Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5189/17.7T8GMR.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
RAZÕES PARA ATRIBUIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Deve ser atribuída a casa que foi a morada de família ao ex-convivente em união de facto, após a rutura da união, que demonstre ter mais necessidade dela em termos económicos, salvaguardando-se também os interesses dos filhos a cargo.

2. Haverá que considerar ainda as demais “razões atendíveis”, nomeadamente a localização da casa relativamente ao local de trabalho dos ex-conviventes, e as facilidades de se deslocarem, assim como a deslocação dos filhos para as escolas que frequentam.
Decisão Texto Integral:
A. C., melhor identificado nos autos, intentou contra M. S., também melhor identificada nos autos, a presente acção especial para atribuição da casa de morada de família, pedindo que lhe seja atribuída a casa de morada de família da extinta união de facto que manteve com a requerida, sita na Rua …, Freguesia de ..., Guimarães, e a transmissão para si do direito ao arrendamento, nos termos do art. 1105º do CC.

Alegou, em síntese, que viveu com a Ré em união de facto durante 7 anos, entre 2007 e Dezembro de 2014, altura em que se separaram, tendo dessa união de facto nascido uma filha, Maria, a …, cujas responsabilidades parentais foi atribuída em conjunto a ambos os pais.

Que após a separação ficou a residir na casa de morada de família, com a sua nova companheira e a filha Maria, nos períodos em que ela está consigo.

A requerida reside actualmente com a mãe, e tem várias dificuldades económicas, sendo o requerente quem suporta a totalidade das despesas com a filha Maria, assim como a renda mensal da habitação, no valor de € 22,97.
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Realizada a tentativa de conciliação, as partes não lograram chegar a acordo, sentindo-se ambos com direito sobre a referida habitação.
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Notificada para contestar, veio a requerida deduzir oposição, pugnando pela atribuição a si da casa de morada de família.

Alegou para tanto, em síntese, que o requerente trabalha por conta própria, dedicando-se à organização de eventos, tendo o mesmo, entre Julho e Agosto deste ano, feito animação em cerca de quinze casamentos, cobrando cerca de € 500,00 por cada animação, sem contar com os restantes eventos que tem ao longo do ano.
A companheira trabalha num estabelecimento comercial, auferindo pelo menos remuneração equivalente ao salário mínimo nacional.
Que o Requerente apenas faz face às despesas da filha de ambos quando a tem à sua guarda.
A requerente encontra-se desempregada, sem auferir qualquer rendimento, e tem a seu cargo, além da menor Maria, outra filha menor, vivendo com as mesmas em casa da sua mãe.
Que trabalhou até Fevereiro de 2018 na Fábrica de Calçado ..., que dista cerca de 1 km da casa de morada de família, tendo-lhe sido garantido que ali voltará a trabalhar em breve.
Que não tem carta de condução, pelo que, se ficar a residir na casa que foi a de morada de família, poderá fazer o percurso para o trabalho a pé.
Por outro lado, a escola frequentada pela menor Maria situa-se a cerca de 200 metros daquela casa de morada de família.
Mais alega que teve de sair de casa e de passar a residir com a mãe porque atravessava um quadro clínico depressivo, causado pelo comportamento do requerente.
Conclui, a final, que a sua necessidade da casa de morada de família é superior à do Requerente.
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Tramitados regularmente os autos, foi proferida a seguinte Decisão:

“…Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente acção procedente e provada nos termos sobreditos e, consequentemente, decide-se:

