiar da proteção devida ao consumidor e em consequência as exceções invocadas pela Recorrida. Devem ser consideradas não provadas e julgadas improcedentes.
24 -Temos também que o despacho ora recorrido fundamenta a sua decisão no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/06/2013 (processo 2154/12.4TBALM-AL1.7, (disponível in www.dgsi.pt), sucedendo que este Acórdão não se destina, nem foi aplicado a uma situação idêntica à dos presentes autos. Na verdade, como aí expressamente refere, foi aplicado a uma situação em que: "Tendo uma sociedade por quotas, que desenvolve a sua atividade na área de serviços de restauração e comercialização de bebidas, adquirido a uma sociedade anónima, que se dedica ao fabrico e comercialização de máquinas de café expresso, três máquinas de café, com fim de serem instaladas em cada um dos três quiosques concessionados à compradora, para esta servir aos seus clientes café, bebidas dele derivadas e ainda outras bebidas quentes, como chá, leite quente e chocolate quente, estamos perante um negócio realizado entre duas entidades, no âmbito da atividade económica que ambas desenvolvem, destinando-se os bens adquiridos a uma aplicação profissional por parte da adquirente".
25 - Ou seja, o Acórdão invocado no despacho a quo refere-se a uma situação em que uma empresa adquire equipamentos para usar na sua atividade profissional visando o lucro, decidindo naturalmente "não devendo esta ser considerada como uma parte leiga e vulnerável, em termos tais, que justifiquem a extensão do regime de proteção ao consumidor.
26 - Resultando manifestamente que o mesmo refere-se a uma situação completamente distinta da dos presentes autos, pelo que incorreu em manifesto erro o Tribunal a quo ao decidir como fez.
27 - Sendo que, no que concerne aos presentes autos, resulta da fundamentação desse Acórdão que, contrariamente ao decidido na decisão a quo, a exceção invocada pela Recorrida. Devia ter sido considerada não provada e julgada improcedente, porquanto os bens não se enquadram na atividade da Recorrente, esta não destinou os bens em causa à sua atividade e não tem competências técnicas quanto aos mesmos, sendo completamente leiga, agindo manifestamente como consumidora.
28 - Ao decidir como fez violou por errada interpretação o disposto no artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho, assim como o artigo 1.º-B, al. a) do Decreto-Lei 67/2003 de 8 de abril.
29 - As disposições em causa devidamente interpretadas e aplicadas aos factos levam manifestamente a que a exceção de caducidade invocada pela ora Recorrida, seja julgada improcedente, assim como ao prosseguimento dos presentes autos.
A ré contra-alegou sustentando a improcedência do recurso.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil (1), delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se, no negócio celebrado com a ré, a autora "agiu como consumidor, a que se aplica a legislação de proteção do consumidor, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril" (2).
II
1.º
Nas suas contra-alegações, a ré coloca a questão (prévia) de a autora se ter limitado "a fazer corta e cola do corpo das alegações transportando-o, integralmente, para o corpo que chama de conclusões, pelo que nada concluiu, em rigor, muito menos, de forma sintética, como a lei impõe. Não se trata, aqui, de conclusões deficientes, obscuras, complexas ou nas quais não se tenham feito as pertinentes menções quanto à matéria de facto, hipóteses em que se justificaria o convite para aperfeiçoá-las - art. 639º.-3 CPC. Trata-se de não haver conclusões".
Se é verdade que, lamentavelmente, a autora não se esforçou para sintetizar nas conclusões o que expôs na motivação do recurso, não é menos verdade que "a orientação da jurisprudência consolidada do STJ é no sentido de que a circunstância de, em sede de conclusões, o recorrente reproduzir a motivação constante da alegação propriamente dita não configura um caso de falta de conclusões" (3).
Sendo assim, não pode falar-se em falta de conclusões, pelo que não há nesta parte fundamento para o indeferimento do recurso. E a bem da economia processual (4), considerando que o objeto do recurso não é complexo, não se justifica convidar a autora a apresentar novas conclusões.
2.º
Para a decisão da questão colocada no presente recurso importa ter presente que na petição inicial se alegou, para além do mais, que:

1.º A A. é uma firma que se dedica à construção e reparação metalomecânica, com incidência na construção e reparação de Barcos e Navios, possuindo para o efeito um pavilhão na morada da sua sede e o espaço da Doca Eng. D. P., sito na área do porto de mar de Viana do Castelo.
2.º A R. é uma empresa que se dedica ao comércio de materiais de construção civil e afins.
3.º Visando proceder à vedação do espaço da Doca Eng. D. P., o gerente da A., D. M., deslocou-se à sede da R. e perguntou se tinham e forneciam painéis de vedação, com características adequadas para serem colocados naquele local, na zona do porto de mar, porquanto precisava vedar o referido espaço.
