Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1947/04-1
Relator: ANSELMO LOPES
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
PRESSUPOSTOS DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – A conduta do arguido reflecte uma malvadez inqualificável, traduzida em maus tratos físicos e psíquicos concretos e, como se deixou provado, não foi praticada isoladamente, mas antes de modo implicado e, como um todo, reveladora de enorme crueldade e causadores de um “estado” de aflição e desarmonia contrário ao que a relação de proximidade que os laços existentes entre o arguido e a vítima devem potenciar, pois que o arguido foi reiteradamente desumano para com a sua mulher, mesmo depois de passar algum tempo em prisão por facto idênticos, sendo certo que nem os apelos dos seus pais o sensibilizam, sendo também certo que, para tal conduta, são serôdias e despropositadas as desculpas alcoólicas do arguido, pois se provou que agiu livre e conscientemente e ciente da ilicitude dos seus actos.
II – Por isso, dentro da moldura abstracta da pena - dezasseis meses a cinco anos de prisão, atenta a reincidência -, e ponderando-se a medida da culpa, a pena aplicada de 2 (dois) anos e 6 (seis) de prisão, mostra-se ajustada.
III – No que diz respeito à reclamada suspensão da pena, que como é assente, é uma medida de natureza e finalidade reeducativa, a ser aplicada nos casos em que, do conjunto dos factos e circunstâncias, se ajuíza da suficiência da simples censura do facto e da ameaça da pena, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, haverá que observar:
IV – Agredir alguém – seja em que circunstâncias for – é um acto selvagem e cruel, tornando-se bárbaro, reles e odioso quando a agressão é praticada em alguém que, por mero comportamento instintivo ou programa social, está ligado ao agressor por laços (ditos) familiares.
V – A violência é um acto essencialmente genético, comum a todos os seres vivos, mas, apesar de duras evidências de sinal contrário, também neste aspecto, as sociedades tendem a evoluir positivamente, sendo que, nesse sentido, como noutro local já escrevemos, a busca de uma sociedade perfeita vem já desde Platão e passou por Kant, Hegel, Rousseau e Marx (e também, de certa forma, pelo absurdo, por Kafka), mas, como se vê, ainda não foi atingida.
VI – A sociedade actual está muito longe de poder ser considerada aceitável, notando-se uma enorme disfunção entre a realidade e o sentimento social dominante, não se negando que, neste momento, existe uma profunda crise de valores, com causas e efeitos ainda indeterminados, apesar dos homens continuarem a procurar, por várias formas, novos caminhos, agora cada vez mais globais e globalizantes que os conduzirão, se não à meta desejada, pelo menos, a melhores formas de sociedade.
VII – Como observa Armando Leandro, Educação para a Tolerância ...,Infância e Juventude 96.1, 45, “...a sociedade vai surgindo na sua contingência, no seu risco de desagregação, o que tudo nos conduz a um sentido de responsabilidade diferente – um sentido de responsabilidade mais ético, incidindo sobre o equilíbrio da natureza, a vida, o amanhã do Homem, o destino da cidade “ e acrescentando que “... a par da crise, das contradições, das incertezas, abrem-se continentes de perspectivas, paradigmas inéditos que, na criatividade e na responsabilidade, importa descobrir e desenvolver. Afinal, conclui, a crise pode ser fonte de renovação e estímulo à busca de um novo contrato social”.
VIII – O principal motor da renovação são as novas gerações, a quem há que conceder e incutir esperança, pois segundo Neto de Carvalho, Direito, Biologia e Sociedades, 29, “...de facto, nessa altura (na adolescência), existe uma grande receptividade à novidade, à aceitação de novas situações, à integração em outros sistemas de acção. Daí que a juventude seja fautora de agitação e de instabilidade em todas as épocas, mesmo quando mais tarde volte a ajustar-se e a cristalizar dentro dos sistemas tradicionais...”.