A) Declarar dissolvida a união de facto entre o requerente, A. C., e a requerida, M. S.;
B) Atribuir exclusivamente ao requerente, A. C., a posição de arrendatário da identificada casa de morada de família, correspondente à fracção autónoma designada pelas letras “AL”, correspondente à habitação com o n.º …, situada no … do prédio urbano localizado na Rua …, Freguesia de ..., Concelho de Guimarães, inscrito na matriz predial respectiva sob o art. … e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º …;
C) Determinar que, após respectivo trânsito em julgado, se proceda à comunicação da presente sentença ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IHUR IP, senhorio, nos termos e para os efeitos do art. 1105º, n.º3, do CC, aplicável por força do disposto no art. 4º da Lei n.º 7/2001, de 11-05, na versão dada pela Lei n.º 23/2010, de 30-08.
Custas pela requerida – arts. 527º, n.º1, do CPC – sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a requerida interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos acima identificados que atribuiu a casa de morada de família em exclusivo a A. C..
II. A douta sentença padece de um erro de avaliação dos critérios previstos nos artigos 1105°, nº2 e 1793°, nº1, do Código Civil.
III. Estes artigos enunciam os critérios a atender no caso de não haver acordo entre os ex-cônjuges sobre a atribuição da casa de morada de família.
IV. São eles os da "necessidade de cada um", "os interesses dos filhos" e "outros factores relevantes".
V. Para aferir da "necessidade de cada um" dos ex-cônjuges, deve o tribunal atender aos rendimentos e proventos de cada um.
VI. Para avaliar "os interesses dos filhos", deve o tribunal aferir a quem ficou atribuída a guarda do menor e se é do interesse deste ficar a viver na casa de morada de família com o progenitor a quem foi confiado.
VII. Só quando as necessidades dos ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais é que o tribunal deve apreciar "outros factores relevantes".
VIII. Nomeadamente, a idade, o estado de saúde, a localização da casa em relação ao local de trabalho de cada um dos ex-cônjuges e o facto de algum deles dispor de outra casa onde possa restabelecer a sua residência.
IX. Assim, e analisando a situação patrimonial de cada uma das partes, ou seja, quais os rendimentos e encargos de cada um, o tribunal deu como provado que a Recorrente está desempregada e vive, juntamente com uma outra filha menor e a Maria, filha da Recorrente e do Recorrido, quando esta está ao seu cuidado em casa da mãe. O Recorrido, por sua vez, vive com a sua companheira e com a filha menor, Maria, quando esta está ao seu cuidado, trabalha por conta própria, aufere anualmente cerca de € 2000,00 e a sua companheira aufere mensalmente cerca de € 580,00.
X. Ora, ponderando os rendimentos e os encargos de cada uma das partes, é notório que a Recorrente, que está desempregada e tem duas filhas menores a seu cargo, sendo que a Maria é em regime de guarda partilhada com o Recorrido, tem uma "premente necessidade" da casa de morada de família muito superior à do Recorrido que aufere anualmente cerca de € 2.000,00 e a sua companheira aufere mensalmente cerca de € 580,00.
XI. Acresce que, se atendermos aos rendimentos e aos encargos da Recorrente, facilmente concluímos que lhe é muito difícil, ou praticamente impossível, arrendar uma casa que não seja no regime de renda apoiada, como é a do caso dos autos.
XII. Já o Recorrido, atentos os seus rendimentos e os da companheira, tem facilidade em arrendar uma casa no regime geral.
XIII. Assim, é evidente que a Recorrente tem mais necessidade da casa de morada de família do que o Recorrido.
XIV. Todavia, o tribunal a quo considerou que a matéria de facto apurada não permite concluir que a requerida tenha incómodos patrimoniais ou de outra natureza significativamente acrescidos com a não ocupação da habitação, em relação àqueles que o requerente teria caso tivesse de cessar a ocupação da mesma.
XV. Acontece que os critérios enunciados nos artigos 1105 nº 2 e 1793 nº1 do CC, visam proteger o cônjuge que foi mais atingido pela separação, isto é, aquele que ficou numa situação mais frágil e não aquele que terá mais ou menos incómodos com a desocupação da casa de morada de família.
