Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
171/15.1T8PRG.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
QUESTÃO PREJUDICIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Para efeitos do disposto no art. 272º, nº1 do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta, quando a decisão desta última pode afectar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser.
II – Tal acontece, designadamente, quando na acção de divisão de coisa comum – causa prejudicial - a decisão ali tomada, de existência de compropriedade e de indivisibilidade dos prédios, pode afectar os pedidos formulados nesta acção – dependente - de divisão factual dos mesmos prédios, adquiridos por usucapião.
Decisão Texto Integral: M e marido, A, melhor identificados nos autos, demandam nesta acção declarativa com processo comum, AJ e mulher C, R e mulher MF, e P e marido D, todos melhor identificados nos autos, pedindo:
“I) A título principal:
A) Declarar-se que os prédios identificados nos art°s 1° e 2° se encontram divididos em substancia, e que deram origem aos prédios individualizados e autonomizados referenciados nos arts. 8º, 9° e 10°.
B) Declarar-se que, à data das escrituras indicadas nos arts 40° a 42°, os AA, os 2°s e os 3°s RR eram legítimos proprietários, por via da usucapião, dos prédios rústicos identificados nos arts. 8º, 10° e 9°, respectivamente, condenando-se todos os RR no reconhecimento desses direitos.
C) Declarar-se os contratos de doação enunciados nos arts 40° a 42° nulos, por simulados.
D) Declarar-se a validade e existência dos contratos de compra e venda dissimulados, com o preço relativo de cada prédio que se vier a provar.
E) Condenarem-se os RR nas custas e procuradoria.
II) - A título subsidiário:
Mantendo-se os pedidos das als. C), D) e E) do pedido principal, declarar-se que, à data das doações referidas nos arts 40° a 42°, os AA, os 2°s e os 3°s RR eram legítimos comproprietários dos prédios identificados nos arts 1° e 2°”.
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Alegam para tanto que se encontra registado a seu favor e dos 1ºs RR o direito de compropriedade, na proporção de metade para cada casal, dos seguintes prédios, todos sitos na freguesia de Sever, do concelho de Santa Marta de Penaguião:
A) Prédio rústico, sito em Lavandeira, inscrito matricialmente sob o artº …-C;
B) Prédio rústico, sito em Serrinho, inscrito matricialmente sob o art° …- C;
C) Prédio rústico, sito em Serrinho, inscrito matricialmente sob o artº …- C; e
D) Prédio rústico, sito em Madorno, inscrito matricialmente sob o art° … ­ C;
Por sua vez, encontra-se registado a favor dos AA e dos lºs e 2°s RR, na proporção de um quarto para os AA, um quarto para os lºs RR e metade para os 2°s RR, o prédio rústico sito em Serrinho, inscrito matricialmente sob o art° … – C.
Acontece que, apesar da compropriedade registral, os identificados prédios encontram-se divididos, há mais de 20 anos, em parcelas de terreno perfeitamente autónomas, individualizadas e demarcadas e possuídas, desde então, por proprietários distintos que são, actualmente, os AA e os 1ºs e 2°s RR.
Os aludidos prédios vieram à posse dos AA por partilha judicial operada no Inventario Obrigatório a que se procedeu por óbito de Fernando Salvador, pai da A. mulher e da 3ª Ré mulher, e em 1990, alguns anos após a referida partilha, os então comproprietários dos prédios - os AA e os 3°s RR quanto aos do art° 1° e os AA, os 2°s e os 3°s RR quanto ao do art° 2° -, acordaram e procederam à divisão entre si dos mesmos, em parcelas distintas, perfeitamente delimitadas, tendo recorrido, para o efeito, de comum acordo, a “louvados” e colocaram marcos de pedra a delimitar as estremas dos prédios, que desde então respeitaram escrupulosamente (com as áreas e confrontações que indicam).
Desta divisão operada por acordo ficou apenas exceptuada uma parcela de terreno do art° 262 - C, com a área de 2.889 m2, constituída por monte, que os AA e os 3°s RR (actualmente lºs RR) continuaram, ate à presente data, a possuir em comum.
A divisão de facto dos prédios nos termos assinalados consolidou-se por via da usucapião, já que cada um dos proprietários, por si e antepossuidores, teve a posse exclusiva, publica, pacifica, continua e de boa fé, por mais de 20 anos consecutivos, sobre as respectivas parcelas de terreno.