IX – É este o ciclo da vida, e do Universo, se se quiser, cumprindo-se, um dia, a profecia de Osho, segundo a qual “a guerra (só) desaparecerá quando existirem muitas pessoas que são lagos de paz, silêncio e compreensão”.
X - As sensibilidades actuais, que timidamente se vão mostrando (mesmo em diplomas de cariz ostensivamente político), mais não são do que a consequência da sedimentação dos actos históricos do Homem e, afinal, o indicador positivo de uma constante revolução de mentalidades, sendo que aos Tribunais cabe espelhar a sensibilidade social e defender os bens jurídicos, morigerando as mentalidades, nem que seja, como é o caso, e no respeito pela lei, com recurso à privação da liberdade de alguém.
XI – E por isso, e por todo o acima exposto, a conduta do recorrente deve ser punida nos termos em que o foi, procurando-se mais uma vez fazer-lhe sentir os efeitos da privação da liberdade como única forma de busca da sua responsabilização e futura reinserção sodal.
XII – Com efeito, todo o conjunto de factos provados, com reiteração das agressões ao longo de vários anos; a gravidade da violência física e psíquica de que o arguido tem sido capaz; a certeza de que, até aqui, foi insensível a quaisquer apelos e, também, os seus provados hábitos alcoólicos, não permitem que se faça uma prognose favorável e antes levam a concluir-se que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, mesmo que fosse acompanhada da imposição de deveres ou regras de conduta ou com sujeição ao regime de prova.
XIII – O alcoolismo do arguido nada justifica e deve notar-se que, ao contrário do que afirma, não é apenas quando embriagado que se mostra violento e, de todo o modo, já dispôs de tempo e condições para arrepiar caminho e, em momentos de sobriedade, ponderar nos malefícios do seu vício, sobretudo para a vítima, pois que, após ter cumprido um ano de prisão em 2000 e, logo que se apanhou em liberdade, voltou a delínquir, fazendo-o sucessivamente e com particular violência – com cintos e cabos de vassoura -, levando a vítima a submeter-se-lhe e a ter que ser socorrida pelos próprios sogros e a que tivessem que ser estes (sabe-se lá com que mágoas) a fazer a queixa que originou estes autos.
XIV – Nestes termos, repete-se, não se pode acreditar em que houvesse vantagens na aplicação da suspensão da pena, fosse em que condições fosse e, por isso, se confirma a decisão recorrida.
Decisão Texto Integral: Após audiência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

TRIBUNAL RECORRIDO
Tribunal Judicial de Barcelos – 2º Juízo Criminal - Pº nº 790/00.0GBBCL

ARGUIDO/RECORRENTE
"A"

RECORRIDO
O Ministério Público.

OBJECTO DO RECURSO
No processo supra referido, ao recorrente foi imputada a prática de factos susceptíveis de o constituir como autor material e como reincidente, de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo artº 152º, nº 2, por referência ao nº 1, al. a), 75º, nº 1 e 76º, todos do Código Penal e veio a ser condenado na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Desta decisão vem interposto o presente recurso, entendendo o recorrente que a pena é excessiva, sendo certo que o seu comportamento radica na ingestão de bebidas alcoólicas e que a prisão não é o meio idóneo para a sua cura. Nestes termos, diz que lhe deve ser dada uma oportunidade de se reinserir socialmente, responsabilizando-o através do regime de prova e com a imposição de obrigações.

