Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
26/21.0T8CMN-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: INCIDENTE DE INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
AVALISTAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - O incidente de intervenção acessória (provocada) tem por finalidade permitir que possa intervir no processo como auxiliar, a chamamento do réu, um terceiro - com base na invocação contra ele de um possível direito de regresso, que permitirá ao réu-chamante ressarcir-se do prejuízo que lhe cause a perda da demanda -, que embora careça de legitimidade para intervir como parte principal, tenha um interesse reflexo ou indireto na decisão da causa.
2 - A figura da intervenção acessória implica a coexistência de duas relações jurídicas – a relação entre o autor e o réu e a relação entre o réu e o terceiro chamado – que, embora distintas, apresentam determinada conexão, traduzida na circunstância de a perda da demanda inicial pelo réu lhe conferir um direito de crédito no âmbito da relação que tem com o terceiro.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Na ação declarativa instaurada por “Condomínio do Edifício ...” contra “Caixa ..., Crl”, veio a ré interpor recurso do despacho proferido a 18/01/2022, na parte em que indeferiu o chamamento por si requerido de V. A. e AN., tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1.ª - Com todo o devido respeito, que é muito, a recorrente não se conforma com o indeferimento da intervenção provocada por si requerida contra V. A. e AN., na qualidade de avalistas do contrato de empréstimo concedido à “X -..”, julgando que o tribunal a quo não terá compreendido verdadeiramente o motivo que justificou (e justifica) tal pedido, por partir de uma visão redutora em face da factualidade verificada e alegada
2.ª - No entender da recorrente, a sua relação com V. A. e AN. não só se manifesta diretamente naquela que é a causa de pedir, como é implicada no pedido contra si formulado na petição inicial porque, em caso de procedência da ação, terá direito de regresso contra os referidos avalistas
3.ª - Por isso discorda do indeferimento dessa intervenção ao abrigo da disciplina do art. 316.º, n.º 2 do CPC porque, no seu entender, a intervenção mostra-se justificada, tal como invocado na sua contestação, no preceituado no art. 321.º, n.º 1 do CPC
4.ª - Tal sucederá porque, tendo sido demandada como construtora/vendedora, não se poderá ignorar que tal dupla qualidade lhe advém do facto de as frações que integram “Condomínio do Edifício ...” lhe terem sido entregues, por meio de escritura pública de dação em cumprimento, por V. A. e AN., nessa qualidade de avalistas, para satisfação do crédito, no montante de € 2.456.155,16, de era titular perante a “X -..”, construtora do prédio
5.ª - Uma tal dação foi assim celebrada e aceite pela recorrente no intuito de, por essa via, ser liquidado o empréstimo que havia concedido à construtora e ao qual os donos da obra deram o seu aval; sendo por isso evidente que a recorrente apenas deu por liquidada essa obrigação porque desconhecia em absoluto a existência de quaisquer vícios ou defeitos que afetassem as frações e/ou o prédio
6.ª - Acontece que em caso de procedência da ação, a recorrente não pode considerar que o valor das frações entregues fosse suficiente para fazer extinguir a dívida, pois que as despesas que venha a suportar acrescem ao montante do crédito
7.ª - Nessa medida, caso venha a ser condenada nos termos peticionados pelo recorrido, é por demais evidente que a recorrente poderá imputar os custos que vier a suportar tanto à “X -..” como aos avalistas LA. e AN., e, pois, terá sobre estes direito de regresso para ser indemnizada pelo eventual prejuízo que lhe possa causar a perda da presente demanda - vd. n.º 1 do art.º 321.º CPC
Em conformidade com as razões expostas deve conceder-se provimento à presente apelação e, em consequência
- revogar-se o despacho na parte impugnada, admitindo-se a intervenção nos autos dos avalistas V. A. e AN.
Assim decidindo este Venerando Tribunal fará JUSTIÇA.