10.º Tendo a R., entre 27/12/17 e 18/3/19, vendido os referidos painéis de vedação e abraçadeiras à A., como sendo totalmente adequados a ser instalados a vedar a Doca Eng. D. P., os mesmos foram fornecidos e faturados por ela, através das faturas:
- N.º 101/17055044 de 30/12/17, no valor total, referente a painéis e abraçadeiras de € 1.316,47
- N.º 101/18002324 de 18/01/18, no valor total, referente a painéis e abraçadeiras de € 1.807,42
- N.º 101/18026150 de 15/05/18, no valor total, referente a painéis e abraçadeiras de € 196,13
- N.º 101/19041596 de 20/09/18, no valor total, referente a painéis de € 116,24
- N.º 100/19006680 de 04/03/19, no valor total, referente a painéis de € 26,86
- N.º 100/19008200 de 18/03/19, no valor total, referente a painéis de € 26,86
Perfazendo o valor total de 3.489,98 euros.
Tudo conf. Docs. 1 a 6 juntos.
67.º A A., contrariamente à R., não exerce atividade de compra e venda de materiais e adquiriu estes painéis de vedação na qualidade de consumidor final, adquirindo-os com o único objetivo de serem colocados a vedar o espaço da doca Eng. D. P., na zona do Porto de Mar de Viana do Castelo, que lhe está concessionado para a construção e reparação de barcos e navios.
3.º
O tribunal a quo fundamentou a sua decisão dizendo, essencialmente, que:
"Assim, de acordo com a factualidade alegada, parece-nos, salvo melhor opinião, que sendo a Autora uma firma que se dedica à construção e reparação metalomecânica, com incidência na construção e reparação de barcos e navios e destinando-se os painéis adquiridos ao espaço onde a Autora exerce a sua atividade profissional, esta não pode ser considerada consumidora, sendo certo que a aquisição dos aludidos bens não se destinou a um uso não profissional.
(…)
Estando em causa a compra e venda de coisas móveis defeituosas, a denúncia do defeito deve ser efetuada até 30 dias, depois de conhecido o defeito, e dentro de 6 meses após a entrega da coisa (artigos 913.º e 916.º, n.º 1 e n.º 2 Código Civil).
De acordo com o alegado no artigo 10.º da petição inicial, os painéis de vedação foram vendidos e entregues em 30 de dezembro de 2017, em 18 de janeiro de 2018, em 15 de maio de 2018, em 20 de setembro de 2018, em 4 de março de 2019 e em 18 de março de 2019. Tendo a autora denunciado os defeitos em 25 de novembro de 2019 (artigo 16.º da petição inicial) é forçoso concluir que já tinham passado mais de seis meses sobre a entrega dos últimos painéis e quase dois anos sobre a entrega dos painéis mencionados nas três primeiras faturas (fls. 11 e 12 dos autos)."
A autora insurge-se, pois considera que "agiu como consumidor, a que se aplica a legislação de proteção do consumidor, nomeadamente o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril" (5).
Vejamos.
O artigo 1.º-B do Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, define, na sua alínea a), como "«Consumidor», aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho".
E, apesar de a autora não o dizer expressamente, certamente que tem em mente que se, como pretende, lhe for reconhecida a qualidade de "consumidor", então beneficia do disposto no n.º 2 do artigo 5.º do mesmo diploma onde se estabelece que, "para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detetado".
Vemos, assim, que, nesta matéria, ao "consumidor" não se aplicam os prazos do "comprador" definidos no n.º 2 do artigo 916.º do Código Civil, usufruindo aquele de prazos mais alargados que este.
Ora, "a qualificação do sujeito como consumidor, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1.º-B, alínea a) do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril (…) depende, essencialmente, da finalidade do ato de consumo, detendo tal qualidade aquele que adquire um bem ou serviço para uso privado - uso pessoal, familiar ou doméstico, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa." (6) Na verdade, "será consumidor aquele que adquire o bem ou serviço sem fins empresariais ou profissionais livres, cfr a noção que nos é dada pelo § 13 do BGB alemão «Consumidor é toda a pessoa singular que conclua um negócio jurídico com finalidade que não lhe possa ser imputada a título empresarial ou de profissional livre.», apud Menezes Cordeiro, O anteprojeto de Código do Consumidor, in O Direito, Ano 138º, IV, 685/715; António Pinto Monteiro, A contratação em massa e a proteção do consumidor numa economia globalizada, RLJ, Ano 139, Março-Abril 2009, 221/235; Calvão da Silva, Compra E Venda De Coisas Defeituosas, 2001, 112/113; Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 2005, 84/87; Jorge Morais Carvalho, Manual De Direito Do Consumo, 3ª edição, 17/23." (7)
Portanto, "parece, em princípio, mais ajustado que, quando se adote um conceito genérico e supletivo de consumidor, ele se contenha em limites restritos, relacionados apenas com o uso pessoal ou familiar de bens fornecidos (ou disponíveis para fornecer) por quem exerça uma atividade profissional" (8).