MATÉRIA DE FACTO
São os seguintes, ipsis verbis, os factos tidos como provados pelo Tribunal recorrido:
1 - O arguido "A" e a Maria A... casaram em 26-11-1993;
2 - Todavia, desde então, e tendo vivido em ..., o arguido de forma reiterada atingia a Maria A... na sua honra e na sua integridade física;
3 - E foi assim até ao momento em que o arguido "A" foi condenado, em 10-12-98, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge, no processo comum singular nº 502/97, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, na pena de dois anos de prisão, tendo sido perdoado um ano de prisão;
4 - Iniciou o arguido o cumprimento da referida pena em 15-2-1999, tendo cumprido um ano de prisão efectiva;
5 - Todavia, tal condenação não lhe serviu de advertência suficiente contra o crime pois, mal saiu da prisão, em 14-2-2000, e tendo voltado a viver com a sua esposa Maria A..., o arguido retomou a sua anterior conduta;
6 - Na verdade, desde 20-2-2000, altura em que o arguido saiu do Estabelecimento Prisional de Custóias, o casal passou a residir nuns anexos da casa dos pais do arguido, casa essa sita no Lugar do ..., nesta comarca de Barcelos;
7 - Desde então o arguido, de forma constante e repetida, e sempre no interior da sua residência, todos os fins-de-semana desferia pontapés, murros e bofetadas por todo o corpo da Maria A..., principalmente na cabeça, nas costas e nas pernas, amarrava-a pelos cabelos e pelos braços e atirava-a ao chão e, quando esta ficava assim prostrada no solo, desferia-lhe pontapés. Mais lhe desferia pancadas com um cinto de couro;
8 - E sempre que o arguido lhe pedia dinheiro, e a Maria A..., por o não ter, lho não dava, desferia-lhe murros e pontapés por todo o corpo, vibrando-lhe pancadas com um cinto;
9 - Desde então, e também de forma sistemática, o arguido dirigia-se à Maria A... chamando-a de «puta» e de «vaca» e ao proferir tais expressões atingiu o arguido a Maria A... na sua honra e consideração;
10 - O arguido afirmava também à Maria A... de que se a mesma se queixasse dele que a matava;
11 - O arguido, ao afirmar a Maria A... que a matava caso se queixasse dele, assumiu um comportamento e proferiu expressões idóneas a provocar inquietação e a prejudicar a liberdade de determinação de qualquer pessoa, o mesmo sucedendo a Maria A.... Assim, o temor que a invadiu coarctou a sua liberdade de determinação, de tal modo que a mesma nunca se queixou do arguido;
12 - Num fim-de-semana do ano de 2000 o arguido desferiu pancadas com o cabo da vassoura nos braços e nas costas de Maria A..., tendo sido interrompido pela sua mãe, Maria da C... que o repreendeu, altura em que a Maria A... aproveitou para fugir;
13 - Ainda no fim-de-semana do Natal do ano 2000 o arguido desferiu murros na cabeça da Maria A... e agarrando-a pelos cabelos arrastou-a pela casa;
14 - No final do ano de 2000, o arguido arrastou a Maria A... pelo chão, puxando-a pelos braços;
15 - Num fim-de-semana do início do ano de 2001, o arguido amarrou a Maria A... pelos braços e desferiu-lhe duas bofetadas na cara;
16 - Como consequência directa e necessária da conduta do arguido supra descrita (desferindo murros, pontapés e bofetadas, vibrando pancadas com um cinto e com o cabo de uma vassoura, amarrando-a e atirando ao chão, puxando-lhe os cabelos e arrastando-a pelo chão), advieram para a Maria A... hematomas dispersos por todo o corpo e alteração do seu normal estado de sensibilidade (dor);
17 - O arguido "A", ao actuar do modo supra descrito, proferindo as referidas expressões, indicando a prática futura por si contra a Maria A... de um mal, mal esse consubstanciado na sua morte, actuou em livre manifestação de vontade no propósito concretizado de causar à Maria A... receio pela sua vida, deixando-a num estado de atemorização que lhe prejudicou a sua liberdade de determinação;
18 - O arguido, ao actuar como descrito, designadamente dando pontapés, murros e bofetadas na Maria A..., vibrando-lhe pancadas com um cinto e com o cabo de uma vassoura, arrastando-a pelo chão, agiu em livre manifestação de vontade, no propósito concretizado de molestar a integridade física desta;
19 - Mais, ao proferir as supra referidas expressões, actuou o arguido em livre manifestação de vontade, no propósito concretizado de atingir a Maria A... na sua honra e consideração;
20 - E toda esta actuação foi feita de forma reiterada e continuada, prolongando-se no tempo;
21 - Bem sabendo que a sua conduta era proibida, não se absteve o arguido de a prosseguir;
22 - O arguido "A" foi já condenado, em 23-1-87, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de desobediência, no processo correccional nº 1311/86 e 1258/86, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos, na pena de esc: 18.000$00 de multa, ou, em alternativa, 60 dias de prisão;
23 - Foi condenado, em 17-6-87, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de desobediência, no processo correccional nº 3078/87, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos, na pena de 4 meses de prisão, substituída por multa a esc: 200$00 por dia ou 120 dias de multa à taxa diária de esc: 24.000$00 ou em alternativa 80 dias de prisão;
24 - Foi condenado, em 15-4-1988, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de desobediência qualificada, no processo correccional nº 40/88, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos, na pena de 60 dias de prisão efectiva e 20 dias de multa à taxa diária de esc: 200$00 ou em alternativa 13 dias de prisão;
25 - Foi condenado, em 21-10-1991, por sentença transitada em julgado, pela prática, em 13-1-1991, de um crime de ofensas corporais simples, no processo comum nº 415/91, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos, na pena de esc: 18.000$00 de multa ou, em alternativa, 60 dias de prisão, tendo sido declarada perdoada metade da pena de multa e a totalidade da pena de prisão alternativa;
26 - Foi condenado, em 8-1-1992, por sentença transitada em julgado, pela prática, em 27-6-1991, de um crime de ofensas corporais com dolo de perigo, no processo comum nº 575/91, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Barcelos, na pena de um ano de prisão efectiva;
27 - Foi condenado, em 15-7-93, por sentença transitada em julgado, pela prática, em 8-7-1993, de um crime de condução em estado de embriagues, no processo sumário nº 1743/93, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Braga, na pena de 180 dias de prisão substituídos por multa à taxa diária de esc: 500$00 e em alternativa 120 dias de prisão;
28 - Foi condenado, em 16-3-1995, por sentença transitada em julgado, pela prática, em 12-4-1994, de um crime de desobediência qualificada e contra-ordenação, no processo comum singular nº 1489/94, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, na pena de multa de esc: 36.000$00 ou em alternativa na pena de 120 dias de prisão e na coima de esc: 30.000$00;
29 - Foi condenado, em 10-12-1998, por sentença transitada em julgado, pela prática, em 11-8-1996, de um crime de maus tratos a cônjuge, no processo comum singular nº 502/97, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, na pena de dois anos de prisão, tendo sido perdoado um ano de prisão;
30 - Pese embora o arguido "A" tenha cumprido um ano de prisão efectiva pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge, cujo cumprimento iniciou em 15-2-1999 e terminou em 14-2-2000, o certo é tal condenação não lhe ter servido de advertência suficiente contra o crime pois, mal saiu da prisão, e tendo voltado a viver com a sua esposa Maria A..., e conforme descrito em 6) a 22), o arguido retomou a sua anterior conduta;
31 - O arguido, há vários anos, embriaga-se frequentemente;
32 - O arguido é mineiro, trabalha a jornal e aufere a esse título por semana cerca de 150 Euros;
33 - O arguido e Maria A... têm um filho menor que não vive com eles;
34 - O arguido é de um meio sócio-económico e cultural nível modesto;
35 - O arguido vive com a esposa Maria A... nuns anexos pertença dos pais daquele desde 20-2-2000.
*
Não há factos não provados.

MOTIVAÇÃO/CONCLUSÕES
As conclusões do recurso são as já cima sumariadas.

RESPOSTA
No Tribunal recorrido, a Srª. Procuradora da República-Adjunta respondeu ao recurso do arguido, concluindo que a leitura da matéria de facto provada é suficiente para compreender as razões que estiveram na base da determinação da medida da pena e bem assim que inexistem factos provados que possam justificar, ainda que tenuamente, uma suspensão da execução da pena, pois a personalidade condições de vida do arguido e as circunstâncias do crime desaconselham o recurso a tal instituto.