A autora contra-alegou, pugnando pela confirmação do despacho recorrido.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver prende-se com a admissibilidade do chamamento requerido pela ré/apelante.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“Compulsados os autos constata-se que, por manifesto lapso, não se pronunciou o Tribunal sobre o chamamento dos avalistas da sociedade “X - Sociedade Construções Lda.”, V. A. e mulher AN..
Na verdade, na sua contestação, a ré Caixa ..., CRL, para além de pedir o chamamento da sociedade “X - Sociedade Construções Lda.” (na qualidade de construtora) e da sociedade “Y, Sociedade Unipessoal, Lda.”, pediu também o chamamento dos avalistas V. A. e mulher AN., por terem sido estes avalistas do contrato de crédito para construção celebrado entre a ré e a sociedade “X - Sociedade Construções Lda.”.
Ora, sem prejuízo de melhor entendimento, o contrato de crédito celebrado entre a ré e a sociedade “X - Sociedade Construções Lda.” não integra a causa de pedir do presente processo e não justifica, em si mesmo, a intervenção de terceiros requerida.
Repare-se que a sociedade “X - Sociedade Construções Lda.” foi chamada aos autos na qualidade de construtora do prédio, qualidade essa que não se estende aos avalistas que fizeram parte do contrato de crédito celebrado com a ré.
Através desse contrato de crédito a ré terá concedido um empréstimo à sociedade “X - Sociedade Construções Lda.” para a construção do prédio objeto dos autos, cujas obrigações os referidos V. A. e mulher AN. terão avalizado. Ora, para estes últimos decorrem apenas obrigações decorrentes do contrato de crédito e já não decorrentes da sua construção e dos eventuais defeitos que dela resultem. Os avalistas não são construtores, não estando, quanto a eles, verificadas quaisquer das circunstâncias previstas pelo artigo 316.º n.º 2 do CPC.
Pelo exposto indefere-se a intervenção requerida dos referidos avalistas.
Notifique”.

Para além do despacho recorrido, convém considerar o seguinte:
A – A presente ação foi instaurada em 12/01/2021 pelo autor Condomínio do Edifício ..., alegando que a ré é um Banco que adquiriu a título definitivo em 12.07.2013, e para (re)vender a título profissional, o prédio de que o autor é o condomínio, cuja aquisição ao empreiteiro originário, de seu nome V. A., ocorreu no seguimento da celebração de um contrato de dação em cumprimento entre a Ré e o mencionado V. A.. Tal contrato terá sido realizado na sequência da impossibilidade económica por parte de V. A. para ultimar a construção dos prédios e da sua impossibilidade para proceder à liquidação dos mútuos peticionados para financiamento da construção. No ultimar do processo construtivo, a ré substituiu-se ao construtor, terminando ela a execução da obra e promovendo a venda das frações integrantes do prédio. Uma vez que este apresenta diversas desconformidades/vícios/defeitos que impossibilitam a utilização para o fim a que se destina, pede que a ré seja condenada a eliminar as mesmas, expurgando todas as deformidades/vícios/defeitos que se apresentem no mesmo e, subsidiariamente, no caso de não ser possível proceder à eliminação das deformidades/vícios/defeitos da empreitada, pede a condenação da Ré no pagamento do montante necessário para a realização das obras adequadas à reparação e eliminação das deformidades/vícios/defeitos e que se vierem a apurar em sede de prova pericial, a liquidar em sede de liquidação de sentença.