XVI. Pelo que, andou mal o tribunal a quo uma vez que aferiu, não as necessidades de cada uma das partes, mas apenas os incómodos patrimoniais ou de outra natureza significativamente acrescidos com a não ocupação da habitação que cada uma das partes venha a ter caso tivesse de cessar a ocupação da mesma.
XVII. No que toca ao critério do interesse dos filhos, deve o tribunal aferir se é do interesse destes ficarem a viver na casa que foi de morada de família com o progenitor a quem foram confiados.
XVIII. Ora, nos presentes autos, a guarda da filha menor da Recorrente e do Recorrido, a Maria, ficou atribuída, alternadamente, a ambos os progenitores.
XIX. Como tal, independentemente da casa de morada de família ser atribuída à Recorrente ou ao Recorrido, a filha de ambos nunca será afastada da habitação a que está habituada.
XX. Aliás, é de todo o interesse da menor que a casa de morada da família seja atribuída à Recorrente.
XXI. Porquanto, da escola da Maria à habitação em causa distam cerca de 200mts e a progenitora não tem carta de condução.
XXII. Pelo que, quando aquela está à guarda desta em casa da avó, sita na freguesia de ..., do concelho de Guimarães, tem de fazer as deslocações casa/escola, escola/casa de transportes públicos. O que implica ter de se levantar muito cedo e despender muito tempo com as referidas deslocações.
XXIII. Acresce que, quando a menor está aos cuidados do Recorrido esta questão não se coloca pois, uma vez que este trabalha por conta própria e se dedica à atividade de animação de eventos, presume-se que tem meios para se deslocar.
XXIV. Todavia, o tribunal entendeu que na vivência, ao longo de cerca de três anos, da menor com o pai na residência disputada aconselha que tal situação não seja modificada, assim se protegendo tal estabilidade na vida da mesma bem como na vida do próprio requerente.
XXV. Pelo que, também na análise deste critério, andou mal o tribunal.
XXVI. Não obstante, ainda que se entendesse que Recorrente e Recorrido estão numa posição igualitária, o que desde já não se concede, existem outras "razões atendíveis" que poderão ser tidas em conta no momento da atribuição da casa de morada da família tais como: a idade; o estado de saúde; a localização da casa de morada da família em relação ao local de trabalho; e o facto das partes disporem de outra casa para residir.
XXVII. Quanto à idade e ao estado de saúde das partes nada ficou provado.
XXVIII. No que se refere à localização da casa de morada da família em relação ao local de trabalho da Recorrente e do Recorrido, o tribunal deu como provado: que o Recorrido trabalha por conta própria e dedica-se à actividade de animação de eventos; a Recorrente trabalhou na fábrica de calçado …, a qual dista cerca de lKm da casa de morada de família, à data do julgamento está desempregada mas com muita probabilidade de retomar a sua atividade na referida fábrica e que não possui carta de condução.
XXIX. Assim, ao contrário do Requerente que exerce uma atividade por conta própria e, por isso, em qualquer local onde estabeleça a sua residência pode prosseguir com a sua atividade.
XXX. A Recorrente não tem carta de condução, trabalhou na fábrica de calçado ..., que dista cerca de 1Km da habitação em causa e, apesar de estar desempregada, há uma grande probabilidade de voltar a ser contratada para prestar a sua atividade na mencionada fábrica.
XXXI. E, assim sendo, é óbvio que é muito mais fácil deslocar-se para o trabalho estando a residir no centro da cidade do que numa freguesia limítrofe do concelho.
XXXII. Quanto ao critério das partes disporem de uma outra casa onde possam estabelecer a sua residência sempre se dirá que a Recorrente foi forçada a morar na casa da mãe por falta de outra opção, não sendo esta, de todo, a sua vontade.
XXXIII. Tal situação, transitória e que para tal foi obrigada, não pode limitar-lhe o direito de atribuição da casa de morada de família.
XXXIV. A conjugação de todos estes factos comprova, sem margem para dúvidas, que deve ser atribuída à Recorrente a casa de morada de família.
XXXV. O tribunal a quo, ao atribuir a casa de morada de família ao Recorrido violou o disposto nos artigos 1105°, nº2, e 1793°, nº1, do Código Civil.
XXXVI. Por tudo quanto foi explanado, deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que atribua a casa de morada de família, a M. S..

Nestes termos, deve o presente Recurso ser julgado procedente, sendo revogada a sentença na parte em que atribui exclusivamente ao Requerente, A. C., a posição de arrendatário da casa de morada de família correspondente à fracção autónoma designada pelas letras "AL", correspondente à habitação com o nº …, situada no … do prédio urbano localizado na Rua …, Freguesia de ..., Concelho de Guimarães e, em consequência, ser substituída por outra que atribua a referida casa de morada de família à Recorrente M. S., mantendo-se a sua posição de arrendatária…”
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Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se deverá ser atribuída ao requerente ou à requerida a casa que foi a morada de família.
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Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:

1- O requerente, A. C., viveu com a requerida, M. S., entre 2007 e Dezembro de 2014, na habitação situada na Rua …, Freguesia de ..., Concelho de Guimarães;
2- Durante o período mencionado em 1, requerente e requerida dormiram juntos na habitação também aí referida;
3- Durante o período mencionado em 1, requerente e requerida tomaram refeições juntos na habitação também aí referida;
4- Durante o período mencionado em 1, requerente e requerida assumiram-se, entre si e perante outros, como se fossem marido e mulher;
5- Maria nasceu no dia … e é filha de requerente e requerida;
6- Em Dezembro de 2014, requerente e requerida decidiram separar-se;
7- Em Dezembro de 2014, a requerida saiu da habitação referida em 1 e passou a habitar, juntamente com uma outra filha menor e a Maria quando esta está ao seu cuidado, com sua mãe, na casa desta, situada na Rua …, Freguesia de ..., Concelho de Guimarães;
8- A partir de Dezembro de 2014, requerente e requerida não mais dormiram juntos, tomaram as refeições juntos ou se assumiram, entre si e perante terceiros, como se fossem marido e mulher;
9- O requerente continuou a viver na habitação mencionada em 1 após a altura referida em 7;
10- O requerente vive na habitação mencionada em 1 com a sua actual companheira, B. F., desde Setembro de 2015;
11- Quando o requerente a tem ao seu cuidado, a Maria vive com o mesmo na habitação referida em 1;
12- O requerente trabalha por conta própria, dedicando-se à actividade de animação de eventos, designadamente, de casamentos;
13- O requerente, no exercício da actividade acima mencionada, obtém rendimento anual no montante de, pelo menos, € 2 000,00;
14- A companheira actual do requerente trabalha e aufere o salário mensal de cerca de € 580,00;
15- A requerida trabalhou na fábrica de calçado ... até final de Fevereiro de 2018, estando, à data do julgamento, desempregada;
16- Da habitação referida em 1 à fábrica acima mencionada, dista cerca de 1 km;
17- A entidade empregadora da requerida (…) comunicou-lhe que, caso esta o pretenda, a contratará para sua trabalhadora com muita probabilidade;
18- A requerida não tem carta de condução;
19- A Maria frequenta estabelecimento de ensino que dista cerca de 200 metros da habitação mencionada em 1;
20- Por sentença proferida no dia 22-03-2017, no processo n.º 981/16.2T8GMR, que correu termos neste Juízo de Família e Menores de Guimarães – J1, transitada em julgado a 06-04-2017, foi homologado o regime de exercício das responsabilidades parentais atinentes a Maria, nascida a …, filha de Requerente e Requerida – cfr. certidão de fls. 46 e ss.;
21- Nos termos do aludido acordo, a guarda da referida menor ficou atribuída, alternadamente, a ambos os progenitores, cabendo a ambos, em conjunto, o exercício das respectivas responsabilidades parentais - cfr. certidão de fls. 46 e ss.;
22- Nos termos do aludido acordo, as despesas médicas, medicamentosas e escolares da menor, não comparticipadas, bem como as despesas com actividades extracurriculares acordadas entre si, serão suportadas por ambos os progenitores, na proporção de metade, mediante a exibição do documento comprovativo da despesa efectuada - cfr. certidão de fls. 46 e ss.;
23- Pelo documento escrito cuja cópia integral se encontra a fls. 65 a 69, datado de 22-11-2013, por ambos outorgado, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IHUR IP, acordou com a requerida, M. S., em dar de arrendamento a esta, a fracção autónoma designada pelas letras “AL”, correspondente à habitação com o n.º 82, situada no 8º andar do prédio urbano localizado na Rua …, Freguesia de ..., Concelho de Guimarães, inscrito na matriz predial respectiva sob o art. … e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, mediante o pagamento da renda mensal apoiada de € 22,97, com início no dia 01-04-2013 e termo no dia 31-03-2014, renovável nos termos legais”.

E foram dados como não provados os seguintes:

a) Após ter deixado de viver na habitação mencionada no ponto 1 da matéria de facto provada, a requerida passou a residir na cidade do Porto, com o companheiro,
b) O requerente suporta todas as despesas da Maria;
c) O requerente, nos meses de Julho e Agosto, realiza animações em 15 casamentos, pelo preço de € 500,00 cada;
d) O requerente, no exercício da actividade de animação, aufere o rendimento médio mensal de € 650,00;
e) Em Novembro de 2014, a requerida tomou conhecimento de que o requerente mantinha uma relação amorosa com a sua (da requerida) melhor amiga, a actual companheira do requerente;
f) Na altura referida na alínea anterior, a requerida encontrava-se grávida;
g) Na mesma altura, o requerido forçou a requerida a abortar;
h) No dia 28-11-2014, o requerente desferiu golpes com uma navalha na face e mão da requerida, causando-lhe ferimentos;
i) Após, a requerida foi conduzida ao hospital para tratamento dos ferimentos mencionados;
j) Como apresentava um quadro clínico depressivo, a requerida decidiu passar a residir com sua mãe para poder beneficiar dos cuidados de que necessitava;
k) A requerida, por diversas vezes, solicitou ao requerente a entrega da habitação mencionada em 1, de modo a passar a habitar na mesma;
l) O requerente, em todas as ocasiões referidas na alínea anterior, bateu na requerida e recusou entregar-lhe a habitação referida em 1”.
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Da atribuição da casa de morada de família:

Está em causa nos autos a atribuição da casa que foi a morada de família a uma das partes, sendo certo que foi o requerente quem deduziu o pedido quanto à mesma, nos termos e ao abrigo do disposto no artº 990º do CC, mais concretamente, a transmissão para si do direito ao arrendamento relativamente àquela habitação, nos termos do artº 1105º do CC.

Prevê-se naquele artº, cuja epígrafe é a “Comunicabilidade e transmissão em vida para o cônjuge” (do arrendamento para habitação), nos seus nºs 1 e 2, que “Incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, decidido (…), na falta de acordo, pelo tribunal, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros factores relevantes”.

O preceito em causa aplica-se igualmente à situação de ruptura da união de facto, por determinação do art. 4º da Lei n.º 7/2001, de 11-05, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 23/2010, de 30-08 (à data da rutura), diploma que instituiu medidas de protecção à união de facto, reconhecendo e tutelando direitos aos conviventes, mesmo após cessada a vida em comum.

Como bem se refere na decisão recorrida, é hoje um facto constatado que embora a união de facto, quanto à generalidade dos seus efeitos, não possa qualificar-se como relação de família, na definição legal consagrada no artigo 36º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, como incontornável realidade sociológica de que o Direito não se pode alhear, tem merecido relevantes medidas legislativas de protecção, sobretudo na área da segurança social e no âmbito do direito civil (cfr. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, vol. I, 3ª ed.), sendo um deles o da protecção dos ex-conviventes quanto á casa que foi a da morada de família, em termos em tudo semelhantes à situação dos ex-cônjuges.

Citando ainda Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (RLJ, Ano 122, p. 137), a propósito do artigo 1793º do CC (atribuição da casa de morada de família em caso de divórcio), menciona-se na decisão recorrida que o objectivo da lei não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, como não é o de manter na casa de morada de família, em qualquer caso, o cônjuge ou ex-cônjuge que aí tenha permanecido após a separação de facto, mas o de proteger o cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, cônjuge ou ex-cônjuge ao qual, porventura, os filhos tivessem ficado confiados. A necessidade da casa (ou a premência, como vem dizendo a jurisprudência) e o interesse dos filhos, parecem ser, assim, os factores principais a atender.

Na avaliação da premência da necessidade da casa, deve o tribunal ter em conta, assim, em primeira mão, estes dois elementos (interligados entre si).

O primeiro deverá ponderar, desde logo, a situação patrimonial de cada um dos cônjuges ou ex-cônjuges, nomeadamente os rendimentos e proventos de um e outro, uma vez decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, assim como os respetivos encargos. O segundo, respeitante ao “interesse dos filhos”, deverá levar em consideração a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores, e se é do interesse dos filhos viverem na casa que foi do casal com o progenitor a quem foram confiados.

Consideram, no entanto, aqueles autores que o juízo sobre a necessidade ou premência da necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda as demais “razões atendíveis” (enquadráveis, no que respeita ao artº 1793º, no advérbio “nomeadamente”, e no que respeita ao artº 1105º, noutros factores relevantes), como sejam: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges; a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e de outro; o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.

Também perfilha desse entendimento Tomé d’Almeida Ramião (“Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Actual”, 3ª ed., Quid Iuris, p. 137, autor também citado na decisão recorrida), ao referir que “…o factor principal ou mais preponderante será a avaliação da “premência da necessidade” da casa (…) do cônjuge que mais precisa dela, supondo que ambos dela necessitam, e nessa avaliação contará, também, o interesse dos filhos, a situação económica de cada um dos cônjuges, o seu estado de saúde, a sua idade, a capacidade profissional de cada um deles, como outros factores relevantes (…), afastada a questão da culpa no divórcio, outro elemento que era considerado e deixou de o ser”.