PARECER
Nesta instância, o Ilustre Procurador Geral-Adjunto corrobora a inexistência de pressupostos para a suspensão da execução da pena.

PODERES DE COGNIÇÃO
Sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios previstos no artº 410º, o objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação – artº 412º do C.P.Penal, do qual serão as citações sem referência expressa.

FUNDAMENTAÇÃO
Vejamos em primeiro lugar a questão da medida da pena.
A propósito, diz a Mmª Juiz:
Essa determinação será efectuada tendo em atenção não só a norma legal típica da conduta do arguido, mas também as circunstâncias previstas nos nºs 1 e 2 do artº 71º do C.P., nomeadamente a culpa do agente, as necessidades de prevenção de futuros crimes e todas as circunstâncias exteriores ao tipo legal de crime em causa, que deponham a favor ou contra o agente.
A saber segundo o artº 71º do C.P., - "a determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo em conta as exigências de prevenção de futuros crimes".
No preceito em causa, funciona invariavelmente a culpa do agente como limite máximo da pena e as exigências de prevenção geral e especial como critérios da sua fixação concreta.
Importa agora, considerar as circunstâncias que deponham a favor do arguido ou contra ele, não ignorando em tal procedimento, quer a distinção da relevância de cada uma delas para efeitos de culpa ou de prevenção quer o peso de cada uma delas em função do seu concreto significado à luz daqueles princípios regulativos.
Assim, nos termos do artº 71º, do C.P., ponderam e, em desfavor do arguido, desde logo, o elevado grau da ilicitude dos factos, atenta a forte necessidade de prevenção geral que no crime em causa se faz sentir na actualidade e no meio em questão, dada o elevado número de casos que se verificam e ainda a ligeireza com que se pratica o mesmo, sendo porém poucos os revelados, que ocorrem nos meios como o ora em causa; a violação dos deveres impostos ao arguido (de respeito pela pessoa e da sua dignidade humana, no caso dignidade pessoal do cônjuge), sendo grave tanto o desvalor da acção, actuou com dolo directo - na sua modalidade mais intensa - como o desvalor do resultado, as lesões causadas à ofendida ao nível físico, psíquico e mental, sendo revelador destes últimos, o estado atemorizado e perturbado da ofendida na audiência, revelando-se graves as consequências. Salienta-se ainda o facto de o arguido, ter tido tal conduta sem qualquer motivo justificativo, como que apenas pretendendo vingar-se da ofendida, atribuindo a sua actuação ao seu estado de nervosismo face às situações que o desagrada, o que é já por si reprovável e, tanto mais nos tempos que correm dada as repercussão e proliferação da mesma. Acresce, que o arguido é de um meio sócio-económico e cultural modesto, é uma pessoa tida como violenta no seio familiar, estando a prática do crime também relacionada com o excessivo consumo de álcool o que denota ainda acentuadas exigências de prevenção especial, não tendo o mesmo demonstrado arrependimento pela prática dos factos, sendo, por isso, a culpa de grau elevado. No que concerne à conduta do arguido anterior ao facto, o mesmo tem antecedentes criminais, aliás o certificado do registo criminal do arguido revela que o mesmo há já alguns anos tem enveredado pela prática de crimes da mesma natureza (contra as pessoas), já tendo sofrido duas condenações em pena de prisão, que cumpriu, concluindo-se que o arguido manifesta uma acentuada falta de preparação da sua personalidade de forma a adequar o seu comportamento às exigências do direito.
Atenta a conjugação destas circunstâncias gerais expostas, este tribunal ponderando as mesmas à luz dos referidos critérios, entende ser necessário e proporcional aplicar ao arguido, para o crime de maus tratos ao cônjuge, no quadro da referida moldura penal abstracta - pena de prisão de 16 meses até 5 anos -, a pena concreta de 2 (dois) anos e 6 (seis) de prisão.