Existiu, assim, o claro desígnio ou intenção de, em consenso, porem fim à compropriedade, fraccionarem a coisa comum em parcelas e, sobre cada uma delas criar um novo direito de propriedade exclusivo e autónomo radicado na esfera jurídica individual de cada um deles.
Atento o exposto, os AA e os 2°s e 3°s RR - ora lºs RR - adquiriram, por via da usucapião, o direito de propriedade exclusivo sobre cada uma das parcelas resultantes da divisão de facto de cada um dos prédios identificados nos arts 1° e 2°, parcelas que são hoje prédios autónomos e distintos.
Os AA, por terem interesse legítimo na alteração do registo, de acordo com a realidade factual, dando uma inscrição das parcelas que efectivamente possuem por autónomas, deduziram o pedido da sua individualização, por via reconvencional, nas ações de divisão de coisa comum intentadas pelos 1ºs RR no Julgado de Paz de Santa Marta de Penaguião.
Acontece que por escritura pública celebrada em 20 de Janeiro de 2012, outorgada no Cartório Notarial de Vila do Conde, o 3° R. marido, na qualidade de gestor de negócios de sua mulher, ora 3ª Ré, por ela ratificada, declarou doar aos 1° RR, além de outro, metade indivisa do prédio rústico identificado na al. A) do art° 1° (art° …-C); metade indivisa do prédio rústico identificado na al. B) do art° 1° (art° …-C); uma quarta parte indivisa do prédio rústico identificado no art° 2° (art° …-C); e metade indivisa do prédio rústico identificado na al. C) do art° 1° (art° I …-C).
E por escritura celebrada no dia 28 de Março de 2012, no mesmo Cartório Notarial, a 3ª Ré mulher declarou doar aos lºs RR metade indivisa do prédio rústico identificado na al. D) do art° 1° (art° …° - C), tendo o 3° R. marido prestado o seu consentimento para o acto.
Porém, contrariamente ao exarado nas referidas escrituras, a transmissão dos imóveis não foi efectuada por doação, mas sim por compra e venda, que os lºs e os 3°s RR pretenderam esconder dos AA, que apenas delas tomaram conhecimento em Fevereiro de 2015.
Os negócios celebrados entre os 1ºs e os 3ºs RR foram efectuados apenas com o objectivo concertado de enganar e prejudicar os AA, impedindo-os de exercerem o direito de preferência que lhes assistia na venda, quer como proprietários de prédios confinantes, quer como comproprietários, de acordo com a realidade registral, sendo, por isso nulos (art° 240°, n° 2 do CC).
Os AA têm interesse nas declarações de nulidade de tais negócios porque se propõem exercer o direito de preferência relativamente à aquisição de tais prédios.
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Os 1ºs réus vieram contestar a acção, alegando, além do mais, que após terem adquirido os seus prédios, os autores intentaram contra si seis acções referentes a cada um dos seis prédios, 5 nos Julgados de Paz de Santa Marta de Penaguião e uma no extinto 2.º juízo do Tribunal Judicial do Peso da Régua, quanto ao artigo 271-C.
Nesta última acção, de divisão de coisa comum, as partes, por acordo, procederam a licitação particular, tendo o prédio sido adjudicado aos RR contestantes por acordo das partes.
Quanto às restantes 5 ações intentadas nos Julgados de Paz de Santa Marta de Penaguião, e onde os AA peticionavam a sua divisão em substancia, invocando também ali determinada divisão de facto que se teria consolidado com o decurso do tempo pela via da usucapião, foram elas contestadas pelos ora RR, com o fundamento de que a pretendida divisão inexiste nos termos alegados pelos AA.
Os AA requereram a produção de prova pericial e os autos subiram à comarca e antes da realização da perícia acertaram as partes pôr fim àqueles processos por desistência da instância, tendo os mandatários combinado proporem-se, nos Julgados de Paz, ações para divisão de coisa comum que terminariam por transação que homologasse as licitações que particularmente se fariam e que as partes se obrigavam a respeitar.
Na execução do acordado, os aqui RR propuseram 5 ações nos Julgados de Paz de Santa Marta de Penaguião para divisão de coisa comum, uma para cada prédio, ações que foram contestadas pelos AA, com pedido reconvencional, em que voltou a ser pedida a declaração judicial da divisão dos prédios, exatamente igual à formulada nestes autos.
Crêem os RR estarmos perante litispendência, no que toca aos pedidos das alíneas A) e B) do petitório, pois há repetição de pedidos iguais, a impor a suspensão da instância por não poder correr-se o risco do tribunal decidir num sentido num processo e noutro sentido noutro processo.
Dizem que aqueles autos são prejudiciais a estes, porque na divisão de coisa comum os prédios serão vendidos deixando esta ação de ter objecto, sendo que um eventual direito de preferência sempre poderia ser exercitado na venda na divisão de coisa comum.
Pedem, a final, a suspensão da instância até decisão dos processos que correm termos neste momento na comarca e instância local sob os nºs 348/14.4TBPRG, 344/14.4TBPRG, 182/15.7T8PRG, (J1) e 346/14.4TBPRG e 183/15.5T8PRG (J2), por se tratar de questões prejudiciais (artigo 272 nº 1 do CPC).
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Os autores pronunciaram-se quanto à suspensão da instância, opondo-se à mesma, defendendo que a haver prejudicialidade seria a destes autos em relação aos mencionados pelos RR, pois caso as acções de divisão prossigam e esta instância seja suspensa, os prédios poderão ser adjudicados aos interessados ou vendidos, a eles ou a terceiros que concorram à venda, ficando depois esvaziadas de sentido e de conteúdo os pedidos de anulação das doações e da declaração de validade das compras e vendas que constituem o pressuposto do exercício do direito de preferência que os AA se propõem exercitar.
Por isso requereram naqueles autos pedido de suspensão da instância.
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Uma vez que os autores referiram que haviam requerido a suspensão das acções de divisão de coisa comum pendentes no Julgado de Paz de Santa Marta de Penaguião, ordenou-se a junção aos autos do despacho que recaiu sobre tal requerimento.
Foi junta aos autos certidão dos despachos que indeferiram a suspensão da instância aí requerida, assim como dos pedidos reconvencionais e dos articulados de todas as acções intentadas nos julgados de paz.
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Foi então proferida a seguinte decisão:
“…Em sede de audiência prévia a Mma. Juiz que a ela presidiu ordenou a junção aos autos de documentos com vista a conhecer da excepção de litispendência.
Todavia, decorre da contestação junta aos autos que tal excepção não foi invocada enquanto excepção dilatória. É certo que os réus referem que há litispendência mas fazem-no para logo a seguir afirmarem que tal terá que conduzir à suspensão da instância por existência de causa prejudicial.
E, de facto, o que decorre dos autos é que os réus requereram essa suspensão. Entendemos assim que inexistem motivos para, por ora, ser agendada nova audiência prévia pois urge conhecer do pedido de suspensão da instância formulado nos autos.
Da suspensão da instância por existência de causa prejudicial
Aquando da contestação, os réus C E AJ defenderam-se por excepção invocando a excepção dilatória de litispendência e alegando ainda haver motivo justificado para a suspensão dos presentes autos por existência de causa prejudicial (…).
Vejamos então se estamos perante a pendência de uma causa prejudicial que sustente a necessidade de suspensão da instância.
Os autores intentaram a presente acção contra os réus pedindo que:
- se declare que os prédios identificados nos artigos 1 ° e 2° se encontram divididos em substância e que deram origem aos prédios individualizados e autonomizados referenciados nos artigos 8°,9° e 10°;
- se declare que à data das escrituras indicadas nos artigos 40° a 42°, os AA, os 2° e os 3°s RR. eram legítimos proprietários, por via da usucapião, dos prédios rústicos identificados nos artigos 8°, 10° e 9°, respectivamente, condenando-se todos os RR. no reconhecimento desses direitos;
- se declare os contractos de doação enunciados nos artigos 40° a 42° nulos, por simulados;
- se declare a validade e existência dos contratos de compra e venda dissimulados, com o preço relativo a cada prédio que se vier a provar;
Decorre dos autos que estão pendentes no Julgado de Paz de Santa Marta de Penaguião 5 acções de divisão de coisa comum relativas a cada um dos prédios em causa nos autos. No âmbito dessas acções os aqui autores e ali réus deduziram pedido reconvencional pedindo a declaração judicial da divisão dos prédios, tal como peticionam nos presentes autos.