Trata-se, por conseguinte, da "consagração da noção de consumidor em sentido estrito, a mais corrente e generalizada na doutrina e nas Diretivas comunitárias: pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado - uso pessoal, familiar ou doméstico, na fórmula da al, a) do art. 2.º da Convenção de Viena de 1980 -, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou da sua empresa - neste sentido, acórdão do STJ, de 11103/2003 (Proc. n.º 02A4341). Se o "fornecedor" de um bem ou o prestador de um serviço tem de ser profissional - pessoa (singular ou coletiva) que exerça com carácter profissional uma atividade económica ... -, a letra da lei não especifica que o consumidor seja uma pessoa física ou pessoa singular. Normalmente, porém, a doutrina e as Diretivas comunitárias excluem as pessoas coletivas ou pessoas morais. E cremos ser esta também a melhor interpretação do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96: todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional - ao seu uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, portanto, por oposição a uso profissional - será uma pessoa singular, com as pessoas coletivas a adquirirem os bens ou os serviços no âmbito da sua capacidade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, atividades ou objetos profissionais (cfr. art. 160.º do Código Civil e art. 6.º do Código das Sociedades Comerciais)." (9)
Para além disso, não podemos deixar de valorar a circunstância de na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º da Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, se definir "consumidor" como sendo "qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional" (sublinhado nosso) (10).
Neste contexto, é "consumidor", para os efeitos da alínea a) do artigo 1.º-B do Decreto-Lei 67/2003, aquele que adquire bens, a quem exerce "com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios", com a finalidade de os utilizar na sua vida privada. E, em virtude desta condicionante, à partida, o "consumidor" será uma pessoa singular (11). Dito de outra forma, na relação contratual que estabelece com o fornecedor, o adquirente apresenta-se totalmente despido das vestes de agente de "uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios" que porventura também exerça; a ratio essendi do negócio jurídico que o aquirente celebra é totalmente estranha ao exercício de tal atividade económica, caso a ela se dedique.
Voltando ao nosso caso, regista-se que, segundo alega na petição inicial, a autora é uma sociedade que tem por objeto social a "construção e reparação metalomecânica, com incidência na construção e reparação de Barcos e Navios, possuindo para o efeito um (…) espaço da Doca Eng. D. P., sito na área do porto de mar de Viana do Castelo", e comprou à ré "painéis de vedação e abraçadeiras" "com o único objetivo de serem colocados a vedar o espaço da doca Eng. D. P., na zona do Porto de Mar de Viana do Castelo, que lhe está concessionado para a construção e reparação de barcos e navios" (12).
Fica, assim, claro, não só que a autora não é uma pessoa singular, como também que a aquisição dos bens em causa se prende com a sua vida empresarial, pois eles destinavam-se a vedar o espaço da doca que lhe está concessionado para o exercício da sua atividade de construção e reparação navios (13); o mesmo é dizer que, na compra e venda celebrada com a ré, a autora, contrariamente ao que afirma, não assume a qualidade de consumidor.
4.º
Não se desconhece que há jurisprudência e doutrina que defende um conceito de "consumidor" mais alargado, incluindo nele os denominados "consumidores equiparados" (14); ou seja, os casos em que há uma "desproteção" do comprador que gera na relação contratual "um desequilíbrio, que deve ser compensado pela aplicação das normas que protegem os consumidores" (15), o que ocorre, por exemplo, no caso de "um pequeno lojista de qualquer aldeia ou cidade adquire um computador para controlo ou registo dos movimentos de compras e vendas ou o pequeno empresário explorador de um estabelecimento de café (numa pacata aldeia) adquire um sistema de alarme para o mesmo estabelecimento" (16) ou de "um pequeno comerciante de sapatos que adquira um computador num hipermercado está, em princípio, na mesma posição em que estaria uma pessoa singular com os mesmos conhecimentos técnicos" (17) ou ainda quando o comprador não tem "em vista dar um destino empresarial aos bens ou serviços adquiridos, antes atuando fora do âmbito da sua especialidade, competência própria ou objeto específico da sua atividade, não dispondo, em conformidade, de preparação técnica por a utilização do bem adquirido se encontrar fora do domínio da sua especialidade, de modo a que se mostre em relação ao bem que adquiriu, tão leiga como um consumidor, numa efetiva ponderação das especificidades da situação de facto desenhada com razões de justiça e equidade, alicerçadas, designadamente, no princípio da boa fé na formação e execução dos contratos" (18).