A conduta do arguido reflecte uma malvadez inqualificável, traduzida em maus tratos físicos e psíquicos concretos e, como se deixou provado, não foi praticada isoladamente, mas antes de modo implicado e, como um todo, reveladora de enorme crueldade e causadores de um “estado” de aflição e desarmonia contrário ao que a relação de proximidade que os laços existentes entre o arguido e a vítima devem potenciar.
O arguido foi reiteradamente desumano para com a sua mulher, mesmo depois de passar algum tempo em prisão por facto idênticos e nem os apelos dos seus pais o sensibilizam.
E, para tal conduta, são serôdias e despropositadas as desculpas alcoólicas do arguido, pois se provou que agiu livre e conscientemente e ciente da ilicitude dos seus actos.
Por isso, dentro da moldura abstracta da pena - dezasseis meses a cinco anos de prisão, atenta a reincidência -, e ponderando-se a medida da culpa, a pena aplicada mostra-se ajustada.
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Vejamos agora a questão da reclamada suspensão da pena.
Como é assente, a suspensão da execução da pena de prisão é uma medida de natureza e finalidade reeducativa, a ser aplicada nos casos em que, do conjunto dos factos e circunstâncias, se ajuíza da suficiência da simples censura do facto e da ameaça da pena, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
No caso presente, a Mmª Juiz optou nitidamente pela prisão efectiva do arguido, dizendo que de todo o circunstancialismo que se apurou, nomeadamente do que resultou relativamente à personalidade do arguido, conclui-se igualmente não estarem verificados os requisitos que o artº 50º do C.P. exige para que o Tribunal suspenda a execução da pena de prisão, pelo que, esta não poderá ter lugar.
O problema social da violência familiar deveria justificar, sempre, a intervenção severa dos Tribunais - Tribunal Criminal; Tribunal de Família e Tribunal de Menores -, mas a verdade é que a implicação dos regimes jurídicos e de competências perde-se em vários meandros substantivos e processuais, ficando apenas a imagem condensada de que estas situações não têm solução.
Portugal é, lamentavelmente, um país onde a violência familiar (temos esta expressão como mais pertinente do que a de violência doméstica) atinge foros autenticamente escandalosos e onde, infelizmente, em todos os níveis, não existe a devida sensibilidade para tal problema.
No estrito âmbito político, a questão da violência doméstica tem merecido alguma atenção, sendo disso exemplo a Resolução do Conselho de Ministros nº 55/99, de 15 de Junho (D.R. nº 137/99, I -B Série).
No respectivo Preâmbulo, começa-se logo por se afirmar que “a violência doméstica é um flagelo que põe em causa o próprio cerne da vida em sociedade e a dignidade da pessoa humana...”, dando-se conta de que as medidas tomadas (?) “visam, em primeiro lugar, proteger as vítimas, na sua maioria mulheres, permitindo-lhes obter os meios materiais, psicológicos e físicos para se libertarem da situação de submissão em que são colocadas pelo seu agressor” e de que “todos os tipos de violência, e a violência familiar em especial, assentam em relações de dominação e de força, que colocam a vítima numa situação que e fragiliza, limitando-a na sua capacidade”.
Mais se insere que “a violência doméstica põe em causa a ideia essencial do edifício dos direitos da pessoa humana, segundo a qual todos os seres humanos têm igual valor e dignidade” e se acrescenta que “a questão da violência doméstica é de âmbito social e psicológico, tendo as suas raízes no mais profundo dos indivíduos, mas também nas ideias, valores e mitos que estruturam a sociedade”.
Por pertinente, transcreve-se ainda do citado Preâmbulo:
É-se vítima de violência por parte de outrem quando as manifestações agressivas deste, pela sua intensidade, criam no outro uma situação de constrangimento e de submissão de que não consegue sozinho(a) libertar-se, ficando, portanto, numa situação de sofrimento e risco psíquico e ou físico, de que o outro abusa de forma arbitrária e injusta.