Aliás, a presente acção é posterior à propositura daquelas.
Ora, mostra-se pois manifesto que a decisão que venha a ser proferida naqueles processos poderá afectar o destino dos presentes autos designadamente no que tange aos pedidos formulados nas alíneas A) e B).
Assim, porque nelas se discutem factos cuja prova poderá influir na decisão a proferir nos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 272°, n° 1 do CPC, suspendo a instância até que fiquem definitivamente decididas as acções pendentes no Julgado de Paz de Santa Marta de Penaguião.
Notifique…”
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Não se conformando com a decisão proferida, vieram os AA dela interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:
“I a) O douto despacho recorrido ordenou a suspensão da presente instância ao abrigo do art° 272°, n° I CPC, por se entender que a pendência de acções de divisão de coisa comum, nas quais foi deduzido pedido reconvencional coincidente com os pedidos principais das als A) e B) da PI., constitui causa prejudicial à decisão a proferir nestes autos.
2a) Na presente acção, os AA invocam a simulação de determinados contratos de doação, peticionando a declaração da sua nulidade e da validade e existência dos contratos de compra e venda dissimulados - pedidos das als C) e D) da PI.
3a) Para justificar a sua legitimidade de interessados na invocação da simulação - Art° 286° CC -, alegaram e peticionaram, por via principal, que são proprietários de terrenos confinantes com os que foram objecto dos contratos, por divisão de facto e de direito dos mesmos - pedidos principais das als A) e B) - e, subsidiariamente, que são deles comproprietários, de acordo com a sua situação registral - pedido subsidiário da al. A).
4a) A presente acção é prévia à acção de preferência que os AA se propõem intentar pois, provando-se a alegada simulação, eles são titulares do direito de preferência na alienação dos imóveis, seja como proprietários de terrenos confinantes seja como comproprietários.
Y) O fundamento da acção é a simulação dos contratos, que funda os pedidos das als C) e D), sendo os pedidos principais das als A) e B) e o subsidiário da al. A) justificativos da legitimidade dos AA para a invocação da nulidade das doações.
6a) Por outro lado, à data da instauração da presente acção, os aqui 1ºs RR e ali AA haviam proposto acções de divisão de coisa comum cujo objecto são os prédios aqui em causa, que ainda estão pendentes.
7a) Naquelas acções, os ora AA e aí RR deduziram pedido reconvencional da declaração de divisão dos prédios, que não foi admitido por inadmissibilidade legal, nos termos da Lei n° 54/2013, de 13/07, com as alterações da Lei n° 54/2013, de 31/07 (Lei dos Julgados de Paz).
8a) Os ora AA requereram naquelas acções a suspensão da instância, por entenderem que a presente acção é causa prejudicial àquelas, o que foi indeferido por imperativo legal da mesma Lei dos Julgados de Paz.
9a) Causa prejudicial é aquela onde se discute e pretende apurar factos ou situações que são elementos ou pressupostos da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que se baseia.
10a) Mas as reconvenções deduzidas pelos ora AA nas acções de divisão de coisa comum não foram admitidas pelo que os pedidos principais das als A) e B) desta acção não vão ser nelas objecto de decisão, não ocorrendo o risco de incompatibilidade de julgados que justifique a suspensão da presente instância.
11a) A decretada suspensão desta instância veda aos AA a possibilidade de virem a exercer o direito de preferência que se arrogam no caso de ser declarada a nulidade, por simulação, das doações e a validade e existência das dissimuladas compras e vendas -Art° 1380°, n° 1 e 1410°, n° 1 CC.
12a) O douto despacho recorrido desconsiderou absoluta e injustificadamente os pedidos formulados sob as als C) e D), que são a razão de ser da acção, e não atenta que os AA também deduzem, subsidiariamente, o pedido de reconhecimento do direito de compropriedade.
13a) No caso de suspensão da presente instância e da defesa dos AA nas acções de divisão de coisa comum ser julgada inoperante, reconhecendo-se que AA e RR são comproprietários dos prédios, estes serão adjudicados ou vendidos, ficando esvaziadas de sentido e de conteúdo os pedidos de anulação das doações e da declaração da validade das compras e vendas.