Todavia, mesmo que se subscreva esta perspetiva mais abrangente de "consumidor", "para que ocorra tal alargamento concetual - para assim se beneficiar do prazo de caducidade mais alargado (…) - impõe-se o ónus de alegação e prova dos factos pertinentes (art. 342º, nº 1 do Cód. Civil), em ordem a concluir-se que, no caso, se justifica a pretendida equiparação" (19).
Ora, examinada a petição inicial, nela não se descortina quaisquer factos que, relativamente à autora, revelem a mencionada desproteção ou desequilíbrio ou uma atuação fora do âmbito da sua atividade empresarial.
Deste modo, mesmo que se tivesse uma visão mais generosa do conceito de consumidor, sempre se acabaria por, na situação sub iudice, nele não se poder integrar a autora.

III
Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o recurso, pelo que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela autora.
16 de dezembro de 2021

António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes



1. São deste código todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
2. Cfr. conclusão 3.ª.
3. Ac. STJ de 7-11-2019 no Proc. 3113/17.6T8VCT.G1.S1. Neste sentido veja-se Ac. STJ de 3-3-2021 no Proc. 12489/19.0T8LSB.L1.S1, Ac. STJ de 19-12-2018 no Proc. 10776/15.5T8PRT.P1.S1, Ac. STJ de 9-7-2015 no Proc. 818/07.3TBAMD.L1.S1 e Ac. STJ de 6-4-2017 no Proc. 297/13.6TTTMR.E1.S1, todos em www.gde.mj.pt.
4. "Deve procurar-se o máximo resultado processual com o mínimo emprego de atividade; o máximo rendimento com o mínimo custo", Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 387 e 388.
5. Cfr. conclusão 3.ª.
6. Ac. Rel. Lisboa de 17-6-2021 no Proc. 69388/20.3YIPRT.L1-2, www.gde.mj.pt.
7. Ac. STJ de 5-7-2016 no Proc. 1129/11.5TBCVL-C.C1.S1, www.gde.mj.pt.
8. Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 2005, pág. 50.
9. Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5.ª Edição, pág. 122, referindo-se ao conceito de "consumidor" definido no n.º 1 do artigo 2.º da Lei 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor). Note-se que segundo este autor, a alínea a) do artigo 1.º-B do Decreto-Lei n.º 67/2003 é uma "repetição" do n.º 1 daquele artigo 2.º, cfr. Venda de Bens de Consumo, 4.ª Edição, pág. 70.
10. Lembra-se que o Decreto-Lei 67/2003 procedeu à transposição para o ordenamento jurídico português desta diretiva e que «a generalidade das diretivas europeias que se ocupam de matérias ligadas ao direito do consumo define consumidor, com pequenas variações, como "a pessoa singular que atua com fins alheios às suas atividades comerciais ou profissionais"», Jorge Morais Carvalho, O Conceito de Consumidor no Direito Português, Estudos de Direito do Consumidor, n.º 14, 2018, pág. 186. Ainda a este propósito veja-se que a alínea c) do artigo 2.º do Decreto-Lei 24/2014, de 14 de fevereiro, que regula os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial, define o "consumidor" como sendo "a pessoa singular que atue com fins que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional".
11. Há uma "confinação de consumidor a pessoa singular", Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 4.ª Edição, pág. 70.
12. Cfr. artigos 1.º, 10.º e 67.º da petição inicial.
13. O que só pode significar que, aos seus olhos, tal vedação é necessária para salvaguardar essa parte do espaço em que labora.
14. Veja-se Ac. Rel. Lisboa de 22-5-2018 no Proc. 13213/15.1T8LSB.L2-1, www.gde.mj.pt, e Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo, Dissertação para Doutoramento, 2011, pág. 27 e seguintes.
15. Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo, Dissertação para Doutoramento, 2011, pág. 28.
16. Fernando Baptista de Oliveira, citado por Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo, Dissertação para Doutoramento, 2011, pág. 26.
17. Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo, Dissertação para Doutoramento, 2011, pág. 28.
18. Ac. Rel. Lisboa de 18-6-2013 no Proc. 2154/12.4TBALM-A.L1-7, www.gde.mj.pt, citado pela autora nas suas alegações.
19. Ac. Rel. Lisboa de 17-6-2021 no Proc. 69388/20.3YIPRT.L1-2, www.gde.mj.pt.