No que concerne ao interesse dos filhos, considerou-se também na decisão recorrida, seguindo o entendimento preconizado no recente acórdão da Relação de Coimbra de 09-01-2018 (disponível em www.dgsi.pt), que o mesmo se reconduz, no essencial, à situação dos filhos menores, confiados à guarda de um dos pais, e que, para não ficarem sujeitos a outro trauma para além do que normalmente lhes resulta do divórcio ou separação destes, a lei entende por bem proteger de forma a que possam continuar a viver com a estabilidade, na habitação a que estavam habituados, sem mais mudanças para além da própria situação familiar.

Caberá, finalmente, ao ex-cônjuge ou ao ex-unido de facto que pretenda que lhe seja atribuída a casa de morada de família, alegar e provar que necessita mais da casa do que o outro, sendo certo que a necessidade da mesma há-de ser uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), fazendo depois o tribunal uma apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso, e ponderando os interesses acima mencionados (ac. da Relação de Lisboa de 24-06-2010 disponível em www.dgsi.pt).

Quando possa concluir-se, em face desses elementos, que a necessidade ou a premência da necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, deve o tribunal, na falta de acordo, atribuir o direito da casa que foi a morada de família àquele que mais precise dela (cfr. no mesmo sentido os acs. desta Relação de Guimarães de 24-01-2008, e da Relação de Évora de 27-04-2017, ambos disponíveis em www.dgsi.pt)..

Tudo quanto se afirmou relativamente à situação dos ex-cônjuges (consagrada nos artºs 1105º e 1793º do CC) tem aplicação à situação dos conviventes na união de facto, ocorrendo a sua ruptura, conferindo-lhes a lei, de forma expressa, a tutela conferida aos ex-cônjuges no que respeita à atribuição da casa de morada de família, devendo assim ser considerada a habitação, quer seja própria de um dos conviventes, quer seja arrendada, desde que seja o local onde o casal e os filhos manteve, durante o período da união, organizada a sua vida em comum (artº 4.º da Lei nº 1/2007, com as alterações que lhe foram sendo introduzidas, a última das quais pela Lei 71/2018, de 31.12.)
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Fazendo agora aplicação das considerações expostas ao caso dos autos, e cotejando as mesmas com a matéria de facto provada, não podemos acompanhar a decisão recorrida, na parte em que considerou que o requerente tem mais necessidade da casa que foi a morada de família, do que a requerida.

Pelo contrário, consideramos, face à matéria de facto provada, que é a requerida que se encontra, de momento, em situação de mais premente necessidade da casa, considerando a sua situação sócio-económica e profissional, e a das suas filhas menores.

Começamos por dizer que o direito ao arrendamento da habitação em causa já lhe foi atribuído a si, por contrato celebrado entre ela e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IHUR IP, em 22-11-2013, sendo ela, portanto, como arrendatária da fracção, a titular da relação jurídica já constituída.

Trata-se, como decorre do documento de fls. 65 a 69, de uma habitação de renda apoiada, pelo qual o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IHUR IP, acordou com a requerida, em “…dar-lhe de arrendamento a habitação em causa nos autos mediante o pagamento da renda mensal apoiada de € 22,97, com início no dia 01-04-2013, e termo no dia 31-03-2014, renovável nos termos legais”, contrato esse celebrado nos termos e ao abrigo do DL nº 166/93, de 7 de Maio.

Ora, como consta do citado DL 166/93, o regime da renda apoiada baseia-se na existência de um preço técnico, determinado objectivamente, tendo em conta o valor real do fogo, e de uma taxa de esforço, determinada em função do rendimento do agregado familiar. É da determinação da taxa de esforço que resulta o valor da renda apoiada.

Estabelecem-se, assim, naquele diploma legal, os mecanismos de determinação do valor locativo do fogo - o preço técnico -, bem como do montante que o arrendatário pode efectivamente suportar - a renda apoiada cujo valor evoluirá em função e na medida do rendimento do agregado familiar do arrendatário.

A análise do documento em causa permite-nos desde logo concluir, ainda que apenas de forma indiciária, que sendo a requerida operária fabril e mãe de duas crianças menores, esse fator terá sido já determinante na atribuição a si pelo IHUR IP, do arrendamento em causa, sobretudo do valor da renda apoiada acima referida.

Ora, à luz da matéria de facto provada, essa situação, de carência económica da requerida, mantém-se actualmente, ainda mais agravada até, pois ela continua com as duas filhas menores a cargo (embora uma delas também a cargo do requerente), desempregada, e a viver em casa da mãe.

Ou seja, é manifesta, perante a situação social e económica da requerida, a premência da necessidade da casa que foi a sua morada de família, casa essa que ela continua a reclamar nesta ação.