14a) Impõe-se o prosseguimento dos autos para permitir a prova que as doações foram simuladas e que os AA estão em condições de exercer a preferência legal nas alienações pois, em tal situação, os lºs RR nem sequer são titulares do direito de compropriedade que invocaram nas acções de divisão de coisa comum.
15ª) Pois, na procedência das pretensões aqui deduzidas pelos AA, eles poderão exercer o direito de preferência invocado e haver para si a totalidade dos prédios.
16a) A suspensão da presente instância viola os direitos e interesses legítimos dos AA na invocação da nulidade das doações e do exercício do direito de preferência.
17a) As acções de divisão de coisa comum não são causa prejudicial desta que imponham ou, pelo menos, que justifiquem a suspensão desta instância.
18a) O douto despacho recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, as normas dos arts 272°, n° 1 CPC e 240°, nºs 1 e 2, 286°, 1380°, n° 1 e 1410°, n° 1 CC….”
Pedem, a final, que seja revogado o despacho recorrido, substituindo-se por outro que ordene o prosseguimento dos autos.
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Os recorridos vieram apresentar contra-alegações nas quais pugnam pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se foi bem decidida nestes autos a suspensão da instância, por existência de causa prejudicial.
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Os factos a considerar para a decisão da questão colocada são os mencionados no relatório deste acórdão, assim como os constantes da decisão recorrida (com a correcção de que as acções intentadas no Julgado de Paz de Santa Marta de Penaguião se encontram presentemente a correr na instância local de Peso da Régua – comarca de Vila Real -, sob os nºs 348/14.4TBPRG, 344/14.4TBPRG, 182/15.7T8PRG, 346/14.4TBPRG e 183/15.5T8PRG).
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Da questão da suspensão da instância:
Começamos por dizer que, como bem se decidiu no despacho recorrido, do confronto de ambas as acções – a presente e as de divisão de coisa comum intentadas nos Julgados de Paz de Santa Marta de Penaguião, a correr termos, neste momento, na comarca de Vila Real e instância local de Peso da Régua, sob os nºs …, …, …, … e … – não se verifica entre elas a exceção da litispendência, por falta da tríplice identidade exigida no artº 581º do CPC: identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir – decisão que não merece, de resto, a discordância de nenhuma das partes.
Determinou-se, no entanto, a suspensão da instância, nos termos do art. 272º, nº 1, do CPC, considerando-se, para o efeito, que, “…mostra-se pois manifesto que a decisão que venha a ser proferida naqueles processos poderá afectar o destino dos presentes autos designadamente no que tange aos pedidos formulados nas alíneas A) e B). Assim, porque nelas se discutem factos cuja prova poderá influir na decisão a proferir nos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 272°, n° 1 do CPC, suspendo a instância até que fiquem definitivamente decididas as acções pendentes no Julgado de Paz de Santa Marta de Penaguião…”.
E bem, em nosso entender.
O artº 272 nº 1 do C.P.C. estabelece que “O tribunal pode ordenar a suspensão, quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
Segundo Manuel de Andrade (Lições de Processo Civil, págs. 491 e 492), só existe verdadeira prejudicialidade e dependência quando na primeira causa se discute, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental. Mas, segundo o mesmo autor, nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos, podendo considerar-se prejudicial em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal.
Concordando com esse entendimento, José Alberto dos Reis refere que “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir ou modificar o fundamento ou a razão da segunda…” (Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, págs. 268 e 269), referindo ainda que “sempre que numa acção se ataca um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção, aquela é prejudicial em relação a esta” (Ob. cit., pág. 206).
Segundo o mesmo autor "... a razão de ser da suspensão por pendência de causa prejudicial é a economia e coerência dos julgamentos..." (op. e local citados).
Por sua vez o Conselheiro Rodrigues Bastos entende que a decisão de uma causa depende do julgamento de uma outra quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa influir ou modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a solução do outro pleito. (Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 3.ª edição, 2000, pág. 43).