Têm-se registado alguns progressos, nomeadamente no âmbito legal, nos últimos tempos, no que se refere à abordagem deste autêntico flagelo social. Mas a lei para nada serve se não for aplicada. O papel do Estado é fundamental: nem a política de não ingerência nos assuntos privados nem os valores e costumes tradicionais podem ser invocados para impedir a luta contra a violência doméstica.
De entre as várias definições de violência contra as mulheres destacamos a do grupo de peritos do Conselho da Europa, segundo a qual qualquer acto, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, directa ou indirectamente, por meio de enganos, ameaças, coacção ou qualquer outro meio, a qualquer mulher e tendo por objectivo e como efeito intimidá-la, puni-la ou humilhá-la ou mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental e moral ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio ou a sua personalidade, ou diminuir a suas capacidades físicas ou intelectuais”.
Em conformidade, conclui-se que “é altura de agir concretamente e com lucidez”, sendo “fundamental procurar uma aproximação prática e inovadora ao tema, sublinhando o papel dos agressores em todos os aspectos da questão e abordando-o como problema social e não como problema das vítimas. Proteger e ajudar as vítimas não é suficiente para pôr cobro à violência e aos maus tratos. Para combater a violência é necessário ocuparmo-nos da pessoa violenta”.
Considera-se, ainda, que “a questão deverá ter uma abordagem integral e integrada”, prevendo-se “estudar a possibilidade de concessão de poderes legais suplementares, quer às forças de segurança, quer às autoridades judiciais, que as legitimem a determinar a expulsão imediata e provisória do agressor da casa de morada de família, quando haja indícios de violência que, razoavelmente, façam prever que os actos de agressão se venham a repetir por forma a criar um perigo para a vida ou para a integridade física da vítima; criar, no âmbito da lei penal, uma pena acessória que consista na proibição de o agressor se aproximar da vítima e desenvolver uma rede de refúgios para vítimas de violência ...
Como se vê, em palavras e intenções (como noutros domínios) ... o problema está resolvido! Pena é que, como se disse, a realidade seja tão amarga e as soluções concretas não apareçam à medida dos alegados propósitos.
Agredir alguém - seja em que circunstâncias for - é um acto selvagem e cruel, tornando-se bárbaro, reles e odioso quando a agressão é praticada em alguém que, por mero comportamento instintivo ou programa social, está ligado ao agressor por laços (ditos) familiares.
A violência é um acto essencialmente genético, comum a todos os seres vivos, mas, apesar de duras evidências de sinal contrário, também neste aspecto, as sociedades tendem a evoluir positivamente.
Como noutro local já escrevemos, a busca de uma sociedade perfeita vem já desde Platão e passou por Kant, Hegel, Rousseau e Marx (e também, de certa forma, pelo absurdo, por Kafka), mas, como se vê, ainda não foi atingida.
A sociedade actual está muito longe de poder ser considerada aceitável, notando-se uma enorme disfunção entre a realidade e o sentimento social dominante.
Ainda assim, por estranhas razões (há quem aponte como causa principal o desenvolvimento biológico do homem) existe uma sequência evolutiva que nos deve permitir a conclusão de que se seguirão novas sociedades, cada vez mais valorizadoras do Homem. Os tumultos, as crises e os erros fizeram parte de todas as épocas, mas nem por isso a sociedade deixou de evoluir para melhor.
Não se nega que, neste momento, existe uma profunda crise de valores, com causas e efeitos ainda indeterminados, mas os homens continuam a procurar, por várias formas, novos caminhos, agora cada vez mais globais e globalizantes que os conduzirão, se não à meta desejada, pelo menos, a melhores formas de sociedade.
