Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
326/11.8PBVCT.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: CRIME
AMEAÇA
REQUISITOS
OBJECTO DO CRIME
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Após a revisão do Cód. Penal de 1995, passou a ser claro que no crime de ameaça não se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, ou afectado a liberdade de determinação do ameaçado. Basta que a ameaça seja adequada a tal.

II) Mas para que haja ameaça é também necessário que esta se traduza na prática de um crime.

III) Relatando apenas a acusação que o arguido disse em tom sério e em voz alta «se não pagares as cortinas a bem, pagas a mal», não é correcto concluir que tal frase era adequada a provocar na assistente medo e inquietação e a lesar a sua paz e liberdade de autodeterminação.

IV) Justifica-se, assim, o juízo formulado pelo tribunal recorrido de rejeição da acusação.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No Proc. 326/11.8PBVCT distribuído ao 1º Juízo Criminal de Barcelos, a magistrada do Ministério Público e a assistente Sandra M... acusaram o arguido Francisco B... da autoria de um crime de ameaça p. e p. pelo art. 153 nº 1 do Cod. Penal.
A acusação foi rejeitada por se ter entendido que “os factos nela narrados não configuram crime susceptível de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena”.
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A magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido interpôs recurso desta decisão.
A questão a decidir é só a de saber se os factos narrados na acusação são susceptíveis de constituírem o arguido na prática de um crime de ameaça.
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Não houve resposta ao recurso.
Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido do recurso merecer provimento.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Como se referiu no relatório deste acórdão, a questão do recurso está só em saber se os factos narrados na acusação constituem o arguido Francisco B... na prática de um crime de ameaça.
Transcreve-se o essencial dos factos imputados:
Em 22-4-2011 (…) o arguido Francisco B... dirigiu-se a Sandra M...e disse-lhe, em tom sério e em voz alta: «se não pagares as cortinas a bem, pagas a mal».
O arguido ao proferir esta expressão, dirigida à assistente, estava ciente que o fazia em circunstâncias adequadas a provocar medo e inquietação naquela e de modo a lesar a sua paz individual e liberdade de autodeterminação, com receio que este atentasse contra a sua integridade física”.
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A reforma de 1995 resolveu uma polémica que se mantinha desde a entrada em vigor do Código Penal de 1982: passou a ser claro que o crime de ameaça não é de resultado e de dano. Agora não se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, ou afectado a liberdade de determinação do ameaçado. Basta que a ameaça seja adequada a tal.
Mas não é esse o único requisito. Para que haja ameaça não é suficiente a promessa de se infligir um qualquer «mal relevante», a ameaça tem de se traduzir na da prática de um crime. O mal ameaçado, isto é, o objecto da ameaça tem de constituir crime, tem de configurar em si mesmo um facto ilícito típico – Comentário Conimbricense, tomo. I, pag. 344. Mais: esse crime terá de ser um dos enumerados no art. 153 nº 1 do Cod. Penal, ou seja, contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens de considerável valor.
Esta delimitação quanto à natureza do mal anunciado tem a ver com a necessidade sentida pelo legislador de evitar uma “excessiva criminalização de condutas que, apesar de afectarem, em alguma medida, a liberdade individual, são socialmente inevitáveis (…). O perigo de tornar punível toda ou quase toda a actividade social do homem obriga a uma restrição deste teor” – Conimbricense, tomo I, pag. 341. No crime de ameaça, tal como acontece em muito outros, há um patamar mínimo de dignidade abaixo do qual não se justifica a tutela penal.
Há uma consequência do que se disse: tem de resultar inequívoco da ameaça, de forma explícita ou inevitavelmente implícita, qual o crime anunciado, de entre os elencados na norma do art. 153 nº 1 do Cod. Penal. Não é necessário, naturalmente, que o agente use uma terminologia legal. Por exemplo, se disser “hei-de partir-te os cornos”, todos os falantes da língua portuguesa saberão que está a anunciar a prática de um crime de ofensa à integridade física. Mas no esforço para se determinar o verdadeiro alcance da “ameaça” não pode dispensar-se um mínimo de correspondência com o significado literal do que foi dito ou escrito, ou, ao menos, a existência de factos circunstanciais que permitam identificar inequivocamente o crime anunciado. A determinação do significado das palavras não pode ser deixada à interpretação puramente subjectiva e arbitrária de alguém.
Pois bem, o segundo parágrafo das frases acima transcritas da acusação, contém, no essencial, matéria conclusiva. Traduz o entendimento da magistrada que acusou de que a frase proferida era «adequada» a provocar na queixosa receio de que o arguido “atentasse contra a sua integridade física”.
Na realidade, afirmar que um comportamento é “adequado” a produzir determinado efeito, é, no que diz respeito ao efeito, formular um juízo de valor que ultrapassa o âmbito da mera alegação “de facto”.
É certo que nem sempre é fácil distinguir as questões de facto das questões de direito. Não sendo este o local para uma dilucidação exaustiva desta questão, sempre se dirá que há uma «questão de facto» quando se procura reconstituir uma situação concreta ou um evento do mundo real e há uma «questão de direito» quando se submete a tratamento jurídico a situação concreta reconstituída. Isto implica que o «facto» não pode incluir elementos que a priori contenham implicitamente a resolução da questão concreta de direito que há a decidir.
Concluir, face à secura da primeira frase transcrita, que a mesma era adequada” a “provocar medo e inquietação”, a “lesar a paz individual e liberdade de autodeterminação” (penalmente relevantes) e receio pela integridade física, é, não só, formular um juízo de valor, mas também incluir nesse juízo a resposta da questão a decidir, limitando-lhe ou traçando-lhe o destino.
É, contudo, um juízo que não pode prevalecer.
Na acusação apenas se relata que o arguido disse em tom sério e em voz alta «se não pagares as cortinas a bem, pagas a mal». Esta frase pode ter muitos significados, entre eles o simples anúncio de uma acção judicial para obrigar a queixosa a pagar “a mal” as cortinas. A ideia de que anuncia uma agressão física é do campo da mera conjectura subjectiva, não mais plausível do que algumas outras hipóteses igualmente conjecturáveis. Não permite as conclusões a que a acusação chegou. Seria diferente se, por exemplo, o arguido, enquanto dizia a frase, estivesse de punho fechado e erguido, fazendo um gesto próprio de esmurrar outrem. Porém, esse facto, ou outro de cariz similar, não consta da narração da acusação.
Mesmo que em julgamento se provassem todos os factos da acusação, esta improcederia.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso confirmando o despacho recorrido.
Sem custas.