Em termos gerais, podemos afirmar a existência de prejudicialidade quando a decisão de uma causa possa afectar ou prejudicar o julgamento de outra, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando “…na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito; quando a decisão de uma acção - a dependente - é atacada ou afectada pela decisão ou julgamento emitido noutra” (Ac. do STJ de 29/09/93, em www.dgsi.pt.) ou quando “…numa acção já instaurada se esteja a apreciar uma questão cuja resolução tenha que ser considerada para a decisão da causa em apreço” (Ac. do STJ de 06/07/2005, em www.dgsi.pt.).
Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia (artº 276º nº 2 do CPC).
É de referir que a existência de prejudicialidade ou dependência, para efeitos de suspensão da instância, não pressupõe a identidade de sujeitos e de pedidos, sendo apenas necessário que exista, entre as duas causas, a conexão necessária para que a decisão de uma delas tenha a virtualidade de afectar e interferir com a decisão da segunda (aliás, a identidade de sujeitos e de pedidos – acompanhada com a identidade de causa de pedir – conduziria à verificação da excepção de litispendência e consequente absolvição da instância e não à mera suspensão da instância) - cfr. neste sentido, acórdão RP de 7.1.2010 (disponível me www.dgsi.pt).
Além disso, a razão da suspensão da instância reside na dependência das causas, independentemente da prioridade da sua propositura, “desde que a causa prejudicial já esteja proposta no momento; antes ou depois da data em que intentou a causa dependente não importa, o juiz pode ordenar a suspensão” – José Alberto dos Reis, Comentários ao CPC, vol III, pag. 288).
Sobre a razão de ser da opção legislativa da suspensão da instância, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora - Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 222 – justificam-na da seguinte forma: no caso da questão prejudicial surpreende-se uma supremacia do interesse “da maior garantia de acerto ou aperfeiçoamento da decisão” sobre o interesse da celeridade processual.
Evitar-se que dois tribunais sejam colocados numa situação de contradição de julgamentos de facto é, de facto, um motivo relevante para justificar a suspensão da instância ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 272.º do CPC.
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Fazendo aplicação dos princípios enunciados ao caso dos autos, do confronto de ambas as acções (ou melhor, das 5 intentadas pelos RR nos julgados de Paz e da presente, intentada pelos AA) verifica-se existir coincidência da factualidade alegada no que respeita aos pedidos formulados naquelas, com os pedidos formulados em A) e B) desta acção, sendo certo que em todas as acções se discute, a título principal, a compropriedade dos prédios pertencentes aos AA e aos RR – compropriedade que os AA apenas aceitam em termos registais; não em termos factuais e de direitos constituídos.
Ou seja, alegam os RR - AA naquelas acções de divisão de coisa comum – que são comproprietários, juntamente com os AA (e outros RR ali mencionados) dos prédios que indicam – os mesmos que são identificados nesta acção – nas respectivas proporções e que, atenta a sua natureza agrícola, as áreas e/ou a respectiva configuração, tais prédios são indivisíveis, pelo que, não pretendendo os demandantes permanecer na indivisão dos prédios de que são comproprietários, pretendem que se declare que os prédios são legalmente indivisíveis, seguindo-se a tramitação legal subsequente que ponha termo à divisão, nomeadamente através da licitação entre demandantes e demandados.
Por sua vez os AA (RR naquelas acções) contestaram as acções, alegando exactamente o mesmo que invocam nesta acção – de que inexiste compropriedade, neste momento, relativamente aos prédios identificados – apenas no registo predial –, uma vez que os prédios já foram divididos por acordo, estando a propriedade de cada uma das partes perfeitamente identificada (formulando ainda pedido reconvencional, a pedir que se declare a propriedade individual de cada uma das partes sobre as fracções individualizadas dos prédios – pedido que não foi, no entanto, admitido, por inadmissibilidade legal).
Ou seja, em todas as acções se discute a natureza do direito das partes relativas aos mesmos prédios – sustentando os RR naquelas acções a existência de compropriedade e a indivisibilidade dos prédios, e defendendo os AA, pelo contrário, que as quotas-partes de cada um estão bem definidas, tendo sido os prédios divididos por acordo, há mais de 20 anos, encontrando-se, neste momento, a propriedade de cada um perfeitamente consolidada, por via da usucapião.
Ora, sendo as acções intentadas nos Julgados de Paz de Santa Marta de Penaguião – actualmente a correr termos na comarca de Vila Real - de divisão de coisa comum, compete ao tribunal decidir ali se existe compropriedade e se os prédios são divisíveis ou não; no caso afirmativo, compete-lhe proceder à sua divisão, ou então, concluindo que não são divisíveis – como defendem os ali AA - proceder à sua adjudicação a algum dos comproprietários ou à sua venda.
Como naquelas acções os RR (ora AA) se defenderam, alegando que os prédios já estão divididos, inexistindo compropriedade, se se demonstrar tal divisão naturalmente que a acção de divisão improcederá.
Ora, nesta acção os AA pretendem exactamente obter o mesmo resultado que o defendido naquela acção - que o tribunal declare divididos os prédios, nos termos apresentados - pedidos ali formulados, aliás, em sede de reconvenção.
Verifica-se, assim, que os pedidos formulados nesta acção em A) e B) estão já a ser alvo de apreciação nos processos instaurados – primeiramente - nos julgados de paz (actualmente na comarca de Vila Real), sendo imperativo que seja suspensa a presente instância até que os mesmos sejam ali decididos. Os restantes pedidos serão apreciados em função da procedência ou improcedência dos demais.
Ou seja, nos termos expostos, a sorte das acções está absolutamente dependente da questão colocada – da existência ou não do direito de compropriedade relativamente a cada um dos prédios detidos pelos AA e RR.
Por isso sustentamos, tal como se decidiu no despacho recorrido, que a decisão que venha a ser proferida naqueles processos – instaurados anteriormente a este - poderá afectar o destino dos presentes autos, designadamente no que tange aos pedidos formulados nas alíneas A) e B), já que que neles se discutem factos que, a provarem-se, poderão influir na decisão a proferir nos presentes autos – nomeadamente em termos de força de caso julgado.
Isto porque, discutindo-se naquelas acções a divisão dos prédios – indivisos ainda na perspectiva dos RR e divididos já na perspetiva dos AA – essa questão irá influenciar a decisão a proferir nestes autos, relativamente aos pedidos formulados em A) e B) – e eventualmente os demais pedidos formulados.
Mas como se disse, a razão de ser da suspensão da instância - por existência de questão prejudicial - é essa precisamente: a de obstar que haja duas decisões contraditórias sobre os mesmos factos, podendo a decisão de uma delas ir contra a decisão da outra provocando contradição de julgados (Ac citado da RP de 7.1.2010).
Como se decidiu também no acórdão desta Relação, de 25-09-2014 (disponível em www.dgsi.pt), “O que está em causa na suspensão de uma acção tem que se justificar como a resposta mais adequada, perante um risco real de economia ou coerência de julgamentos e, para determinar a prejudicialidade, exige-se do juiz que formule um juízo de conveniência, de oportunidade e razoabilidade, que o leve a concluir no sentido de que as vantagens a que conduz a suspensão da instância suplantam os inconvenientes da sua paragem”.
Aliás, foi como meio preventivo de decisões contraditórias entre si, que o legislador consagrou, além da litispendência, o instituto da suspensão da instância, tal como se encontra previsto no art. 272°, nº 1, do Código de Processo Civil, com as consequências inerentes sobre o destino da acção dependente da previamente decidida.
Tal ressalta, aliás, do disposto no art. 276°, nº 2, do CPC, onde se preceitua que se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou razão de ser da causa que estivera suspensa, é esta julgada improcedente.
Conclui-se de todo o exposto que foi bem decidida na primeira instância a suspensão da instância até decisão proferida nos autos instaurados nos Julgados de Paz de Santa Marta de Penaguião, a correr termos, neste momento, na comarca de Vila Real, improcedendo, em consequência, as conclusões de recurso dos apelantes.
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Sumário do Acórdão:
I - Para efeitos do disposto no art. 272º, nº1 do CPC, uma causa está dependente do julgamento de outra já proposta, quando a decisão desta última pode afectar e prejudicar o julgamento da primeira, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser.
II – Tal acontece, designadamente, quando na acção de divisão de coisa comum – causa prejudicial - a decisão ali tomada, de existência de compropriedade e de indivisibilidade dos prédios, pode afectar os pedidos formulados nesta acção – dependente - de divisão factual dos mesmos prédios, adquiridos por usucapião.
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DECISÃO:
Pelo exposto, Julga-se improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) pelos recorrentes.
Guimarães, 27.4.2017.