Não acompanhamos, por isso, a argumentação defendida na decisão recorrida, de que na altura da cessação da união de facto entre os conviventes, foi o requerente quem permaneceu na habitação do casal, não obstante ser a requerida quem outorgou o contrato de arrendamento da mesma, na qualidade de inquilina, e que tal situação perdurou até à interposição da presente acção, até 27-09-2017, mantendo-se a situação até à data da decisão da 1ª instância.

E que o circunstancialismo referido traduz-se numa situação consolidada, de manutenção do requerente na casa de morada de família, pelo que, “na ausência de elementos de facto que a afastem, presume-se que a situação em referência tenha sido definida com, pelo menos, a anuência da requerida, nada estando demonstrado que assim se não tenha verificado”.

Não cremos que se possa extrair essa presunção da matéria de facto provada, sobretudo à luz das respectivas alegações das partes.

Efetivamente, alegou o requerente no artº 5º da petição inicial que a requerida quando saiu da habitação, em meados de Dezembro de 2014, foi viver para o Porto com o companheiro, vivendo actualmente com a mãe, deixando aquele subentendido na sua alegação que foi a requerida que deixou a casa de morada de família por sua livre iniciativa, para ir viver com outro companheiro, indo depois viver com a mãe. Ou seja, que foi a requerida que saiu livremente da casa em questão e que não mantém interesse em regressar a ela.

A esses factos contrapôs, no entanto, a requerida (nos artºs 31º e ss. da contestação) outros bem diferentes, nomeadamente que em Novembro de 2014 tomou conhecimento que o requerente mantinha uma relação amorosa com a sua melhor amiga, a sua actual companheira; que na altura se encontrava grávida e que o requerido a forçou a abortar; que no dia 28-11-2014, o requerente lhe desferiu golpes com uma navalha na face e na mão, causando-lhe ferimentos que a levaram a ter de ir ao hospital para receber tratamento aos mencionados ferimentos; e que em face de tudo isso desenvolveu um quadro clínico depressivo que a levou a ir residir com a mãe, para poder beneficiar dos cuidados de que necessitava.

Mais alegou que solicitou ao requerente, por diversas vezes, a entrega da habitação, de modo a poder ir nela habitar e que aquele, em todas essas ocasiões lhe bateu e se recusou a entregar-lha.

Ora, não logrou o requerente provar o facto por si alegado no artº 5º da petição, assim como não logrou a requerida provar os factos por si alegados nos artºs 31º a 40º da contestação, ficando apenas provado, singelamente, que em Dezembro de 2014, requerente e requerida decidiram separar-se, e que nessa data a requerida saiu de casa e passou a habitar, juntamente com uma outra filha menor e a filha Maria, quando esta está ao seu cuidado, com a sua mãe, na casa daquela, sita na Freguesia de ..., Concelho de Guimarães. E que o requerente continuou a viver na habitação, após a requerida ter saído de casa, onde vive ainda hoje, com a sua actual companheira, desde Setembro de 2015, e com a filha Maria, quando está a seu cargo.

Nenhum desses factos nos permite, no entanto, concluir, como se faz na decisão recorrida, e salvo melhor entendimento, que a situação do requerente se tenha consolidado, no sentido de ser ele a ter direito à casa, nem que seja de presumir que o facto de ser ele a habitar a casa neste momento tenha sido com a anuência da requerida, pois nada ficou demonstrado, positivamente, nesse sentido.

E se é certo que nos movemos, neste tipo de processos, no âmbito da jurisdição voluntária, submetida às disposições gerais dos artº 986º e ss. do CPC, entre as quais se destaca o princípio de que nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita (artº 987º do CPC), haveria o requerente de alegar (e provar) os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito que reclama (nos termos previstos no artº 990º nº1 do CPC). Ou seja, era sobre ele que recaía o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do seu direito (artº 342º nº1 do CC), nada tendo sido alegado nem provado, como se referiu, no sentido concluído pelo tribunal – de que a sua permanência na casa teve a anuência da requerida desde que dela saiu.
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Sendo assim, os dados que temos como adquiridos nos autos são apenas a situação económica e financeira de ambas as partes, a demonstrar que a actual situação económica da requerida é muito mais débil do que a do requerente – desempregada e com duas filhas menores a cargo –, sendo também do interesse das filhas da requerida que a mãe ocupe a casa em questão, a qual se situa na cidade de Guimarães, e não numa freguesia do concelho, onde se situa a casa da avó, com quem vivem actualmente, mais distante das escolas e de todas as comodidades que a cidade lhes pode proporcionar (como actividades desportivas e extra curriculares, para as quais se podem deslocar facilmente a pé).

Essa necessidade da requerida sobrepõe-se à do requerente, que trabalha, auferindo pelo menos € 2.000,00 por ano, assim como a sua companheira, que aufere o valor equivalente ao do Salário Mínimo Nacional (€ 580,00 mensais), tendo apenas a seu cargo a filha do requerente, nos períodos em que ela lhe foi atribuída, estando, assim, ambos em melhores condições do que a requerida de encontrarem uma casa para arrendar, em termos de renda normal.

Podemos assim concluir que, em termos económicos, as necessidades da requerida são maiores que as do requerente, pelo que ela necessita mais da habitação (leia-se daquela habitação com renda bonificada) do que o requerente.

Quanto aos interesses da menor (e também da outra filha, exclusivamente a cargo da requerida) é por demais evidente que eles ficam melhor assegurados, em termos de comodidades e de conforto, se for a mãe a ficar naquela casa, pois dista da sua escola apenas 200 metros, sendo certo que a mãe não tem carta de condução para a levar á escola (nem condições económicas de ter carro), distando a casa da avó, situada na Freguesia de ..., Concelho de Guimarães a cerca de 10Km de distância (de acordo com as informações do Google)

Por outro lado, atendendo à situação em que se encontra a menor Maria – cuja guarda foi atribuída, alternadamente, a ambos os pais -, ela não ficará prejudicada com a atribuição da casa de morada de família à mãe, pois ela nunca será afastada da habitação a que está habituada.

Por isso não partilhamos, nesta parte, salvo sempre melhor entendimento, das considerações expendidas na decisão recorrida, de que a vivência ao longo de cerca de três anos da menor com o pai na residência disputada, aconselha que tal situação não seja modificada, assim se protegendo tal estabilidade na vida da mesma, bem como na vida do próprio requerente. Como se disse, o local de residência da menor, que já foi a sua antes da separação dos pais, não será alterada com a atribuição da casa à mãe.
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Além de tudo quanto se expôs, existem outros factores relevantes a considerar na vida dos ex-conviventes, nomeadamente a questão logística da residência da requerida, a qual vive actualmente em casa da mãe, em ..., Concelho de Guimarães, tendo-lhe sido prometido emprego na empresa de calçado ..., que dista da casa de habitação por si reclamada cerca de 1 Km (sendo certo que será sempre mais fácil para a requerida encontrar emprego na cidade de Guimarães do que numa freguesia do concelho).

Ora, não sendo a mesma requerida possuidora de carta de condução, terá de fazer a sua deslocação, assim como a das filhas menores, de transportes públicos (que segundo a busca que fizemos no Google, apenas poderá ser feita de autocarros). Contrariamente, embora nada seja dito nos autos sobre a forma de se deslocar do requerente, será de presumir que o mesmo, como animador de eventos (designadamente de casamentos), tenha viatura própria (ou a sua companheira), não assumindo o local da sua residência, à luz das regras da experiência, tanta relevância para a sua vida profissional como a da requerida.
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Conclui-se assim de todo o exposto, que é de atribuir à requerida – e não ao requerente -, o direito ao arrendamento da identificada casa de morada de família, por dela carecer mais.
Procedem, assim, as conclusões das alegações de recurso da requerida.
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DECISÃO:

Pelo exposto, Julga-se procedente a Apelação e Revoga-se a decisão recorrida, concedendo-se à requerida o direito à habitação que foi a morada de família, sita na Rua …, Freguesia de ..., Guimarães (conforme contrato de arrendamento em vigor, em nome da requerida).
Custas (da Apelação) a cargo do recorrido.
Notifique.

Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Fernando Fernandes Freitas
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Sumário do acórdão:

I- Deve ser atribuída a casa que foi a morada de família ao ex-convivente em união de facto, após a rutura da união, que demonstre ter mais necessidade dela em termos económicos, salvaguardando-se também os interesses dos filhos a cargo.
II- Haverá que considerar ainda as demais “razões atendíveis”, nomeadamente a localização da casa relativamente ao local de trabalho dos ex-conviventes, e as facilidades de se deslocarem, assim como a deslocação dos filhos para as escolas que frequentam.
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Guimarães, 31.1.2019