B – A ré contestou, e, para o que aqui nos interessa, alegou que, enquanto instituição de crédito e na sua normal atividade bancária, a solicitação da sociedade “X - Sociedade Construções Lda.”, concedeu-lhe um empréstimo destinado a financiar a construção do prédio aqui em causa. Nesse empréstimo outorgaram também V. A. e mulher AN., na qualidade de avalistas da aludida sociedade mutuária. Sendo estes, além de avalistas dessa sociedade, os donos da obra executada pela mesma e para a qual foi concedido o referido empréstimo. Tal empréstimo encontrava-se em incumprimento por parte da sociedade mutuária, pelo que, concluída a aludida obra, os referidos donos da mesma, na qualidade de avalistas da construtora “X- ..”, para pagamento da quantia em dívida à ré, no valor de € 2 456 155,16, transmitiram-lhe as 25 frações autónomas que integram o prédio aqui em causa, por meio de escritura pública de dação em cumprimento, outorgada em 16.08.2013. Uma tal dação foi assim celebrada e aceite pela ré no intuito de, por essa via, ser liquidado o empréstimo que havia concedido à construtora e ao qual os donos da obra deram o seu aval. Tratou-se, pois, em rigor, de uma operação de recuperação do crédito objeto desse empréstimo que há muito se encontrava em incumprimento e em dívida à ré por parte da mutuária sociedade. Aquando dessa dação em cumprimento a ré desconhecia em absoluto que o prédio em questão padecesse de quaisquer vícios ou defeitos, designadamente os elencados pelo autor, que, de resto, a essa data, não eram visíveis. Se assim não fosse, não teria a ré aceite receber em dação em cumprimento tal prédio e, dessa forma, liquidado o empréstimo concedido à construtora “X-..” e em dívida, no valor de € 2 456 155,16. Pois que, se a ré constatasse a existência de defeitos não poderia consentir em considerar liquidado o empréstimo através da referida dação, face aos custos que poderiam advir da respetiva reparação dos mesmos. Considerando que a ré, com a dação realizada liquidou o montante do empréstimo em dívida pela mutuária “X -..” e pelos seus referidos 2 avalistas, impõe-se chamar também estes dois últimos à presente ação, pois que, se a ré vier a ser responsabilizada pela reparação/eliminação de quaisquer defeitos, terá direito de regresso sobre os referidos 2 avalistas, no montante correspondente que vier a ter que pagar ao autor. Isto, uma vez que, nessa hipótese, a dação efetuada à ré por V. A. e mulher AN., não permite pagar a dívida objeto da mesma. Assim e considerando que estes carecem de legitimidade para intervir na presente ação como parte principal, assiste à ré o direito a chamá-los a intervir como auxiliares na defesa. A ré tem, pois, ação de regresso contra os mesmos, para ser indemnizada do eventual prejuízo que lhe possa causar a perda da presente demanda - cfr. n.º 1 art.º 321.º CPC. Justifica-se por isso a intervenção a título acessório no lado passivo de V. A. e mulher AN., ambos residentes no Lugar ..., freguesia de ..., ... Monção.
C – A ré, para além do chamamento que foi indeferido através do despacho recorrido, requereu, também, a intervenção principal provocada da construtora do prédio “X – Sociedade de Construções, Lda.” e da sociedade “Y – Sociedade Unipessoal, Lda.”, que já realizou trabalhos de reparação, que terão sido mal executados, de acordo com a alegação do autor, intervenções essas que foram deferidas por despacho datado de 08/10/2021.