Como observa Armando Leandro, Educação para a Tolerância ...,Infância e Juventude 96.1, 45, “... a sociedade vai surgindo na sua contingência, no seu risco de desagregação, o que tudo nos conduz a um sentido de responsabilidade diferente - um sentido de responsabilidade mais ético, incidindo sobre o equilíbrio da natureza, a vida, o amanhã do Homem, o destino da cidade” e acrescentando que ... a par da crise, das contradições, das incertezas, abrem-se continentes de perspectivas, paradigmas inéditos que, na criatividade e na responsabilidade, importa descobrir e desenvolver. Afinal, conclui, a crise pode ser fonte de renovação e estímulo à busca de um novo contrato social”.
O principal motor da renovação são as novas gerações, a quem há que conceder e incutir esperança. Segundo Neto de Carvalho, Direito, Biologia e Sociedades, 29, “de facto, nessa altura (na adolescência), existe uma grande receptividade à novidade, à aceitação de novas situações, à integração em outros sistemas de acção. Daí que a juventude seja fautora de agitação e de instabilidade em todas as épocas, mesmo quando mais tarde volte a ajustar-se e a cristalizar dentro dos sistemas tradicionais ...”.
É este o ciclo da vida. Do Universo, se se quiser, cumprindo-se, um dia, a profecia de Osho, segundo a qual “a guerra (só) desaparecerá quando existirem muitas pessoas que são lagos de paz, silêncio e compreensão”.
As sensibilidades actuais, que timidamente se vão mostrando (mesmo em diplomas de cariz ostensivamente político), mais não são do que a consequência da sedimentação dos actos históricos do Homem - Para Bossuet, que tem uma concepção teológica da História e para quem Deus “forjou o encadeamento do Universo e quis que o curso das coisas humanas tivesse seu seguimento e suas proporções, não ocorreu nenhuma grande mudança que não tivesse as suas causas nos séculos precedentes” – Discursos, 20 e 21. e, afinal, o indicador positivo de uma constante revolução de mentalidades.
Aos Tribunais cabe espelhar a sensibilidade social e defender os bens jurídicos, morigerando as mentalidades, nem que seja, como é o caso, e no respeito pela lei, com recurso à privação da liberdade de alguém.
E por isso, e por todo o acima exposto, a conduta do recorrente deve ser punida nos termos em que o foi, procurando-se mais uma vez fazer-lhe sentir os efeitos da privação da liberdade como única forma de busca da sua responsabilização e futura reinserção social.
Com efeito, todo o conjunto de factos provados, com reiteração das agressões ao longo de vários anos; a gravidade da violência física e psíquica de que o arguido tem sido capaz; a certeza de que, até aqui, foi insensível a quaisquer apelos e, também, os seus provados hábitos alcoólicos, não permitem que se faça uma prognose favorável e antes levam a concluir-se que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, mesmo que fosse acompanhada da imposição de deveres ou regras de conduta.
O alcoolismo do arguido nada justifica e deve notar-se que, ao contrário do que ele afirma, não é apenas quando embriagado que ele é violento e, de todo o modo, ele já dispôs de tempo e condições para arrepiar caminho e, em momentos de sobriedade, ponderar nos malefícios do seu vício. Sobretudo para a vítima!
Do mesmo modo, a conjugação de todos os factos e circunstâncias faz sentir que nem o regime de prova seria adequado à reinserção do arguido, já que ele não indicia a existência de condições capazes de fazerem admitir que por essa via se viesse a responsabilizar. A sua conduta pregressa é tal que não permite qualquer esperança.
Cumpriu um ano de prisão em 2000 e, logo que se apanhou em liberdade, voltou a delinquir, fazendo-o sucessivamente e com particular violência - com cintos e cabos de vassoura -, levando a vítima a submeter-se-lhe e a ter que ser socorrida pelos próprios sogros e a que tivessem que ser estes (sabe-se lá com que mágoas) a fazer a queixa que originou estes autos.
Nestes termos, repete-se, não se pode acreditar em que houvesse vantagens na aplicação da suspensão da pena, fosse em que condições fosse e, por isso, se confirma a decisão recorrida.

ACÓRDÃO
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.
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Guimarães, de 2004