No despacho recorrido considerou-se que o contrato de crédito celebrado entre a ré e a sociedade “X - Sociedade Construções Lda.” não integra a causa de pedir do presente processo e não justifica, em si mesmo, a intervenção de terceiros requerida, sendo que a qualidade de construtora do prédio (com base na qual se deferiu o chamamento da X) não se estende aos avalistas que fizeram parte do contrato de crédito celebrado com a ré e através do qual esta concedeu um empréstimo àquela para construção do prédio objeto dos autos. Aí se conclui que, para os avalistas, decorrem apenas obrigações decorrentes do contrato de crédito e já não decorrentes da construção do prédio e dos eventuais defeitos que dela resultem. “Os avalistas não são construtores, não estando, quanto a eles, verificadas quaisquer das circunstâncias previstas pelo artigo 316.º n.º 2 do CPC”.

Ora, salvo o devido respeito, a ré fundamentou o pedido de intervenção de V. A. e AN. no regime da intervenção acessória provocada – artigo 321.º, n.º 1 do CPC - e não no regime da intervenção principal provocada – artigo 316.º, n.º 3 do CPC – como parece decorrer do entendimento manifestado no despacho recorrido.
A construtora foi chamada como interveniente principal, em litisconsórcio voluntário com a ré, por se tratar de outro sujeito passivo da relação material controvertida. Trata-se de interveniente que, como parte principal, faz valer um interesse próprio paralelo ao do autor ou ao do réu – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 367.
Já os avalistas do contrato de crédito que havia sido celebrado entre a ré e a construtora X foram chamados a intervir acessoriamente, nos termos do artigo 321.º do CPC “O réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal”, sendo que “a intervenção do chamado se circunscreve à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento”.
Como se diz no despacho recorrido, os avalistas carecem de legitimidade para intervir como parte principal (não são titulares da relação jurídica existente entre o autor e a ré). Mas esse é, exatamente, um dos requisitos para que seja requerida a intervenção acessória. “Só pode ser chamado a título de interveniente acessório quem não goze de condições para intervir na ação como parte principal, isto é, quem careça de legitimidade para tal, nos termos fixados no artigo 316.º” – autores e obra citada, pág. 373.
Como bem se salienta na obra citada, esta figura da intervenção acessória implica a coexistência de duas relações jurídicas – a relação entre o autor e o réu e a relação entre o réu e o terceiro chamado – que, embora distintas, apresentam determinada conexão, traduzida na circunstância de a perda da demanda inicial pelo réu lhe conferir um direito de crédito no âmbito da relação que tem com o terceiro.
Para os efeitos deste artigo 321.º do CPC “a ação de regresso deverá ser configurada caso a caso, apurando-se em que medida um juízo desfavorável ao réu no processo em causa poderá dar azo a que este se arrogue credor de outro, estribando o seu crédito indemnizatório naquilo que fundou a condenação decretada” – autores e obra citada, pág. 374 – e assegurando o efeito de caso julgado que se produzirá também relativamente ao terceiro, nos termos do artigo 323.º, n.º 4 do CPC.
Teixeira de Sousa nos seus “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 2.ª edição Lex, Lisboa, 1997, págs. 178/179 refere que a intervenção acessória provocada se destina a “permitir a participação de um terceiro responsável pelos danos produzidos no réu demandado pela procedência da ação, isto é, um terceiro perante o qual este réu possui, na hipótese de procedência da ação, um direito de regresso. Assim, para justificar esta intervenção não basta um simples direito de indemnização contra um terceiro; torna-se necessário que exista uma relação de conexão entre o objeto da ação pendente e da ação de regresso: essa conexão está assegurada sempre que o objeto da ação pendente seja prejudicial relativamente à apreciação do direito de regresso contra terceiro.”

Ora, é precisamente o que se passa nos autos.
A ré alegou que concedeu um empréstimo à sociedade X, no qual figuravam como avalistas e garantes os ora chamados, V. A. e AN., para construção do prédio em causa nestes autos e que, aquando da finalização do mesmo, tal empréstimo encontrava-se em incumprimento (dívida calculada, à data, em € 2.456.155,16), pelo que, para pagamento dessa dívida, os referidos V. A. e AN. (donos da obra) transmitiram à ré, através de escritura pública de dação em cumprimento, as 25 frações autónomas que integram o prédio aqui em causa, visando, assim, extinguir a dívida da sociedade mutuária e dos avalistas para com a ré Na altura em que foi efetuada a dação em cumprimento, a ré desconhecia em absoluto a existência dos vícios e desconformidades da construção, cuja reparação ou pagamento vêm agora ser peticionados pelo autor e nunca teria aceite receber em dação tal prédio porque, nessa situação, jamais poderia considerar liquidado o empréstimo concedido. Daí que, se a ré vier a ser responsabilizada pela reparação de quaisquer defeitos, terá direito de regresso sobre os referidos dois avalistas, no montante correspondente que vier a ter que pagar ao autor, pois que, nesse caso, a dação em cumprimento das 25 frações não terá sido suficiente para extinguir a dívida que a sociedade construtora e os seus avalistas tinham para com a ré.
Não há dúvida, portanto, que existe a referida conexão entre as relações jurídicas em causa e que a perda da demanda por parte da ré poderá conferir-lhe um direito de crédito sobre os chamados, na medida em que as frações dadas em cumprimento da dívida resultante do mútuo, não seriam, então, suficientes para extinguir aquela dívida.

Procede, assim, totalmente, a apelação, sendo de revogar o despacho recorrido, admitindo-se a intervenção acessória provocada de V. A. e mulher AN., ambos residentes no Lugar ..., freguesia de ..., ... Monção, ao abrigo do disposto no artigo 321.º, n.º 1 do CPC.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido e admitindo-se a intervenção acessória provocada de V. A. e mulher AN., ambos residentes no Lugar ..., freguesia de ..., ... Monção.
Custas pelo apelado.
***
Guimarães, 9 de junho de 2022

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira